Introdução
Nos últimos anos, devido ao crescimento da Web 2.0, é possível observar um aumento na variedade de material textual disponível on-line. Parte desses textos são opiniões geradas por usuários da Internet em fóruns, mídias sociais e outros. Dada a abundância de dados publicados na rede, a partir de ferramentas linguístico-computacionais, torna-se viável (e necessária) a automatização da extração, síntese e análise de conteúdos gerados por usuários. Em vista disso, a área de Mineração de Opinião, ou Análise de Sentimentos, que busca interpretar e analisar automaticamente opiniões, sentimentos, avaliações e emoções (LIU, 2010; PANG e LEE, 2008), tem ganhado grande importância no âmbito do Processamento de Língua Natural (PLN). A análise dessas opiniões pode ser útil para pesquisas de mercado e avaliação de reações de clientes sobre determinados produtos ou pessoas públicas, por exemplo.
De um modo geral, Liu (2010) classifica os conteúdos textuais disponíveis na rede como “fato” e “opinião”. Para o autor, fatos são sentenças objetivas e desprovidas de sentimento, tendo a função de apenas transmitir informações sobre algo. Em contraposição, opiniões são sentenças subjetivas que carregam uma avaliação, sentimento, opinião ou emoção sobre algo ou alguém. Entretanto, uma das primeiras dificuldades encontradas na área da Análise de Sentimentos é exatamente a diferenciação entre o que é um texto informativo/factual e o que é subjetivo/opinião, uma vez que a linguagem não se apresenta tão exata e binária como propõe a consideração acima. Consequentemente, os conceitos de subjetividade e emoções estão intimamente ligados (LIU, 2010). Enquanto o propósito de uma sentença objetiva é apresentar uma informação factual, a sentença subjetiva pode se configurar de várias formas, tais como: opiniões, desejos, crenças, suspeitas, emoção, pensamentos ou especulações (WIEBE, 2000; RILOFF et al., 2006).
Uma das formas de o falante expressar sua opinião é por meio da ironia. No entanto, compreender a ironia não é uma tarefa tão simples, embora os humanos a realizem com uma certa facilidade, dependendo de seus conhecimentos extralinguísticos. Apesar de estar presente cotidianamente na comunicação entre falantes, é comum existir mal-entendidos, caso haja falhas comunicativas daquilo que se quer fazer entender. Pragmaticamente, um enunciado irônico é entendido como uma forma de comunicar o oposto do significado literal das palavras, ou quando ocorre uma aparente violação dos princípios pragmáticos (GRICE, 1975; SEARLE, 1969). Entretanto, de uma perspectiva psicolinguística (KREUZ e GLUCKSBERG, 1989; SPERBER e WILSON, 1981), é possível considerar como a informação é processada cognitivamente e como é representada por inferências. Dessa forma, o atual trabalho apoia-se em dois princípios básicos: o lógico, a partir dos pressupostos lógicos das máximas conversacionais de Grice (1975) e o cognitivo, com base na afirmação de Sperber e Wilson (1981) de que a comunicação humana é resultante de um processo interativo entre falantes e ouvintes e que, no processamento de informações, é possível uma alteração de seus espaços cognitivos. Segundo Grice (1975), o efeito irônico pode estar na violação da Máxima de Qualidade1 e está associado à expressão de atitude, sentimento e avaliação dos falantes. Entretanto, do ponto de vista cognitivo, Sperber e Wilson (1981), baseando-se na Teoria da Relevância, acreditam que o principal elemento característico da ironia são os usos particulares de desempenho interpretativo, isto é, quando o falante se utiliza de seu enunciado para atribuir implicitamente o pensamento representativo em seu enunciado para outra pessoa que não seja ele próprio.
