Esta pesquisa de mestrado pretende investigar os efeitos do contato linguístico entre o nheengatú, língua indígena da família Tupi-Guarani, e o português brasileiro falado na cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM). Com base na teoria da evolução linguística, da ecologia do contato e da seleção e competição de traços desenvolvida por Mufwene (2001, 2008) e da coleta de dados por meio de trabalho de campo, a intenção é identificar mudanças nas estruturas morfossintáticas do Português L1 ou L2 falado pelos habitantes da região, bilíngues em português e nheengatú. Versão moderna da língua geral amazônica, o nheengatú foi a língua franca e majoritária da província do Amazonas até o final do século XIX, sendo amplamente utilizado por todos os membros do sistema colonial. Hoje, é restrito a algumas comunidades amazônicas – como as da região de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro – e falado principalmente pelos povos Baré, Baniwa e Warekena, em substituição ou junto às suas línguas tradicionais. A atual situação de contato entre o nheengatú e o português e a ecologia multilíngue da região de São Gabriel não se dissociam da história de formação, expansão e retração da língua geral amazônica durante a colonização do Brasil – motivo pelo qual também propomos, além da análise linguística
This MPhil research project investigates the effects of language contact between Nheengatú (a language from the Tupi-Guarani family) and Brazilian Portuguese in the city of São Gabriel da Cachoeira (AM). Based on Mufwene's theory of language contact and evolution (2001, 2008) and by means of collecting data during fieldwork, we search for structural morphosyntactic changes in the speech of bilingual speakers. As a modern version of Língua Geral Amazônica, Nheengatú was the lingua franca of Amazonas until the nineteenth century, when it was widely spoken by all the members of the colonial system. Nowadays it is spoken mainly by the Baré, Baniwa and Warekena peoples in indigenous communities. The current language contact situation between Nheengatú and Brazilian Portuguese is part of the history of Língua Geral Amazônica during the colonial times of Brazil – which is why we also intend to investigate the history of such language beyond the linguistic analyses of the collected data.
Negrão e Viotti (2012) propõem a reconstrução de “uma história linguística” para o português brasileiro. As autoras defendem que, para além do foco linguístico, haja espaço para uma investigação multidisciplinar da história externa das línguas,
Sob essa perspectiva, julgamos ser indispensável para os objetivos e para a justificativa desta pesquisa – já que pretendemos investigar os efeitos do contato linguístico entre o nheengatú, língua indígena da família Tupi-Guarani, e o português brasileiro – um entendimento sobre o contexto histórico e social em que a situação de contato entre essas duas línguas se desenvolveu. Para tanto, é necessário voltar alguns séculos na história do Brasil, recuperando fatos sobre a formação, a expansão e a retração da língua geral amazônica – que passou a ser denominada nheengatú a partir da segunda metade do século XIX (CRUZ, 2011, p. 12). É o que faremos brevemente a seguir.
