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Theoretical Essay

“Language is an institution which has no comparable counterpart”: (still) on the “social” in Whitney and Saussure

Núbia Faria

Universidade Federal de Alagoas image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0003-4798-0379


Keywords

Whitney
Saussure
Social

Abstract

Gambarara (2007) analyses the manuscript “N.10 – Notes pour un article sur Whitney”, states that it is a capital document in order to understand Saussure and declares that in the reading and interpretation of this manuscript there was a homogenization and simplification of the content of different notes of Saussure which leads to a overvaluation of “l’expression du rapport que Saussure entretenait avec Whitney” (p.239). He adds that, despite the fact that Saussure quoted Whitney with interest and respect, the Genevan linguist keeps “un certain détachement, si on les compare aux citations de Baudouin ou de Kruszewski” (p.271). In this work we aim to examine the so referred detachment highlighting the Saussurian statement that language is an institution which has no counterpart (ELG, 182). We assume that the concept of social implied in the quotation has been replaced in a radical way in the Saussurian notion of system, which allows Saussure to pursue a formal treatment of language. Our discussion is based on a bibliographical research based on Life and growth of language (1875) by Whitney, the Saussurian manuscripts Notes pour un article sur Whitney e L’essence double du langage and the Course of general linguistics.

 

Introdução

O reconhecimento de Saussure (1857-1913) relativamente ao trabalho do americano W. D. Whitney (1827-1894), famoso professor de sânscrito em Yale College, Filadélfia, é notória. As respeitosas menções ao autor no Curso de Linguística Geral (doravante CLG), assim como em outros textos manuscritos de Saussure, são facilmente atestadas. Provas de um encontro entre eles em Berlin foram cuidadosamente procuradas, como o fez Joseph (1988), confirmando o interesse por estabelecer evidências de um possível intercâmbio de suas ideias.

Como é fartamente referido, por ocasião da morte de Whitney, Saussure foi convidado pela American Philological Association a participar de um evento em homenagem ao ilustre sanscritista americano, e suas notas redigidas para comporem um artigo sobre Whitney – jamais concluído – foram publicadas na edição crítica do Curso de Linguística Geral elaborada por Engler (em 1967-74, no segundo volume, Apêndice) sob o título “Notes sur la linguistique générale”, assim como publicadas por Bouquet e Engler nos Escritos de Linguística Geral (doravante ELG).

Todos esses fatos são conhecidos, e afirmações de Saussure, como “Ele [Whitney] é o primeiro generalizador que soube não tirar conclusões absurdas, sobre a Linguagem, da obra da gramática” (SAUSSURE, ELG,1 p.176) ou “Whitney disse: a linguagem é uma instituição humana. Isso mudou o eixo da linguística” (SAUSSURE, ELG, p. 181), são consistentemente repetidas para atestar o impacto do pensamento de Whitney sobre o de Saussure e para colocarem-no como herdeiro das mudanças ocorridas no último quartel do século XIX, quando a dimensão humana da linguagem foi reclamada, rompendo com a perspectiva que inscrevia a linguística no campo das ciências naturais2. Para Cruz (2010[1]), essa guinada nos estudos linguísticos, que incluem autores como M. Bréal, G. Paris, H. Schuchardt, P. Meyer, H. Paul, dentre outros, não só inaugura a linguística moderna, como situa Whitney em sua origem, “quando sujeito, sentido e sociedade são resgatados” (p. 9).

Gambarara (2007), num minucioso artigo em que submete a uma nova abordagem filológica o caderno manuscrito de Saussure intitulado “N.10 – Notas para um artigo sobre Whitney3, afirma ser este um documento capital para compreender Saussure, ao tempo em que declara ter havido, em sua leitura e interpretação, uma homogeneização e simplificação do conteúdo das diferentes anotações de Saussure, que conduzem a uma supervalorização da “expressão do relacionamento que Saussure mantinha com Whitney”4 (p.239). Acrescenta ainda que, apesar do fato de Saussure ter citado Whitney com interesse e respeito, o genebrino mantém “um certo distanciamento, se se compara com as citações de Baudouin ou de Kruszewski”5 (p.271). Não cabe no espaço deste pequeno artigo retomar todos os argumentos de Gambarara, mas destacar que, ao insistir sobre o afastamento de Saussure em relação a Whitney, o autor sinaliza para a necessidade de se esclarecer as razões teóricas desse afastamento para uma melhor compreensão de Saussure.

Normand (2004[2]) reconhece esse distanciamento e justifica-o a partir do sentido de “social” presente na obra de um e outro autor.