Desse modo, estudar a ironia pode transpassar as dificuldades de interpretá-la. É necessário, primeiramente, definir seus limites conceituais. Porém, por ser um fenômeno multifacetado, objeto de estudo de diversas abordagens das mais variadas áreas de conhecimento, essa tarefa pode ser vista como um tanto quanto hermética (GRICE, 1975; SPERBER e Wilson, 1981; KREUZ e GLUCKSBERG, 1989, ATTARDO, 2000; GIBBS e COLSTON, 2007). No entanto, não é o objetivo aqui abordar essas questões teóricas, uma vez que o interesse deste trabalho é fazer uma descrição de sentenças irônicas e não irônicas, e dentre estas, as que geram a ironia por meio de mecanismos que não sejam a oposição. Para tanto, a definição não especializada do dicionário Houaiss (2009), em que ironia é definida como uma “figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso de palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empregado para definir ou denominar algo” é suficiente.
No entanto, há enunciados que podem carregar um sentido figurado, mas não se encaixam na definição, aqui utilizada, de ironia. Segundo Attardo (2000), sarcasmo é um tipo de ironia abertamente agressiva, com pistas mais claras. Singh (2012) afirma que a sátira é uma figura de linguagem que enfatiza as fraquezas das pessoas. O autor ainda define humor como a capacidade de expressão de uma sensação de algo divertido e inteligente. Apoia-se, principalmente, no reconhecimento de incongruências ou peculiaridades presentes em uma situação.
Grandes conjuntos de textos opinativos têm sido classificados automaticamente para identificar o sentimento (positivo, negativo ou neutro) de opiniões neles presentes, caso em que a análise pode gerar um falso resultado. Uma opinião como a expressa em (1), a seguir, por exemplo, pode ser interpretada erroneamente, em seu sentido literal. Ou seja, o sentido real da sentença carrega um sentimento negativo; porém, ferramentas de análise automática podem classificá-la como positiva por causa dos itens lexicais positivos que a compõem (“Como é bom...”). Isso ocorre pelo fato de a ironia ter como efeito uma expressão avaliativa cuja polaridade é alterada entre a avaliação literal e a pretendida, resultando em uma incongruência entre a significação literal e seu contexto (CARVALHO et al, 2009). Em outras palavras, quando se tem a intenção de produzir uma sentença irônica, o autor expressa um sentimento positivo, ainda que a opinião implícita seja negativa, ou vice-versa.
(1) Como é bom ver os políticos brasileiros gastarem o dinheiro público com propina.
No exemplo (1), a partir de um conhecimento de mundo e de uma contextualização política dos acontecimentos no país, a compreensão da ironia na sentença é possível, tendo em vista que políticos gastarem dinheiro público com propina não é algo realmente bom. Outro fator observável para inferir o sentido figurado é a presença de elementos lexicais que se opõem na mesma sentença, como “bom” versus “gastar dinheiro público” e “propina”.
Desse modo, o objetivo principal deste trabalho é analisar e descrever mecanismos subjacentes à expressão de ironia em textos avaliativos no português do Brasil. Além disso, busca identificar as principais características linguísticas utilizadas para expressar ironia em textos de opinião no domínio político. A hipótese é de que a presença de elementos lexicais contrastantes em um dado contexto pode ser um indicador da presença de ironia.
1. Os desafios do PLN na descrição e detecção automática da ironia
A máquina atinge boa performance de acertos na análise e descrição automática de uma língua natural em seus níveis mais concretos, como a morfológica e a sintaxe, apesar de apresentarem determinadas complexidades. Contudo, ao partir para níveis mais abstratos, como o semântico, o pragmático e o discursivo, depara-se com grandes obstáculos, a serem resolvidos no âmbito do Processamento Natural da Linguagem. Dessa forma, o processamento computacional de linguagem não-literal (e também de opiniões, sentimentos e emoções) exige uma análise detalhada de informações linguísticas subjacentes ao texto. Além disso, pela linguagem figurada estar intrinsecamente ligada ao contexto e ao conhecimento extralinguístico, que por sua vez estão em constante modificação, há a dificuldade de se criarem padrões aplicáveis a algoritmos de Aprendizado de Máquina (EMMZ e LUZ, 2011), por exemplo.
