Introdução
Neste trabalho, temos o objetivo de apresentar uma análise de orações condicionais na Língua Brasileira de Sinais (Libras), considerando os domínios de uso propostos por Sweetser (1990) e Dancygier (2003). Com base em dados espontâneos, apresentamos evidências de que, na Libras, as orações condicionais expressam diferentes valores semântico-pragmáticos que se associam aos domínios de conteúdo, de ato de fala, epistêmico e metatextual, como propõem as autoras.
Os resultados que apresentamos aqui partem dos dados que encontramos a partir do Corpus de Libras, organizado por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), do qual coletamos 64 ocorrências de orações condicionais.
A proposta de um trabalho baseado em dados espontâneos da Libras enfrenta desafios esperados para o estudo de qualquer língua ainda pouco estudada. A falta de bancos de dados robustos representa um empecilho para uma análise quantitativa mais refinada. Todavia, a fonte de dados utilizada nesta pesquisa constitui uma boa base linguística da Libras, pois foi elaborada de modo a permitir o acesso aos dados produzidos espontaneamente por sinalizantes surdos em situações de interação real.
Ademais, a condicionalidade nas línguas de sinais ainda é um tema em que poucos pesquisadores ao redor do mundo têm se debruçado com exclusividade. Sendo assim, nossa investigação se justifica não só porque se insere em um universo timidamente explorado, mas também por trazer à academia dados que contribuem para o aperfeiçoamento e para as reflexões sobre as línguas de sinais, fortalecendo a legitimação da Libras como língua natural, permitindo a inserção do fenômeno em gramáticas descritivas, bem como colaborando para a construção do conhecimento científico.
Para a apresentação das ocorrências, utilizamos glosas e incluímos uma imagem com QRcode, que, através de aplicativo gratuito, permite o acesso ao vídeo, que está hospedado no YouTube. Desse modo, garantimos o acesso aos dados na sua manifestação original, em Libras.
Este texto está dividido da seguinte forma: inicialmente, apresentamos, brevemente, nossa fundamentação teórica; na sequência, apresentamos nossos dados e a análise; ao final, estão nossas considerações finais e as referências bibliográficas.
1. As relações semânticas e pragmáticas nos domínios de usos das condicionais
As orações condicionais podem ser analisadas à luz da perspectiva cognitivista elaborada por Sweetser (1990), que aborda como as construções condicionais do inglês, introduzidas pela conjunção if, podem ser interpretadas a partir de três domínios semânticos e pragmáticos diferentes: o domínio de conteúdo, o domínio epistêmico e o domínio de atos de fala. Seu trabalho serve como mais uma reflexão sobre a pesquisa inicial de Haiman (1978), questionando a relação entre condicionais e tópicos, bem como as características dessas construções em usos linguísticos reais.
Para Sweetser (1990), por exemplo, os falantes exigem muito mais do que a identificação de valores de verdade para aceitar uma condicional como “bem formada” em suas línguas em uso; o que eles exigem, de fato, é uma conexão entre as duas orações dentro do ato discursivo. Desse modo, a autora põe em foco o grau e a natureza da identificação dessa conexão, de forma a propor que a condicionalidade apresenta sentidos diferentes no uso de cada um dos três domínios acima citados. Segundo Sweetser (1990), a prótase, quando anteposta, tem um sentido de conhecimento dado na medida em que o seu conteúdo precede qualquer consideração sobre aquilo que é veiculado pela apódose, mesmo que contenha um valor hipotético. É nesse sentido, então, que a pesquisadora propõe a categorização das condicionais em três domínios diferentes, focalizando, sobretudo, a relação estabelecida entre prótase e apódose.
O primeiro domínio que Sweetser (1990, p. 114) estabelece em sua pesquisa é o do conteúdo; neste domínio, a relação condicional if-then indica que a realização do evento ou do estado de coisas descrito na prótase é uma condição suficiente para a realização do evento ou estado de coisas descrito na apódose. Para exemplificar essa noção, recorremos ao exemplo clássico da autora:
If Mary goes, John will go1.
Nesse exemplo, é considerado que, se o estado de coisas do mundo real incluir a partida de Mary, isso também incluirá a partida de John. Logo, a conexão entre antecedente e consequente pode ser considerada causal, uma vez que a partida de Mary pode trazer ou viabilizar a partida de John, ou Mary não partirá, porque John também não partirá.
