Introdução
A síndrome de Down (SD) é uma condição genética provocada pela presença extra de um cromossomo 21 ou parte deste, que pode ser observada em cerca de 300 mil brasileiros (MARTINS et al., 2013). A SD é a alteração cromossômica mais comum na população mundial, afetando aproximadamente 1 em cada 1000–1100 bebês nascidos em todo o mundo (WHO, 2018).
Essa alteração interfere no desenvolvimento das habilidades motoras, cognitivas, linguísticas, de autocuidados e de socialização das crianças (FERREIRA-VASQUES, ABRAMIDES, LAMÔNICA, 2017). Estas influenciam todo o desenvolvimento infantil, podendo impactar em suas interações sociais, escolarização e profissionalização.
Em relação à linguagem, observam-se prejuízos nas habilidades de expressão e compreensão, quando comparadas a crianças com desenvolvimento típico (DT). Contudo, bebês e crianças com SD demonstram fortes habilidades em termos de comunicação intencional, de uso de gestos para se comunicar, de compreensão da linguagem, do desenvolvimento do vocabulário e dos usos sociais da linguagem (LUKOWSKIA; MILOJEVICHB; EALES, 2019).
Uma habilidade que integra elementos cognitivos, linguísticos e sociais é a atenção conjunta. Considerada uma habilidade dinâmica, que envolve a coordenação da atenção entre um interlocutor e um objeto/evento de interesse, juntamente com a consciência de ambos os indivíduos cujos focos de atenção são compartilhados (BAKEMAN; ADAMSON, 1984; BALDWIN, 1995).
Essa habilidade tem suas origens entre o sexto e o nono mês de vida do bebê com DT e se desenvolve até os 24 meses, quando a criança passa a utilizar a atenção conjunta com facilidade em suas interações. Esse desenvolvimento é atrelado à maturação de uma estrutura cognitiva necessária para a comunicação cooperativa e para a atenção das intenções comunicativas dos seus pares sociais (ADAMSON; CHANCE, 1998; TOMASELLO, 2003).
No engajamento nas cenas de atenção conjunta são utilizadas produções prosódico-vocais, gestuais e o olhar pelos interlocutores em diferentes interações sociais. Estas – de acordo com Meltzoff e Moore (1998) e Trevarthen e Aitken (2001) – são facilitadas pela atenção conjunta e ajudam as crianças a prestar atenção e aprender sobre as emoções, desejos e intenções dos seus parceiros sociais.
Esses elementos são importantes para fomentar o desenvolvimento de habilidades sociais que permitem ao ser humano pensar, raciocinar e interagir com o mundo social (MELTZOFF, 2007; TAGER-FLUSBERG, SKWERER E JOSEPH, 2006). Por isso, a atenção conjunta é considerada um aspecto sociocomunicativo crucial para o desenvolvimento infantil.
Como se pode observar, pensar em atenção conjunta é pensar em desenvolvimento mútuo de uma série de habilidades – sociais, cognitivas, motoras, linguísticas. Sendo que estas podem estar prejudicadas em crianças com desenvolvimento neuroatípico, como na SD. Desse modo, questiona-se: há prejuízos no desenvolvimento e funcionamento da atenção conjunta na Síndrome de Down, se comparados a crianças neurotípicas?
Segundo Hahn et al. (2018), devido à combinação dos déficits linguísticos e atencionais, é importante investigar o desenvolvimento da atenção conjunta na Síndrome de Down. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho foi analisar os estudos a respeito da atenção conjunta no desenvolvimento da linguagem na SD
1. Métodos
Para avaliar os estudos em atenção conjunta e aquisição da linguagem na SD foi realizada uma revisão bibliométrica da literatura nacional e internacional, em janeiro de 2020. Utilizou-se a busca nas bases de dados Lilacs1 e Pubmed2, com o uso da combinação entre os seguintes termos: “Atenção conjunta AND linguagem”; “Atenção conjunta AND síndrome de Down”; “Atenção compartilhada AND linguagem”; “Atenção compartilhada AND síndrome de Down”; “joint attention AND language”; “joint attention AND Down syndrome”; “joint engagement AND language”; “joint engagement AND Down syndrome”.