[…] Saussure jamais concordou completamente com o linguista americano que o axioma [o caráter social da língua] fosse suficiente para fornecer a percepção definitiva necessária para o desenvolvimento de uma verdadeira ciência da linguagem. As impressões de Saussure sobre o assunto podem agora ser vistas a partir da homenagem que ele redigiu em honra de Whitney. Esta nunca foi remetida nem completada, pois Saussure de fato estava longe de concordar com a visão de Whitney, apesar de considerá-la, como escreveu, mais “razoável” que muitas outras. Uma razão é, provavelmente, que, apesar de ambos adotarem o mesmo termo, “social”, à linguagem, com isso, efetivamente, compreendiam coisas muito diferentes (p. 95 – tradução nossa).6

Na sequência deste artigo, assumiremos este mesmo entendimento da questão, analisando alguns aspectos da obra de um e outro autor e desenvolveremos um pouco mais os argumentos de Normand. Concordamos com a autora em sua análise, mas assumiremos um ponto de vista um pouco diferente em nossa argumentação.

1. Whitney e Saussure: O Aspecto Social e a Formalização da Linguística

Neste momento, voltamo-nos para o caráter “social” da língua e suas implicações na obra de um e outro autor, partindo precisamente do manuscrito mencionado, objeto de muitas análises. Como afirmamos acima, concordamos com as observações que sinalizam para o distanciamento de Saussure quanto ao sentido de “social” atribuído por Whitney ao fenômeno linguístico mas, diferentemente das discussões que acompanhamos, vinculamos a dimensão social na reflexão saussuriana à busca por uma elaboração “teórica formal” sobre a linguagem. Esperamos deixar esta afirmação mais clara no decorrer de nossa discussão.

Para tanto, destacaremos dois pontos: a) a afirmação saussuriana sobre ser a linguagem “uma instituição sem análogo”, entendendo ser o conceito de “social” aí subentendido, recolocado de forma radical em sua noção de sistema, que comportará, no contexto da língua, acolher a ideia de um “sistema de valores puros” para além de um sistema de signos e b) o ponto de vista defendido por Milner (2012[3]) quanto à relação de Saussure com o projeto científico da Gramática Comparada, segundo o qual Saussure não funda a linguística moderna, o que nos afasta da posição de Cruz (2010[1]) quando afirma ser a inclusão da dimensão humana da linguagem o momento de inauguração da linguística moderna. Defendemos, ao contrário, que a inclusão da dimensão humana por Saussure, suposta no caráter social da língua, confirma seu lugar de continuador da ciência inaugurada em torno do nome de Bopp.

Para desenvolver nossa discussão, vamos nos valer do seguinte corpus de análise: A vida da linguagem (1875[4]), de Whitney, os manuscritos saussurianos “Notas para um artigo sobre Whitney”7 e “Essência dupla da linguagem”, ambos publicados na edição de Bouquet e Engler dos Escritos de Linguística Geral (ELG), e, sempre que necessário, o Curso de Linguística Geral (CLG).

1.1. Saussure

Saussure repete com Whitney ser o signo convencional e arbitrário, assim como ter a língua uma natureza social, mas o faz declarando seu desacordo com as doutrinas vigentes e as “coisas universais que se pode dizer sobre a linguagem”, inclusive com a de Whitney (SAUSSURE, ELG, p.183). Embora reconheça não serem as generalizações de Whitney desarrazoadas, no manuscrito em torno do linguista de Yale, o adjetivo dupla(o) se repete para tratar da língua e da linguística e de sua “irritante duplicidade” (SAUSSURE, ELG, p.186).

Seria, então, necessário buscar compreender o que venha a ser o “caráter duplo” e seus desdobramentos para se tentar chegar à essência da reflexão saussuriana, na qual termos como signo, arbitrário, convencional, social estariam impregnados por essa duplicidade a que Saussure se refere com insistência, para virarem outra coisa, justificando acrescentar a cada um desses termos o adjetivo “saussuriano”.

Desenvolvendo o argumento da importância de Whitney como generalizador da “soma dos resultados acumulados pela gramática comparada”, Saussure afirma que faltou ao autor considerar um elemento, o mais decisivo, e diz, em seguida, faltar tempo para tratar desse assunto. Na sequência, vem a afirmação em torno da qual gostaríamos de circunscrever nossa reflexão: “Chegará um dia, [...] em que se reconhecerá que as quantidades da linguagem e suas relações são regularmente passíveis de serem expressas, em sua natureza fundamental, por fórmulas matemáticas” (SAUSSURE, ELG, p.177 – grifo no original). A isso se segue o comentário: “É isso que muda muito, contra a nossa vontade, o nosso ponto de vista sobre o valor de tudo o que foi dito, até mesmo pelos homens mais eminentes” (SAUSSURE, ELG, p. 177 – grifo no original) aqui, claramente, referindo-se a Whitney.