Ainda com relação às condicionais do domínio de conteúdo, Oliveira e Hirata (2017) afirmam que estas são o tipo mais básico e menos subjetivo de condicional, na medida em que nelas estão presentes “traços da causalidade que se marcam especialmente pelo modo como os eventos estão dispostos, implicando uma determinada sequencialidade” (p. 303). Tendo seu significado mais próximo da zona da causalidade, essas condicionais veiculam seu significado sobre uma situação concreta.
O segundo domínio proposto por Sweetser (1990) é o epistêmico, para o qual se observa se o conhecimento da verdade da premissa hipotética expressa na prótase é uma condição suficiente para concluir a verdade da proposição expressa na apódose. Para facilitar o entendimento dessa relação, a autora propõe que se pense na seguinte sentença: “Se eu sei [conteúdo da prótase], então eu posso concluir que [conteúdo da apódose]”. Isso é ilustrado pelo seguinte exemplo dado pela autora:
If she's divorced, (then) she's been married. 2
Nesse caso, em que se percebe que ambas as condicionais são verdadeiras, é estabelecida uma relação de implicação de conhecimento sobre o conteúdo das proposições, ou seja, o conhecimento de que a proposição “ela se divorciou” é verdadeira é uma condição suficiente para garantir que se possa concluir que o conteúdo da proposição “ela foi casada” também é verdadeiro. Um outro exemplo dado pela autora é o seguinte:
If John went to that party, (then) he was trying to infuriate Miriam. 3
Ao observarmos esse exemplo, aparentemente, não conseguimos estabelecer uma conexão lógica entre os estados de coisa abordados na prótase e na apódose. Essa relação é estabelecida, então, epistemicamente, quer dizer, o falante ativa, em sua mente, o seu conhecimento sobre o assunto em questão e pressupõe que seu ouvinte já sabe do que ele está falando, de modo que a relação de verdade está relacionada a essa suposição de conhecimento. Assim, “John foi a essa festa” é tomado como verdade, sendo suficiente para concluir que “ele estava tentando enfurecer Miriam” também é (SWEETSER, 1990).
Nesse caso, consideramos, assim, que um dos interlocutores sabe que John foi à festa e conclui que ele foi lá para enfurecer Miriam. Isso só se confirma por se estabelecer que o nexo de causalidade não está no nível do conteúdo, e, sim, no nível epistêmico; ou seja, é o conhecimento que causa a conclusão.
De acordo com Sweetser (1990), as condições epistêmicas são, não surpreendentemente, as que mais se aproximam da estrutura formal-lógica “se-então”; elas expressam nossa compreensão de nossos processos de raciocínio lógico e, portanto, refletem em certa medida as mesmas estruturas inerentes a uma compreensão mais formal da lógica. Todavia, elas também se diferem dessas estruturas puramente formais, na medida em que se observa que os valores de verdade encerrados por prótase e apódose, apesar de necessários, não são suficientes para garantir, nos termos de Austin (1962), a “felicidade” de uma condicional epistêmica mais do que a de uma condicional de conteúdo. As condicionais epistêmicas devem ter alguma relação presumida entre as duas orações.
Oliveira e Hirata-Vale (2017), sobre as condicionais do domínio epistêmico, afirmam que o significado dessas construções está fundamentado na avaliação que o falante faz de uma situação interna ou cognitiva e que, por essa razão, é mais subjetivo do que as condicionais que se encontram no nível do conteúdo. Sendo assim, elas são o resultado de uma suposição do falante, que estabelece uma relação hipotética entre os dois fatos descritos na prótase e apódose. As pesquisadoras afirmam que se deve fazer a seguinte leitura sobre as condicionais epistêmicas: “considerada a verdade do fato condicionante, eu concluo o fato principal” (OLIVEIRA; HIRATA-VALE, 2017, p. 303).
O terceiro domínio proposto por Sweetser (1990) é o das condicionais que veiculam atos de fala. Nesse domínio, a oração condicional valida o ato de fala expresso na oração principal, como se pode perceber no exemplo a seguir:
“Se você tiver fome, há comida na geladeira”.
