Introdução: Monumenta Anchietana
O missionário jesuíta José de Anchieta (1534-1597) pode ser considerado um dos fundadores da Literatura Brasileira,1 entretanto, um dos outros feitos do autor quinhentista é ter sido o primeiro gramático no Brasil. Tendo escrito obras literárias, históricas e catequéticas em quatro línguas: latim, português, espanhol e tupi, sua produção textual é um dos principais registros da literatura brasileira no século XVI, da mesma forma que sua gramática é a pedra angular da Gramaticografia no Brasil quinhentista, o primeiro texto no Brasil com reflexões metalinguísticas. Dessa forma, é autor de interesse para a Historiografia da Linguística para o estudo das relações luso-brasileiras e da recepção do pensamento linguístico europeu renasentista na América portuguesa. No artigo debatemos os Monumenta Anchietana no contexto de descrição e análise por uma ‘dimensão heurística’ (SWIGGERS[1], 2013, p. 44), isto é, em busca de catalogar os textos-fonte para análise do pensamento linguístico anchietano.
Ainda que Anchieta tenha escrito uma obra singular, no entanto, até hoje, ainda não houve uma edição completa e definitiva de suas obras, pois o trabalho filológico de edição e análise linguística é um tema complexo. O principal filólogo que reeditou a obra de Anchieta no século XX foi o jesuíta Armando Cardoso (1906-2002), na coleção de livros intitulada Monumenta Anchietana, publicada pelas Edições Loyola no Brasil. A coleção de obras editadas por Cardoso é a principal fonte de estudos contemporâneos da obra de Anchieta. A partir da Historiografia Linguística, podemos tecer algumas considerações sobre o trabalho filológico de Cardoso com as fontes da obra anchietana.
Anchieta escreveu sua poesia novilatina no Brasil como um exercício típico para o estudo do latim clássico, no contexto do pensamento linguístico da Renascença em Portugal. A sua formação humanística no Real Colégio das Artes de Coimbra, entre 1548 e 1551, baseou-se no aprendizado de línguas clássicas, com um elevado grau de proficiência sobretudo em língua latina. Assim, a prática e os exercícios de produzir textos em prosa e em versos em latim podem ser considerados como a última etapa deste modelo de educação linguística, que se baseava no modus parisiensis. Dessa forma, os textos escritos em latim que constituem os Monumenta Anchietana registram os mais complexos exercícios de aprendizagem do latim na Renascença, registrando o pensamento linguístico de então, com a composição de poemas emulando e imitando os autores clássicos da cultura greco-romana.
A poesia novilatina de Anchieta pode ser analisada no contexto cultural do humanismo renascentista em Portugal, na reforma educacional promovida pelo rei D. João III na Universidade de Coimbra, e, finalmente, no contexto da educação jesuítica, como uma política missionária no Brasil do século XVI. A estrutura dos Monumenta Anchietana é composta por dezessete livros (ANCHIETA, 1980[2], p. 2), organizados em uma lista a seguir, com as datas de publicação.
