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Pilot Study

Humor and argumentation in the child's speech: a bakhtinian approach

Alessandra Jacqueline Vieira

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https://orcid.org/0000-0002-3216-6107

Alessandra Del Ré

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Keywords

Humor
Argumentation
Language Acquisition
Bakhtinian Perspective

Abstract

From a dialogical-discursive perspective (BAKHTIN, 1997,1995; SALAZAR-ORVIG, 1999, 2010; FRANÇOIS, 1994, 2009; DEL RÉ; MENDONÇA; DE PAULA, 2014a and 2014b), which takes into account discursive movements, the situational contexts, the interaction between the child and the other, the dialogue between discourses etc., in this work, we intend to investigate how argumentation and humor are related in the child's speech, from the rupture / incongruity that takes place in the dialogue, analyzing the statements produced by two Brazilian children (G. and S., 24-42 months), both speakers of Brazilian Portuguese (PB), filmed in a situation of interaction with parents and in natural contexts . The initial results show that the counter-argument, in particular, has an important role, considering that it is at the moment of an opposition to the argument brought up by one of the interlocutors that a type of incongruity / rupture seems to arise in the speech and can be resolved in a playful and fun way.

Introdução

A partir de uma perspectiva dialógico-discursiva (BAKHTIN, 1997,1995; SALAZAR-ORVIG, 1999, 2010; FRANÇOIS, 1994, 2009; DEL RÉ; MENDONÇA; DE PAULA, 2014a e 2014b), que leva em consideração os movimentos discursivos, os contextos situacionais, a interação entre a criança e o outro, o diálogo entre discursos etc., pretende-se, neste trabalho, investigar de que modo a argumentação e o humor estão relacionados na fala da criança, a partir da ruptura/incongruência que ocorre no diálogo, analisando os enunciados produzidos por duas crianças brasileiras (sendo um menino, G., e uma menina, S.)1, ambas falantes do português do Brasil (PB), monolíngues, filmadas em situação de interação com os pais e em contextos naturalísticos e cotidianos, dando continuidade às investigações realizadas sobre o tema (VIEIRA; DEL RÉ, 2019).

Esses dados pertencem ao banco de dados do grupo NALingua-CNPq2 (DEL RÉ; HILÁRIO; RODRIGUES, 2016) e foram gravados em situações cotidianas de interação entre a criança e um interlocutor do meio familiar (como os pais, a avó, a babá, a observadora etc.). Tal corpus foi transcrito a partir da ferramenta CHAT-CLAN, (MACWHINNEY, 2000), cujas normas foram traduzidas para o português (DEL RÉ; HILÁRIO; MOGNO, 2014)3. Para a seleção dos fragmentos analisados nesta pesquisa, buscamos observar os fenômenos da argumentação e do humor, a partir de alguns fios condutores, entre eles, as rupturas (incongruências) no diálogo, que ora apontam para uma argumentação ora para um episódio de humor ou para ambos os fenômenos, simultaneamente. Trata-se, portanto, de verificar como esses três elementos se entrecruzam na fala da criança.

Nesse viés, podemos definir o humor como um fenômeno que é efetivamente social, ligado às situações afetivas e emotivas, que vão além do apenas fazer rir e de questões gramaticais (DEL RÉ, 2003; DEL RÉ, 2011), pois envolve questões culturais, sociais, ideológicas etc. Embora haja muitos trabalhos sobre o humor adulto, ainda há poucas pesquisas sobre o humor na criança. Em ambos, dois consensos: a dificuldade de uma definição que de fato abranja o fenômeno e a existência de um elemento considerado imprescindível tanto pelo viés da produção quanto da compreensão/apreciação: a incongruência, a violação de uma expectativa no discurso (RASKIN, 1985; ATTARDO, 2001). Em outros trabalhos que, assim como o presente artigo, fazem parte de projetos mais amplos sobre humor (Projet RIHA/França e PQ-CNPq), pudemos verificar na fala de S. e G. (24-48 meses) que este elemento, associado a outros três (recuo, intencionalidade/querer dizer e saber partilhado) são fundamentais na produção do humor infantil (DEL RÉ et al., 2017; DEL RÉ et al., 2019 etc.).

Já o discurso argumentativo, tomado aqui, baseia-se na proposta trazida por Leitão (2001, 2007a, 2007b, 2008) de “uma atividade discursiva que se caracteriza pela defesa de ponto de vista e leva em consideração perspectivas contrárias” (LEITÃO, 2007a, p. 57), sendo composta por três elementos fundamentais, o argumento, o contra-argumento e a resposta, que constituem uma unidade de análise efetiva - considerada por ela sob três pontos de vista (discursivo, psicológico e epistêmico). Para a autora, a argumentação é um processo cognitivo que possibilita a reflexão e a transformação do conhecimento, sendo um fenômeno importante na aquisição do pensamento reflexivo e do conhecimento na criança.

Em estudos anteriores (DEL RÉ, 2003; DEL RÉ, 2011; VIEIRA, 2011; VIEIRA, 2015), trabalhamos, separadamente, com a questão da argumentação no discurso infantil, da importância desses elementos para a constituição da subjetividade, de seu funcionamento e sua contribuição ao emergir no discurso infantil, e com a questão do humor, verificando o modo como a criança produzia enunciados humorísticos. Naquele período, durante as análises dos fenômenos isoladamente, já verificávamos uma importante relação entre a argumentação e o humor, especialmente quando certas incongruências na produção de um enunciado argumentativo iniciavam uma ruptura que causava o riso no interlocutor e/ou no próprio locutor.

Dessa maneira e dando continuidade ao desenvolvimento de trabalhos sobre esse cruzamento entre argumentação e humor4, o que propomos agora é identificar em quais contextos tal intersecção pode ser observada, partindo da análise de dados de fala das crianças selecionadas, uma vez que estes fenômenos podem revelar peculiaridades no processo de aquisição de linguagem e, além disso, nos auxiliar na reflexão sobre a aquisição e o desenvolvimento da linguagem, uma área que está crescendo e carece de atenção e pesquisa, principalmente porque ainda são pouco exploradas em outros contextos como o das crianças que fazem uso da língua de sinais brasileira. Desse modo, acreditamos que, os resultados deste estudo poderão contribuir para melhor compreender esse ainda misterioso mundo da linguagem da criança.

