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Theoretical Essay

Discourse analysis and deaf literature: understandings about deaf literary production

Heron Ferreira da Silva

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Keywords

Discourse Analysis
Emmanuelle Laborit
Deaf Literature
Deaf Subject

Abstract

The study of literary discourse is justified by the need and importance of understanding the texts of deaf literature, which have been increasingly circulating socially in the academic space. In order to think about the relations proper to the approach of texts in this sphere, we proceeded to a theoretical research on Discourse Analysis of French line, initiated by Michel Pêcheux and expanded by Eni Orlandi, in Brazil, and, we selected as clippings from the autobiographical book O Voo / Grito da Gaivota, by Emmanuelle Laborit, deaf. Reading a literature text is to dive into a different and intriguing world, when we refer more precisely to Deaf Literature, we return, in our social imaginary, to the deaf subject position, a historically denied position, but the position of writer and producer of his own literature. Reading the material allowed us to understand how the deaf subject's subjectivation process takes place in the midst of an ombudsman society, in which the normalization discourse imposes its constitution. This process is strengthened by the recognition of Emmanuelle in the position of diversity, while deaf, in / through sign language, his possibility of being a subject is built from his own language.

Introdução

A esfera de textos selecionados para este trabalho é a do campo literário, a qual estudada a partir de uma perspectiva discursiva materialista nos permite compreender as delimitações imaginárias produzidas pelos textos e por sua incompletude constitutiva. O discurso em textos literários possibilita explorar os sentidos constituídos na língua e na história, não pensada como cronologia, mas sim em sua historicidade.

A Literatura e Análise de Discurso são disciplinas que dialogam no que diz respeito ao estudo da linguagem e ao uso dela para significar e produzir sentidos. Estudar a literatura é estar mergulhado em um vasto campo de significados, em que a língua e a história possibilitam a constituição, a manutenção e o deslocamento de discursos. É justamente a circulação desses textos literários em meios sociais que faz reproduzir marcas de um determinado ambiente, trazendo em si os processos discursivos instaurados naquela sociedade.

O discurso literário, como diz Candido (1985), reproduz algumas características da sociedade na qual foi constituído. Torna-se evidente que os textos literários que circulam no meio social reproduzem as marcas do ambiente retratado. Muitos são os trabalhos desenvolvidos enfocando apenas a superfície da materialidade textual, os quais permitem uma leitura transparente, sem que se pense os processos discursivos em sua opacidade. Para Orlandi (1993), a análise discursiva literária se apresenta como tipologia, trabalha a articulação da linguagem, o contexto e as determinações históricas e ideológicas.

Nesse plano, é possível pensar que o sujeito do discurso literário ocupa posições dentro de um espaço ideológico, assim se faz (se significa) na/pela história, pois as palavras não estão diretamente ligadas ao que se diz, elas têm sentidos inscritos na história e relacionam-se com o trabalho ideológico.

O campo de nossa investigação é bem mais específico, a literatura surda, pouco pesquisada e investigada na perspectiva da Análise de Discurso. Para esse domínio teórico, os exemplares textuais literários não devem ser vistos apenas no nível de análise linguística, mais sim, em suas relações além da língua, olhar para o interior e o exterior de suas produções.

Ler um texto de literatura é mergulhar em um mundo diferente e intrigante, quando nos remetemos mais precisamente à Literatura Surda, retomamos, em nosso imaginário social, a posição-sujeito surdo, posição historicamente negada, mas posição de escritor e produtor da sua própria literatura.

Diante de tal cenário teórico sobre literatura e discurso, acreditamos que esse estudo se justifica pela necessidade e importância de se analisar textos de Literatura Surda, escrita por um sujeito histórico e diverso, o sujeito surdo. Analisar textos dessa natureza, possibilita-nos novas maneiras de ler, pois são textos que em sua constituição gritam por sentidos e pela compreensão de seus efeitos produzidos entre interlocutores.