1. Lista De Publicações Dos Monumenta Anchietana:
1. De Gestis Mendi de Saa - Poema Épico, 1986;
2. De Eucharistia et Aliis, 1975;
3. Teatro de Anchieta, 1977;
4. De Beata Virgine Dei Matre Maria (dois volumes), 1980;
5. Lírica Portuguesa e Tupi I e Lírica Espanhola II, 1984;
6. Cartas de Anchieta, 1984;
7. Sermões de Anchieta, 1987;
8. Diálogo da Fé, 1988;
9. Textos históricos, 1989;
10. Doutrina cristã (dois volumes), 1992;
11. Arte gramática da língua mais usada na costa do Brasil, 1990;
12. Anchieta, o Apóstolo do Brasil, 1980;
13. Primeiras biografias de José de Anchieta, 1988;
14. O nome de Anchieta no Brasil e no mundo, -;
15. Processo de canonização - testemunhos seletos, -;
16. Anchieta nas Artes, 1991;
17. Bibliografia anchietana,2 1999.
Segundo Armando Cardoso, mais da metade dos poemas de Anchieta foi escrito em latim renascentista, o que caracteriza o pensamento linguístico da educação humanística renascentista. Essa produção textual é equivalente aos trabalhos de Virgílio e Ovídio, pelo número de versos. Anchieta escreveu mais de dez mil versos em língua latina, a maioria deles hexâmetros e dísticos elegíacos: “Mais da metade do livro de poemas de Anchieta é escrito em latim: cerca de 10.200 versos, contra cerca de 9.200 em vernáculo, castelhano e tupi” (ANCHIETA, 1989[2], v. 2, p. 5). Os poemas novilatinos mais representativos de Anchieta são o poema épico De Gestis Mendi de Saa (Os feitos de Mem de Sá) e o poema elegíaco De Beata Virgine Dei Maria. Ele também escreveu cartas em latim, como Epistula quam plurimarum rerum naturalium, quae S. Vicenti (nunc S. Pauli) provinciam incolunt, sistens descriptionem (Carta que traz a descrição dos diversos elementos naturais que se encontram na província de São Vicente, agora de São Paulo). Entre outras obras, Anchieta escreveu a primeira gramática da língua-geral da costa, a linguagem para estabelecer contato com os povos indígenas do século XVI no Brasil e a política missionária.
No Brasil, no dia 9 de junho, o ‘Dia Nacional de José de Anchieta’ começou a ser celebrado por católicos, por lei federal, desde 1965.3 Em 1979, o ministro da Educação e Cultura do Brasil publicou uma portaria para editar as obras completas de Anchieta, os Monumenta Anchietana.4 O filólogo Armando Cardoso, o historiador Hélio Viotti e Murillo Moutinho editaram os volumes publicados da coleção, pelas Edições Loyola, durante o século XX, mas a edição de Monumenta Anchietana ainda não está de todo completa. Atualmente, Anchieta é considerado padroeiro dos catequistas da Igreja Católica no Brasil.
2. A Biografia de Anchieta e Sua Educação Humanística
José de Anchieta nasceu em 19 de março de 1534, em San Cristóbal da Laguna, nas Ilhas Canárias, que é um arquipélago no Atlântico, pertencente à Espanha. Segundo Hélio Viotti (1980), um de seus mais importantes biógrafos, Anchieta fez seus primeiros estudos em sua cidade natal. Provavelmente estudou na escola dos padres dominicanos, não longe de sua casa, ainda hoje existente, na Plaza Mayor, conhecida atualmente como del Adelantado. Aos quatorze anos, em 1548, foi enviado por sua mãe para Portugal, com seu irmão mais velho Pedro Nuñez, que queria ser padre. Assim, Anchieta começou a estudar artes liberais no Real Colégio das Artes, junto à Universidade de Coimbra. O Real Colégio das Artes de Coimbra foi fundado pelo rei português Dom João III com excelentes professores, grande maioria formados na tradição humanística francesa. O humanista Diogo de Teive foi um de seus mestres na época:
Nascido a 19 de março de 1534 em São Cristóvão da Laguna, fez José na cidade natal seus primeiros estudos, cursando provavelmente as escolas dos padres dominicanos, não muito distantes de sua casa, ainda hoje existente, na Praça Maior, agora del Adelantado. Aos 14 anos, em 1548, foi enviado, em companhia de seu irmão mais velho por parte de mãe, Pedro Nuñez, depois sacerdote, a matricular-se no Colégio das Artes, anexo à Universidade de Coimbra e então reorganizado por Dom João III com excelentes professores. Diogo de Teive foi ali seu mestre principal (VIOTTI, 1980[3], p. 28).
Em 1998, o Congresso Internacional Anchieta em Coimbra - Colégio das Artes da Universidade (1548-1998) celebrou os 450 anos da estadia de José de Anchieta na cidade de Coimbra. Este congresso reuniu os maiores especialistas de Portugal e do Brasil sobre as obras de José de Anchieta, na época, com o tema da educação humanística. José de Anchieta permaneceu em Coimbra entre 1548 e 1553. Segundo Sebastião Tavares Pinho (2000, p. 19-20), o Colégio Real de Artes de Coimbra foi fundado segundo instituições e universidades similares da Europa, como o colégio trilingue de Leuven, o Colégio de Santa Bárbara de Paris, o Colégio de Guiena e o de Bordeaux.5
Em 1553, José de Anchieta chegou ao Brasil como missionário jesuíta. Inicialmente, Anchieta atuou como professor e catequista entre os nativos de São Vicente e de São Paulo de Piratininga. Em 1566, Anchieta é ordenado sacerdote, em seguida, torna-se, em 1570, reitor do Colégio Jesuíta no Rio de Janeiro. Em 1577 foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil (VIOTTI, 1980[3]). Depois de dedicar sua vida inteira à conversão dos povos indígenas do Brasil ao cristianismo, Anchieta morreu em 1597, em Reritiba, na capitania do Espírito Santo.