1. A perspectiva dialógico-discursiva bakhtiniana e a Aquisição da Linguagem da criança

Apesar de haver uma variedade de abordagens teóricas em Aquisição da Linguagem, cada qual olhando para a fala da criança a partir de diferentes pontos de vista, neste trabalho serão discutidas as questões suscitadas pela abordagem dialógico-discursiva (François, 1994, 1988, 1989, 2006; Salazar-Orvig, 2010a, 2010b; Del Ré et al, 2014 a e b). Acreditamos, pois, que a interação e as relações sociais da criança com os outros sujeitos – e outros discursos – são fundamentais para o processo de aquisição da linguagem.

Apesar de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev5 não terem tratado especificamente das noções que envolvem a aquisição da linguagem, seus postulados vão ao encontro de muitas questões que são essenciais, a nosso ver, para entendermos de que forma a criança lida com a lingua(gem) desde o momento em que nasce até os três anos de idade, período em que, em geral, na literatura nos estudos em Aquisição da Linguagem, considera-se que ela já teria adquirido os elementos essenciais de uma (ou mais) língua para se comunicar. No entanto, suas ideias nesse campo de estudo ainda são recentes e pouco tratadas:

A utilização da teoria bakhtiniana para explicar as produções orais infantis no Brasil é bastante recente, com poucos trabalhos sobre o tema relacionado, como os de De Lemos (1994) e Komesu (2002), em que as autoras trazem algumas reflexões de Bakhtin para o campo da aquisição do oral. Há alguns outros trabalhos que podem ser encontrados, porém não com o viés e as noções aplicadas em nossas pesquisas (DEL RÉ; HILÁRIO; VIEIRA, 2012, p. 59)

Fora do Brasil, a inspiração para esse olhar vem dos trabalhos de Salazar-Orvig (1999; 2010a; 2010b) e François (1994; 2006). Nesse viés, acreditamos que uma abordagem que busca analisar a fala da criança à luz de uma teoria que leva em consideração a interação, a relação entre os falantes, os discursos que envolvem a fala da criança, a ideologia por detrás desses discursos, dentre outras noções, é fundamental para compreendermos o próprio funcionamento da linguagem. Sendo assim, nossas reflexões partem das discussões que vêm sendo realizadas sobre aquisição da linguagem dentro grupo GEALin/NALíngua, em colaboração com os grupos GED e SLOVO, que resultou em dois livros, além de alguns artigos (DEL RÉ; PAULA; MENDONÇA, 2014a; 2014b; DEL RÉ et al, 2012).

Esse novo olhar – bakhtiniano6 – nos permite melhor vislumbrar o funcionamento da linguagem, que deve ser analisado a partir da relação entre os indivíduos, no uso concreto da língua, o que nos faz refletir sobre os pontos importantes que envolvem a linguagem e sua utilização em diferentes esferas de atividades, como, por exemplo, em casa, na escola, na universidade etc. Em seus trabalhos, Bakhtin, Voloshinov e Medvedev pontuam sobre a linguagem e os discursos, possibilitando uma nova visão sobre as teorias que vinham sendo desenvolvidas e uma forma diferenciada de encarar os fatos da língua/linguagem.

Partindo das ideias dos membros do Círculo, quando queremos dizer algo, não selecionamos palavra por palavra para criar o sentido, mas pensamos no todo de nosso intuito discursivo. Desse modo, ao enunciarmos, moldamos nossa fala de acordo com o contexto, para aquela esfera social específica na qual estamos inseridos, a partir de enunciados relativamente estáveis, o que Bakhtin denomina gêneros do discurso.

Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos a gramática. A língua materna — a composição de seu léxico e sua estrutura gramatical —, não a aprendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam. Assimilamos as formas da língua somente nas formas assumidas pelo enunciado e juntamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida. Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas) (BAKHTIN, 1997, 301-302).

Para Bakhtin, o enunciado só pode ser entendido no interior do todo verbal. Ou seja, quando falamos, relacionamos nosso enunciado a tudo o que já foi dito sobre o ‘objeto’, levamos em conta quem é nosso interlocutor e pressupomos ou nos precavemos de suas possíveis respostas.

O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um mudo “dixi” percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou (BAKHTIN, 1997, p. 293).

Os sujeitos de uma dada comunicação se interrelacionam, e todo o processo real de comunicação está ligado à noção de dialogia. É por meio de relações dialógicas, do gênero, que a criança é inserida na ideologia de seu mundo social, na sua língua materna e em sua própria cultura. É nesse sentido, também, que podemos afirmar que a dialogia é um ponto fundamental na análise das questões abordadas neste trabalho.

A dialogia, para o autor citado [Bakhtin], deve ser posta na grande temporalidade que envolve passado, presente e futuro. As memórias (do passado e do futuro, esta centrada nas antecipações da resposta do outro) são parte constitutiva do enunciado que é produzido, constituindo sua historicidade e singularidade, as quais são inseparáveis (MENDONÇA, 2006, p. 18)

Na fala da criança, todas essas nuanças de constituição dos aspectos da linguagem (seus enunciados) vão se consolidando ao longo de seu desenvolvimento, conforme ela se relaciona com o outro e adquire, aos poucos, essas sutilezas que envolvem a comunicação. Uma criança não aprende as palavras isoladas, ao contrário, ela as recebe (fala dirigida à criança) em forma de enunciados, contextualizados, na relação com o outro, para posteriormente aplicá-las em situações comunicativas completamente diferentes. Sendo assim, a criança entra na língua por meio dos gêneros discursivos (SALAZAR-ORVIG, 1999, 2010a, 2010b) e, aos poucos, vai adquirindo a capacidade de fazer uso desses gêneros (que compõem esferas de comunicação distintas) e, também, dos enunciados alheios com o passar do tempo. Isso significa que ela não aprende apenas elementos puramente linguísticos durante seu desenvolvimento, mas, principalmente, ela compreende gradativamente a forma como deve relacionar esses elementos à sua própria realidade de linguagem, aprimorando-os, modificando-os etc., conforme sua necessidade no momento da enunciação.