Assim, temos como objetivo, neste trabalho, compreender a produção de sentidos acerca da constituição da imagem do sujeito surdo na literatura autobiográfica, mais precisamente na obra Le cri de la Mouette, em sua versão em português, intitulada O Voo/Grito da gaivota.

1. A Análise de discurso, a noção de sujeito e a de formação discursiva: nosso caminho teórico

Os estudos em Análise de Discurso (doravante, AD) foram iniciados pelo filósofo e linguista francês Michel Pêcheux, na segunda metade do século passado, e desenvolvidos por Eni Orlandi, no Brasil, no início dos anos 60. Essa disciplina tem como pressuposto uma abordagem histórica, social, filosófica e linguística dos acontecimentos. Para Orlandi (2003), é preciso estudar os fatos considerando a exterioridade da linguagem. Nesse domínio disciplinar, as relações exteriores, tais como as marcas ideológicas e simbólicas materializadas na língua, tornam possíveis o funcionamento do discurso.

Trabalhar com o discurso é considerar sua articulação com as posições históricas e socialmente determinadas. Compreender o discurso é ir além da ideia palavra/coisa. Esse campo teórico tem como proposta uma teoria crítica de produção da linguagem. O estudo do discurso deixa de lado a ideia de que a língua é um sistema abstrato sem relação com as formações ideológicas, cuja função é puramente informativa. O discurso é o efeito de sentido entre locutores, problematizando, assim, as maneiras de ler (ORLANDI, 2003[1]).

Consoante Orlandi (2003), a contribuição da Análise de Discurso é a de nos colocar em estado de reflexão e permitir que tenhamos uma relação menos ingênua com a linguagem. Nesse meandro, fazer Análise de Discurso é trazer uma nova maneira de ler e interpretar a noção de sujeito, história e linguagem, atentando ainda para as relações de força e poder. Ler em AD é se dar conta de que os sentidos podem ser outros.

É justamente pensando em um sentido amplo da linguagem que Orlandi (2003[1], p.15) define seu objeto de estudo: o discurso, como sendo “palavra em movimento, prática de linguagem”. Nesse ponto, a autora denota que o discurso é o “lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os sujeitos” (ORLANDI, 2003[1], p.17). A língua tem autonomia, não é fechada e há uma abertura para o simbólico. Interessa para a AD a forma que ela é praticada, produzindo efeito de sentidos histórico-sociais.

A questão central de nossa pesquisa é o sujeito surdo e sua constituição enquanto sujeito do discurso pautado em processos discursivos ideológicos instaurados socialmente.

Sendo assim, o sujeito na Análise de Discurso é inconsciente, múltiplo e determinado por posições. Orlandi (2003) nos diz que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia1 para que se produza o dizer, o sujeito é aquele que ocupa um lugar, é “posição” entre outras para produzir seu dizer, posição essa que não lhe é acessível e que ele não tem acesso à sua exterioridade.

Nesse meandro, a ideologia é parte da constituição do sujeito, ela dá condição para a produção do discurso, em outras palavras, “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia” (ORLANDI, 2003[1], p. 17). Portanto, a proposta da AD é possibilitar o deslocamento da noção de homem - indivíduo para o sujeito do discurso afetado pelo real da língua e o real da história, não tendo controle sobre o que os afetam.

Outro conceito bastante relevante é o de formação discursiva, que regula o que o sujeito pode e deve dizer e, também, o que não pode e não deve ser dito (COURTINE, 1994[2]). Nesse plano, retomamos a articulação entre linguagem e ideologia na determinação do dizer a partir de uma posição-sujeito. Desse modo, a AD entende que a formação discursiva do sujeito é definida pelo conjunto complexo de representações, ações e/ou atitudes de uma certa formação ideológica.

Pêcheux (2014) afirma que a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada, a partir de uma posição dada, em uma conjuntura sócio-histórica dada, determina o que pode e deve ser dito.