Em 1553, José de Anchieta chegou ao Brasil como missionário jesuíta. Inicialmente, Anchieta atuou como professor e catequista entre os nativos de São Vicente e de São Paulo de Piratininga. Em 1566, Anchieta é ordenado sacerdote, em seguida, torna-se, em 1570, reitor do Colégio Jesuíta no Rio de Janeiro. Em 1577 foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil (VIOTTI, 1980[3], p. 179). Depois de dedicar sua vida inteira à conversão dos povos indígenas do Brasil ao cristianismo, Anchieta morreu em 1597, em Reritiba, na capitania do Espírito Santo.
Os primeiros textos a relatar a biografia de José de Anchieta foram escritos em época próxima à sua morte em 1597, datando do final do século XVI e início do século XVII. O jesuíta Quirício Caxa escreveu a obra ‘Breve relato da vida e morte do padre José de Anchieta’ em 1597, e outro jesuíta Pero Rodrigues escreveu: ‘Vida do Padre José de Anchieta’, entre 1605 e 1609. Finalmente, no século XVII, outra biografia foi publicada pelo jesuíta Simão de Vasconcelos: ‘Vida do venerável padre José de Anchieta’ em 1672.
Em 1617, o livro Iosephi Anchietae Societatis Iesu sacerdotis in Brasilia defuncti vita (Vida de José de Anchieta, sacerdote da Companhia de Jesus, falecido no Brasil) foi publicado por Sebastiano Beretari, com uma tradução das primeiras biografias de Anchieta para o latim. O processo de beatificação de Anchieta começou em 1624, em Roma. Em 1650, Anchieta recebeu o título de ‘Servo de Deus’. Em 1736, Anchieta recebeu o título de ‘Venerável’.6 Anchieta foi beatificado em 1980 e, finalmente, canonizado em 2014. Atualmente, entre uma série de biografias, a obra Anchieta, Apóstolo do Brasil, publicada por Hélio Viotti, como um volume dos Monumenta Anchietana, destaca-se como texto fundamental para compreender a vida e as obras de Anchieta.
3. O Poema Épico de Gestis Mendi De Saa (1563)
O poema épico De Gestis Mendi de Saa (Sobre os feitos de Mem de Sá) foi um dos textos escritos em latim renascentista por José de Anchieta. Pertence à tradição estética da escola portuguesa do humanismo renascentista, segundo Américo Ramalho (1999[4], p. 241-242). O texto é organizado em mais de três mil versos no total, tendo sido escrito e inspirado no padrão métrico do hexâmetro dactílico virgiliano, exceto por uma elegia introdutória, dedicada a Mem de Sá. Armando Cardoso editou modernamente o De Gestis Mendi de Saa três vezes: em 1958, 1970 e 1986.
O tema do poema épico são os primeiros anos do governo-geral de Mem de Sá (1500-1572) no Brasil, descrevendo os eventos mais importantes que ocorreram entre 1557 e 1560, como uma crônica historiográfica. Armando Cardoso dividiu o poema épico de Anchieta em quatro livros, o primeiro livro tem como tema central a batalha do rio Cricaré, entre portugueses e indígenas, que aconteceu na recém-fundada capitania do Espírito Santo. Na narrativa, o jovem português Fernão de Sá, filho do governador, morre em combate e Anchieta descreve essa cena pelo tema e tópos da pulchra mors (bela morte), comparando o jovem português a Aquiles.
Já o segundo livro é uma narrativa dos feitos pessoais de Mem de Sá na Bahia, como governador-geral. O poeta narra o conflito e as discussões com o chefe indígena Cururupeba, em seguida, descreve como Mem de Sa impõe as mesmas leis aos indígenas e aos colonos portugueses. O poeta descreve, por fim, o início do projeto missionário jesuíta, a fundação de igrejas católicas e de missões indígenas. Em síntese, no segundo livro há a descrição da organização do governo-geral, do início efetivo da colonização e do processo missionário jesuítico.