Para a compreensão da linguagem da criança, é necessária a contextualização, e essa interpretação não diz respeito apenas ao contexto ou à situação, mas também a todos os elementos discursivos que estão implicados, como a entonação, a memória discursiva, a noção do outro etc. A criança, antes mesmo de começar a falar, já é exposta à língua de sua comunidade, à entonação, às nuances dessa língua, que não existe a priori, mas é construída nas relações, e é a partir desse contato que ela compreende e depois passa a utilizar os elementos linguísticos e extralinguísticos característicos. Sendo assim, as relações sociais das quais a criança participa são fundamentais para seu desenrolar linguístico e linguageiro, especialmente no início de seu desenvolvimento:

Existe a outra palavra como palavra do outro em relação ao próprio eu identitário e como palavra de outra pessoa, “o mesmo” e “o diferente”, “o diverso” e “o oposto”, reduzido também esse, nos lugares da ordem do discurso, ao eu identitário, assimilado, representado, julgado, tolerado, segregado, posto fora de lugar. Mas é preciso uma palavra outra para encontrar o outro de si mesmo, e o outro de si mesmo como outra palavra não representável, não assimilável, não julgável. É preciso a palavra que cala e a palavra que escuta (PONZIO, 2010, p. 11).

Segundo Bakhtin (1997), a própria vida de uma pessoa é, antes de tudo, contada pelos outros (enquanto interlocutor ativo, uma vez que o outro está sempre em nós, mesmo que em sua ausência física), pois não se sabe ao certo o que se passou no início de sua existência e ninguém se lembra dos primeiros passos, das primeiras palavras, do nascimento etc., sendo todas essas informações transmitidas pelos outros, como, por exemplo, os pais, os avós, os tios, babás etc.

Essa díade [mãe-criança], os atos amorosos e as palavras da mãe contribuem para revelá-la com seu tom emotivo-volitivo que impregna o clima em que se individualiza e se estrutura a personalidade da criança, um clima imbuído de amor no qual ela encontrará seu primeiro movimento, sua primeira postura no mundo. A criança começa a ver-se, pela primeira vez, pelos olhos da mãe, é no seu tom que ela começa também a falar de si mesma, como que se acariciando na primeira palavra pela qual expressa a si mesma; assim ela emprega, para falar da sua vida, das suas sensações internas, os hipocorísticos que lhe vêm da mãe: tem sua “babá”, faz sua “naninha”, tem “dodói”, etc., e, dessa maneira, determina a si mesma e a seu próprio estado através da mãe, através do amor que ela lhe traz na qualidade de destinatária de seus favores, de suas carícias, de seus beijos. Sua forma parece trazer a marca do abraço materno. (BAKHTIN, 1997, p. 120).

Podemos enfatizar novamente que a palavra apreendida pela criança não é nem decorada nem imposta, não possui um significado único, nem mesmo encontra-se alojada em seu cérebro, como se ele fosse um recipiente já preenchido, mas ganha sentido - seu tom emotivo-volitivo -, no processo efetivo de comunicação; a criança não é, então, apenas um sujeito passivo, uma tábula – rasa, que somente memoriza uma espécie de dicionário da língua e recebe a palavra do outro, mas aprende a fazer uso dos gêneros e das palavras nas comunicações por ela empreendidas, dando-lhes novos sentidos a cada enunciação no processo de comunicação.

Nesse sentido, Bakhtin esclarece bem essa questão, que resume a nossa compreensão da linguagem e da língua e sobre o início da aquisição da linguagem:

A língua materna — a composição de seu léxico e sua estrutura gramatical —, não a aprendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam. Assimilamos as formas da língua somente nas formas assumidas pelo enunciado e juntamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida. Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). (BAKHTIN, 1997, p. 301).

A teoria bakhtiniana serve como base para olharmos os aspectos de Aquisição da Linguagem e, além disso, refletir sobre os fenômenos advindos do processo de adquirir a língua materna, como o humor e a argumentação.

2. Humor na fala da criança

As noções teóricas relacionadas ao humor, em especial na fala da criança, vêm sendo investigadas há algum tempo, devido à sua comprovada importância para o desenvolvimento de competências linguageiras e de aprendizagem (BARIAUD, 1983; AIMARD, 1988; DEL RÉ, 2011; DEL RÉ; MORGENSTERN, 2009; DEL RÉ; DODANE; MORGENSTERN, 2015; DEL RÉ et al., 2017). O que podemos observar é que o riso, como uma das manifestações do humor, possui papel importante na socialização linguageira infantil, além de poder gerar empatia, um ingrediente importante no processo de aquisição/aprendizagem de línguas (BAKHTIN, 1997).

Sabe-se que o humor pode ser um importante componente cognitivo e que cada cultura elege seus componentes; do que se ri em uma cultura, pode não ser o mesmo que faz com membros de outra cultura ria. Outro ponto a ser considerado é que o humor pode variar com o tempo. É que o verificamos claramente no Brasil. Muitos programas humorísticos atuais (como “Zorra Total”, “Tá no ar” etc.) mudaram seu formato, visando atingir diferentes públicos. Além disso, na era da tecnologia, muitos “stand ups” surgiram como uma forma de fazer o público rir, aliando assuntos atuais, que “viralizaram” na internet, com outras sátiras da sociedade (por exemplo); no entanto, cada sociedade tem uma maneira de fazer uso do humor.

De acordo com Possenti (2010), estudando diferentes tipos de manifestação do humor (como piadas, chistes, charges, adivinhas etc.) ao longo de mais de dez anos, o humor está ligado, muitas vezes, a estereótipos sociais, como a loira, o português, o bêbado, o comportamento brasileiro, o corintiano etc. Há sempre uma relação com estereótipos populares, ligados às noções culturais que um povo cria em relação a algo.