Os primeiros registros do que viria a ser denominado como “língua geral” datam do século XVI, em documentos que procuravam descrever a “língua brasílica” falada entre a baía de Angra dos Reis e o Rio Maranhão (CRUZ, 2011, p. 5)
Essa acepção do termo ganhou contornos mais específicos a partir do momento em que o nome “língua geral” passou a identificar as línguas de origem Tupi faladas em São Paulo, no Maranhão e no Pará
A língua geral amazônica (LGA), foco desta pesquisa, teria se desenvolvido nesse contexto, a partir do tupinambá, durante a colonização da Amazônia no século XVII. Rodrigues (1996, p. 10) atribui o surgimento dessa variedade à interação dos colonizadores com indígenas Tupinambá e ao nascimento de uma população “mestiça” falante de uma variedade do tupinambá que gradualmente foi-se transformando na LGA
Aqui, cabe um parêntese para aludir resumidamente ao debate na literatura acerca da formação da LGA – entendemos que, para uma pesquisa que pretende mapear os efeitos do contato linguístico entre o português e o nheengatú, é relevante ter em conta que a própria LGA já nasce de uma situação de contato
Como mencionamos, ao longo do século XVII, a LGA passou a ser utilizada como língua franca pelos colonizadores para a comunicação com a população nativa, para a conversão religiosa e para a captura de povos indígenas de diferentes origens étnicas como força de trabalho. Como aponta Cruz (2011, p. 8), a língua geral serviu à Coroa para facilitar a conquista territorial, sendo fundamental para a expansão da colonização portuguesa pela Amazônia, e aos missionários para controlar a diversidade linguística durante o período colonial, com a utilização de apenas uma língua autóctone como veículo de comunicação e catequese. Os jesuítas foram grandes agentes de disseminação da LGA, sobretudo por meio dos “descimentos”
Durante o século XVIII, porém, a percepção da administração de Marquês de Pombal era outra. Na administração pombalina – e de seu irmão Mendonça Furtado, que governou o estado do Maranhão e Grão-Pará em meados do século XVIII –, fortes medidas foram tomadas em favor da língua portuguesa, com o intuito de minar a utilização da LGA e de outras línguas indígenas. A primeira tentativa de proibição da língua geral foi implementada pela Carta Régia de 1727, porém não surtiu o efeito desejado: “o sistema, os agentes e as práticas sociais” – ou seja, a conversão e o controle do trabalho indígena pelos jesuítas, que demonstravam preferência pela LGA – favoreceram a continuidade da expansão dessa língua por pelo menos mais 30 anos (FREIRE, 2003, p. 104). Com o Diretório dos Índios de 1757, a administração pombalina reforçou a obrigatoriedade do uso do português e a proibição da LGA, expulsando os jesuítas e eliminando a “língua geral verdadeira”, variedade mais próxima do tupinambá e normatizada pelos padres para os cultos (FREIRE, 2003, p. 59). Porém, a “língua geral corrupta”, falada no dia a dia, sobreviveu ao banimento oficial e permaneceria por mais um século como língua franca na Amazônia (FREIRE, 2003, p. 110).
O declínio da LGA/nheengatú como língua majoritária da região se deu entre o final do século XIX e o início do século XX, segundo a literatura, por uma série de fatores não linguísticos. Rodrigues (2003), Freire (2003) e Cruz (2011) mencionam como os principais motivos do quase desaparecimento da LGA nesse período: 1) o genocídio de seus falantes durante a repressão à revolta da Cabanagem (1835-1840), que matou 40 mil pessoas; 2) as mortes na Guerra do Paraguai (1864-1870), para a qual foram convocados milhares de homens falantes de LGA; 3) o aumento da escolarização, feita em língua portuguesa; 4) as mudanças no sistema de transportes e comércio, que facilitaram o contato com falantes de português; e, sobretudo, 5) a migração massiva de trabalhadores nordestinos, falantes unicamente do português, para os seringais amazônicos entre as décadas de 1870 e 1910.
Navarro (2012, p. 250) considera que, na segunda metade do século XX, a “modernização conservadora” e o “avanço da sociedade de consumo” a partir dos anos 1970, somados ao êxodo da população rural para as cidades e ao maior acesso à escolarização e à internet, enfraqueceram o uso da LGA/nheengatú, principalmente entre a população mais jovem. Por tais fatores, entre meados do século XIX e o final do século XX, a LGA/nheengatú passou de língua franca de ampla utilização para uma língua minoritária, “indigenizada, circunscrita apenas às aldeias e aos usos restritos das práticas sociais nelas exercidas” (FREIRE, 2003, p. 148)
O cenário histórico resumidamente desenhado até aqui nos interessa porque dele faz parte a região do Alto Rio Negro, onde se localiza São Gabriel da Cachoeira, município no qual concentraremos a pesquisa. A 852 quilômetros de Manaus, São Gabriel tem cerca de 46 mil habitantes
Embora haja comunidades em que o nheengatú é utilizado na interação diária, sendo transmitido para as crianças (CRUZ, 2011, p. 16), e que a língua tenha sido oficializada no município em 2006 em um caso inédito no Brasil
A partir da breve contextualização exposta acima, pretendemos introduzir as particularidades da situação de contato entre o português e o nheengatú, especialmente em São Gabriel da Cachoeira. Com isso, a intenção era, em primeiro lugar, atentar para o fato de que as diversas variedades do português no Brasil emergiram de contextos igualmente diversos de extremo multilinguismo e contato entre línguas (NEGRÃO E VIOTTI, 2012, p. 322); e, em segundo lugar, demonstrar que um dos objetivos desta pesquisa é justamente tentar contribuir para a construção dessa “história linguística”.