Como podemos perceber, nesse exemplo, o fato de a pessoa ter fome não está condicionado ao fato de haver comida na geladeira. Assim, a interpretação para essa sentença é a seguinte: se você estiver com fome, então (considerando isso) eu informo que há comida na geladeira. O ato de informar o ouvinte sobre a presença de comida na geladeira é relevante apenas no caso de o falante estar supondo que o seu interlocutor está com vontade de comer. Portanto, mesmo que o falante não tenha declarado uma condição exigindo uma noção de relevância ou informatividade, a condição "se você estiver com fome” nos apresenta a condição suficiente para fazer a declaração anterior – e, igualmente, para a oferta inerente à declaração. Uma leitura melhor para este exemplo no nível dos atos da fala poderia ser: “Por meio deste, ofereço a você comida, que está na geladeira, se assim você quiser”. Dada essa leitura, o estatuto do ato de fala se apresenta de modo ainda mais claro: a oferta está condicionada à sua potencial aceitação pelo ouvinte.
Em síntese, as condicionais que estão sob o domínio dos atos de fala criam um pano de fundo (background) para a relevância de um ato de fala, de modo que o significado está assentado sobre as atitudes do falante com relação ao evento da fala e ao interlocutor. Oliveira e Hirata-Vale (2017) consideram que, nessas condicionais, o grau de intersubjetividade é ainda maior do que o estabelecido entre as condicionais epistêmicas e de conteúdo, de forma que a noção de causalidade, embora ainda presente, já está bem mais diluída. De acordo com as autoras, nas condicionais de atos de fala “o falante demonstra ater-se a todas as normas pragmáticas e convenções sociais, ao evitar enunciar um ato que, por alguma razão, possa ser questionado no contexto da fala” (p. 304). Ademais, ainda afirmam que se deve ter a seguinte leitura para esse tipo de condicional: “considerada a situação condicionante, enuncia-se esse ato”.
Além dos três domínios estabelecidos por Sweetser (1990) para as condicionais, há, ainda, um quarto, proposto por Dancygier (2003): o metatextual; neste domínio, há, sobretudo, uma identificação com a posição de prótase e apódose, que tende a ser invertida (ou seja, a apódose está anteposta à prótase), de modo que a função assertiva é desempenhada pela apódose, e a prótase é quem introduz uma informação sobre algo descrito na apódose. Dancygier (2003, p. 104) apresenta os seguintes exemplos:
a. He trapped two mongeese, if that’s how you make a plural of “mongoose”.4
b. He trapped two mongeese, if “mongeese” is the right form.5
c. Grandma is feeling lousy, if I may put it that way. 6
d. Grandma is feeling lousy, if that’s an appropriate expression. 7
e. Chris managed to solve the problem, if solving it was at all difficult for him. 8
f. Chris managed to solve the problem, if “manage” is the right word. 9
g. The Queen of England is happy, if not ecstatic. 10
h. John was born in Philadelphia, if that’s where they keep the Liberty Bell. 11
Nessas sentenças, os conteúdos enunciados nas orações principais, todas antepostas, apresentam um determinado pensamento de uma determinada maneira. O falante, no entanto, não tem certeza se escolheu a expressão certa para interpretar um aspecto do enunciado – seja referente à forma ou à interpretação. Para marcar a falta de certeza, ela acrescenta ao enunciado uma oração expressando sua dúvida sobre uma parte do texto. A oração condicional, então, pode destacar o fragmento em questão, repetindo-o – como acontece em “b” e em “f” –, ou referindo-se a ele anaforicamente – como, por exemplo, o uso dado em “d”. Pode também oferecer uma expressão potencialmente mais apropriada, como em “g”, ou explicar as razões pelas quais o falante não tem certeza se a expressão é apropriada – este é o caso em “a”, “e” e em “h”.
Dancygier (2003) diz que muitos confundem as condicionais metatextuais com as condicionais de atos de fala; no entanto, a diferença entre elas reside principalmente no fato de que, nas condicionais metatextuais, o falante comenta o seu próprio enunciado, e o comentário segue o enunciado na mesma construção. A autora afirma, ainda, que as condicionais de atos de fala e as metatextuais diferem com relação à preferência de ordenação sintática: as primeiras são mais frequentemente usadas com a condicional anteposta à principal, enquanto as metatextuais são tipicamente utilizadas após a oração principal (p, se q), sobretudo pela sua função semântico-pragmática de referir-se a algo já mencionado no discurso, de forma anafórica ao próprio domínio textual.
Oliveira e Hirata-Vale (2017) referem-se às condicionais metatextuais sobretudo com relação ao fato de o significado dessas sentenças estar baseado na situação textual e metalinguística, de modo que, “à medida que se torna altamente embasado na avaliação do falante em relação à interação, o significado condicional se torna cada vez mais intersubjetivo”. As autoras propõem, então, a seguinte leitura para as condicionais metatextuais: “considerado determinado elemento do discurso, enuncia-se esse ato” (p. 304).