Partindo dessa conjuntura teórica, é interessante adentrarmos no nosso objeto principal que é a literatura surda e conhecermos brevemente o que, de fato, são essas produções textuais do povo surdo2 e sobre o surdo, disciplina esta iniciada recentemente nos espaços acadêmicos brasileiros, quando do início dos cursos de graduação em Letras Libras, a partir do ano de 2006, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (QUADROS; STUMPF, 2009[3]), que nos traz um vasto acervo para análise.

2. A Análise de Discurso e a Literatura Surda: pensando a constituição de nosso arquivo e o quadro teórico-analítico

Para trabalhar de acordo com a posição teórico-metodológica da Análise de Discurso, o analista precisa considerar que a linguagem possui sentidos que não são transparentes e não são acessíveis aos sujeitos. Os discursos não se originam nos dizeres dos sujeitos, só são retomados por eles. Ler em AD é saber que o sentido pode ser outro (ORLANDI, 1988[4]). Nesse plano teórico-metodológico, o analista precisa saber que o opaco próprio à linguagem pode ser descrito e interpretado a partir de um dispositivo teórico-analítico.

O processo metodológico do nosso trabalho é de caráter qualitativo-interpretativista. A Análise de Discurso não trabalha sobre um viés quantitativo de dados e tão pouco uma leitura horizontal, automática e objetiva do arquivo3. A metodologia na AD não se encontra pronta ou acabada, está sempre em processo de desenvolvimento. Em AD, o dispositivo metodológico não se limita só ao que está posto, assim, ao envolver-se com o movimento teórico, o analista ao mesmo tempo alcançará o dispositivo metodológico, pois em AD teoria e metodologia são inseparáveis.

Para iniciar a constituição do arquivo, em uma pesquisa de perspectiva discursiva materialista, é preciso partir de um deslocamento no estudo da linguagem. Esse deslocamento é a passagem do dado ao fato, colocando-nos no campo do acontecimento linguístico e do funcionamento discursivo, permitindo-nos compreender o processo de produção da linguagem e não apenas seus produtos (ORLANDI, 2004[1]).

Na perspectiva da AD, não se trata de corpus, mas sim de arquivo, pois ler um arquivo é ir além de uma simples análise textual, é trabalhar com sua constante mudança e construção, possibilitando diversas maneiras de significar. Trabalhar com a noção de arquivo é sair da evidência da transparência da linguagem. Ler um texto não é apenas uma simples decodificação de significados, ler um arquivo é saber que “o texto é parte de um processo discursivo mais abrangente” (ORLANDI, 2012[5], p. 89).

Além de afirmar que os dados não existem enquanto tal, pois já resultam de uma construção (ORLANDI, 2004), a autora destaca os gestos de interpretação e sua existência, pois estes se dão na medida em que a linguagem possui um espaço simbólico que é marcado pela condição de incompletude.

Nesse meandro, considerando-se o fato de que o nosso trabalho tem como foco uma análise discursiva visando compreender a produção de sentidos acerca da constituição da imagem do sujeito surdo na literatura autobiográfica, selecionamos, para a constituição de nosso arquivo de análise, a obra O Voo/Grito da gaivota, escrita pela surda Emmanuelle Laborit (1993), como título original: Le cri de la Mouette, obra que foi produzida e publicada em francês, pela Éditions Robert Laffont. O livro de Emmanuelle passou a circular no Brasil em 2000, o qual foi traduzido por Ângela Sarmento e publicado pela Editorial Caminho, em Portugal.

Figure 1. Figura 1. Ilustração das capas do livro Fonte: Imagens Google, 2019.

Nosso arquivo se trata de uma obra autobiográfica escrita por uma surda, que narra sua experiência de vida e descreve os principais acontecimentos ao longo dos anos e fases de sua vida. Além disso, ela conta como ocorre seu processo de subjetivação por meio da língua de sinais em meio a uma sociedade ouvinte.