Assim como Negrão e Viotti (2012), nos baseamos na teoria da evolução linguística de Mufwene (2001, 2008): ao sugerir que “cada ecologia [de contato] é única e se relaciona unicamente com o caso de evolução linguística específico a ela”, Mufwene (2008, p. 7, tradução nossa)
Essa é uma visão de língua que revoluciona o ponto de vista dicotômico sobre mudança motivada interna
Overall, answers to diverse questions about language evolution, such as why a particular language was restructured and in what specific ways, or why a particular language was/is endangered,
Notemos que, não à toa, o autor prefere o termo “evolução” à “mudança”, embora sua definição para o primeiro pareça se encaixar ao segundo: “By evolution, I mean no more than the long-term changes undergone by a language (variety) over a period of time. They involve a succession of restructuring processes which produce more and more deviations from an earlier stage” (MUFWENE, 2001, p. 12).
No entanto, ao optar por “evolução”, Mufwene traça um paralelo entre a mudança linguística e a evolução das espécies na biologia – uma escolha que passa pelo reconhecimento das condições ecológicas do contato como deflagradoras do processo de mudança. A diversidade e a intensidade da evolução das línguas dependeriam, então, das especificidades de cada ecologia (MUFWENE, 2001, p. 14), que devem ser analisadas.
É também da biologia que Mufwene empresta a explicação do processo de reestruturação das línguas em situação de contato. Sua hipótese é a de que, assim como acontece com os genes na evolução biológica, os traços das línguas ou dialetos em interação entram em uma dinâmica de competição e seleção. Para se acomodarem da melhor forma às necessidades comunicativas dos indivíduos, características fonológicas, morfossintáticas, lexicais, semânticas e pragmáticas, que integram e competem no banco de traços
Linguistic evolution proceeds by natural selection from among the competing alternatives made available
Nos grifos acima, chamamos a atenção para a afirmação de que todo esse processo começa a nível individual, isto é, no idioleto de cada falante. Afinal, o processo de seleção e competição reside na acomodação de cada idioleto, por meio de uma convergência de traços linguísticos – “eliminando alguns, aceitando novos ou mesmo modificando seus respectivos sistemas individuais” (MUFWENE, 2001, p. 151, tradução nossa)
Munido de tal perspectiva, Mufwene (2001, p. 150) apresenta a mente do falante como o lugar do contato entre dialetos ou línguas – o que se mostra relevante para os casos de bilinguismo, como o que pretendemos investigar nesta pesquisa. Para o autor, é duvidoso que exista um bilinguismo “realmente coordenado”, em que os dois sistemas linguísticos sejam mantidos separadamente na mente do falante (MUFWENE, 2001, p. 14). A esse respeito, Hickey (2010, p. 8, tradução nossa)
A speaker’s knowledge of more than one language makes one linguistic system part of the ecology for the other, just as much as knowledge of competing structural features of the same language used by other speakers makes them part of the ecology for the speaker’s own features (...) One speaker’s features may affect another speaker’s way of speaking, thereby setting conditions for long-term change in the overall structure of a language qua species. (p. 152)
A resumida exposição dos pressupostos de Mufwene que aqui fizemos apresenta as principais bases teóricas para esta pesquisa, uma vez que consideramos relevante entender também as particularidades históricas, sociais e culturais da ecologia de contato quando analisando os efeitos linguísticos dessa situação – sobretudo em contextos de extremo multilinguismo como aqueles em que surgiram as diferentes variedades do português brasileiro e, mais especificamente, aquele de São Gabriel da Cachoeira, que pretendemos investigar.