Assim, ao olhar-se para os quatro domínios das condicionais, pode-se perceber que, embora todas criem uma relação de causalidade entre prótase e apódose, essa relação tende a se tornar mais subjetiva e abstrata, na medida em que se pode estabelecer um cline, proposto por Oliveira (2019, p. 208): “conteúdo > epistêmicas > atos de fala > metatextuais”. Esse cline revela que as condicionais de conteúdo são, portanto, o tipo mais básico das condicionais, em que os traços de causalidade se marcam sobretudo pela predição, que é “a propriedade da condicional de projetar uma consequência a partir de um evento ou proposição dado”; a interpretação de causa vai se perdendo, à medida que o significado da condicional se torna mais subjetivo e abstrato.
Em nossa análise, observamos nossos dados assumindo os tipos de usos estabelecidos por Sweetser (1990) e Dancygier (2003), considerando, ainda, o cline de relação causal das condicionais proposto por Oliveira (2019).
2. Procedimentos metodológicos
Para a realização de uma pesquisa sob a perspectiva funcionalista, é essencial que os dados investigados tenham origem em produções naturais de uso, quer dizer, que não tenham se originado a partir da elicitação de sentenças. Assim, a fim de realizar uma investigação sincrônica do uso da Libras, sob uma abordagem quali-quantitativa, elegemos o Corpus de Libras, desenvolvido pela UFSC, como base para a busca de nossos dados.
A escolha pelo Corpus de Libras se deu na medida em que este se configura, atualmente, como uma base de dados de referência nacional, e que contempla um quantitativo relevante de vídeos em que surdos dialogam sobre diferentes temas predefinidos pelos pesquisadores.
O acervo do Corpus de Libras, que está todo on-line e disponível para download12 atualmente, agrupa registros de diversos estados do Brasil, tendo para o estado de Santa Catarina um quantitativo bastante expressivo de produções em Libras, reunidas em diferentes grupos, a saber:
· Libras Acadêmico.
· Exame Prolibras UFSC.
· Prolibras SC.
· Antologia de Poesias SC.
· Empréstimos Linguísticos.
· Inventário de Libras.
· Antologia de Poesias SC.
Desses grupos, decidimos utilizar os dados provenientes do Inventário Nacional de Libras, que integra o Corpus. De acordo com Quadros (2016, p. 12), a metodologia de captação de material no início do Projeto serviu de referência para os materiais usados no Inventário de Libras, com o objetivo de “estabelecer a documentação da Libras em âmbito nacional e já conta com dados coletados da Grande Florianópolis (Santa Catarina) e [...] de Maceió (Alagoas)”. Essa metodologia compreende interações de “surdos em pares divididos em três grupos, por idade e por gênero”.
No Inventário de Libras, vários temas são debatidos por duplas de informantes surdos. Os selecionados por nós contemplam discussões sobre a “Educação de Surdos” e sobre “Tecnologias” sobretudo porque contêm um material maior no que se refere ao tempo de conversação.
Os temas são debatidos por três grupos de informantes. O Grupo 1 é formado por seis duplas de informantes considerados “mais jovens” (de 18 a 29 anos); o Grupo 2, por seis duplas de informantes considerados “adultos” (de 30 a 59 anos); o Grupo 3, por seis duplas de informantes considerados “idosos” (acima de 60 anos). Dentre as duplas, há a divisão proporcional entre surdos do sexo masculino e do sexo feminino. A região que escolhemos foi a de Santa Catarina, que foi finalizada anteriormente à de Maceió. Ao todo, são captados, portanto, os discursos de 36 informantes surdos – 18 homens e 18 mulheres.
Além de todo o trabalho de captação das imagens, todos os vídeos foram trabalhados posteriormente com o sistema de anotação Eudico Annotator – ELAN.