No terceiro livro, Anchieta descreve a luta entre indígenas e Mem de Sá, na primeira expansão do projeto colonial, sendo a ‘guerra do Paraguaçu’ o tema inicial do livro. Quando esta guerra termina, Mem de Sá, os colonos e os indígenas conversos se preparam para uma guerra contra os Caetés, para vingar a morte do primeiro bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha, devorado em um ritual antropófago, após um naufrágio. Entretanto, esse combate não é narrado no livro, pois a presença de franceses na Baía de Guanabara obrigaria Mem de Sá a concentrar esforços para ocupar o território, o que é descrito na narrativa de Anchieta a seguir, no livro quarto do poema.
O quarto livro do poema épico é o mais complexo de todos. Nele, Anchieta narra a batalha pela expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. A luta entre portugueses e franceses inclui indígenas como aliados de ambos os lados, enquanto os indígenas de São Vicente, principalmente, ajudaram os portugueses, alguns indígenas do Rio de Janeiro combateram ao lado dos franceses. Na obra, Anchieta descreve a captura do Forte Coligny, na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, pelos portugueses, o que marca o fim da tentativa de colonização francesa, chamada à época de França Antártica.
Existem duas fontes para o poema, a editio princeps, tipografada em 1563 em Coimbra, e o manuscrito de Algorta, provavelmente do século XVII. Em 1997, a Biblioteca Nacional Brasileira publicou uma edição fac-símile da editio princeps. Armando Cardoso utilizou o Manuscrito de Algorta para publicar a primeira edição moderna do poema em 1958, porque a editio princeps de Coimbra não era conhecida dos pesquisadores modernos até que Luís de Matos encontrou um exemplar no Arquivo Distrital de Évora, tendo publicado esta descoberta em 1954 (ANCHIETA[5], 1997, p. 16-17).
Armando Cardoso editou em 1970 o poema épico De Gestis Mendi de Saa com suas duas fontes, o ‘manuscrito de Algorta’ e a editio princeps de 1563. Após uma revisão, esta edição foi reimpressa em 1986, consistindo na edição atual mais importante do poema de Anchieta, a edição do texto latino de Anchieta por Cardoso é acrescida por uma tradução poética. O poema épico De Gestis Mendi de Saa é o primeiro volume dos Monumenta Anchietana.
Apresentamos um trecho do poema, a título de exemplificação do pensamento linguístico anchietano, com uma descrição do Rio de Janeiro, aproximadamente em 1560, entre os versos 2301 e 2320 (ANCHIETA, 1986[6], p. 194):
Hinc procul, assiduis ubi turbidus imbribus Auster
Verberat e terras, e saeui immania ponti
Aequora, quo ferme emenso Sol peruenit anno
Signa refulgenti lustrans caelestia curru,
Arua tenent hospeda tumidos spectantia fluctus
Neptuni, e multos secus arida litora pagos,
Plurimaque occiduas Zephyri tendentia ad aedes
Oppida per campos et siluas structa per high.
Oi Lusitanos, quorum non oppida longe
Dissita sunt, bellis irritant usque, dolosis
Insidiis homines capiunt, custode carentes
Et populantur opes, uastantes ignibus agros,
Plurima ac assiduo patrantes funera Marte.
Hos adeus Galli saeuae commercia gentis
Optantes, mutante merces, gladiisque coruscis
Falcibus, atane hamis et multa forcipe, diros
Demorcent Indorum animos, et rubra reportant
Ligna, uerecundo quae uestimenta colore
Inficiunt, atque acre piper pictasque uolucres
Humanos et quae referunt animalia gestus .