Nesse sentido, é a partir da apresentação da história de formação, expansão e retração da língua geral amazônica/nheengatú – que é também a história do contato dessa língua com o português –, assim como das características linguísticas básicas do município de São Gabriel da Cachoeira, que justificamos a relevância desta pesquisa. Entendemos que a investigação do tema pode trazer descobertas interessantes, uma vez que essa língua da família Tupi-Guarani, já desenvolvida em um ambiente multilíngue, foi a mais falada da província do Amazonas até pouco mais de cem anos atrás, estando seu declínio associado à intensificação do contato com a língua portuguesa. Além disso, a ecologia multilíngue de São Gabriel da Cachoeira e o alto número de falantes bilíngues em nheengatú e português são indícios de que as gramáticas dessas duas línguas se afetam mutuamente nesse contexto.
Já existem, aliás, estudos que comprovam as influências do contato com o português nas estruturas gramaticais do nheengatú, como o de Facundes, Moore e Pires (1994) e a própria gramática de Cruz (2011). Embora o nheengatú tenha sido estudado sob essa perspectiva e sob outros vieses enquanto uma língua de contato, como mostramos acima, e embora já se tenham produzido pesquisas sobre sua gramática e história – as quais certamente consultaremos –, em uma busca prévia não encontramos nenhuma investigação especificamente acerca dos efeitos do contato com o nheengatú nas estruturas gramaticais do português dentro dessa ecologia, justamente o que esta pesquisa pretende analisar.
Enquanto os estudos sobre o contato entre o português brasileiro e as línguas africanas são cada vez mais abundantes e elucidativos, acreditamos que ainda falta entendimento sobre como as línguas indígenas contribuíram para a formação da nossa língua portuguesa, para além dos empréstimos lexicais. Ademais, defendemos que a hipótese de seleção e competição de traços pode trazer um novo olhar para os estudos do contato entre o português e as línguas africanas e indígenas no Brasil. Essa hipótese vê a reestruturação das línguas como um processo gradual e “transmitido” também horizontalmente (entre pares) e bidirecionalmente (de crianças para adultos), e não apenas verticalmente, dos falantes mais velhos para os mais novos (MUFWENE, 2001, p. 16). Com essa perspectiva estendida para a evolução de toda e qualquer língua, Mufwene descarta a particularização das chamadas “línguas de contato”, como os
A partir desse novo olhar, portanto, esta pesquisa pretende identificar os fatores ecológicos que determinam os efeitos do contato entre o português e o nheengatú, assim como analisar esses efeitos sob a perspectiva da teoria de seleção e competição de traços – que julgamos capaz de explicar esse fenômeno. Consideramos que entender como o contato com o nheengatú afeta as estruturas morfossintáticas do português falado pelos habitantes de São Gabriel da Cachoeira é uma forma de colaborar para a construção de “uma história linguística” da língua portuguesa nessa região, como sugerem Negrão e Viotti (2012). Para além disso, acreditamos que esta pesquisa pode se desdobrar em futuras investigações de escopo mais amplo a respeito da existência de outras variedades indígenas no português brasileiro.
O objetivo geral desta pesquisa é investigar os efeitos do contato linguístico entre o nheengatú e o português brasileiro na cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM). Mais especificamente, pretende-se identificar nas estruturas morfossintáticas do português L1 ou L2 dos falantes de nheengatú vestígios advindos dessa situação de contato.