A busca pelas orações condicionais se deu a partir da observação de orações introduzidas seja por meio do uso de conjunções manuais (enlace conjuntivo), seja por marcadores não manuais (enlace justaposto). As orações condicionais introduzidas por conjunção manual observadas foram as introduzidas pelas conjunções SE e EXEMPLO, tal como ilustram, respectivamente, os exemplos a seguir:
Além disso, observamos o padrão de uso não manual envolvido para a realização de orações justapostas, ou seja, quando não há marcação manual, tal como ilustrado neste exemplo:
Uma vez identificadas as ocorrências, elaboramos as glosas de cada exemplo. Para as convenções destas, utilizamos como base as disponíveis no Manual de Transcrição do Inventário de Libras (QUADROS, 2015). Sendo assim, para diferenciar as glosas das línguas de sinais de realizações escritas de línguas orais, nós as representamos em caixa alta (letras maiúsculas).
As linhas sobrescritas a cada glosa representam os marcadores não manuais gramaticais ou as funções referentes ao uso desses marcadores a que queremos chamar atenção a cada exemplo. A notação “cond” faz referência aos marcadores não manuais que identificam a realização linguística como pertencente ao grupo das condicionais, como, por exemplo, o arqueamento das sobrancelhas, o impulso de cabeça para a frente e o uso do mouthing.13
Depois de estabelecidas as glosas, realizamos a tradução de cada exemplo para o português, considerando, sempre, o contexto em que a sentença foi produzida. Para os leitores que conhecem a Língua Brasileira de Sinais, oferecemos o contexto de realização das ocorrências por meio dos links de acesso a trechos dos vídeos em que é preciso atentar-se ao contexto anterior.
Uma estratégia que tem sido muito utilizada em apresentações de trabalhos e textos acadêmicos que envolvem línguas de sinais é inserir, ao lado de cada glosa, um Qr-code (Quick Response Code) para acessar os vídeos correspondentes às ocorrências, em vez de simplesmente incluir o link de acesso. Com o Qr-code, o leitor pode, ao apontar a câmera do seu smartphone à imagem impressa, ter acesso ao vídeo disponível na plataforma de vídeos. Essa é mais uma ferramenta que contribui para as pesquisas que envolvem línguas de sinais. A seguir, apresentamos um exemplo de como serão apresentadas, ao longo da nossa seção de análise, todos os exemplos de nossas ocorrências:
3. Análise
Nesta seção, partimos para a observação das condicionais na Libras. Assim, buscamos identificar se os tipos cognitivos propostos por Sweetser (1990) podem também ser encontrados em nossas ocorrências. Como já dissemos, Sweetser (1990) descreve as condicionais dentro de um padrão em três diferentes tipos: condicionais de conteúdo, condicionais epistêmicas e condicionais de atos de fala. Dancygier (2003) acrescenta a este um quarto tipo, o metatextual.
Oliveira (2019) advoga que esses quatro tipos de significado condicional poderiam ser colocados numa escala de abstratização e intersubjetivação, de modo que os traços de significados das condicionais partem do cline: “condicionais de conteúdo > condicionais epistêmicas > condicionais de atos de fala > condicionais metatextuais” (-abstrato > +abstrato).
Assumindo essas categorias, apresentamos como nosso corpus se compõe nesse sentido:
As condicionais de conteúdo encabeçam o cline por serem o tipo mais básico de condicional. Um traço característico desse tipo de condição é a predição, quer dizer, a capacidade de projetar uma conclusão futura a partir de uma causa dada (OLIVEIRA, 2019). Além disso, a realização do conteúdo da prótase é uma condição suficiente para a realização do conteúdo da apódose15.
No exemplo que apresentamos a seguir, a sinalizante está em um contexto em que explica que não é a favor do uso de implantes cocleares e apresenta um relato de experiência própria quando diz que não gostava de colocar o implante coclear porque isso lhe causava dor de cabeça. Sendo assim, a prótase “SE IMPLANTE-COCLEAR DENTRO AGUENTAR” engloba a causa para a dor de cabeça descrita na apódose. Assim, configura-se como condicional de conteúdo uma vez que o uso do implante coclear é suficiente, dentro desse contexto, para a realização da apódose, ou seja, de fazer a cabeça doer.
No próximo exemplo, evidenciamos que a condicional de conteúdo é realizada por meio de justaposição, ou seja, quando não há a realização de um sinal manual que seja responsável por veicular o valor de condicionalidade. As expressões não manuais são fundamentais para que consigamos identificar o momento de realização da prótase – há o arqueamento, que se manifesta simultaneamente à realização dos sinais manuais; a pausa realizada pelo piscar de olhos e o impulso de cabeça para a frente; o relaxamento das sobrancelhas denota a contraparte dessa condicional, realizada pelo sinal manual INCLUSÃO.