Adiante, fazendo uma aproximação com problemas de geometria, precisamente com o teorema de Pitágoras, Saussure afirma que não foi a progressão das experiências, pesquisas e mensurações “exteriores” que possibilitou que se chegasse à relação matemática aí contida. Afirma, então, vinculando a discussão sobre geometria com a da linguística:

Porque, partindo do contrato fundamental entre o espírito e o signo em um momento qualquer, o acidente histórico, ainda que não fosse uma variável conhecida, só pode produzir tal e tal deslocamento concebível de antemão, classificável de antemão, se a teoria dos signos for perfeita. (SAUSSURE, ELG, p.177).

Surge na sequência a metáfora do jogo de xadrez, muito cara a Saussure, e a afirmação de que

[...] cada uma dessas situações [de uma partida de xadrez] ou nada comporta, ou comporta uma descrição e uma apreciação matemática, mas não comporta dissertações vacilantes que partem do exterior alegando que foi uma força exterior (o jogador) ou um acontecimento histórico (o lance precedente) que mudou a posição das peças, e que, precedentemente, a situação do rei ou o estado da palavra x não seria absolutamente a mesma que é. (SAUSSURE, ELG, p. 178).

A discordância entre os autores parece, então, residir na possibilidade ou impossibilidade de tratamento das “quantidades da linguagem e suas relações” por “fórmulas matemáticas”, de uma “teoria do signo perfeita”, partindo da concepção de ser a linguagem uma instituição social, proposição capital da argumentação de Whitney e que Saussure assume, a princípio, ser responsável pela mudança de eixo dos estudos linguísticos de seu tempo.

Convém deixar claro que a análise empreendida por Saussure, ao se utilizar da metáfora do jogo de xadrez, situa-se no plano da separação entre os domínios diacrônico e sincrônico, este último aqui identificado com a menção a “um momento qualquer”. Será nesse contexto que o aspecto social comparecerá, como sabemos, para definir a natureza da língua. Porém, entendemos que Saussure insiste sobre o fato de, no "estado de língua”, essa natureza dever comportar uma elaboração teórica em termos formais, aos moldes do que fazia a gramática comparada ao reconstruir formas linguísticas passadas e que leva Saussure a afirmar, por exemplo, que “[...] se poderiam designar os elementos fônicos de um idioma a reconstituir por quaisquer algarismos ou signos” (SAUSSURE, CLG, p. 259), referindo-se à possibilidade de uma escrita matemática para a forma reconstruída, ignorando-se, neste caso, as “qualidades positivas” dos fonemas.

Conforme afirmamos na introdução deste artigo, assumimos a posição de Milner (2012) segundo a qual Saussure não funda a linguística moderna. Retomando o posicionamento já desenvolvido anteriormente em FARIA (2018[5] p. 866), Milner defende que para Saussure “[...] a linguística existe – é a gramática comparada –, o problema é que ela ignora aquilo que a possibilita” (p.51). O CLG “[...] não passa da exposição das condições conceituais que tornam possível a gramática comparada” (p.32). Milner sustenta sua afirmação a partir do que o próprio linguista genebrino explicita no CLG e em outras fontes manuscritas comentadas por Engler e De Mauro. A linguística, para se constituir ciência moderna, precisaria atender aos requisitos da matematização – “[...] após Galileu, [a ciência moderna] substitui o objeto por letras e por símbolos a partir dos quais ela raciocina” (p.30) – objetivo cumprido pela gramática comparada ao edificar uma escrita para “[...] notar formas por definição não observáveis, desempenhando a função de matriz para um conjunto de formas observadas.” (p.31).

Nossa questão é, portanto: em que medida o apelo à natureza social da língua, ou a inclusão da dimensão humana para Saussure é condição para a formalização, para a escrita matemática daquilo que o autor entende ser sua natureza fundamental, considerando ser essa mesma natureza dupla?

Certamente, a resposta a essa questão não será esgotada neste trabalho, mas já justifica o nosso afastamento da posição de Cruz (2010) acima referida, uma vez que entendemos que Saussure busca explicitamente dar ao estado de língua o mesmo tratamento teórico alcançado pela ciência inaugurada por Bopp no plano das mudanças da língua no tempo.