A obra aqui selecionada foi um marco histórico no ano de sua publicação, sendo o primeiro livro escrito por uma pessoa com surdez, fato que significa e nos instiga a analisá-la discursivamente. É preciso lembrar que o livro original foi escrito pela autora em sua fase adulta, em francês, sua segunda língua.

Movimentar gestos de leitura em textos de esfera literária não deixa de ser um grande desafio, principalmente aqueles de Literatura Surda. De acordo com Strobel (2009[6], p. 62), a

literatura surda refere-se às várias experiências pessoais do povo surdo que, muitas vezes, expõem as dificuldades e/ou vitórias das opressões ouvintes, de como se saem em diversas situações inesperadas, testemunhando as ações de grandes líderes e militares surdos, e sobre a valorização de suas identidades surdas.

A Literatura Surda ao longo dos anos assume um importante papel no processo de educação de surdos e no desenvolvimento cultural e linguístico dessa comunidade. No caso brasileiro, a literatura surda divide-se em: traduções de textos clássicos, adaptações de outras obras e a criação de histórias pelo próprio indivíduo surdo. As obras literárias do povo surdo já circulam por várias gerações, por meio desses textos se encontram abordagens históricas e culturais da pessoa surda e suas vivências perante uma sociedade ouvinte, além de ressaltar-se a importância do reconhecimento e da valorização da língua de sinais (STROBEL, 2009[6]).

Por muitos anos a literatura surda foi negada por uma maioria linguística. Os surdos historicamente não tinham espaços sociais para divulgarem e socializarem sua literatura. A Literatura Surda foi ganhando mais espaço quando houve o reconhecimento da língua de sinais como comunicação e expressão do povo surdo. Segundo Strobel (2009), as produções literárias surdas são tanto as escritas e traduzidas para o português ou para a escrita sinais (SignWriting)4, sendo essa escrita uma forma de potencializar os registros da literatura desse povo, como também possibilitar a circulação e divulgação dessas produções impressas em diferentes tempos e espaços.

Além dessas, possui as que são contadas e narradas oralmente ao longo das gerações em língua de sinais pelas pessoas surdas de diferentes localidades no mundo, sendo essas mais frequentes dentro da comunidade surda. Com isso, podemos afirmar que a língua de sinais é um símbolo de identidade e luta das pessoas, sendo também um meio de interação social e de compartilhamento de suas experiências, crenças e valores (BERNARDINO, 2010[7], p.05).

É justamente pensando nessas produções que podemos afirmar que as experiências bilíngues dos surdos em muitos casos são proporcionadas pela esfera literária. Nesse meandro, Lopes (2016) aponta para a necessidade de se compreender o modo como um sujeito, especificamente, vem sendo significado nas produções discursivas que circulam em nossa sociedade, o sujeito diverso, que, por meio da literatura tem sido olhado como uma posição possível, passível de subjetivação, produzindo efeitos em nossa sociedade.

3. Sentidos possíveis – gestos de leitura da obra O grito da gaivota, de Emmanuelle Laborit (2000)

Atualmente, em nossa sociedade existem diversas formas e aparelhos utilizados para a normalização ou a cura de doenças. A esfera clínica trabalha arduamente para que nossa sociedade alcance o nível de “normalidade” ideal, haja vista que todo aquele sujeito que apresenta um desvio do padrão construído não é visto pela maioria como igual, existindo sempre uma tentativa de modificá-lo de acordo com os padrões historicamente estabelecidos por uma maioria, empregando-se formas mais elaboradas de controle e normalização de corpos (FOUCAULT, 1996[8]/1997[9]).

Dentro da cultura surda, a surdez não é vista como uma doença ou tão pouco como um problema que possa impossibilitar o sujeito. Lima e Lopes (2018) nos ensinam que há uma dicotomia entre a visão clínica/patológica e a visão cultural sobre a surdez. Na visão clínica, o sujeito surdo é visto como um deficiente, com um problema que deve ser curado, impondo-se a ele a língua oral auditiva; a partir de uma perspectiva cultural, o sujeito surdo, visto como um sujeito diverso, tem o reconhecimento de sua identidade, é tomado como minoria linguística, tendo a possibilidade de inscrição na língua de sinais e em uma cultura própria.