Em casos de sintetização de textos opinativos, a presença de ironia pode ser responsável por erros na classificação automática da polaridade de uma opinião (CARVALHO et al., 2009). Isso não significa que é impossível identificá-la de forma automática. Mas, primeiramente, é necessário criar padrões mais genéricos, capazes de identificar possíveis enunciados irônicos em textos. Ou seja, reconhecer aspectos linguísticos suscetíveis à análise computacional de linguagem figurada e, por meio de tratamentos individuais de cada caso, partir para uma solução mais generalizável.
Outro ponto importante a se destacar nos estudos envolvendo análises automáticas de ironia é a escassez de pesquisas voltadas para o português do Brasil (PB). É comum encontrar uma abundância de trabalhos voltados para o processamento do inglês, o que exige uma adaptação dos resultados e dos dados já existentes para o PB.
Para o inglês, algumas pesquisas são baseadas em léxicos para a identificação de pistas linguísticas para o reconhecimento de sentenças irônicas. Gonzáles-Ibáñez et al. (2011) sugerem que características lexicais por si só não são suficientes para identificar sarcasmo e que características pragmáticas e contextuais merecem mais atenção. Hogenboom et al. (2013) fazem uma análise de como os emoticons podem expressar sentimentos. Para isso, os autores criaram manualmente um léxico de sentimentos composto por emoticons, com vistas a melhorar o método de classificação de sentimento baseado em léxico.
Ainda para o inglês, Veale e Hao (2010) investigaram a relação entre ironia e conhecimento estereotipado de um domínio, mostrando como esse tipo de percepção ajuda no reconhecimento e entendimento de enunciados irônicos. Reyes et al. (2013) analisam a ironia em termos de um modelo multidimensional de elementos textuais, com a identificação de um conjunto de características discriminativas para gerar automaticamente textos irônicos a partir de textos não-irônicos.
Com relação aos trabalhos voltados para o PB, destaca-se o de Carvalho et al. (2009), que elaboraram um conjunto de padrões linguísticos para identificar ironia no português europeu, como emoticons, expressões onomatopaicas, pontuação e aspas. Algumas dessas pistas são específicas para o português (padrões morfológicos, como os diminutivos), enquanto outras parecem ser independentes da linguagem e presentes em todas as mídias sociais, por exemplo, Facebook ou Twitter. Vanin et al. (2013) apresentam um trabalho inicial para o português do Brasil sobre alguns padrões de detecção de ironia em tweets. Em seu artigo, os autores identificaram padrões com formas diminutivas, que podem tanto expressar sentimentos positivos, como afeto, ternura e intimidade, mas também conotações sarcásticas ou irônicas, quando a intenção é desvalorizar ou insultar uma determinada entidade.
Nota-se que a maioria das pesquisas aqui relatadas são voltadas para redes sociais. Essa preferência ocorre pela facilidade na coleta dos dados por crawlers (programas computacionais que “varrem” sites de modo metódico e automático). Além disso, plataformas como o Twitter permitem a extração de tweets em tempo real por meio de APIs2. Entretanto, tweets possuem um número limitado de caracteres, razão pela qual este artigo optou por trabalhar com dados advindos de comentários de notícias de jornal on-line, em que não há restrição ao tamanho do conteúdo textual.
2. Construção e anotação do corpus opinativo
A ascensão das redes sociais alavancou a utilização de plataformas como Facebook, Twitter e YouTube, além de outros conteúdos gerados pelo usuário (em inglês, user-generated content). Essas mídias sociais permitem que milhares de pessoas se expressem sobres os mais diferentes assuntos, e suas opiniões podem ser acessadas rapidamente por qualquer outra pessoa ou por ferramentas computacionais.
O material textual encontrado nas mídias sociais consiste em textos mais reduzidos e escritos em uma linguagem mais informal, muitas vezes contendo desvios ortográficos e gramaticais da norma culta, que podem ser acidentais ou mesmo deliberados. Ao mesmo tempo, os textos são mais espontâneos. Para Bisognin (2009), a linguagem utilizada em plataformas digitais (ou em todas as mídias sociais) possui um modo único de o usuário expressar suas emoções, opiniões ou impressões, possuindo cada vez mais características da oralidade. Procurou-se, nesta pesquisa, trabalhar com textos em que o usuário pudesse expressar sua opinião de forma direta. Isso justifica a opção por comentários de um jornal de grande circulação, que tem uma versão on-line e que dá espaço para seus leitores manifestarem suas opiniões, como é o caso da Folha de S. Paulo.