(Longe, onde o turbulento Austro, com frequentes chuvas, reverbera tanto as terras quanto as vastas águas do mar selvagem, onde, quase passado o ano, o sol chega, iluminando as estrelas celestes com seu carro reluzente, os inimigos têm campos que estão enfrentando as ondas úmidas de Netuno, e muitos assentamentos à beira de litorais áridos, e numerosas fortalezas que se estendem ao longo da morada ocidental de Zéfiro, construídas através desses campos e florestas densas. Estes sempre provocam os lusitanos, cujas fortalezas não foram disseminadas longe, por guerras voluntárias. Eles capturam homens com armadilhas, e devastam seus recursos privados de um protetor, destruindo os campos, os queimando, causando numerosos funerais, em contínuos combates. A estes se juntam aos franceses, que desejam fazer negócios com os povos selvagens. Trocam mercadorias, tanto por espadas e foices brilhantes, como por ganchos e muitas pinças, assim acalmam os terríveis temperamentos dos nativos, também adquirem troncos de pau-brasil, que pintam suas roupas com uma cor avermelhada, e a pimenta acre, também como pássaros e animais coloridos que imitam gestos humanos).
A composição de poemas em latim, na era da Renascença, foi um dos exercícios mais complexos para a educação linguística do humanismo. Nesse contexto, a emulação de autores clássicos foi uma prova de virtuosismo e domínio da língua latina, estando na base do pensamento linguístico da época que pressupunha um retorno às línguas clássicas. Assim, a composição do poema De Gestis Mendi de Saa pode ser entendida no contexto da educação humanista de Portugal no século XVI. Anchieta teve contato com esta tradição universitária ao estudar ainda adolescente no Real Colégio das Artes de Coimbra, como supracitado, já os jesuítas implantariam os mesmos princípios de educação liberal desenvolvidos em Portugal nos seus colégios fundados fora da Europa.
Este poema é o primeiro texto literário escrito no Brasil, que foi publicado em livro, em 1563, na tipografia da Universidade de Coimbra. É considerado também o primeiro poema da literário escrito no Brasil a ser publicado como livro (MOUTINHO, 1999[7], p. 18). Para a composição do poema épico De Gestis Mendi de Saa, Anchieta inspirou-se, sobretudo, na ‘Eneida’ de Virgílio. Armando Cardoso exemplifica a emulação de Eneida por Anchieta nos comentários de várias passagens do De Gestis Mendi de Saa (ANCHIETA, 1986[6], p. 47-50).
4. O Poema Elegíaco de Beata Virgine Dei Matre Maria
O mais extenso poema elegíaco de Anchieta, De Beata Virgine Dei Matre Maria, é uma obra-prima da Literatura Brasileira no século XVI. Inspirado em Ovídio, esse extenso poema anchietano, escrito em latim, possui 5.788 versos, segundo a última edição de Armando Cardoso (ANCHIETA, 1980). O tema central do poema catequético é a vida da Virgem Maria. Já as fontes originais do poema de Anchieta De Beata Virgínia Dei Matre Maria são o ‘manuscrito de Algorta’ e o ‘manuscrito de Santiago do Chile’, provavelmente textos originários do século XVII. Além dessas fontes primárias, há também as edições de Simão de Vasconcelos, na ‘Crônica da Companhia de Jesus no Brasil’ (1663) e na ‘Vida do Venerável Padre José de Anchieta’ (1672), escritos em português. Através dessas fontes, Armando Cardoso editou o poema em sucessivas edições em 1940, 1954, 1960 e 1980.
O contexto de produção desse poema de Anchieta é muito interessante. Durante uma revolta indígena, que ficou conhecida como a ‘Confederação dos Tamoios’, em São Vicente, ocorrida entre 1554 e 1567, Anchieta tornou-se refém dos nativos, no ano de 1563. Segundo a tradição, ele começou a escrever os versos do poema nas areias da praia em Iperoig. Depois de liberto, quando a paz foi estabelecida com os indígenas, concluiu a composição do poema em latim, dedicado à Virgem Maria, por sobreviver ao episódio. Essa se tornaria uma de suas peças eruditas escritas com finalidade catequética.
A vida da Virgem Maria é narrada por Anchieta, a partir dos episódios dos ‘Evangelhos’ e da tradição dos Santos Padres que explicaram os ‘Evangelhos’. Anchieta narra o nascimento, a Imaculada Conceição da Virgem Maria, a Anunciação, a fuga para o Egito, o retorno a Israel, a paixão e a glória de Jesus e Maria. O poema foi dividido em doze cantos por Armando Cardoso. Esteticamente, o poema está ligado ao humanismo cristão, sendo um produto inicial da Literatura Brasileira, no período colonial, como supracitado (ANCHIETA, 1980, v. 2, p. 5-7).