1.2. Whitney

Deter-nos, ainda que muito superficialmente, em alguns pontos do trabalho de Whitney pode ajudar a destacar, em sua abordagem, o que venha a ser o “caráter social da língua” e o que se constitui num impedimento para que se chegue ao que Saussure assume ser a essência da linguagem. Tomaremos como referência a obra “A vida da linguagem”, de 1875, para a discussão que se segue.

A polêmica entre Whitney e o linguista alemão Max Müller (1823-1900) é constantemente recordada. Whitney contrapõe-se às ideias defendidas por Müller, aqui representando a perspectiva organicista da linguística do século XIX, de que a mudança na língua precisaria ser pensada em termos de desenvolvimento e não de história, uma vez tratar-se de uma mudança “que escapa da influência de agentes livres”8 (MÜLLER apud HOMBERT, 1978[6], p. 115), e que, portanto, só poderia ser produzida e explicada pelas forças da natureza.9

Defende Whitney que a língua é um produto histórico e o tratamento da mudança é muito mais complexo. Segundo Hombert (1978), a noção de instituição em Whitney comporta todas as suas considerações principais. Se as palavras podem ser pensadas como invenções, “[...] o conjunto da linguagem é uma instituição, uma obra coletiva da qual participaram milhares de gerações e milhares de operários” (WHITNEY, [1875] 2010[4], p.279)10. Ao assumir o caráter convencional da língua, o autor reconhece, ao mesmo tempo, o caráter arbitrário do signo (no sentido que esse termo comparece em sua reflexão) assim como estar no uso a razão da mudança.

Ao tratar da vida da linguagem, Whitney a associa à aquisição da língua pelo homem e se detém longamente a tecer detalhes sobre “o processo pelo qual uma criança adquire uma determinada língua” (p. 24). Essa discussão que se estende por muitas páginas, sobretudo nos três primeiros capítulos de seu livro11, tenta enfrentar o “marco zero” desta aquisição, discorrendo, por exemplo, sobre o que precede a aprendizagem da língua – “A primeira coisa que a criança deve aprender antes de falar é observar e distinguir os objetos e reconhecer as pessoas e as coisas que a cercam em sua individualidade” (p. 25) – seus momentos intermediários – “Na medida em que ela vai crescendo, ela vai aprendendo, a cada instante, a distinguir de forma mais acurada o bom do ruim [...] (p. 27) – e dirige-se a afirmações sobre o fim do processo – “Isso continua até o fim da educação e frequentemente da vida” (p. 27). O tema faz Whitney se enredar em considerações sobre o que é de ordem natural e de ordem social no processo, as falhas na transmissão da língua materna, as correções necessárias para que a criança se ajuste à língua da comunidade, as possibilidades de mudança linguística por iniciativa dos falantes, se estendendo a comentários sobre as relações entre a aprendizagem da língua materna e de uma língua estrangeira.

Ao final do segundo capítulo, o autor declara: “Uma língua adquirida é algo imposto de fora ao sujeito e determina os processos e os resultados da atividade cerebral” (p. 42). Depois de reconhecer a existência de uma faculdade que o homem possui por natureza, o capítulo é concluído com a afirmação: “A aquisição da linguagem é, como todos os demais conhecimentos, uma parte da educação” (p. 42).

As mudanças da língua no tempo serão abordadas a partir de duas considerações em separado: a) o crescimento da linguagem: mudança na forma exterior das palavras e b) o desenvolvimento da linguagem: mudança do sentido das palavras.12 Tais mudanças repousam “na natureza do laço entre o sentido e a forma, natureza completamente acidental e arbitrária” (p. 84).

Ao abordar o tema da variação da língua a partir da consideração dos dialetos, Whitney propõe duas forças que, sob tensão, sustentariam os processos de mudança linguística: uma “força centrífuga” de variação centrada no indivíduo, que se explica a partir da constatação das diferenças relativas ao caráter, educação, constituição física etc. das pessoas e que explicaria “a não identidade na ação que cada um exerce sobre a língua que lhe foi transmitida” (p. 157); uma “força centrípeta” da comunidade que usa toda a sua força para manter a unidade da linguagem, contendo os indivíduos em suas “excentricidades” (p. 157). Trata-se, afinal, de forças sociais externas que incidem sobre a língua e perturbam a vida da linguagem.

Sem dúvida nenhuma, a obra de Whitney mereceria uma análise bastante mais detalhada, mas, tendo em vista o nosso objetivo, os aspectos destacados acima nos parecem suficientes para reconhecer as poucas restrições que a consideração do caráter social impõe ao conceito de língua subentendido em seu trabalho. Para explorar um pouco mais essa análise, vamos, a seguir, confrontar algumas de suas afirmações com pontos da obra de Saussure, especificamente, a menção à criança e à mudança do significado no tempo. Na sequência, abordaremos o que representa a inclusão do caráter social da linguagem na obra do genebrino.