Para atingir tal objetivo geral, elencamos os seguintes objetivos específicos:
· Realizar, em um primeiro momento, um levantamento contundente de referências bibliográficas sobre as teorias do contato linguístico e de estudos sobre a língua geral amazônica/nheengatú e o português da região amazônica;
· Levantar dados de gravações já disponíveis da fala de uma informante bilíngue em nheengatú e português;
· Realizar trabalho de campo em São Gabriel da Cachoeira, para captar a fala de novos informantes;
· Buscar nos dados disponíveis estruturas morfossintáticas que corroborem a tese de que o contato com o nheengatú provoca mudanças no português dos falantes de São Gabriel da Cachoeira;
· Analisar e explicar quais efeitos seriam esses, sobretudo com base na teoria de competição e seleção de traços apresentada por Mufwene (2001, 2008).
Se queremos investigar os efeitos do contato linguístico entre o nheengatú e o português – e se entendemos, como propôs Mufwene (2001, 2008), que as mudanças nas estruturas das línguas ocorrem, primeiro, a nível individual, na acomodação de traços no idioleto de cada falante –, é essencial dispormos de dados produzidos por falantes reais para a análise. O trabalho de campo para a coleta da fala desses indivíduos é, portanto, indispensável. Dessa forma, pretende-se realizar uma viagem de campo a São Gabriel da Cachoeira, a fim de captar gravações com falantes de Português L1 e L2, bilíngues em nheengatú e português. Vale dizer que já dispomos de gravações de uma informante, captadas pelo professor Thomas Finbow, das quais foram extraídas hipóteses preliminares, apresentadas a seguir apenas a título de exemplo do tipo de análise que faremos. Pretendemos extrair e analisar dados dessas gravações desde o início da pesquisa, antes mesmo da realização do trabalho de campo para a coleta de mais dados.
A partir das gravações, será feita a transcrição completa e, então, a extração de sentenças cujas estruturas morfossintáticas aparentam resultar da situação de contato com o nheengatú. Com base na teoria de seleção e competição de traços linguísticos proposta por Mufwene (2001, 2008), buscaremos convergências e divergências entre as propriedades gramaticais do português e do nheengatú a fim de entender o processo de seleção e levantar hipóteses sobre as razões das mudanças operadas pelo contato – a gramática do nheengatú elaborada por Cruz (2011) será, nesse sentido, uma importante aliada.
A seguir, apresentamos brevemente hipóteses extraídas das gravações já disponíveis da fala de uma informante de origem Baré e Baniwa, bilíngue em nheengatú e português. É importante ressaltar que se trata de uma suspeita inicial e que faremos aqui apenas comentários superficiais com base em propriedades das gramáticas das duas línguas – evidentemente, as análises serão desenvolvidas de maneira mais minuciosa no decorrer da pesquisa.
(1) aí pronto ele acordou
(2) aí
(3) aí
(4) ah nem ligaram deixaram ele acho que esfriou um pouquinho
(5) aí
(6) aí
(7) rolou foi deitar lá embaixo como aqui dormindo fingindo
Os enunciados acima foram produzidos pela informante durante a narração de uma história tradicional em português. Como os grifos indicam, é possível perceber o uso frequente da expressão “dizque”. Analisando outros contextos de fala da informante em português, observamos a ocorrência frequente de “dizque” sobretudo quando ela reconta histórias tradicionais, e é exatamente essa tradução que Cruz (2011) atribui à partícula de reportativo
“A partícula de reportativo
Partículas de reportativo como
De acordo com a autora, a semântica de “dizque”, tanto no português do Brasil quanto no espanhol latino-americano, é bem variável, podendo expressar dúvida ou uma atitude negativa do falante em relação à informação, por exemplo (AIKHENVALD, 2007, p. 219). Seus significados, assim, se sobrepõem àqueles de evidenciais gramaticais, podendo envolver falas reportadas, citações, inferências e suposições. O uso da expressão parece ser um mecanismo diferente daquele verificado no emprego de itens lexicais para se referir à fonte da informação – segundo Aikhenvald (2007), “dizque” pode estar em um caminho de gramaticalização nessas variedades do português e do espanhol.