Partindo das concepções da Análise do Discurso, Possenti (2010) irá demonstrar, a partir de suas análises, como o humor está relacionado a fatores sociais, históricos e culturais, frutos de construções sócio-discursivas, ligadas à língua (a partir de uma concepção discursiva de base Foucaultiana). Em um ensaio intitulado “Humor e Língua” (2001, p. 2), Possenti afirma que “muito frequentemente piadas estabelecem relações intertextuais. Por isso, muitas piadas deixam de fazer sentido em pouco tempo”, reforçando que o humor está relacionado às questões sociais e atrelado aos discursos que circundam a sociedade, em um determinado momento. Dessa forma, o humor é intrinsicamente dialógico, e está ligado aos aspectos sociais.

Há alguns trabalhos que tratam do humor na fala do adulto, buscando verificar nuances que envolvem o conceito de humor, como é o caso do trabalho de Béal e Traverso (2010) e o de Béal e Mulan (2013). Se refletimos sobre o humor na fala da criança, notamos que ele não possui o mesmo estatuto do discurso adulto (DEL RÉ et al., 2015), pois a criança ri, muitas vezes, de coisas que o adulto não ri – e vice-versa.

Partindo dessas peculiaridades que envolvem o humor na fala da criança, estudos vêm sendo realizados devido à sua comprovada importância para o desenvolvimento de competências linguageiras e de aprendizagem (BARRIAUD, 1983; AIMARD, 1988; DEL RÉ, 2011; DEL RÉ, MORGENSTERN, 2009; DEL RÉ et al., 2013). Para muitos estudiosos, instigados pelo magnetismo que o rir possui em diferentes comunidades, o riso, como uma das manifestações do humor, possui um papel importante na socialização linguageira, além de poder gerar empatia, essencial para a aquisição/aprendizagem de línguas (BAKHTIN, 1997).

Humor, aqui, é aquilo que é risível – aquilo de que se ri, no âmbito discursivo –, o que é cômico para a criança e/ou adulto, esse “algo a mais”, misterioso, que não se sabe bem ao certo o que é, mas que exerce um fascínio sobre aquele que ouve e, sobretudo, sobre aquele que o produz. Desse modo, privilegiamos o que é desencadeado por diferentes condutas de linguagem (a piada, os jogos de palavras etc.) dependendo do(s) interlocutor(es) e do contexto (sócio-histórico e político) no qual eles se inserem (DEL RÉ, 2011, p. 894).

Ademais, o humor pode ser um fator revelador de patologias ou de interferência na compreensão discursiva - como é o caso, por exemplo, de crianças autistas, surdas, possuindo uma atribuição essencial em diferentes comunidades (CANDINI, 2016; LEYFER et. al., 2006). No caso do humor em crianças surdas7, por exemplo, o que se observa é que, apesar de elas, muitas vezes, estarem imersas também na comunidade ouvinte, há peculiaridades nas situações humorísticas que são provenientes da língua de sinais e da cultura surda, que nem sempre correspondem às situações humorísticas das crianças ouvintes. Isso corrobora a ênfase na importância da cultura, da língua e do social, uma vez que aquilo que faz rir em uma determinada comunidade, pode ou não ser engraçado em outra etc.

Nesse viés, podemos definir o humor como um fenômeno que é efetivamente social, ligado às situações afetivas e emotivas, que vão além do apenas fazer rir (DEL RÉ; DE SANTIS, 2017). De modo geral, a produção de humor na criança tem suas especificidades. Del Ré (2011), ao olhar para os dados de crianças pequenas, constata que, muitas vezes, o humor na fala da criança é ingênuo, sendo engraçado para o adulto, mas sem a intencionalidade por parte da criança. Desse modo,

o fato de que a relação que a criança tem com o mundo e com a linguagem, enquanto modo de decodificação da experiência, é diferente se comparado ao adulto. Assim, não é possível analisar os dados infantis com conceitos “adultos”, por assim dizer. As representações do mundo para um ou outro não têm a mesma exigência, os mesmos critérios de significação. A criança sabe de algum modo, ainda que desconheça as razões, que algumas coisas que ela diz divertem o adulto. Aos poucos, a partir das reações-respostas dos adultos que orientam suas interpretações, ela começa a guardar informações que a ajudarão a compor um saber-fazer-rir (DEL RÉ, 2011, p. 298)

Ao falarmos sobre humor, alguns elementos parecem ser recorrentes na fala da criança e compõem um conjunto de ingredientes indispensáveis para a produção do discurso humorístico verbal:

[...] uma ruptura é reconhecida enquanto tal pelo locutor; esse reconhecimento depende, de alguma forma, de um recuo, de um trabalho metacognitivo que permita ao locutor identificar que haveria um percurso “normal” para o discurso e que ele foi rompido. A partir daí deve haver por parte desse locutor um querer-partilhar (projeto de dizer/intencionalidade) e a verbalização desse querer para o outro/interlocutor. Finalmente, ao verbalizar, se houver saber partilhado, os dois vão compreender e, no caso do adulto, eventualmente, rir. No caso da criança, acreditamos que o riso como marca do humor parece ser importante durante o processo de aquisição da linguagem, desta forma ela parece estar sempre presente. (DEL RÉ et al., 2019).

Dessa forma, um dos elementos fundamentais para a existência do humor é a incongruência, sendo o ingrediente fundamental para o seu surgimento. É importante analisarmos esse elemento discursivo, pois, acreditamos, que é no momento de uma oposição ao argumento trazido à tona por um dos interlocutores que um tipo de incongruência/ruptura parece surgir no enunciado e pode ser resolvida de forma lúdica e divertida.

A fim de entendermos melhor a relação entre esses dois fenômenos linguageiros, traremos, a seguir, algumas informações a respeito da noção de argumentação na criança.

3. Argumentação na fala da criança

Retomaremos aqui alguns conceitos tratados em trabalhos anteriores (VIEIRA, 2011; VIEIRA, 2015) com o objetivo de compor nossas ideias a respeito do tema e que são essenciais para as relações e discussões proposta para este trabalho. Em primeiro lugar, é necessário enfatizar, novamente, que nosso trabalho parte de uma perspectiva discursiva e, portanto, tem como premissa a questão do dialogismo e da interação e os aspectos sociais envolvidos na comunicação, premissa essa que está na base dos trabalhos da pesquisadora Selma Leitão, da Universidade Federal de Pernambuco (LEITÃO, 2007a, 2007b, 2008). Sem se esquecer dos postulados da nova retórica, a autora traz um novo olhar para a argumentação, discutindo questões da pragmadialética, como as ideias de Franz van Eemeren, Rob Grootendorst e o grupo de Amsterdam.