O ouvintismo5 e o oralismo, no contexto atual da língua majoritária oral-auditiva, vêm determinando o funcionamento das relações sociais e impondo aos diferentes uma “necessidade de homogeneidade lógica” (LOPES, 2016[10]). A filosofia oralista, conforme Soares (1999, p. 01):

é o processo pelo qual se pretende capacitar o surdo na compreensão e na produção da linguagem oral e que parte do princípio de que o indivíduo surdo, mesmo não possuindo o nível de audição para receber os sons da fala, pode se constituir em interlocutor por meio da linguagem oral.

O oralismo é uma imposição de uma maioria linguística em (re)educar o surdo na língua oral, não considerando a língua de sinais como possibilidade de identificação. Em nosso arquivo, percebemos que a perspectiva patológica de surdez se discursiviza como uma forma de curar a doença e normalizar Emmanuelle. Num recorte da obra, temos o dizer de um médico, que indica tratamento clínico como possibilidade de vida para Emmanuelle e rechaça o contato com surdos e língua de sinais, a saber:

Vai usar um aparelho, fazer reeducação ortofónica precoce e sobretudo nada de língua gestual” (...). Não seria aconselhável (Aprender Língua de sinais e ter contato com surdos) pertencem a uma geração que não conhece a reeducação precoce. Ficaria desmoralizada e desiludida. (LABORIT, 2000[11], p. 08).

Ainda na esteira dessa perspectiva patológica, vemos o discurso religioso (ORLANDI, 1996) entrecortando o que fora dito pelo pai de Emmanuelle, quando da descoberta de condição da filha, “De onde teria vindo aquela "maldição"? Hereditariedade genética? Alguma doença durante a gravidez?” (LABORIT 2000[11], P. 08).

Se a patologia está recuperada na menção à doença, à hereditariedade genética, o uso da palavra “maldição” nos faz remontar à significação dada pelo dicionário, a de “reprovação divina, com os castigos dela decorrentes; [algo] que vai mal, como se ligado a qualquer praga que impede as coisas de darem certo” (HOUAISS, online). É possível observar a questão religiosa fortemente marcada; ter um filho surdo seria então uma reprovação divina, um castigo, uma praga – há uma trilha de significação negativa que se estabelece, que produz como efeito uma não aceitação da surdez.

A imagem do sujeito surdo na autobiografia de Emmanuelle Laborit significa e é significada de diferentes formas, uma vez que o sujeito na Análise de Discurso é inconsciente, múltiplo e determinado por posições. Orlandi (2003) nos diz que o sujeito em AD não é considerado com indivíduo ou um organismo dono de seu dizer, mas sim como uma posição (lugar) que ele ocupa para produzir seu dizer. Desta forma, apenas a ideologia torna possível a constituição do sujeito e de seus sentidos. Portanto, pai e especialista identificam-se com o discurso que concebe a surdez como algo patológico e enunciam a partir desta posição.

Uma relação de estranhamento da surda Emmanuelle com relação à língua oral está posta no trecho:

Desde a minha infância que considerei as palavras como uma coisa bizarra. E digo bizarra pelo que inicialmente continham de estranho. O que quereria dizer aquela mímica das pessoas à minha volta, com a boca num círculo ou esticada em diferentes caretas, os lábios formando trejeitos esquisitos? Eu "sentia" a diferença quando se tratava de zanga, de tristeza ou de alegria, mas o muro invisível que me separava dos sons correspondentes àquela mímica era ao mesmo tempo de vidro transparente e de betão. Imaginava encontrar-me dum lado desse muro e os outros, de igual modo, do outro lado. (LABORIT, 2000[11], p. 03-04).