Entre os versos 2449-2456 do poema, há a narração da noite em que Jesus Cristo nasceu, a noite de Natal. Pode-se notar a partir desse breve exemplo como ocorre a construção poética de De Beata Virgínia Dei Matre Maria em dísticos elegíacos:
O nox, o cunctis speciosior una diebus!
O nox, natalis pulchra decore noui!
O nox, qua uerae radiant clarissima lucis
Lumina, Phoebeis splendidiora rotis!
O nox, caligo qua pellitur atra, suusque
Redditur immenso rebus in orbe color,
Qua Deus egreditur puerili carne uolutus,
Quem menses clausit Virginis arca nouem!
(Ó noite, ó noite, mais bela do que todos os dias reunidos! Ó noite, linda pelo ornamento de um novo nascimento! Ó noite, na qual mais esplêndida que o carro de Febo, as faíscas cintilantes da verdadeira luz brilham! Noite, em que a escuridão é repelida, e a cor é restaurada no imenso orbe para as coisas, noite em que Deus surge em corpo de menino, Ele que por nove meses o ventre da Virgem encobriu).
As principais fontes cristãs que Anchieta usou para escrever o poema De Beata Virgine Dei Matre Maria são a Bíblia, o breviário, o missal e a Vita Christi de Ludolfo da Saxônia. Em relação à cultura clássica, Anchieta teve como referência as obras de Ovídio e Virgílio, sendo anotadas por Armando Cardoso mais de cento e vinte referências às obras de Virgílio e mais de oitenta referências às obras de Ovídio (ANCHIETA, 1980, p. 56-60).
5. O Conjunto de Poemas de Eucharistia Et Aliis Poemata Varia
Além do poema épico De Gestis Mendi de Saa e do poema elegíaco De Beata Virgine Dei Matre Maria, Anchieta compôs outros poemas em latim de menor extensão. Essas outras obras foram reimpressas por Armando Cardoso sob o título De Eucharistia et aliis poemata varia (Poemas diversos sobre a Eucaristia e outros temas). Antes da edição dos Monumenta Anchietana, as obras completas de Anchieta, publicadas pelas edições Loyola, Armando Cardoso havia publicado pelo Arquivo Nacional os poemas De Gestis Mendi de Saa (ANCHIETA, 1958[8]) e De Beata Virgine Dei Matre Maria (ANCHIETA, 1940).
Os poemas em latim de menor extensão de Anchieta foram parcialmente publicados por Maria de Lourdes de Paula Martins em 1954 (ANCHIETA, 1989[2]), em sua edição sobre a poesia atribuída a Anchieta. A edição de Maria de Lourdes registra os poemas em português, latim, espanhol e tupi compilados no códice ARSI (Archivum Romanum Societatis Iesu) opp. NN 24. A edição dos poemas menores de Anchieta em latim, organizados por Armando Cardoso, data de 1975, nessa edição, há poemas do ‘manuscrito de Algorta’ e o manuscrito do arquivo jesuítico, o códice ARSI opp. NN 24.
O conjunto de poemas denominado De Eucharistia é formado por seis textos: O Deus Alme, Hostia quae placas, Te Deus Omnipotens, Sion Funde, Divinum Panem e Summe Pater. Os títulos são retirados dos versos iniciais dos poemas. Ao todo, os poemas têm cerca de setecentos versos escritos em latim, com padrões métricos variados, dísticos elegíacos, ritmos medievais e hexâmetros. A segunda parte do livro contém outros poemas semelhantes em tema e forma. Compreende a segunda parte do livro: Horae Imaculatissimae Conceptionis Virginis Mariae, Purificatione Purissimae Virginis Mariae, De Maerore Virginis Mariae Puero Iesu remanente em Templum, De Beato Laurentio Martyre, De Beata Catharina Virgine e Martyre, De Assumptione Beatae Mariae e Epigrammata.
Como exemplo dos poemas menores de Anchieta em latim, vejamos alguns versos extraídos da Horae Immaculatissimae Conceptionis Virginis Mariae (ANCHIETA, 1975[9], p. 98):
Ad Matutinum
Temporis longi miseratus orbis
Conditor fletum, senio gravatam
Angelum summo solio polorum
Mittit ad Annam.