O ComentCorpus é um corpus composto por comentários de notícias no PB. Para sua construção foram compilados comentários de 90 notícias referentes ao período de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, presentes no caderno Poder do jornal Folha de S. Paulo, no período de janeiro a junho de 2016. Conteúdo gerado por usuários pode ser considerado subjetivo, e por se tratar de comentários referentes ao domínio político, a hipótese é de que o uso de recursos como a ironia seja inevitável. O corpus é composto por 6.185 comentários, totalizando aproximadamente 14 mil sentenças e 207 mil palavras.
Antes do processo de anotação, foi realizada, manualmente, uma identificação de cada comentário por meio da criação de um cabeçalho, em formato XML, incluindo dados como o número do comentário, do autor e da data em que foi postado. Desse modo, cada comentário foi delimitado com as etiquetas <coment id:“xxxx”> indicando o início do comentário e </coment> indicando o fim de cada comentário do usuário. As etiquetas <author> e </author> marcam o autor de cada comentário e as etiquetas <date> e </date> indicam a data. Para a anotação das etiquetas criadas na identificação dos comentários, dos autores, das datas e das sentenças foram criadas macros (conjunto de operações codificadas) no software Notepad++, facilitando a anotação das etiquetas.
Todas as sentenças também foram identificadas manualmente3, em uma primeira etapa de anotação, sendo delimitadas com a etiqueta <sentence>, indicando o início e </sentence>, indicando o fim. Considera-se sentença, toda sequência de palavras seguidas por um ponto final, exclamação, interrogação ou reticências.
<coment id:"01610"> <author>Éder</author> <date>05/03/2016</date> <sentence>Sempre que existe a possibilidade de punir políticos importantes, mesmo com provas cabais e inequívocas, as elites reagem com esse discurso sobre crise institucional</sentence> <sentence>Seremos eternos reféns das quadrilhas que tomam o poder a séculos neste país? </sentence> <sentence>Estão apenas usando o medo para se perpetuar no poder.</sentence></coment> |
No entanto, observou-se que em alguns casos a pontuação indica hesitação, pausa ou reprodução da oralidade na escrita dentro de uma mesma sentença. Nesse caso, como mostra o exemplo (2), apesar da pontuação, a sequência foi anotada como uma única sentença.
(2) Afinados?… duas pessoas que envergonham a nação!
Inicialmente, todas as sentenças identificadas na etapa anterior foram anotadas manualmente de acordo com a percepção do anotador quanto à intenção e classificadas como:
· Opinião não irônica: sentenças que não contêm mecanismos linguísticos que alterem o seu referencial, por exemplo:
(3) Se o povo votar em candidatos processados ou que tenham tido os nomes envolvidos com as empreiteiras, então vai ser um problema daqueles que votaram.
· Opinião irônica: sentenças opinativas em que há oposição de sentido entre a intenção que é pretendida e o que é realmente dito.
(4) A Sra. Presidente é tão honesta que vai pro céu...Tadinha...
· Opinião com outro tipo de ironia: sentenças opinativas em que não há oposição de sentido literal e significado pretendido, embora o texto carregue algum dispositivo figurado que altera sua literalidade. Casos de outro tipo de ironia incluem o sarcasmo, a sátira e o humor.
(5) Já já começará aquela conversinha de ele é "pelsseguido pulíticu" e blá blá blá.
A análise foi realizada apenas no nível da sentença, não recorrendo às outras sentenças do comentário. A escolha justifica-se pelo propósito de isolar o contexto da sentença, tendo em vista que esse seria o processo realizado pela máquina.