No recorte do material, observamos que a surda Emmanuelle descreve seu não-reconhecimento, não-identificação com a língua oral, já que para ela a expressão oralizada era significada enquanto mímica, careta e o uso dos lábios de uma maneira “esquisita”. A relação de Emmanuelle com a língua oral se dá pelo afastamento da possibilidade de que ela consiga se reconhecer fazendo uso dessa língua que não é a dela, de uma cultura ‘outra’.

Vejamos outro trecho:

Vivi no silêncio porque não comunicava. Será isso o verdadeiro silêncio? A escuridão completa da incomunicabilidade? Para mim, toda a gente representava um negro silêncio, a não ser os meus pais, sobretudo a minha mãe. O silêncio tem pois um significado que a meu ver não é senão a ausência da comunicação. Embora eu nunca tenha vivido num completo silêncio. Tenho os meus próprios ruídos, inexplicáveis para quem ouve. Tenho a minha imaginação e ela tem os seus ruídos em imagens. Imagino sons a cores. O silêncio que eu vivo é a cores, nunca é a preto e branco. [...] Há sempre uma ligação entre as cores e os sons que eu imagino. [...] Negro é sinônimo de incomunicabilidade, portanto de silêncio. Ausência de luz: pânico (LABORIT, 2000[11], p. 11).

Há, nos dizeres acima, uma construção da não-possibilidade de comunicação com o mundo ouvintista, que acaba sendo marcada pelo silêncio, construído fortemente pela cor negra, como se a ausência da língua oral marcasse o impedimento da comunicação e trouxesse o pânico do não significar, do interdito.

Outro ponto que merece análise é a questão da nomeação, pois “(...) é necessário nomear os sujeitos, é necessário lhes atribuir estados, afeições, acontecimentos” (RANCIÈRE, 1994, p.10). A nomeação dos sujeitos não se dá de modo referencialista, mas sim atravessada pelo simbólico, afetada pela ideologia. Na obra, é interessante observar o apelido atribuído a Emmanuelle.

O termo MOUETTE, que em português significa gaivota. Como já apontado por Lopes (2016), é possível refletir sobre o deslizamento desse termo para MUETTE, que em nossa língua significa muda – tocando a questão da mudez, patologia equivocadamente atribuída às pessoas surdas, já que a trata-se de um problema nas cordas vocais, o que não guarda relações com a questão da surdez.

Dessa deriva, compreendemos que nomear um objeto é rememorar a história e identificá-lo dentro de um processo discursivo. Historicamente, a palavra muda é usada para significar o surdo, como se este, além de não ouvir, também não possuíssem a capacidade de articulação sonora.

Mudinho, Surdo-Mudo, Indivíduo sem linguagem são nomeações que fazem parte do imaginário social. Estereótipos, tais quais vistos discursivamente por Orlandi (2001), mostram a relação com a memória discursiva, num movimento de repetição, fixação de elementos comuns. Emmanuele tem seus sons comparados ao de uma gaivota por aqueles que com ela convivem, fato que produz efeito, repete, fixa uma significação possível, a ponto de a própria surda questionar-se sobre a possibilidade de ser muda, como no trecho que segue:

Segundo eles, eram gritos agudos de ave marinha, como os de uma gaivota planando sobre o oceano. Então, apelidaram-me de gaivota. (...) E a gaivota gritava acima de um oceano de ruídos que não ouvia, e eles não compreendiam o grito da gaivota. (...) Seria eu muette ou mouette? (LABORIT, 2000[11], p. 04-06).

Além deste ponto de significação, o uso do substantivo Cri, que em português significa grito, no título da obra, também deve ter atenção a ele dispensada. Pensar o grito é pensar seu som penetrante, a articulação desse grito visa a quebra de silêncio instaurado no mundo ouvinte com relação à comunicação com o surdo. O grito, por vezes, é utilizado pelo sujeito surdo para chamar a atenção do sujeito ouvinte. Além disso, retomamos Lopes (2016), ao formularmos a possibilidade de paráfrases do título do livro: o grito da gaivota, o grito da Emmanuelle, a língua da gaivota e a (ausência da) língua da Emmanuelle.