Em seus estudos, Leitão (2007a e b) afirma a importância da argumentação para o desenvolvimento intelectual, uma vez que a argumentação possibilita “[...] revisar nosso próprio conhecimento, contribuindo para o desenvolvimento (transformação) do conhecimento[...]” (LEITÃO, 2007a, p.75). Partindo desse pressuposto, destacamos a importância da interação, do dialogismo, nessa concepção sobre argumentação. Trata-se de verificar como o discurso alheio, do outro, na relação, faz-me refletir sobre determinados pontos de vista. Para Leitão (2007a; 2007b; 2001; 2008), a argumentação pode ser tratada como

uma atividade discursiva que se caracteriza pela defesa de pontos de vista e consideração de perspectivas contrárias. A necessidade comunicativa de defender um ponto de vista e responder à oposição cria, no discurso, um processo de negociação no qual concepções sobre o mundo (conhecimento) são formuladas, revistas, transformadas [.] (LEITÃO, 2007a, p.75).

É nesse sentido que a autora afirma que

A tese central proposta é que as propriedades semióticas que definem a argumentação lhe conferem um mecanismo inerente de aprendizagem que a institui como recurso privilegiado de mediação no processo de construção de conhecimento. Os movimentos discursivos de justificação de pontos de vista e resposta a perspectivas contrárias criam, no discurso, um processo de negociação no qual concepções a respeito do mundo são continuamente formuladas, revistas e, eventualmente, transformadas (LEITÃO, 2007a, p.82).

A autora busca aprofundar as noções relacionadas à argumentação, trabalhando empiricamente com a argumentação no ensino. Além da definição do termo, a autora analisa o tema da argumentação para o campo da sala de aula, buscando sistematizar os aspectos essenciais que, em seu ponto de vista, contribuem para o desenvolvimento reflexivo e, consequentemente, cognitivo dos estudantes.

Fugindo, dessa forma, das noções que enquadram a argumentação em um modelo dissertativo ou mesmo em um método no qual os alunos nem sempre participam ativamente, a autora desenvolve uma teoria que abarca a participação ativa dos estudantes para a construção de uma argumentação. Para tanto, ela trabalha com a importância do contra-ponto, da oposição de ideias existentes entre dois interactantes, que contribuem para a transformação e reflexão dos próprios argumentos.

Investigar a emergência da argumentação na produção discursiva dos indivíduos é, portanto, na presente ótica, investigar, simultaneamente, constituição e funcionamento do próprio pensamento reflexivo (LEITÃO, 2008, p.36).

Sendo assim, de acordo com a autora, a argumentação é composta por, no mínimo, três elementos (a saber, o argumento, o contra-argumento e a resposta) - que constituem uma unidade de análise efetiva .

Do ponto de vista discursivo: neste nível, a autora trata das questões que envolvem a presença do outro e a configuração desses três elementos em interação, partindo das noções proposta por Bakhtin (1997, 1995), no que concerne às questões de linguagem, alteridade, gênero etc.

[O argumento:] consiste no conjunto de ponto de vista e justificativa, podendo um ou outro permanecer implícito nas argumentações cotidianas efetivamente produzidas. O argumento identifica o ponto de vista que seu proponente procura estabelecer, bem como as razões com as quais apóia (função discursiva). [...] [O contra-argumento:] do ponto de vista discursivo, a presença do contra-argumento traz para o discurso uma dimensão de alteridade indispensável à ocorrência da argumentação. [Resposta:] A comparação entre formulação inicial do argumento e a retomada deste, em resposta a contra-argumentos, é o recurso analítico que permite capturar eventuais mudanças nas posições inicialmente defendidas. Sua presença captura o estatuto fundamentalmente dialógico da unidade de análise postulada (LEITÃO, 2007a, p. 84).

Além desses níveis, a autora irá defender que a argumentação comporta em si uma dinâmica dialética e dialógica. Ou seja, há em sua estrutura a consideração do outro, dos outros discursos, da situação de enunciação, do contexto (social, histórico etc), que não envolvem apenas dois indivíduos face a face, o que fornece uma dinâmica dialógica à argumentação. Ao mesmo tempo, por envolver o confronto, a oposição de ideias (e não de pessoas, simplesmente), a argumentação possui uma característica dialética:

While the dialogical dimension points out the role of the audience, "the other" to whom the argumentation is addressed and whose characteristics constrain both the process and structure of argumentation, the dialectical dimension emphasizes the role of systematic opposition and critical questioning in argumentation that comes from the other (LEITÃO, 2001, não paginado)8.

Dessa forma, é o confronto entre pontos de vista e não entre indivíduos que confere à argumentação sua dimensão dialógica / dialética. Seguindo essas ideias, resumidamente, temos que a argumentação envolve dois ou mais interactantes e que, para a sua existência, é necessário que haja a oposição de ideias e a defesa de argumentos, em que os interlocutores ora apresentem argumentos com um ponto de vista, que podem ou não ser justificados, ora são apresentados contra-argumentos ao ponto de vista inicial, com ou sem justificativas, suscitando o embate entre as ideias debatidas pelos interactantes. Além disso, há sempre uma resposta, que é suscitada pelo embate e/ou que corresponde ao impacto das discussões, que pode ser de incorporação parcial ou total do argumento inicial, ou refutação total ou parcial desse argumento.

Ressaltamos que a concepção de argumentação que aqui adotamos está relacionada à polêmica aberta, baseada nas ideias de Bakhtin. Nessse sentido, embora não descartemos a polêmica velada, interessa-nos, de fato, verificar o modo como a oposição propicia aos interlocutores a revisão do próprio discurso, permitindo a mudança de perspectiva ou a defesa do ponto de vista. Assim, além de considerar que todo discurso é permeado de oposição, de contra-palavras, levamos em conta principalmente o que podemos chamar de palavra-contra (Leitão, 2008), expressão que faz alusão à questão da oposição explícita no discurso.