É importante ressaltar que uma anotação deve seguir determinados processos para não existirem inconsistências entre os anotadores, sendo necessário etapas-padrão, como treinamento dos anotadores, rodadas de anotação e intersecção entre uma rodada e outra para esclarecimentos de dúvidas entre os anotadores (HOVY e LAVID, 2010). No entanto, devido ao tempo restrito e à falta de anotadores disponíveis, foi necessária uma nova etapa de anotação em uma pequena porção do corpus (aproximadamente 2 mil sentenças), para validar o modelo de anotação proposto anteriormente. Desta vez, além das categorias anteriores, foi incluída também a categoria “não soube responder”.
Com base nas 198 sentenças provenientes de opiniões anotadas como irônicas, no conjunto das quase 2 mil sentenças e de acordo com o conceito de ironia adotado, constatou-se a presença de dois tipos de oposição na estrutura das opiniões: implícita e explícita. Ou seja, há sentenças em que a ironia ocorre em uma camada mais superficial, sendo explicitada a partir de itens lexicais que se opõem. Em outros casos, é preciso acessar uma camada mais profunda do significado, sendo necessário, nesse momento, recorrer ao contexto e ao conhecimento de mundo do leitor.
Visto que o foco desta pesquisa é modelar a ironia em textos opinativos, uma nova anotação foi realizada, classificando as opiniões irônicas por oposição em “oposição implícita” ou “oposição explícita”. Como é possível observar em (6), a oposição explícita é quando a ironia é compreendida devido à oposição de pistas presentes no próprio enunciado. Já em (7), a oposição implícita é quando a ironia é compreendida através de pistas presentes e por um contexto pragmático adicional ao enunciado.
(6) Viva a corrupção, o país de babacas onde vivemos.
(7) Agora são trilionários, ganharam na Mega-Sena...
3. Apresentação e análise dos resultados dos dados
Das 198 sentenças irônicas analisadas, 68% são opiniões irônicas com oposição implícita. Já as opiniões irônicas com oposição explícita totalizam 32% das anotadas.
A partir dos dados extraídos com base nas anotações realizadas, procurou-se estabelecer uma análise linguística do funcionamento da ironia em um corpus opinativo em um domínio político. É necessário enfatizar o domínio, pois o que pode ser compreendido como ironia em um, em outro pode ser entendido em seu sentido literal, o que demonstra mais um obstáculo na caracterização de ironia em textos com vistas à aplicação computacional.
Os métodos baseados em Aprendizado de Máquina consistem em oferecer grandes quantidades de exemplos. Cada um deles pode ser visto como um vetor de características (features) – input, seguido por um rótulo que o classifica – output correlacionados por um algoritmo classificador determinando o rótulo para entradas nunca vistas, ou seja, textos a serem classificados. Alguns mecanismos linguísticos foram observados nas opiniões irônicas anotadas neste trabalho, podendo ser utilizados futuramente como características em algoritmos de Aprendizado de Máquina. Todavia, estas aplicações não serão abordadas neste trabalho.
Conforme foi mencionado anteriormente, no processo de anotação, observou-se dois tipos de oposição em opiniões irônicas, as implícitas e as explícitas. Para uma modelagem linguística, as oposições explícitas são muito mais fáceis de serem formalizadas, uma vez que elas se encontram presentes no corpo da sentença. Já para a compreensão automática da oposição implícita, é necessário um banco de dados, como outro corpus ou acesso à Web, ou outro método para que a máquina entenda informações extralinguísticas.
Em (8) é possível inferir o sentido irônico por meio do contraste entre “são muito nobres” versus “usou dinheiro de corrupção”. Nesse caso, o autor da opinião faz a oposição de uma sequência positiva e uma sequência negativa para construir a ironia. Em (9), não é possível compreender o sentido figurado ou literal da sentença sem o contexto da qual foi extraída.
(8) São muito nobres, afinal, a chapa usou dinheiro de corrupção.
(9) Nossa, como ela é legal!
Há ainda casos em que não há necessariamente um contraste de polaridade entre os elementos da sentença, nem oposição de proposições. Em (10), nota-se que a ironia se apresenta na contraposição de elementos que, habitualmente, não pertencem a mesma esfera semântica.
(10) Dilma é muito boa para governar o Brasil, tanto que faliu uma lojinha de 1,99!