Ille: “Suprema paries senecta
Filiam, dicit, superi Parentis
Quae suo claudet genitum beato
Viscere Verbum.
Haec criaturas superabit omnes,
Omnibus felix memoranda saeclis”.
Nuntio gaudet Ioachim beatus,
Certus eodem.
Sente-se Patri, Nato decus et beato
Flamini, et sanctae meriti Puellae,
Quae carens omni macula creatur,
Munus honoris!
(O Criador do mundo, tendo misericórdia pelo longo tempo de lágrimas, envia um anjo, do alto trono dos céus, para Ana, agravada pela idade. Ele diz: “Você terá uma filha, na sua extrema velhice, uma filha que em seu ventre sagrado manterá a Palavra gerada, superará todas as criaturas. Abençoada deve ser lembrada por todas as idades, São Joaquim se regozija, determinado por esta anunciação. Glória ao Pai, ao Filho e ao Santo Espírito! E à Santíssima Virgem, merecida, que o Senhor libertou de toda corrupção, tributo de honra).
A inspiração dos poemas em latim de menor extensão de Anchieta é semelhante aos do poema elegíaco De Beata Virgine Dei Matre Maria. Em relação à métrica, há inspiração nas odes de Horácio e nos padrões rítmicos medievais. Há paráfrases feitas por Anchieta sobre outros poemas medievais, como os de John Peckam, OFM e São Thomás de Aquino, bem como a influência de seus estudos humanísticos em Coimbra.
6. Conclusão
O pensamento linguístico de Anchieta está registrado nas suas obras, cuja principal fonte é a coleção publicada pelas edições Loyola, durante o século XX, os Monumenta Anchietana. Em grande parte, a coleção é resultado do trabalho filológico de Armando Cardoso com as fontes manuscritas e impressas dos séculos XVI e XVII. Entretanto, essa coleção de livros, com estudos sobre Anchieta, ainda não está concluída, e alguns volumes ainda não foram publicados. O padre jesuíta José de Anchieta foi um dos humanistas cristãos mais representativos do século XVI no Brasil, o primeiro gramático na América portuguesa e um dos fundadores da Literatura Brasileira. Foi aluno do Real Colégio das Artes de Coimbra em 1548, quando era adolescente, antes de vir para o Brasil em 1553, para acompanhar outros missionários jesuítas, tendo a sua educação humanística conimbricense influído no seu pensamento linguístico. Depois que veio para o Brasil, ele nunca mais retornou à Europa.
José de Anchieta escreveu textos literários, religiosos e históricos em quatro idiomas: latim, português, espanhol e tupi, a língua indígena mais utilizada nos primeiros tempos da colonização no Brasil. As obras de Anchieta, escritas em latim renascentista, são a principal fonte de reconhecimento da recepção da cultura clássica no Brasil do século XVI. O filólogo Armando Cardoso, SJ, que editou e traduziu as obras de Anchieta do latim para o português no século XX, foi um dos estudiosos mais importantes ao revelar os poemas de Anchieta aos leitores modernos. Ele trabalhou junto a outros estudiosos como José Zabala, Hélio Viotti, Murilo Moutinho, entre outros, que analisaram as fontes dos Monumenta Anchietana.
Debati nesse artigo o pensamento linguístico e a recepção da Cultura Clássica nos Monumenta Anchietana, descrevendo, historiograficamente, o trabalho filológico de Armando Cardoso com a poesia novilatina de Anchieta. Apresentei neste estudo uma visão geral das obras de Anchieta nas edições mais relevantes para os leitores contemporâneos. A pesquisa de Armando Cardoso com manuscritos, o processo de tradução e a organização dos Monumenta Anchietana constituiu-se como um trabalho filológico de décadas. No entanto, até hoje, a publicação dos Monumenta Anchietana ainda está inacabada.
José de Anchieta foi um dos primeiros professores de latim do Brasil. Além de obras poéticas, ele também escreveu cartas em latim, sendo a mais conhecida a Epistola quam plurimarum rerum naturalium, quae S. Vincentii (nunc S. Pauli) provinciam incolunt, sistens descriptionem, escrita em 1560, e publicada em 1799 pela Academia de Ciências de Lisboa. Esta carta descreve a natureza de São Vicente, sua fauna e flora e inspira-se na obra Historia Naturalis de Plínio. Outra obra de Anchieta em prosa latina digna de relevo é a Brasilica Societatis Historia et vita clarorum patrum qui in Brasilia vixerunt, que descreve a biografia dos primeiros jesuítas no Brasil. A ‘Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil’, de 1595, possui metatermos de tradição gramatical latina, demonstrando que o pensamento linguístico de Anchieta sofria a influência da tradição gramatical renascentista.