Ressalta-se que “linguagem” e “síndrome de Down” são descritores, mas “atenção conjunta” e “atenção compartilhada” não o são. Esses dois termos foram utilizados para direcionar melhor a busca dos estudos, tendo em vista que as pesquisas psicolinguísticas possuem múltiplas facetas e a filtragem sem os termos não foi efetiva, devido à quantidade excessiva de artigos encontrados.
Inicialmente, foram obtidos 668 artigos, que tiveram seus títulos e resumos analisados. Para essa análise, adotou-se os seguintes critérios de elegibilidade: a) estudos publicados em qualquer língua e em qualquer ano de publicação; b) publicações como artigos originais ou estudos de caso; c) exclusão de artigos de revisão e editoriais; d) exclusão de artigos repetidos; e) pesquisas com crianças com Síndrome de Down; f) estudos em atenção conjunta nessa população.
A exclusão dos outros artigos encontrados ocorreu por eles não atenderem aos critérios de elegibilidade supracitados. A figura 1 apresenta um fluxograma das etapas da seleção dos artigos.
2. Análise da literatura
Percebe-se que a quantidade de artigos obtidos é pequena diante da quantidade de pesquisas em síndrome de Down e em Aquisição da Linguagem, demonstrando que, nacional e internacionalmente, a atenção conjunta não é uma temática muito explorada. Quando a temática e o público-alvo dos artigos excluídos são analisados, observa-se uma tendência dos artigos em pesquisar o funcionamento da atenção conjunta em pessoas com desenvolvimento típico ou em casos de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), de forma primária ou em comorbidade com outro transtorno do neurodesenvolvimento.
A seleção das crianças com TEA para compor um grupo de comparação é justificada por a atenção conjunta ser uma das habilidades sociocomunicativas mais prejudicadas no TEA e um dos principais alvos dos programas de estimulação (HOUGHTON et al., 2013).
Em relação aos 12 estudos obtidos em nossa busca, realizou-se a descrição de seus objetivos, métodos e principais resultados (APÊNDICE A).
Lima (2016) realizou um levantamento, nas bases de dados indexadas nacionalmente, de pesquisas acerca da aquisição da linguagem na Síndrome de Down. Nosso foco, na época, era observar quais as características da linguagem, em geral, dessa população, quais as especificidades apresentadas no desenvolvimento da linguagem e quais as contribuições da intervenção fonoaudiológica para este processo.
O novo levantamento, realizado neste estudo, foi revelador porque se visualizou uma íntima relação entre a atenção conjunta e a linguagem infantil na SD e que são poucas as pesquisas nessa área a nível internacional. Inclusive, a maioria dos estudos foi publicada nos últimos dez anos (Gráfico 1).
Observamos no gráfico anterior que os anos de 2002 e 2020 foram os que contaram com um maior número de publicações, três em cada ano. E que, de 2012 a 2018, tivemos sete artigos publicados sobre atenção conjunta na Síndrome de Down, inclusive a pesquisa desenvolvida no Brasil.
Mas será que só existem esses artigos sobre atenção conjunta na Síndrome de Down? Acreditamos que não, só não foi possível acessar os trabalhos devido a: a) publicação das produções em periódicos não indexados em bases de dados – nacionais ou internacionais; b) utilização de outros termos ou palavras-chave pelos autores; c) publicação dos resultados das pesquisas em outros tipos de produções, como em anais de congresso; e d) os achados resultantes de teses e dissertações não terem sido encaminhados para periódicos posteriormente.
As bases de dados são espaços unificadores de diversas revistas científicas que facilitam a busca de artigos, teses e dissertações pelos pesquisadores. Atualmente, o impacto de um periódico está relacionado a sua indexação em diferentes bases de dados, pois, quanto melhor a indexação, maior o alcance de divulgação e exposição da revista e, consequentemente, da ciência.
Por isso, é interessante que os estudos sejam publicados em revistas indexadas e haja a preferência pela veiculação dos estudos nesse tipo de produção, que eles não fiquem exclusivamente em livros ou anais de congresso, para que os achados das pesquisas tenham um maior alcance em nível internacional.