Essa relação com o som, com a língua, se coloca em outro trecho em que a mãe de Emmanuelle afirma que “Não posso dizer que a amo, pois ela não me ouve” (LABORIT, 2000, p.08); a própria significação do amor é pautada pela não possibilidade de ouvir, pela falta, pela ausência de uma língua que seja dita e ouvida, ouvida e significada como a única possibilidade de compreensão do mundo.

Uma relação outra de Emmanuelle com relação à língua passa a ser dita em “A cidade dos surdos”, capítulo do livro que retrata a ida de Emmanuelle, aos 7 anos, para Washington, nos EUA, para estudar teatro, conhecer outros surdos e os trabalhos realizados na Universidade Gallaudet. Essa universidade é uma das únicas no mundo que possui seus programas voltados para a educação de surdos, tendo sido a primeira escola de surdos nos EUA.

É justamente na Gallaudet que ela descobre um mundo diferente do que vivia na França, começa a ter contato com surdos adultos e a aprender a Língua de Sinais Americana (ASL). Seu discurso se produz a partir de uma conjuntura sócio-histórico- ideológica diferente da França, o que permite que Emmanuelle enuncie filiando-se fortemente a uma formação discursiva que concebe a surdez, a questão da língua de sinais, como uma diferença, como uma diferença de ordem linguística:

‘Compreendi que sou surda’ É uma frase positiva e determinante. Na minha mente, admito que sou surda, compreendo-o, analiso-o, porque me deram uma língua que me permite fazê-lo. Compreendo que os meus pais têm a sua própria língua, a sua maneira de comunicar e que eu tenho a minha. Pertenço a uma comunidade, tenho uma verdadeira identidade. Tenho compatriotas (LABORIT, 2000[11], p.46).

No recorte acima, podemos compreender a construção da própria possibilidade de significação de Emmanuelle enquanto sujeito de e sujeito à língua. A marca da diferença entre uma língua dela (surda) e uma língua dos pais (ouvintes) significa para além da possibilidade de ser sujeito, mas os identifica culturalmente, constitutivamente. É nesse movimento de reconhecimento da língua de sinais como sua língua que Emmanuelle denota a construção de um sujeito surdo em sua diferença linguística, sujeito na e pela linguagem (ORLANDI, 2003[1]), sujeito em sua singularidade.

Outro ponto que devemos analisar em nosso arquivo é o processo de inscrição de Emmanuelle em um discurso de formação revolucionária:

Foi o ano de todos os perigos. De todas as loucuras. De todas as aprendizagens. É também o ano do compromisso "político,". Participo em manifestações a favor do reconhecimento da língua gestual. A meu ver, é positivo, construtivo. Quero que parem de proibir a minha língua, que as crianças surdas tenham o, que seja fundada para elas uma escola bilingue. É absolutamente necessário fazer a promoção da língua gestual em França, que o seu ensino não seja reservado a uma minoria, a uma elite e sobretudo que deixem de a proibir (LABORIT, 2000[11], p. 76).

Nessa via, Emmanuelle instaura-se em um lugar de produção de sentidos diverso daquele ao se inscrevia anteriormente em sua obra. Os sentidos significam agora em outra posição discursiva. No momento que Emmanuelle escreve em sua obra: “parem de proibir, não seja reservado a uma minoria, direito à educação completa”, a autora assume a posição sujeito surda politizada, militante da causa do surdo e da sua língua. Lugar social na qual se encontra o manifesto e a revolução como espaço de luta.