4. Argumentação e humor: analisando a incongruência

Na literatura sobre o humor, como dissemos, ressalta-se a importância dos mecanismos desencadeadores do fenômeno humorístico, especialmente da incongruência, da ruptura, daquilo que é surpreendente no diálogo (Vieira e Del Ré, 2019). Não conhecemos, de fato, os diferentes tipos de incongruência que podem emergir na fala da criança, apesar de ser descrita por alguns autores especialistas no tema (BARIAUD, 1983; AIMARD, 1988; DEL RÉ, 2011; DEL RÉ; MORGENSTERN; DODANE, 2015). Ao que tudo indica, o contra-argumento dado pela criança, no discurso argumentativo, parece constituir uma forma de incongruência que, em alguns casos, produz humor, pois, de acordo com Leitão (2007a; 2007b) “o contra-argumento captura a forma aberta como o confronto com elementos de oposição e desencadeia no discurso um processo reflexivo que leva à revisão das afirmações feitas”.

Dessa forma, dando continuidade aos trabalhos realizados sobre a argumentação e o humor (DEL RÉ, 2003; DEL RÉ, 2011; VIEIRA, 2011; VIEIRA, 2015; VIEIRA; DEL RÉ, 2019), ao analisarmos os dados de crianças, verificamos que o contra-argumento pode ser considerado uma ruptura no diálogo, na qual é preciso rever o que foi argumentado, refletir sobre o próprio enunciado, para, então, defender ou refurtar o ponto de vista inicial, fornecendo (ou não) um outro ponto de vista e/ou uma justificativa.

Do mesmo modo, no que se refere ao humor, tomamos a incongruência como uma discordância na ordem habitual das palavras ou das coisas, associada ao que podemos chamar de adesão afetiva que “ocasiona uma divergência (em oposição à convergência) ou uma irrupção no encadeamento discursivo” [...] ligada à ideia do estranho, do inesperado, do insólito, do anormal (ou da anormalidade) e da surpresa (DEL RÉ, 2011, p. 107). O resultado dessa surpresa, desse inesperado, é o surgimento do riso ou do sorriso, em uma situação que pode levar ao humor. Para podermos rir, é preciso um “distanciamento, uma distância em relação ao alvo do riso” (DEL RÉ, 2011, p. 108).

Sendo assim, a incongruência (ruptura) é um elemento presente na fala das crianças, emergindo tanto em enunciados humorísticos ou argumentativos, ou em ambos ao mesmo tempo, já que eu posso argumentar por meio de enunciados humorísticos e vice-versa.

No que se refere a essa incongruência (não normal), o que diferencia as crianças dos adultos é que as primeiras respondem a ela de maneira não realista, i.e., diante de um palhaço com dois narizes, por exemplo, elas não vão dizer algo do tipo “isso não é possível”, “um palhaço não tem dois narizes” (na realidade), por isso não é engraçado; ao contrário, ele é justamente engraçado por essa razão. (DEL RÉ, 2011, p. 55).

5. Análise e discussão dos dados

Para discussão que aqui propomos, selecionamos os dados de duas crianças brasileiras, um menino (G.) e uma menina (S.), pertencentes ao corpus NALingua, com o objetivo de analisar situações discursivas nas quais verificamos a intersecção entre humor e argumentação, a partir da incongruência. Esses dados, como mencionado anteriormente, foram gravados uma vez ao mês, do nascimento até os 7 anos de idade, em situações naturais de interação. No entanto, para fins deste trabalho, analisaremos os dados entre 24 e 48 meses de idade.

Ao retomarmos as análises, verificamos que há muitas situações nas quais as crianças argumentam, a partir de enunciados humorísticos. Ou, ainda, ocasiões nas quais o humor surge como ponto de partida para argumentar. Em alguns casos, a situação é humorística, o que faz com que se torne engraçada e faz com que os adultos riam. Vejamos o dado abaixo (VIEIRA; DEL RÉ, 2019):

Sofia9, então com quatro anos de idade, está em seu quarto com a observadora. Ela está mostrando alguns livros e pede que a observadora leia o nome de um dos livros - “Faculdade de Filosofia”. Sofia não entende e solicita que ela repita mais três vezes o nome. Após a terceira vez, Sofia questiona “Sofia?” e olha rindo para a observadora, que ri, pois percebe que ela entendia seu nome, Sofia, ao invés do termo “filosofia”. Na sequência, zombando da observadora, a criança diz, fingindo ler o livro e rindo: “é assim, filo, saco, Alessandra (nome da observadora)”. O riso, o olhar, o apontar para as palavras da capa do livro nos ajudam a compreender a cena enunciativa, considerada como um contraponto da criança, o que provoca o riso na interlocutora.

O interessante desse dado é que, em princípio, não havia uma incongruência no discurso instaurado pela OBS., mas S. faz essa interpretação, ela reconhece a ruptura como uma brincadeira com o seu nome e, ao fazê-lo, compartilha com sua interlocutora, que, ao ser confrontada com o que propõe S., também aceita a ruptura. Acreditamos que o fato de haver uma relação próxima de cumplicidade entre S. e a observadora, que é a sua tia, contribui para que cenas como essa aconteçam, uma vez que situações de zombaria e de brincadeiras são frequentes na fala das interactantes (bem como de toda a sua família). Verifica-se, pelo enunciado e pela interpretação do interlocutor em relação ao olhar da criança e ao riso, a intencionalidade de S. em reverter a brincadeira, jogando com o nome da observadora. Nota-se que há todo um contexto discursivo, diálogos pré-existentes, situações em vivência (dialógica) com a OBS. que favorecem o reconhecimento desse discurso da interlocutora de S. como uma ruptura, como uma zombaria, fazendo com que a criança contra-argumente (envolvendo as dimensões dialógica e dialética - de confronto - à palavra do outro). Essa situação de oposição da fala de S. é compreendida pela observadora, que tenta, no decorrer do episódio, mostrar a ela, apontando para o livro, que era, de fato, aquele nome que estava escrito e que ela não falou seu nome de propósito, para zombar dela.