Diferentemente de Whitney, Saussure é extremamente parcimonioso na referência que faz à criança no CLG, sem jamais se arriscar a tecer considerações a propósito da origem ou das etapas intermediárias de seu percurso na língua até a sua aquisição. Quando se refere à criança, o faz em momentos bem específicos de sua argumentação teórica a propósito da língua e de seu funcionamento sincrônico.

Para se referir ao “fenômeno linguístico” e a impossibilidade de se chegar à sua origem:

Seria a questão mais simples se se considerasse o fenômeno linguístico em suas origens; se, por exemplo, começássemos por estudar a linguagem das crianças? Não, pois é uma ideia bastante falsa crer que em matéria de linguagem o problema das origens difira do das condições permanentes; não se sairá mais do círculo vicioso, então (SAUSSURE, CLG, p. 16).

Para assegurar a exterioridade da língua em relação ao indivíduo, garantindo sua existência como “liame social”, tesouro depositado virtualmente em cada cérebro pela prática da fala.

“Ela [a língua] é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para conhecer-lhe o funcionamento; somente pouco a pouco a criança a assimila” (SAUSSURE, CLG, p. 22).

“[...] é ouvindo os outros que aprendemos a língua materna; ela se deposita em nosso cérebro somente após inúmeras experiências.” (SAUSSURE, CLG, p. 27).

Para confirmar seu argumento capital de que a língua escapa à vontade do indivíduo.

Será mister lembrar também a soma de esforços que exige o aprendizado da língua materna para concluir pela impossibilidade de uma transformação geral. Cumprirá acrescentar, ainda, que a reflexão não intervém na prática de um idioma; que os indivíduos em larga medida, não têm consciência das leis da língua; e se não as percebem, como poderiam modificá-las?” (SAUSSURE, CLG, p. 86).

Embora à primeira vista as afirmações de Saussure não se distingam significativamente das de Whitney, é preciso reconhecer uma importante inversão na ordem de apresentação dos argumentos pelos autores. Isto é, as parcas referências de Saussure à criança ocorrem motivadas pela caracterização do “funcionamento interno” da língua e não como uma via de explicação para esse mesmo funcionamento, como ocorre com Whitney ([1875] 2010[4]) ao afirmar, por exemplo, encaminhando-se para a conclusão de sua obra: “A causa que produz essa mudança e que contém em germe toda a história da linguagem é a vontade de se comunicar” (p. 258). A língua, concebida como originada na vontade de se comunicar dos falantes, submete-se a este “impulso original”, que a presença insistente da criança em seu trabalho parece denunciar. Considerações sobre mudanças motivadas por “economia verdadeira” e “desperdício preguiçoso” (p. 59) põem à mostra julgamentos de valor a respeito das referidas mudanças justificados pela submissão do funcionamento linguístico ao sujeito e não o contrário, como ocorre com Saussure ao invocar a ordem própria da língua.

Em Saussure, o funcionamento linguístico, definido pela noção de sistema, interdita não só a busca por sua origem causal, assim como qualquer consideração sobre apropriações parciais da língua pela criança – afinal, um sistema não é a soma de suas partes. Diferentemente do que ocorre com Whitney, a anterioridade da língua em relação à criança em Saussure tem por efeito silenciar o autor a seu respeito. Em suma, reconhecer ser a língua “uma obra coletiva”, como o faz Whitney, não é suficiente para que se chegue à noção de sistema e todas as suas consequências.

Como assinala Falk (2004), Saussure explicitamente menciona essa distorção teórica na concepção de linguagem do americano, o que, a rigor, o retira de sua posição de “exceção” e o reconduz ao lugar reservado aos demais linguistas.

Saussure observou que “Whitney, a quem eu reverencio, nunca disse uma única palavra sobre o mesmo assunto [sobre uma visão teórica da linguagem] que não fosse correta, mas, como os demais, ele não suspeita que a linguagem necessite de sistematicidade” (tradução de Jakobson […]) e os estudiosos posteriores parecem concordar em geral que um elemento importante que faltava na teorização de Whitney sobre a linguagem era de fato a noção de estrutura linguística sistemática e interconectada (p. 108 – tradução nossa).13

A menção às forças centrífuga e centrípeta de mudança propostas pelo linguista americano dizem do exterior da língua e não de seu interior.