A autora recupera os parâmetros de Giacalone-Ramat e Topadze para descrever tal caminho e defende que são esses os processos encontrados em variedades do espanhol latino-americano e do português do Brasil: “1) decategorization (i.e., loss of inflectional distinctions), 2) positional freedom, 3) variability in scope (i.e., single constituent vs. entire clause scope), 4) semantic erosion” (AIKHENVALD, 2007, p. 219). A partir de nossa análise preliminar, suspeitamos que a ocorrência de “dizque” na fala da informante em contextos de narração de histórias tradicionais tem relativa liberdade sintática de posição; além disso, a expressão não parece constituir uma unidade prosódica de sentido isoladamente, pista que também pode nos ajudar a definir seu escopo na sintaxe.
Como aponta Aikhenvald (2007), expressões que marcam a fonte da informação em línguas em que essa marca não necessariamente é obrigatória frequentemente se gramaticalizam, e a evidencialidade gramatical é um traço altamente difundido por contato. Assim, nossa suspeita – de acordo com a teoria do contato linguístico e da seleção e competição de traços de Mufwene (2001, 2008) apresentada acima – é a de que a expressão “dizque” esteja em um processo avançado de gramaticalização na variedade do português brasileiro em contato com o nheengatú, sendo utilizada de maneira semelhante à partícula de reportativo
(8) Ape,
Dizem que, então, (ele) demorou (um) pouco; dizem que (ele) viu aquele – como é mesmo? – o guariba.
(9) Wariwaitá nhaã inayá iwa resé,
Contam que (os) guaribas (estavam) naquele pé de inajá.
(10) Yawé waá,
Contam que foi assim: o jabuti chegou (e) ele viu.
(11) Ape,
Dizem que, então, o jabuti mordeu, (ele) sentou.
(12) Ta[u]yapi,
Contam que (eles) jogaram para ele.
Notamos, nessas sentenças em nheengatú, paralelismos entre as ocorrências de
As hipóteses brevemente expostas acima ilustram o tipo de análise que se pretende fazer partindo da teoria de competição e seleção de propriedades gramaticais das línguas em contato. O recorte teórico de Mufwene é consistente nesse sentido, uma vez que nos permite identificar características divergentes (no caso, a marcação gramatical ou lexical da fonte da informação no discurso) e convergentes (a semântica de
Desse modo, na investigação das gravações já disponíveis e durante o trabalho de campo para a captação de novos dados, pretendemos dar atenção especial aos relatos de histórias pessoais e às narrativas de histórias tradicionais, pois acreditamos que tais contextos de fala espontânea e expressão cultural sejam mais suscetíveis aos fenômenos de contato linguístico. Evidentemente, análises mais aprofundadas de um corpo maior de dados serão necessárias para confirmar as suspeitas preliminares aqui apresentadas.
Pretendemos, ainda, aliar a essa análise qualitativa uma análise quantitativa, por meio da verificação da frequência com que as estruturas identificadas como resultantes desse processo ocorrem na fala dos informantes. De posse dos dados coletados, extraídos e padronizados no formato adequado, utilizaremos para tal fim o Programa R, software de análise de dados. Entendemos que combinar a análise qualitativa e teórica a uma análise quantitativa de frequência nos levará a resultados mais precisos sobre as hipóteses desta pesquisa, levantadas a partir dos dados de falantes reais.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo fomento a esta pesquisa. Ao professor Thomas Daniel Finbow, pelas gravações disponibilizadas e pela orientação sempre precisa e proveitosa. À dona Marlene, pela narração das histórias tradicionais aqui analisadas.
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Em relatos de Anchieta (1584), Sousa (1587) e Nieuhof (1682), a língua “mais falada da costa do Brasil” é descrita, respectivamente, como “uma só língua”; “uma língua que é quase geral”; e “a mesma língua que difere apenas nos dialetos”.