Vejamos mais um exemplo, ainda de S. (3 anos; 8 meses; 5 dias), desta vez interagindo também com uma amiga da família10:

ADU: você (es)tá muito comilona!

59 %act: CHI faz gesto negativo com a mão para ADU.

60 *COU: S.!

61 *ADU: não?

62 *CHI: não.

63 %act: CHI balança a cabeça negativamente.

64 *ADU: você (es)tá comiloninha?

65 *CHI: não. [rindo]

[...]

80 *CHI: comilona! (2)

81 %act: CHI aponta para OBS, sorrindo. (2)

82 *MOT: huuum.

83 *OBS: eu?

84 *MOT: <que(r) um guardanapo xxx?> [?] [<falam ao mesmo tempo]

85 *OBS: quem (es)tá comendo?

86 *OBS: quem come sem para(r)?

87 *MOT: tira a boca tira a mão da boca.

88 %act: MOT fala para CHI.

89 *COU: S.!

90 *CHI: você...

91 *OBS: S.!

92 *CHI: ...você vai fica(r) com fome depois e não tem comida.

93 *ADU: a teteia é comilona você é comiloninha.

94 *CHI: nãããão! (4)

95 *ADU: [ri].

96 *OBS: não.

97 *OBS: a S. éé...

98 *MOT: toma sô.

99 *OBS: ...é lero-lero .

100 *CHI: huuum. (5)

101 %act: CHI balança o dedo indicador negativamente. (5)

102 *CHI: onde você aprendeu essa p(a)l(a)vra <xxx?> [?] [<falam ao mesmo tempo]

103 *OBS: <eu inventei!> [>falam ao mesmo tempo]

104 *CHI: huuum.

105 *OBS: aonde eu aprendi. [rindo]

106 *CHI: aonde?

Neste excerto, uma amiga da família está conversando com S. enquanto ela come. A tia/OBS., então, brinca dizendo que a criança é comilona, ao que ela responde, também rindo, que não era (turno 65). Após um tempo em silêncio, S. aponta para a OBS. e diz “comilona”, rindo. Essa brincadeira gera uma incongruência, uma vez que os interlocutores não esperavam essa iniciativa por parte da criança. A OBS, então, contra-argumenta dizendo que era S. a comilona. A menina, dando continuidade à brincadeira, diz “você vai fica(r) com fome depois e não tem comida”, justificando seu argumento de que a observadora seria uma “comilona”. Na continuidade, a amiga brinca dizendo que a observadora era “comilona e a S. comiloninha”, ao que a criança nega.

Verifica-se, nessa cena, a importância da multimodalidade (DEL RÉ et al. 2017), do enunciado verbal, do alongamento de vogal (que nos auxiliam a verificar a entonação etc. – e o verbal – utilização do “não”, contra-argumentar dizendo que ela ficará com fome etc..-, do gestual - como balançar a cabeça negativamente, balançar o dedo indicador negativamente, para a composição do sentido. A incongruência, gerada pela brincadeira de S., é resultado, também dessa relação de S. com outros discursos da OBS, de outras situações de interação com ela, que permitiram a instauração de uma convivência, uma cumplicidade entre elas. Tal relação permite que se retomem discursos outros, prévios, e traga-os ao diálogo, possibilitando-nos vislumbrar o humor e a argumentação no discurso da criança e nos permitindo verificar a dimensão dialógica e dialética presente nessa cena enunciativa.

Outro dado, agora de G., nos mostra como a criança faz uso de enunciados humorísticos para argumentar. G., com 3 anos e 1 mês está contando uma história para o pai e observadora, a história do coelhinho.

G: Quem esconde no xx é o coelhinho, olha a estrela no céu!

Pai: quem mais que estava vendo o coelhinho?

G: o [/] o [/] o urso.

Pai: o urso # o Hudson Hornet (...}

G.: não # o Hudson Hornet não.

Pai: <o Hudson Hornet não> [=! ri]

G.: o Hudson Hornet é um carro de corrida.

Pai: ah # esqueci # é verdade.

OBS: você <não entende nada> [=! ri].

Pai: é de outra história.

No exemplo acima, G., ao enfatizar o “não”, com entonação ascendente, apontando para o livro que estava em suas mãos, a criança mostra ao pai seu ponto de vista: o de que Hudson Hornet não poder estar ali vendo o coelho, já que “ele é um carro de corrida”, e ao fazê-lo gera uma incongruência no discurso. E embora não tenhamos o riso de G., é notória a situação de humor partilhado entre todos, o que faz com que os outros interactantes, o pai e a observadora, riam dessa correção da criança ao enunciado do pai. Essas situações de brincadeira e demonstração de embates - e outros pontos de vista – entre pai e filho são recorrentes nas sessões aqui analisadas, pois o pai sempre instiga CHI a responder e a refletir sobre as questões que surgem ao longo das brincadeiras. Há, ainda que não seja explícito para os observadores externos, uma relação de conivência e uma retomada dialógica, por parte dos interlocutores, de outras situações discursivas de embate ligadas aos brinquedos (as características, as funções, as cores, como podemos observar em outras sessões gravadas). Essa vivência de situações prévias, cotidianas e recorrentes, acreditamos, faz com que a criança reaja ao enunciado do pai, fornecendo-lhe uma justificativa (o Hudson Hornet é um carro de corrida), ao mesmo tempo que suscita o riso nos interlocutores (pai e observadora), pois esse tipo de negociação e de brincadeira, como enfatizamos, é recorrente na fala do pai.

Por fim, analisemos esse outro dado, um dos primeiros que observamos na fala de G. ao pensarmos na relação entre humor e argumentação (VIEIRA; DEL RÉ, 2019):

G. está com 3;6 anos, guardando os seus carrinhos na sala com o pai.

Pai: agora guarde todos os carrinhos de corrida.

G: o quê, o quê, o quê, o quê, o quê, o quê rapaz? Veja se tem um carrinho aqui, de corrida?

%act: CHI gira uma das mãos.

Pai: Não, não tem. (todos riem).