No exemplo acima, além da oposição entre as proposições “muito boa para governar o Brasil” e “faliu uma lojinha de 1,99”, que são positiva e negativa, respectivamente, há também um contraste entre o domínio político e o domínio do mercado e/ou comércio.
Nas opiniões de oposição explícita ou implícita, são necessários dispositivos linguísticos para que exista essa oposição de que uma opinião irônica necessita. Estes dispositivos são itens lexicais que podem coocorrer no mesmo enunciado.
(11) Aumentar impostos é fácil, né?
No exemplo (11), se fosse uma opinião afirmativa, ela poderia ser compreendida como uma oposição implícita ou até mesmo ser entendida em seu sentido literal. Ao transformá-la em uma interrogativa, com o uso do item “né?”, o autor recorre a um dispositivo linguístico retórico, quando uma questão é feita sem a necessidade de obter uma resposta. Neste trabalho, acredita-se que, de uma forma genérica, toda questão retórica é um mecanismo considerado como uma opinião irônica, porque não existe um elemento linguístico evidente que indique a ironia a não ser a própria questão.
É possível observar, com base nos dados desta pesquisa, que as questões retóricas se relacionam mais às ironias implícitas (12,9%), em comparação com as ironias explícitas (4,2%). Esse resultado pode ser explicado pelo fato de que quando o autor de uma opinião utiliza uma questão retórica, ele busca ecoar contextos que não estão necessariamente no texto, como é possível observar no exemplo (12).
(12) Devemos ser grato ao P.T e seus eleitores, não é verdade?
O uso dos diminutivos parece ser um recurso mais evidente em uma opinião irônica. Geralmente, é utilizado para expressar afeto, carinho, intimidade ou outros sentimentos positivos. No entanto, dependendo da sua aplicação na sentença, percebeu-se que foi usado para transmitir um sentido irônico ou sarcástico.
(13) Estão preocupados com o coitadinho do Cunha.
Em (13) sabe-se que Cunha é um político brasileiro envolvido em casos de corrupção. Logo, o uso do termo “coitadinho” não pode ser compreendido como algo positivo, ativando, consequentemente, o sentido irônico.
Outro mecanismo utilizado foram as aspas, comumente empregadas em ambientes virtuais para indicar que aquilo que está sendo dito é uma ironia. Alguns trabalhos para o português (FREITAS et al., 2014; CARVALHO et al., 2009) também salientam o uso das aspas para gerar efeito de ironia.
(14) O PMDB é um partido tão “pequeno” que não consegue ser medíocre!
As aspas são frequentemente usadas para enfatizar um conteúdo, principalmente a polaridade em relação ao resto da sentença. No exemplo (14), o termo “pequeno” não pode ser usado para qualificar o partido PMDB, por exemplo. Isso acontece por ser atualmente o maior partido brasileiro.
Para enfatizar uma opinião, é comum o uso de adjetivos. Apesar disso, muitas vezes os adjetivos podem fazer uma oposição a outro adjetivo (ou a todo um enunciado) de polaridade contrastiva. Alguns adjetivos com alto grau de polaridade, quando usados na mesma sentença, podem ressaltar o sentido irônico de uma opinião, como ocorre em (15).
(15) Nossos políticos corruptos aceitam de bom grado, pois vivemos um momento extraordinário nesse país!!!
No decorrer da análise foi possível observar, ainda, a existência de alguns itens lexicais essenciais para estabelecer a oposição. Esses itens, na maioria das vezes, possuem uma polaridade bem marcada e são restritos a um determinado domínio, mas ativam a ironia do enunciado, sendo classificados como disparadores. Palavras como “corrupção”, “impeachment”, “imposto” quando em contraste com outras palavras ou outro contexto que não seja o político, por exemplo, geram uma sentença irônica.
No exemplo (16), os termos “corrupção” e “campanha” se unem e se opõem com “não é grave”, dando o sentido irônico para a opinião.
(16) Dinheiro de corrupção para financiar campanha de Dilma não é grave.