Nessa ocorrência, a prótase indica, também, uma condição suficiente para a realização da prótase. A relação de causa e efeito, bem marcada, mostra que a inclusão (efeito) ocorre com a condição de que um professor ouvinte seja acompanhado por um intérprete em sala de aula (causa); a relação de predição também é evidente nessa ocorrência, tal como estabelece Dancygier (2003). Ressaltamos, nesse sentido, que, apesar da relação causa-efeito estabelecida nessa ocorrência, não poderíamos analisá-la como uma oração causal, uma vez que a ordem e os MNM favorecem a leitura condicional. Nas línguas de sinais, há uma tendência de as causais serem codificadas de modo posposto; Rodrigues (2020) evidencia que o mesmo acontece com a Libras.
Em nossos dados, as condicionais de conteúdo não se mostraram muito abundantes. No universo de 64 ocorrências, apenas 6 (9%) se enquadram nessa categoria. Apesar das poucas ocorrências, é fato que esse tipo semântico pode ser encontrado na realização da Libras.
As condicionais epistêmicas, em contrapartida, são maioria evidente com relação ao uso em nossos dados. No total, contamos com 49 ocorrências (72%). As condicionais epistêmicas, segundo Sweetser (1990), apresentam comportamento diferente do das condicionais de conteúdo. Nesse caso, a expressão do conhecimento sobre a verdade da premissa hipotética veiculada pela prótase é condição suficiente para a conclusão sobre a verdade da proposição veiculada na apódose. Retomando Sweetser (1990), teríamos algo como “Se (eu sei) X, então (eu concluo) X”. Assim, não se trata exatamente da realização de um evento ou estado de coisas, mas do que pode se concluir (na apódose) a partir do que se infere da prótase. Vejamos o exemplo a seguir:
B: IX3 O-QUE MAIS IMPORTANTE O-QUE FAMÍLIA LÍNGUA-DE-SINAIS COMUNICAR LÍNGUA-DE-SINAIS IX3 PRECISAR OBRIGAR FALAR
B: Pra você, o que é mais importante, a família tem que se comunicar em Libras ou ela deve obrigar o surdo a falar?
Nesse exemplo, a sinalizante B traz à tona uma situação familiar comum quando há uma única criança surda dentre pessoas ouvintes dentro de casa: qual língua deve ser usada nesse contexto? Dessa forma, ela questiona à sinalizante A qual sua opinião sobre o tema: a família toda deve aprender a Libras para conseguir se comunicar com a criança surda ou, em vez disso, deve obrigar a criança surda a falar, ou seja, a aprender o português e fazer a oralização e a leitura labial? Então, A apresenta o que ela acredita que seja o ideal nessa situação – para ela, a afirmação de que está “tudo bem” o fato de a família toda falar na sua língua oral (o português) é uma inferência a partir da premissa de que o surdo sabe, de fato, oralizar. Assim, a suposição de que a premissa hipotética da prótase seja verdade (ou seja, a de que o surdo sabe oralizar) é uma condição suficiente para concluir a verdade da proposição expressa na apódose (ou seja, a que, sob essa condição, é aceitável um surdo oralizar com pessoas ouvintes).
Na sequência, a informante apresenta uma nova condicional epistêmica, em oposição à primeira: para o caso de o surdo não saber oralizar (prótase), seria obrigatório que todos usassem a língua de sinais (apódose). Observemos: o conteúdo veiculado pela prótase, embora seja uma condição suficiente, não é uma condição necessária para a realização do que está suscitado na apódose – inclusive, muitas famílias ouvintes, quando têm um surdo, não se preocupam em aprender a língua de sinais; ao contrário, forçam o surdo a usar a língua oral (com a leitura labial, por exemplo). Vemos aí que a relação de condicionalidade estabelecida entre prótase e apódose vem da crença da informante, o que evidencia a noção epistêmica.
Vale ressaltar que, segundo Sweetser (1990), também se estabelece, nas condicionais epistêmicas, a noção de causa entre as orações. Perceptivelmente, essa noção é mais abstrata do que o que ocorre nas condicionais de conteúdo. Assim, no último exemplo que apresentamos, o conhecimento de que o surdo sabe oralizar é que permite (causa) exprimir a opinião positiva, em concordância, com o fato de toda a família usar a língua oral. Do mesmo modo, o conhecimento de que o surdo não sabe oralizar implica a conclusão de que seria obrigatório todos da família usarem a língua de sinais.