Os pesquisadores devem ter uma atenção especial em relação à escolha dos descritores ou das palavras-chave de seus estudos, pois esses termos podem ser utilizados nas buscas bibliográficas e vão possibilitar que o estudo seja encontrado ou não. Caso ele seja encontrado, ele poderá ser utilizado e citado por outro autor, o que aumenta o impacto do seu estudo.
Mas qual seria a diferença entre a palavra-chave e o descritor? A primeira não obedece a nenhuma estrutura, é aleatória e retirada de textos de linguagem livre. Já os descritores são organizados em estruturas hierárquicas, facilitando a pesquisa e a posterior recuperação do artigo (BRANDAU, MONTEIRO, BRAILE, 2005). Com isso, podemos observar que o uso de descritores é mais privilegiado em algumas áreas do conhecimento do que em outras, o que pode favorecer o acesso aos estudos das que os utilizam. Por exemplo: é comum que as revistas das ciências da saúde solicitem o uso de descritores, enquanto as revistas da Linguística solicitem o uso de palavras-chave.
Em seguida, analisamos os públicos participantes dos estudos. Em nosso processo de seleção das publicações, já filtramos as que abordavam a Síndrome de Down, por isso os 12 trabalhos contemplaram esse público. Os autores de alguns manuscritos compararam os resultados das crianças com SD com o de outros públicos, como DT (n=6), TEA (n=5) ou outros transtornos do neurodesenvolvimento (n=1). Além disso, os pais também foram pesquisados em cinco estudos, ao participarem de interações com os filhos ou ao responderem instrumentos aplicados pelos pesquisadores (Gráfico 2).
Estudos transversais ou longitudinais podem utilizar grupos-controle para comparar seus achados com um público-alvo específico. Em nosso estudo da arte, identificamos diversas comparações com outros públicos. A maioria realizou essas comparações com crianças com desenvolvimento típico, pareadas por idade de desempenho. Como os estudos de Mason-Apps et al. (2018), Seager et al. (2018) e Galeote et al (2020), que realizaram comparações do desenvolvimento da atenção conjunta e da linguagem em crianças com DT e SD, observando uma influência mútua entre essas habilidades.
Outro público investigado, junto a crianças com Síndrome de Down, foi o Transtorno do Espectro Autista. A comparação com esta população ocorre porque se espera um prejuízo nas habilidades sociocomunicativas, de forma geral, nesse transtorno, como: dificuldades na reciprocidade socioemocional; no uso de comportamentos comunicativos não verbais; no desenvolvimento e na manutenção da atenção conjunta (ZANON, BACKES, BOSA, 2015; NYSTRÖM et al., 2019).
Por isso, é de interesse de alguns pesquisadores comparar o engajamento conjunto – desde o seu desenvolvimento à efetividade do uso com múltiplos interlocutores – em crianças com SD, DT e TEA. Entendendo que esse engajamento não se resume à presença ou à ausência de compartilhamento da atenção, mas que há uma variabilidade de inserções, distinções na efetividade do uso e um contínuo de habilidades que devem ser desenvolvidas e mobilizadas nesse contexto interativo.
Outro aspecto interessante foi a participação dos pais em cinco estudos. Em alguns (HAHN et al., 2013), houve a participação através de entrevistas concedidas aos pesquisadores e, em outros (CLIBBENS, POWELL, ATKINSON 2002, REDDY, WILLIAMS, VAUGHAN 2002), através da interação com seus filhos para produção de vídeos que seriam analisados posteriormente.
Adamson et al. (2009), por exemplo, observaram que as crianças e as mães estavam engajadas com o mesmo referente e havia evidências de que as crianças estavam ativamente atendendo às produções linguísticas, mas não estavam explicitamente atendendo às mães. O estudo de Seager et al. (2018) também destacou a importância do estilo de comunicação materno, durante a interação com os bebês com SD, para o fortalecimento da atenção conjunta.
Esses dados reforçam que a fala dirigida à criança ou manhês possui um status privilegiado durante o processo de aquisição da linguagem de crianças tanto com DT, quanto neuroatípicas, pois esse estilo de comunicação possui recursos prosódicos e linguísticos diferenciados, que ajudam a promover a exposição da criança à sua língua materna, a percepção da atenção e da atencionalidade do parceiro interativo.