A questão da linguagem, do uso da língua é bastante forte em nosso arquivo:

Ser alguém, compreender que se está vivo. A partir daí [do momento em que fora apresentada a língua de sinais] pude dizer "EU". Anteriormente eu dizia "ELA," quando me referia a mim própria. Procurava o meu lugar neste mundo, quem eu era, e porquê. E encontrei-me. Chamo-me Emmanuelle Laborit. [...]. Teria então sete anos. Nascera e crescera de uma só vez. Tinha tanta fome e sede de aprender, de conhecer, de compreender o mundo que desde então nunca mais parei. Aprendi a ler e a escrever em francês. Tornei-me tagarela, curiosa acerca de tudo, exprimindo-me, no entanto, noutro idioma, como uma estrangeira bilíngue. Fiz o liceu, como quase toda a gente. (LABORIT, 2000[11], p. 4).

Ao lermos o trecho acima, notamos o relato da autora sobre seu momento de inserção na língua de sinais e seu consequente desenvolvimento enquanto sujeito surdo. Emmanuelle se identifica enquanto posição na diferença, na diversidade e na inscrição na língua de sinais. Por conseguinte, é possível perceber que Emmanuelle (sujeito surdo) se constitui na necessidade de uma língua outra, de um lugar próprio para significar-se e ser significado (LOPES, 2016[10]).

Cada palavra escrita e cada gesto encontraram-se como irmãos. [...] A linguagem gestual é a minha verdadeira cultura. [...] O gesto, esta dança de palavras no espaço, é a minha sensibilidade, a minha poesia, o meu verdadeiro estilo (LABORIT, 2000[11], p. 5).

Emmanuelle constitui sua imagem em um movimento de oposição a uma língua outra, que não a de sinais. No período antes de ter sido apresentada à língua de sinais, o discurso de Emmanuelle era pautado na possibilidade de compreensão da língua oral-auditiva, numa tentativa de identificar-se por meio da língua num jogo de sentidos. Se outrora o discurso era de equiparação à língua oral-auditiva, no recorte acima, vemos Emmanuelle Laborit descobrir a língua de sinais, sujeitando-se a ela e tornando-se sujeito da língua, em um movimento que a constitui enquanto sujeito do discurso, dando-lhe a própria possibilidade de significação.

O processo de identificação desse sujeito e o rompimento com a necessidade de normalização de acordo com a ótica do sujeito ouvinte abrem espaço para a possibilidade do sujeito surdo de subjetivar-se em um lugar próprio, diverso. Além de subjetivar-se em outra dimensão, e outra ordem.

4. Considerações Finais

Este trabalho teve como objetivo compreender, a partir do prisma discursivo, a construção da imagem do sujeito surdo no texto autobiográfico “O Grito da Gaivota”, um exemplar da Literatura Surda, a partir do qual buscamos as possibilidades de escuta e as produções de sentidos construídos pelo surdo e sobre o surdo. Atentamos em analisar como o surdo é construído perante uma formação ideológica dada, instaurada em seu local de produção, em meio à tensão entre o mundo ouvintista e o mundo surdo.

Com base em nossa análise, notamos que inicialmente a imagem da autora Emmanuelle Laborit se produz em meio a uma necessidade de compreensão e reprodução da língua oral como a única possibilidade de ser sujeito, de significar, uma vez que se enuncia a partir de uma posição que concebe a surdez como falta, como patologia. Ao deslocar-se para as formulações próprias às compreensões da surdez como uma diferença linguística, a construção do sujeito surdo se dá pelo reconhecimento do uso da língua de sinais e pela própria possibilidade de significação do sujeito surdo em sua posição outra com relação à língua.

Ao enunciar a partir de uma posição que concebe um mundo e cultura surda, Emmanuelle torna possível (se)significar e (re)significar(-se) através da linguagem, se reconhecendo enquanto surda e negando a construção dos sentidos de homogeneização com relação a um mundo ouvinte. Emmanuelle é surda, usuária de língua de sinais e, portanto, sujeito de língua e à língua, (se) significando.

How to Cite

SILVA, H. F. da. Discourse analysis and deaf literature: understandings about deaf literary production. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 01–15, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n2.id115. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/115. Acesso em: 19 apr. 2024.

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