O outro ponto a considerar rapidamente na comparação entre os autores é explicitamente manifestado por Saussure, ao dirigir suas críticas mais contundentes ao americano, quando este se propõe a tratar das mudanças de sentido das palavras no tempo.

[...] a mudança de significação não tem valor algum como fato resultante do tempo, por todos os tipos de razões, entre outras, porque essa mudança se dá a cada instante e não exclui a significação precedente, que se torna concorrente, enquanto que a mudança de forma reside na substituição de um termo por outro [...] (SAUSSURE, ELG, p. 41).

Cabe ainda notar que a seleção dos dois aspectos comentados acima, na comparação entre os autores, dá destaque à formulação teórica basilar da reflexão teórica do genebrino, isto é, as ordens sincrônica e diacrônica e a repercussão desta formulação em toda a sua teorização. Abordaremos este tópico no próximo item.

Antes de concluir esta seção, citamos Marra e Milani (2013[7]) que comentam, a partir de um texto de Jakobson a propósito do artigo encomendado a Saussure, por ocasião da morte de Whitney: “depois de Saussure ter escrito mais de quarenta páginas e de não ter chegado a uma conclusão que atendesse aos anseios do que lhe fora pedido, o texto jamais foi enviado, por recusar-se a caracterizar Whitney como comparatista” (p. 132). De nossa parte, acreditamos que as razões pelas quais o artigo sobre Whitney nunca ter deixado de ser tão somente um manuscrito revelam mais o desacordo radical a respeito do efeito da inclusão do caráter social no tratamento língua, como propõe Normand (2004[2]), acima mencionada. No entanto, como discutiremos a seguir, entendemos que este desacordo esteja, a rigor, atrelado ao fato de Whitney não ter sido um comparatista e não se ter deparado com os impasses que a mudança linguística no tempo colocou para Saussure.

2. O Social Sem Análogo

Retornamos a Saussure para nos fixarmos em alguns pontos de sua reflexão, buscando vinculá-la à sua prática enquanto um típico linguista de seu tempo e não a partir do século XX, quando seu nome circula como símbolo de uma ruptura com o passado. Com isso, declaradamente, nos afastamos da visão anacrônica que o toma por “pai do estruturalismo”, que se desfaz da diacronia em favor da sincronia. A discussão epistemológica desenvolvida por Saussure em seus escritos e em seus cursos, efetivamente se dirigiam à linguística praticada por seus pares, fazendo a síntese de conceitos metodológicos dispersos e introduzindo aqueles que julgava pertinentes.

Nesta seção, abordaremos o manuscrito “Sobre a essência dupla da linguagem”, publicado por Bouquet e Engler nos ELG. Tentaremos nos aproximar de uma possível resposta à questão formulada na introdução deste artigo, que vincula o aspecto social da língua à formalização dos estudos linguísticos, reconhecendo ser dupla a natureza fundamental da linguagem.

Ao definir o signo linguístico, não obstante as muitas oscilações no emprego deste termo ao longo de seus escritos, o genebrino assume que o significado não está no pensamento, mas na língua, sendo sua noção de arbitrário relativa a uma relação interna ao signo14. Como faz notar Normand (2009[8]), “o termo não é introduzido sozinho, mas desde o início, na expressão ‘sistema de signos’” (p.62).

A autora assinala ainda que, embora seja fundamental a inclusão do traço social na reflexão do genebrino, este não se sobrepõe ao de sistema. Para Normand (2009), é na noção de arbitrário que o aspecto social reaparece submetido, portanto, ao que diz respeito às relações internas da língua: “o signo só é arbitrário porque é social [...] escapando à vontade individual, a língua também escapa à ‘vontade social’” (p.70).

Referindo-se a Whitney e a Meillet, Normand (2004) destaca que, nas obras desses autores, “‘social’ referia-se a como uma determinada sociedade, sua história, suas várias instituições e diferentes classes ou níveis, afetava a linguagem. Desta forma eles explicavam muitas mudanças formais e semânticas”15 (p. 95 – tradução nossa). Neste caso, social e sistema não se articulam, diferentemente do que ocorre com Saussure, como insiste. Com isso, a autora cogita estar aí uma possível razão que explicaria o fato de Saussure não ter enviado seu artigo em homenagem ao colega americano.

Embora concordemos com Normand, parece-nos que outra razão se apresenta, mais vinculada ao que disse Jakobson (apud Marra e Milani, 2013[7]) quanto à recusa de Saussure em classificar Whitney como um comparatista. Ainda que superficialmente, gostaríamos de problematizar essa falta de interesse e de experiência do americano e a ausência de Saussure nos eventos comemorativos em que foi convidado a participar.