É importante mencionar que mudanças prosódicas podem ser realizadas na fala dos terapeutas na interação com as crianças em ambiente clínico e que uma variabilidade de recursos prosódicos atrai a atenção e favorece o desenvolvimento linguístico infantil. Esse apontamento é corroborado por alguns estudos em diferentes populações: Lima e colaboradores (2010), que investigaram esses recursos no TEA; Lima e Cavalcante (2015), que pesquisaram criança com transtorno de linguagem; Lima, Delgado e Cavalcante (2018), que observaram esse achado na SD.
Os estudos de Legerstee, Varghese e Van Beek (2002) e de Seager et al. (2018) apontaram para a importância da matriz gesto-fala utilizada pelos adultos em interação com as crianças com SD. Além disso, pontuaram que é crucial que haja uma estimulação conjunta das produções verbais e gestuais infantis, e que estas garantiam o engajamento das mães nas cenas de atenção conjunta, destacando a natureza recíproca e dinâmica dessas interações sociais.
Além do público-alvo pesquisado, observamos qual foi a intervenção empregada nos estudos. Oito estudos realizaram análises de filmagens de interações de díades crianças-adultos. O segundo método mais privilegiado (n=7) foi a realização de avaliações do desenvolvimento infantil, em especial da linguagem (Gráfico 3).
Em estudo acerca da produção científica na área dos Distúrbios da Comunicação, Berberian et al. (2009) observaram que a intervenção mais realizada nos estudos foi o diagnóstico/avaliação, enquanto os trabalhos que utilizavam terapia não eram tão expressivos na literatura. Achado similar ao de nosso estado da arte, em que a análise de filmagens e as avaliações foram as intervenções mais ocorrentes, enquanto há poucos estudos com terapia.
Pensando no foco das análises e avaliações, todos os estudos investigaram a atenção conjunta associada a um ou mais aspectos. O mais pesquisado (n=6) foi o vocabulário infantil, tanto o expressivo quanto o receptivo. Em seguida, encontramos estudos, cada um com três publicações, que pesquisavam outras habilidades sociocomunicativas – como compartilhamento do afeto, compreensão e produção da intencionalidade –, e da relação gesto-fala (Gráfico 4).
Além disso, encontramos apenas um estudo que se dedicou à análise de gestos, em especial os sinais, e sua relação com o vocabulário infantil (CLIBBENS, POWELL, ATKINSON, 2002). E uma pesquisa que observou o uso de produções orais – riso e humor – durante o engajamento conjunto (REDDY, WILLIAMS, VAUGHAN, 2002).
Visualizamos, nessa análise, que há uma maior preocupação, nos estudos, com a relação da atenção conjunta com o desenvolvimento lexical infantil na SD. E, para observar essa relação, utilizam avaliações e análises de interações diádicas para averiguar a correlação existente entre esses aspectos.
Verificou-se que há um aprimoramento do desenvolvimento linguístico, conforme há o aumento da idade ou a estimulação da atenção conjunta, como visto em Adamson et al. (2009), Zampini, Salvi e D'Odorico (2015) e Mason-Apps et al. (2018). Contudo, consideramos importante conhecer quais produções linguísticas são utilizadas durante a inserção das crianças em cenas de atenção conjunta, no intuito de analisar como crianças com SD e com desenvolvimento típico mobilizam sua matriz linguística para se engajar nessas cenas.
Três estudos abordaram a relação entre gesto-fala e engajamento conjunto, observando qual o tipo de produção privilegiada em contextos interativos e a influência da atenção conjunta no aumento dessas produções (LEGERSTEE, VARGHESE, VAN BEEK, 2002; LIMA, DELGADO, CAVALCANTE, 2018).
Entretanto, estes foram muito gerais em seus achados, indicando só a presença de gestos e palavras nas cenas. Sabe-se que existe uma infinidade de gestos, cada um com características particulares, e que as palavras são apenas um dos tipos de produções prosódico-vocais.