Em (17), a ironia ocorre na contraposição entre “muito nobres” e “usou dinheiro de corrupção”. Como no exemplo anterior, o termo “corrupção” é considerado um disparador, pois, se houvesse a substituição por outro elemento lexical, como “trabalho”, não seria possível a compreensão irônica do enunciado.
(17) São muito nobres, afinal, a chapa usou dinheiro de corrupção.
O uso da hipérbole ou superlativos pode também ser uma característica para indicar a ironia por meio de exageros, como em (18). Ademais, como pode ser visto em (19), algumas interjeições, principalmente positivas, também podem ser um indicador de ironia.
(18) Belíssimo modelo de ética e moral dos vermelhos chupins.
(19) Viva a decência.
Por fim, (20) exemplifica a representação do riso, muito utilizada em conteúdos gerados por usuários e que pode evidenciar a ironia de uma opinião.
(20) Muito boa essa Data Folha... KKKKK
Todos os recursos linguísticos aqui descritos são evidências encontradas no ComentCorpus, mas que só podem ser analisadas como possíveis indicadores de ironia de acordo com a intuição do leitor, além da coocorrência com outros itens lexicais na estrutura da opinião, pois até o momento não foram testados em Aprendizado de Máquina ou outros métodos computacionais.Todos os recursos linguísticos aqui descritos são evidências encontradas no ComentCorpus, mas que só podem ser analisadas como possíveis indicadores de ironia de acordo com a intuição do leitor, além da coocorrência com outros itens lexicais na estrutura da opinião, pois até o momento não foram testados em Aprendizado de Máquina ou outros métodos computacionais.
4. Conclusões
O presente trabalho procurou estudar e descrever a ironia em um corpus de comentários com o propósito de auxiliar na construção de recursos linguísticos-computacionais para a Mineração de Opinião. Para tanto, foi criado um esquema de anotação para opiniões irônicas de conteúdo gerado por usuários no domínio político que busca esclarecer como é o processo de identificação desses casos e se existem dispositivos linguísticos capazes de facilitar sua detecção. Por meio da análise feita na atual pesquisa, também foi possível identificar características de expressão da ironia no domínio escolhido, como o uso de itens lexicais em um grupo limitado dentro de um contexto – os chamados “disparadores” – e adjetivos com polaridade positiva e negativa, por exemplo.
É pertinente salientar que um dos principais mecanismos encontrados na identificação de ironia são fatores extralinguísticos e sociais intrínsecos a declarações irônicas, que tornam a tarefa de detecção automática desses mecanismos figurados em instâncias bastante complexa, principalmente pela falta dos contextos e informações extralinguísticas. Ainda assim, foi possível observar que o significado de um enunciado irônico pode ser implicado por essas informações pragmáticas, o que suscita a necessidade de realização de referência a eventos e enunciados anteriores ao que se está analisando.
Tendo em vista o desenvolvimento recente das redes sociais e da importância que ganham em nossas vidas, cremos que o desenvolvimento desses recursos continuará sendo uma tarefa importante no campo do PLN e da Mineração de Opinião. Um próximo passo para a continuidade desta pesquisa seria o desenvolvimento de um léxico de sentimentos voltado à mineração de opinião (e de textos) de mídias sociais, integrando interjeições, adjetivos e advérbios altamente polarizados mais frequentes em português do Brasil, e de outros disparadores de ironia para o domínio político.
Avaliação
AVALIADOR 1: Elisa Duarte Teixeira
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3472-3605
FILIAÇÃO: Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.
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AVALIADOR 2: Bruno Neves Rati de Melo Rocha
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7999-1545
FILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Pará, Brasil.
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RODADA 1
AVALIADOR 1
2020-04-14 | 14:31
Artigo relevante, bem fundamentado e, no geral, bem escrito. Algumas sugestões pontuais de revisão estão indicadas no arquivo anexo.