Por sua vez, o grupo das condicionais de atos de fala, embora não tão produtivo quanto o das condicionais epistêmicas, também apresenta um quantitativo expressivo em nosso corpus. Das 64 ocorrências, encontramos 10 (16%) correspondentes a esse tipo. A ocorrência a seguir ilustra condicionais de atos de fala presentes na Libras:
Na ocorrência acima, os sinalizantes estão em um contexto em que discutem sobre a interferência médica para o uso ou não uso dos implantes cocleares. Um dos interlocutores diz que o surdo tem o direito de recorrer à ajuda médica, caso queira ser implantado. O outro, enunciador da ocorrência acima, embora seja contra o uso de implantes, diz que, se o surdo se interessar pelo implante, que vá, porque ele não tem nada a ver com isso – diz isso quase que com desdém. Vemos aí que a relação entre prótase e apódose não apresentam entre si uma premissa hipotética entre os eventos; a relação é estabelecida com o ato de fala proferido na apódose, por meio do emblema glosado no sentido de “pode ir”. De acordo com Sweetser (1990), em ocorrências como essa, a execução do ato de fala representado na apódose está condicionada ao cumprimento do estado descrito na prótase. Sendo assim, é o estado na prótase que causa o ato de fala a seguir, o que evidencia uma relação mais subjetiva do que os dois tipos anteriores (de conteúdo e epistêmica).
Essa ocorrência, também classificada como sendo do tipo “atos de fala”, remete-nos ao exemplo citado em Neves (2000, p. 860) para o português:
SE entrarmos em desvantagem, não é bom.
Em situações como essa, segundo a autora, verifica-se que se pode articular uma oração condicional com uma asserção não exclamativa, ou seja, dois atos de fala são articulados, duas asserções.
O último tipo de condicional, considerando-se o domínio do uso acrescentado por Dancygier (2003), é o metatextual, para o qual obtivemos apenas duas ocorrências (3%). De acordo com a autora, as condicionais de atos de fala e as metatextuais são semelhantes em muitos aspectos, como, por exemplo, o fato de não envolverem nenhuma dependência do mundo real entre o conteúdo da prótase e da apódose. Além disso, nenhuma delas admite, segundo a autora, o uso de formas verbais preditivas e, consequentemente, não usam formas hipotéticas. Entretanto, há diferenças significativas entre elas. Por exemplo, com relação à ordem na sentença, as condicionais metatextuais são tipicamente encontradas na apódose, em virtude de seu caráter informativo, uma vez que constituem comentários sobre a asserção do conteúdo da oração consequente. Assim, têm a propriedade de introduzir uma informação nova (ou complementar) sobre o conteúdo da apódose. Esse é o caso da ocorrência a seguir:
Nesse exemplo, a informante discute o significado do termo “implante coclear”, questionando, assim, o porquê de ser um “implante”, uma vez existe a possibilidade de retirar a área externa do aparelho. Para as condicionais metatextuais, o significado é construído com base na situação textual e metalinguística, de modo que, conforme vai se tornando cada vez mais “embasado na avaliação do falante em relação à interação, o significado condicional se torna cada vez mais intersubjetivo” (OLIVEIRA; HIRATA-VALE, 2017, p. 304). Faz-se, então, a seguinte leitura dessa ocorrência: considerando determinado elemento do discurso – no caso, o implante coclear –, é enunciado o ato de fala “você pode tirar”.
4. Considerações
Nesta pesquisa, em que observamos as orações condicionais da Língua Brasileira de Sinais com relação aos domínios de uso, identificamos ocorrências para os quatro grupos estabelecidos por Sweetser (1990) e Dancygier (2003), a saber, de conteúdo, epistêmico, de atos de fala e metatextual.
Apontamos que o domínio epistêmico foi o mais recorrente, com maior uso de orações introduzidas pela conjunção SE. Com relação às introduzidas pela conjunção EXEMPLO, os usos estiveram concentrados nos domínios epistêmicos e dos atos de fala. Para as justapostas, o único domínio impossível de se realizar é o das metatextuais, que assumem a ordem posposta; isso ocorre porque, na Libras é impossível o uso posposto sem o uso de uma conjunção manual.
Evidenciamos, assim, que os quatro domínios podem ser codificados na Libras. Pesquisas futuras, partindo de outras bases de dados, podem contribuir para o aperfeiçoamento dessas noções, bem como para identificar realizações não manuais específicas para cada um desses usos.
Referências
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