Outro dado identificado no levantamento bibliográfico é o da relação de múltiplas habilidades sociocomunicativas com a atenção conjunta e a linguagem. Mason-Apps et al. (2018), por exemplo, verificaram que o desenvolvimento da linguagem na Síndrome de Down é fortemente influenciado pelas habilidades sociocomunicativas e cognitivas, como a atenção conjunta.
Mais um aspecto importante observado por estes autores é a diferença entre o início e a resposta à atenção conjunta. As crianças com DT se beneficiaram mais do início das cenas, enquanto as crianças com Síndrome de Down se beneficiaram mais da resposta à atenção conjunta, ou seja, as cenas haviam sido iniciadas pelo adulto interlocutor (MASON-APPS et al., 2018).
Acreditamos que essa diferença seja influenciada pelos déficits no desenvolvimento neuropsicomotor intrínsecos à SD, o que dificultaria uma maior autonomia para iniciar o engajamento conjunto. Essas questões, então, devem ser consideradas tanto no processo de avaliação, quanto na estimulação fonoaudiológica nessa população.
No estudo de Zampini, Salvi e D’Odorico (2015), encontramos uma outra relação com nosso trabalho. Os autores observaram a atenção conjunta de forma geral e especificaram se esta seria “joint attention follow focus” ou “joint attention propose focus”[1]. Essa classificação apresenta similaridade à de Tomasello (2003), atenção de acompanhamento e direta, respectivamente. Os autores Zampini, Salvi e D'Odorico (2015) observaram que as crianças com SD utilizavam mais o “follow focus”, mas no “propose focus”[2] apresentavam maior relação com o aumento do vocabulário.
A compreensão da intencionalidade também foi uma temática recorrente nas pesquisas. O estudo da intencionalidade, segundo Hahn et al. (2013), se concentra em como as crianças chegam a compreender as ações direcionadas aos objetivos dos outros e é um importante precursor para o desenvolvimento de habilidades cognitivas sociais mais complexas, como a teoria da mente.
Um dos elementos-chave para o desenvolvimento da atenção conjunta, para Tomasello (2003), é a compreensão da intencionalidade do outro e o reconhecimento dos parceiros interativos como agentes intencionais. Contudo, é importante considerar que é difícil prever se uma criança em processo de desenvolvimento da linguagem consegue interpretar as intenções comunicativas do adulto e é difícil mensurar quando e como ocorre a intencionalidade, como indicado por Melo (2015) e Ávila-Nóbrega (2017).
Tomasello, Carpenter e Hobson (2005) pontuam que a intencionalidade é uma capacidade exclusiva da espécie humana e pode ser observada quando os indivíduos demonstram ter objetivos e fazem escolhas para alcançá-los, ao avaliarem a situação vivenciada.
Analisando essa habilidade na síndrome de Down, Hahn et al. (2013) verificaram que o compartilhamento do afeto foi bastante positivo, mas a compreensão da intencionalidade do outro estava prejudicada, aspecto que pode dificultar o processo de atenção conjunta na SD.
Até então, extraímos três elementos-chave nesses estudos: inserção em cenas de atenção conjunta, compreensão da intencionalidade do outro e a proposição de foco de atenção pela criança. Esses aspectos são cruciais para o processo de desenvolvimento linguístico infantil e possuem relação com os elementos indicados por Tomasello (2003) como necessários para a apropriação de símbolos linguísticos: 1) participação em cenas de atenção conjunta, que estabelecem as bases sociocognitivas para a comunicação; 2) entender o interlocutor como agente intencional; 3) compreender as intenções comunicativas do interlocutor; 4) inversão de papéis na comunicação, propondo os tópicos da interação.
Por isso, a estimulação das habilidades sociocomunicativas é crucial nas intervenções precoces, pensando nos benefícios que elas promoverão na atenção conjunta e em múltiplas habilidades, como o desenvolvimento da linguagem.
Os resultados de Zampini, Salvi e D'Odorico (2015), por exemplo, apoiam a hipótese de que há continuidade entre habilidades sociocomunicativas iniciais dos bebês e o desenvolvimento do vocabulário nessa população e em outras com desenvolvimento atípico. Wright et al. (2013) realizaram uma estimulação que se apoiava na atenção conjunta e facilitou o desenvolvimento de comunicação expressiva de gestos e palavras em crianças pequenas com SD.