Nesse episódio, para que possamos compreendê-lo, é necessário retomar o contexto de produção e a relação da criança com o pai, que em várias situações de interação e de saber partilhado com a criança, faz uso do enunciado utilizado acima pela criança (“o quê, o quê, o quê, o quê, o quê, o quê rapaz?”), com mudança no tom de voz, trazendo a prosódia utilizada pelo pai. Há, aqui, portanto, uma retomada dialógica por parte da criança do enunciado do pai, que nos remete a situações nas quais o pai exerce a função de autoridade. Dessa forma, o fato de G. utilizar esse enunciado em um outro contexto discursivo (no qual há a inversão de papeis – G. faz uso do argumento de autoridade) gera incongruência no discurso, que possibilita aos interlocutores recuperarem esses já ditos e, nesse recuo, permite que eles riam da estratégia da criança.

Essa estratégia pode ser, também, observada no contra-argumento de G. ao ser solicitado que ele guarde os carrinhos (com o enunciado “o quê, o quê, o quê, o quê, o quê, o quê rapaz?”), justificando seu argumento com “Veja se tem um carrinho aqui, de corrida?”. A resposta do pai é dada no enunciado seguinte, com a aceitação total da oposição de G. Esse contra-argumento, portanto, traz ruptura para o diálogo, fazendo com que o pai reformule seu ponto de vista inicial.

O que observamos com esses dados é que a criança faz uso da argumentação e do humor desde muito cedo. Além disso, elas compreendem e produzem, ainda precocemente, enunciados humorísticos. Ainda que esses enunciados não sigam as normas do discurso do adulto, podemos considerar que o fato de as crianças se posicionarem diante do discurso do adulto indica que não somente elas começam a compreender a complexidade do processo de comunicação verbal, fazendo uso dos já-ditos para defender seu ponto de vista, mas também que elas estão em pleno processo de constituição de sua subjetividade (FRANÇOIS, 2009, p. 21). A incongruência, ao verificarmos os dados, está presente tanto nos enunciados humorísticos (a partir de uma ruptura, um distanciamento) quanto nos argumentativos (que aqui pode ser observado a partir do contra-argumento), surgindo em diferentes situações discursivas.

6. Considerações Finais

Os resultados iniciais mostram que o contra-argumento, em especial, tem um papel importante, considerando que é no momento de uma oposição ao argumento trazido à tona por um dos interlocutores que um tipo de incongruência/ruptura parece surgir no enunciado e pode ser resolvida de forma lúdica e divertida. Diante disso e partindo da hipótese de que, dentre os diferentes tipos de incongruências, podemos encontrar os que produzem humor ou os que estão relacionados à argumentação (ou podem estar juntos), investigamos alguns contextos nos quais podemos identificar a emergência da incongruência e de que modo esses três fenômenos são produzidos, dando continuidade às pesquisas sobre essas temáticas (VIEIRA; DEL RÉ, 2019).

Em todas as sessões, verificamos a importância fundamental da parceria elaborada entre os pais, observadores, interlocutores e criança no processo de comunicação verbal. Verificamos, além disso, a importância dos elementos multimodais para a compreensão do todo discursivo. Desse modo, pudemos verificar que tanto a entonação (e as questões prosódicas) quanto os gestos feitos pela criança enquanto falam são essenciais para a compreensão de seu interactante (como quando G. imita o gesto do pai ao contra-argumentar, gerando o riso). Mas são elementos ainda a serem explorados em trabalhos futuros.

É importante lembrar que cada criança entra na linguagem ao seu modo, de uma maneira singular. Sendo assim, acreditamos que o modo como essas crianças entram na linguagem, e fazem uso do humor e da argumentação, nos faz refletir sobre o modo como elas utilizam a língua na situação conversacional e como a interação é fundamental para o seu desenvolvimento linguístico.

Procuramos tratar a questão do humor e da argumentação, observando a intersecção entre esses elementos e a incongruência na fala da criança da criança. Há, no entanto, muitas outras questões relacionadas a esses fenômenos, como a análise dessa relação em diferentes dados, como o de crianças surdas, ou a relação desses elementos com a multimodalidade, como entonação, gestos, por exemplo. Ficam, aqui, assim, sugestões para futuras pesquisas.

Agradecimentos

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão de bolsa produtividade (PQ) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Programa Capes-PRINT) e à FAURGS pelo apoio à pesquisa.

Avaliação

AVALIADOR 1: Rita Maria Diniz Zozzoli

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0351-1397

FILIAÇÃO: Universidade Federal de Alagoas, Alagoas, Brasil.

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AVALIADOR 2: Alexandre Marques Silva

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8719-7306

FILIAÇÃO: Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

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RODADA 1

AVALIADOR 1

2020-02-19 | 12:06

O trabalho apresenta coerência e coesão entre suas diferentes partes e atende aos requisitos para esse gênero de publicação. A discussão teórica é consistente e adequada, havendo contribuição relevante para o tema estudado, mesmo que ainda se possa sugerir ver Bakhtin sobre o riso, por exemplo, em textos futuros. As observações que contextualizam os exemplos da análise reforçam a ideia de que talvez fosse interessante estudar mais questões que ultrapassam os dados linguísticos, como as peculiaridades nas práticas de diálogo nas situações em que a criança está inserida, uma vez que o humor também depende disso. Há necessidade de revisão de algumas questões formais, sem comprometer, entretanto, a qualidade da redação. Pelo exposto, proponho a aprovação do artigo em pauta.

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AVALIADOR 2

2020-05-19 | 13:37

Recomendação: Correções obrigatórias

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RODADA 2

AVALIADOR 2

2020-06-20 | 17:25

As solicitações realizadas na versão anterior do artigo foram atendidas adequadamente e as análises tornaram-se mais robustas, apesar de ainda se tratar de um estudo inicial.

Há três apontamentos de ordem gramatical destacados no próprio texto.

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RODADA 3

AVALIADOR 2

2020-07-05 | 13:36

Recomendação: Aceitar

How to Cite

VIEIRA, A. J.; DEL RÉ, A. Humor and argumentation in the child’s speech: a bakhtinian approach. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 01–22, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n2.id194. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/194. Acesso em: 26 dec. 2024.

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