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AVALIADOR 2
2020-05-15 | 07:41
O trabalho apresenta uma contribuição original que visa contribuir para áreas da Linguística cada vez mais relevantes - o Processamento de Linguagem Natural e a Análise de Sentimentos. Ao identificar dois tipos de ironias presentes no corpus de comentários (implícitas e explícitas), bem como os mecanismos linguísticos responsáveis por marcar a ironia explícita, os autores oferecem subsídios para pesquisas futuras que tentem fazer uma deteção automática de enunciados irônicos.Apesar disso, para que o texto possa ser publicado, é necessário que se faça uma revisão ortográfica e textual. Envio em anexo o manuscrito original acrescido das minhas observações para orientar a revisão.
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RODADA 2
AVALIADOR 1
2020-06-18 | 17:22
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AVALIADOR 2
2020-06-19 | 13:14
Os autores alteraram o artigo de maneira satisfatória considerando a maior parte das minhas observações e, em face disso, considero que o artigo está apto a ser publicado.
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RODADA 3
AVALIADOR 1
2020-07-16 14:05
O artigo melhorou bastante com relação à versão anterior, mas ainda vejo problemas. Anotei os mais pontuais no corpo do próprio texto.
De forma geral, fico bastate incomodada com a referência a corpus quando, na verdade, não há nada na fundamentação teórica ou na metodologia de levantamento e análise dos dados que utilize quaisquer das técnicas mais conhecidas da Linguística de Corpus. Mas creio que esta é apenas uma divergência de perspectivas, já que esta é minha principal área de atuação, e não o PLN. Mas, nesse sentido, eu não consigo ver, claramente, quais são as vantagens ou aplicações deste trabalho ao PLN, já que os autores não explicitam, nas conclusões, nenhuma regra bem formalizada de caracterização das ironias que permita sua futura identificação automática. Isto é: se os dados obtidos neste trabalho sobre a caracterização da ironia são suficientes para se fazer algumas generalizações que possibilitem a criação de algoritmos para sua identificação automática em corpora, isto não fica claro, ou bem explicitado no artigo. A própria metodologia de anotação da ironia empregada ainda está descrita de forma confusa, a meu ver.
Acho que uma forma de remediar essa desconexão seria acrescentar à análise dos dados algumas listas (talvez até na forma de apêndice) dos chamados "disparadores" principais identificados, ou dos chamados "adjetivos de alta polarização", ou mesmo das palavras mais recorrentes nessas frases identificadas como irônicas - para que se possa perceber se pertencem a campos semânticos específicos, além do mais óbvio (política). Me refiro a dados visualmete mais palpáveis que mostrem que os resultados levantados permitem generalizações - o que é o objetivo último, creio eu, de se fazer um trabalho assim, para que se possa, depois, empregar essas generalizações em identificadores automáticos de ironia.
Caso contrário, o artigo poderia ser apresentado como um estudo da ironia em comentários de notícias - o que de fato parece ser o caso, mas precisaria de um aporte teórico mais aprofundado sobre o tema, no caso - sem entrar no mérito da construção de corpus ou da aplicação em PLN, pois isso é o que está de fato faltando: fortalecer essa conexão entre o estudo feito, os dados levantados e o propósito e/ou relação com o PLN ou o estudo de corpora.
RODADA 4
AVALIADOR 1
2020-08-28 | 13:49
Me preocupou bastante o fato de a autora (os autores?) terem acrescentado um adjetivo à sentença (15), que claramente não está nos dados de pesquisa (basta ver a versão anterior do artigo e a própria sentença (17), que é idêntica, porém sem o adjetivo "maravilhosa"). Eu havia pontuado, na revisão anterior, que o exemplo (15) não seria pertinente para a descrição que o precede, pois menciona "adjetivos com alto grau de polaridade, quando usados na mesma sentença", e o referido exemplo contém apenas UM adjetivo...
Enfim, o artigo chegou num ponto em que, em minha opinião, está publicável, com exceção de algumas minúsculas alterações que não necessitam minha supervisão (não gostaria de recebê-lo novamente, dou a revisão por encerrada). Mas esse fato que relato aqui para os editores apenas - que eu considerei como uma maquiagem dos dados, que é algo bastante antiético; ou, na melhor das hipóteses, como uma ironia desrespeitosa endereçada à revisora - me preocupou um bocado. Creio que valeria a pena uma palavra com o supervisor e co-autor do artigo.