Os desdobramentos dos estudos comparatistas vão impondo restrições às afirmações sobre a língua, que nos parece faltar a Whitney em várias partes de sua obra. Para ilustrar o que queremos dizer com isso, lemos em Robins (1979[9]) que Schleicher, por acreditar muito nas suas reconstruções, escreve uma fábula com base na Ursprache (língua original) “como se isso fosse o mesmo que escrever uma passagem usando uma língua morta. Por causa dessa aventura, foi posteriormente alvo de numerosas críticas jocosas” (p. 145).

Retomando, mais uma vez, a reflexão desenvolvida em trabalho anterior (cf. FARIA, 2018[5]), destacamos que, como um típico linguista do século XIX, Saussure lida com a comparação de formas morfológicas, porém, alerta que falar em morfologia no domínio histórico é falar de uma “segunda existência do signo”, que “[...] só se manifesta ou encontra sanção tangível no instante em que há, um em face do outro, um passado e um presente [...]” e que “[...] só se mantém quando se isola o signo de sua significação e de qualquer significação que lhe sobrevenha.” (SAUSSURE, ELG, p.52). Vimos na crítica feita a Whitney que, para Saussure, “a mudança de significação não tem valor algum como fato resultante do tempo” (SAUSSURE, ELG, p.41). A natureza dupla do signo concebido por Saussure, portanto, só pode ser apreendida se o linguista se colocar no ponto de vista sincrônico, o do sistema de signos, “tal como existe no espírito dos sujeitos falantes” (SAUSSURE, ELG, 43). Exclusivamente neste domínio, será possível reconhecer a significação.

Os estudos diacrônicos revelam ainda que a circulação das unidades da língua na fala oblitera a significação, condição para que a alteração fonética aconteça e possa ser recuperada. Pelo regime do arbitrário do signo, conforme concebido por Saussure, o valor do signo no sistema é perdido na passagem do tempo, restando tão somente sua porção “mais material”, sobre a qual incidirão as análises dos comparatistas. Tendo uma natureza “dupla”, o signo é passível de se “esvaziar do significado”, dando lugar à “literalização”, à possibilidade de uma escrita que registre as leis estritas que regem sua materialidade, como fez a gramática comparada, ao tempo em que assegura que a língua para os falantes nunca cesse de ser ela mesma.

A cadeia sonora organizada que se impõe ao sujeito, sob a forma de “herança do passado”, e se fixa na língua será o “fenômeno da diacronia”. No entanto, chamá-la de signo como faz Saussure, ainda que com uma “segunda existência”, só se justifica se considerarmos o seu efeito sobre o sujeito falante, pensado a partir do ponto de vista sincrônico. Ou seja, é preciso incluir a dimensão humana para que o signo realize plenamente a sua duplicidade. Sua existência é tributária de um efeito não propriamente sobre o falante, mas sobre os falantes.

“[...] a arbitrariedade do signo nos faz compreender melhor por que o fato social pode, por si só, criar um sistema linguístico. A coletividade é necessária para estabelecer os valores cuja única razão de ser está no uso e no consenso geral; o indivíduo, por si só, é incapaz de fixar um que seja.” (SAUSSURE, CLG, p. 132).

Conforme comenta Normand (2009[8], p.73), na sequência desta passagem presente no CLG, os “valores se impõem como substituto do termo clássico signo”. Esta substituição permite a Saussure, negar a natureza positiva da unidade ao tempo em que articula os conceitos de social, arbitrário e valor. No manuscrito Essência Dupla da Linguagem, afirma “[...] a significação é apenas uma maneira de exprimir o valor de uma forma, valor que depende completamente das formas coexistentes a cada momento [...] só se pode dominar a mudança de significação vagamente com relação ao conjunto” (SAUSSURE, ELG, p.41) Adiante, conclui o autor, “[o] mecanismo da língua – considerado sempre EM UM MOMENTO DADO [...] será, um dia [...] reduzido a fórmulas relativamente simples”.

Aqui revela-se para nós outra importante diferença que separa as “generalizações” de Saussure das de Whitney. A lida de Saussure com os dados linguísticos, o exercício da comparação e reconstrução, assim como as questões que essa prática suscitava, levam-no a se deparar com os impasses postos pela evidência da mudança linguística e sua obliteração pelo falante, que opera sob o regime do signo. Como sustenta o genebrino, para o falante a unidade linguística é “ao mesmo tempo existente e delimitada. Ela não é nada mais; assim como não é nada menos”. (SAUSSURE, ELG, p.37).