O uso de gestos é crucial no processo de interação com crianças com SD para garantir a inserção e foco da atenção conjunta. Há evidências de que esses elementos beneficiam a atenção conjunta de crianças surdas, por exemplo, por utilizar o meio visual favorável à transmissão linguística nessa população. E, por as crianças com SD costumarem possuir uma capacidade de atenção restrita, há evidências de que o uso de gestos e sinais associados à fala favorece a atenção conjunta na Síndrome de Down (CLIBBENS, POWELL, ATKINSON, 2002).
Diante destes achados, tentamos responder ao nosso questionamento: a inserção das crianças com Síndrome de Down em cenas de atenção conjunta se assemelha ao de crianças com desenvolvimento típico?
Hahn et al. (2018) apontam que alguns estudos indicam que sim, e outros que não. A pesquisa supracitada foi uma meta-análise publicada no segundo semestre de 2018 e trouxe contribuições relevantes à resposta de nossa pergunta.
Os autores (HAHN et al., 2018) observaram que:
I. a atenção conjunta aparenta não ser uma fraqueza para crianças com Síndrome de Down, diferente de crianças com TEA, como observado nos estudos de Reddy, Williams e Vaughan (2002), Adamson et al. (2009) e Adamson et al. (2012);
II. o nível de inserção é compatível com o seu nível de desenvolvimento, ou seja, ele possui uma relação íntima com o desenvolvimento global infantil, inclusive com o linguístico. E como a SD provoca alterações no desenvolvimento motor, linguístico e cognitivo (SCHWARTZMAN, 2003; FERREIRA-VASQUES, ABRAMIDES, LAMÔNICA, 2017), as crianças podem apresentar variações nesse processo de inserção e engajamento em cenas de atenção conjunta, quando comparadas a crianças com desenvolvimento típico, como apontado por Hahn et al. (2013);
III. a atenção conjunta pode ser uma forte habilidade dessas crianças em comparação com outras habilidades associadas ao fenótipo da SD. Por isso, a atenção conjunta é considerada preditora do desenvolvimento do vocabulário infantil e que a estimulação desta favorece o aumento das produções linguísticas, como observado nos estudos de Adamson et al. (2009), Wright et al. (2013), Zampini, Salvi e D'Odorico (2015), Mason-Apps et al. (2018), Lima, Delgado e Cavalcante (2018), Seager et al. (2018) e Galeote, Checa e Soto (2020);
IV. intervenções precoces para crianças com SD podem explorar as habilidades de atenção conjunta, visando favorecer outras habilidades, conforme visualizado também por Wright et al. (2013) e Lima, Delgado e Cavalcante (2018).
3. Conclusão
Nesse sentido, verificamos que há evidências, apesar de escassas, de estudos de atenção conjunta na SD e que continuar a investigar essa temática é importante pela influência positiva que essa habilidade possui para o desenvolvimento social, cognitivo e linguístico infantil.
Ressalta-se que as pesquisas analisadas trouxeram grandes contribuições para a área e todos concordam com a necessidade de mais estudos para o fortalecimento das evidências acerca: a) do comportamento da inserção em cenas de atenção conjunta na SD; b) da relação entre o aumento da inserção nas cenas e o desenvolvimento da linguagem; c) da relação entre atenção conjunta e a compreensão da intencionalidade do interlocutor; d) e do papel da estimulação fonoaudiológica para o aumento do desempenho linguístico e sociocomunicativo nessa população.
Desse modo, concluímos que a atenção conjunta é uma habilidade em potencial nessa população e seu aprimoramento ocorrerá de forma correlacionada a outras habilidades do desenvolvimento global das crianças com SD. Por isso, é importante que o engajamento conjunto seja explorado em mais pesquisas linguísticas, naturalísticas e clínicas, além de ser contemplada em propostas de estimulação precoce para a síndrome de Down.
Apêndice
SISTEMATIZAÇÃO DOS DADOS DOS ARTIGOS ACERCA DA ATENÇÃO CONJUNTA E SÍNDROME DE DOWN