Alguns exemplos de “línguas gerais” da América Espanhola referidos por Altman (2003) e recuperados por Cruz (2011) são o náhuatl, no México; o quéchua, falado em um território inca que compreendia do Equador ao Chile; o aymara, na Bolívia e no Peru; e o guarani, na região que hoje abrange parte do Paraná e o Paraguai.
Embora Rodrigues (1996) afirme que na faixa costeira entre os atuais estados do Rio de Janeiro e do Piauí não houve a formação de uma língua geral nesses termos, Argolo (2013) argumenta em favor da existência de uma língua geral, assim denominada em registros da época, no sul da Bahia.
Durante o século XVII, o termo “língua geral” ainda era usado para se referir a uma variedade mais próxima do tupinambá, falada por alguns padres jesuítas e que não era apenas a língua dos mestiços, mas também a de povos não contatados. Por exemplo, no relato de uma entrada pelo rio Tocantins na década de 1650, o padre João Felipe Bettendorff (1909, p; 110) menciona o primeiro contato do padre Velloso com indígenas Tupinambá “em sua língua própria”.
De acordo com Facundes, Moore e Pires (1994), o nheengatú passou por processos rápidos e intensos de mudança devido ao contato com o português, sendo a forma moderna da língua bastante diferente da língua geral amazônica do Brasil colonial.
A classificação do tupinambá como uma língua
Indígenas também eram capturados por colonos nas “guerras justas” ou em operações de “resgate” da antropofagia. Para entender o recrutamento da força de trabalho indígena, ver Freire (2003).
A esse respeito, Barros, Borges e Meira (1996) observam o uso da língua geral/nheengatú como instrumento político de afirmação étnica em áreas caracterizadas pelo multilinguismo.
Estimativa do IBGE feita em 2020. Disponível em: https://bit.ly/36U9xmk. Acesso em outubro de 2020.
Para mais informações, ver relatório “O Brasil indígena: os indígenas no censo demográfico de 2010”,
Alguns Baniwa e Warekena ainda falam suas línguas ancestrais, embora o warekena seja considerado uma língua ameaçada. Indígenas Nadëb (trilíngues) e anciães Dâw (com mais de 50 anos) também falam nheengatú.
Aprovada pela Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira em 2002 e regulamentada pelo prefeito da cidade em 2006, a lei 145/2002 cooficializa, junto ao português, as línguas nheengatú, tukano e baniwa, garantindo mais direitos aos seus falantes. Isso significa que as línguas cooficiais devem ser utilizadas localmente, além do português, nos serviços públicos, em placas, nos bancos, em documentos oficiais, nas escolas e em programas de rádio, por exemplo. Na prática, porém, há diversos obstáculos para a retomada da ampla utilização dessas línguas. Ver Silva (2013).
Escreve Cruz (2011, p. 19): “A transmissão do nheengatú para as crianças depende do grau de fluência em português dos pais, de modo que algumas crianças chegam à escola como monolíngues em nheengatú e outras chegam à escola como bilíngues em português. Os adolescentes são todos bilíngues.”
No original, em inglês: “(...) every ecology is unique and bears uniquely on the case of language evolution that is specific to it”.
Tradução de Negrão e Viotti (2012) para o que Mufwene designa
No original, em inglês: “Nothing by way of focusing or change would take place without individuals interacting with one another, setting their respective features in competition and having to accommodate one another by dropping some features, or accepting some new ones, or even by modifying their respective individual systems”.
Usamos a palavra “fim”, nesse caso, de forma relativa, já que entendemos que as línguas estão em constante processo de mudança.
No original, em inglês: “The communicative competence of the bilingual then includes making the appropriate choices of structures for communication in given contexts”.
Por não entendermos os efeitos do contato entre o português e o nheengatú como um processo de crioulização, não entraremos a fundo nessa discussão no escopo deste projeto, mas estaremos atentos aos debates sobre crioulização e descrioulização de variedades do português brasileiro no decorrer da pesquisa.