As obras de Anchieta são um patrimônio da história e dos Estudos de Linguagem no Brasil, no início do século XVI, sendo a recepção da Cultura Clássica em suas obras um aspecto cultural do humanismo renascentista e da educação humanística, no contexto em que foi desenvolvido, pelos padres jesuítas, o projeto missionário inicial na América Latina. A partir da corrente de pensamento do humanismo renascentista português é possível analisar o pensamento linguístico anchietano.
7. Agradecimentos
Agradecemos à Universidade Federal Fluminense (UFF) e ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem da UFF, que nos permitiram a participação no congresso ABRALIN50, facultando a realização da pesquisa.
Agradecemos, outrossim, à biblioteca do Museu Anchieta em São Paulo, que nos permitiu acesso ao acervo, ao Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, pelo acesso ao acervo específico e à Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, pelo acervo também disponibilizado.
Avaliação
AVALIADOR 1: Sônia Maria Nogueira
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4005-4508
FILIAÇÃO: Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão, Maranhão, Brasil.
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AVALIADOR 2: Ronaldo de Oliveira Batista
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7216-9142
FILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil.
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RODADA 1
AVALIADOR 1
2019-12-28 | 04:47
TÍTULO
Considera-se que o título se relaciona precisamente com o assunto do trabalho e reflete adequadamente a proposta.
RESUMO
- O resumo contém objetivo, relevância do tema, metodologia e resultados finais.
- A declaração do objetivo, no resumo, combina com o objetivo da introdução.
- O resumo é sucinto, claro e compreensível.
INTRODUÇÃO
- Verifica-se que a declaração do objetivo, na introdução, combina com o objetivo do resumo.
- Todas as sequências das afirmações, na introdução, conduzem diretamente à finalidade do estudo.
MÉTODOS
- Os métodos, com relação ao objetivo do estudo, são todos válidos neste estudo, na perspectiva da Historiografia Linguística.
RESULTADO
- Os resultados à luz do objetivo proposto condizem com o plano do pesquisador.
- A importância dos resultados para o conhecimento da área é comentada no texto.
- O autor faz discussões com referências apropriadas.
GENERALIDADES
- A discussão repete os resultados. A interpretação surge de maneira lógica dos dados.
- A interpretação afirma com a de outros pesquisadores da área.
- Os estudos básicos foram considerados.
- Os tópicos e as normas do periódico estão sendo cumpridos.
- Todas as citações estão referenciadas de acordo com as regras da ABNT.
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AVALIADOR 2
2019-12-18 | 05:09
O texto apresenta uma estrutura e uma proposta que são condizentes com a proposta do periódico. Delimitando-se metodologicamente na Historiografia Linguística delineada por Pierre Swiggers, o autor propõe uma discussão heurística de um material que deverá, entende-se, ser aprofundado em outros estudos de acordo com a consequente fase hermenêutica (a seguir o direcionamento teórico-metodológico de Swiggers). A obra de que trata o artigo (em toda a sua complexidade) é relevante para a abordagem escolhida, que se distingue notavelmente de tantas outras a respeito da produção intelectual de Anchieta; mantendo, assim, uma originalidade para a proposta do artigo. O diferencial é colocar em reflexão o trabalho filológico em torno da obra anchietana, estabelecendo, desse modo (e favoravelmente), a configuração interdisciplinar tão cara à Historiografia Linguística. Faz-se uma apropriada reconstrução do clima de opinião da obra como um todo e de seu autor, lançando, entende-se, as primeiras bases para a discussão da natureza filológica do trabalho de Armando Cardoso. A discussão central do artigo de fato concentra-se na chamada fase heurística do trabalho historiográfico, o que não compromete o artigo, pois foi o que se propôs no resumo e na introdução. Tendo essas considerações em vista, sou favorável à publicação do artigo na forma em que se encontra.