Whitney, por outro lado, como afirma Saussure,

[...] nunca quis ser um filologista comparativo. Ele não nos deixou uma única página que permita considerá-lo um filologista comparativo. Ele nos deixou apenas dois trabalhos que inferem, dos resultados da gramática comparada uma visão superior e geral sobre a linguagem [...] (SAUSSURE, ELG, p. 183).

Na sequência dessa afirmação elogiosa, que se segue ao seu agradecimento e manifestação de grande honra para escrever sobre o americano (em resposta à carta recebida, na qual é feito o convite para escrever sobre o colega), Saussure afirma não se sentir de acordo com “a doutrina razoável de Whitney, nem com as doutrinas desarrazoadas que ele vitoriosamente [combateu]” (SAUSSURE, ELG, p 183). O apelo ao social em suas generalizações, como vimos, não são suficientes para que o autor chegue a uma formulação geral sobre a linguagem que permita a ela dedicar uma ciência, não obstante reclame no prefácio de sua obra “que as ciências naturais, de um lado, a psicologia, de outro, tentam se apoderar da ciência da linguagem, que, na realidade, não lhes pertence” (WHITNEY, [1875] 2010[4], p.15).

3. Conclusão

Ao assumir a máxima whitneyriana de que a linguagem é uma “instituição social”, Saussure o faz para torná-la “sem análogo”. Sua posição teórica concebe a mudança como “estranha à livre vontade do falante”, como o faz Müller, mas afasta-se de um e outro autor e, dessa forma, rompe de fato com o organicismo em linguística: a interferência da consciência é descartada; o lugar do sujeito para uma elaboração “teórica formal” sobre a “essência da linguagem”, não.

O conceito de valor, que articula toda a linguística sincrônica e que levará Saussure a reformular sua definição de sistema, atrela-se teoricamente à dimensão humana. Dessa forma, sustenta a concepção de que a língua, em sua essência, é dupla e passível de uma escrita matemática, chegando ao que, concluímos, chama de uma “teoria do signo perfeita”, representada pela definição de língua como um sistema de valores puros. Uma solução teórica que revela da língua e recoloca a dimensão humana no plano da ordem simbólica, não natural, fundada na alteridade, minimamente concebida como “dupla” em sua essência. Como ilustra Benveniste (1995[10]), referindo-se estritamente ao campo linguístico, isto é, às formas pronominais que indicam a “pessoa”: “A consciência de si mesmo só é possível de ser experimentada por contraste” (p. 286).

Avaliação

AVALIADOR 1: Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5529-4606

FILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil.

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AVALIADOR 2: Ronaldo de Oliveira Batista

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7216-9142

FILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil.

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RODADA 1

AVALIADOR 1

2020-02-25 | 05:18

Em relação ao trabalho “A linguagem é uma instituição sem análogo”; (ainda) sobre o social em Whitney e em Saussure, cumpre afirmar que os textos analisados são documentos de inegável pertinência para os estudos histórico/historiográficos da linguística e que o título e o resumo se coadunam com o texto apresentado. Deve-se salientar, ainda, que os objetivos do trabalho encaminham para a discussão baseada numa pesquisa de natureza bibliográfica, tendo como corpus um conjunto de documentos selecionados de considerável expressividade para os estudos linguísticos no século XXI.

A análise oferece a possibilidade de se detectar que o dito whitneyriano de que a linguagem é uma “instituição social” reflete a definição relativa à língua ser tomada como um sistema de valores puros, levando à revelação de que a língua “recoloca a dimensão humana no plano da ordem simbólica, não natural, fundada na alteridade, minimamente concebida como “dupla” em sua essência”.

Isto posto, por julgar de grande importância os estudos concernentes à teoria saussureana e por considerar a pesquisa relevante, recomendo a publicação do artigo em questão.

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AVALIADOR 2

2020-05-20 | 06:46

Pela profundidade da abordagem e reflexão epistemológica, o texto deve ser publicado, porém sugiro que após serem observadas minhas observações no arquivo do texto mesmo, como comentários.

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RODADA 2

AVALIADOR 2

2020-06-15 | 08:43

O texto fez modificações solicitadas.

Meu parecer é de que o texto PODE SER PUBLICADO NO FORMATO COMO SE ENCONTRA AGORA.

How to Cite

FARIA, N. “Language is an institution which has no comparable counterpart”: (still) on the “social” in Whitney and Saussure. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 01–16, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n2.id128. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/128. Acesso em: 26 apr. 2024.

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