Introdução
No presente artigo, discutimos trabalhos de pesquisa desenvolvidos no âmbito do Projeto Pró-Aula1, o qual estabelece como objetivo central oferecer contribuições para o ensino e aprendizado dos eixos de Língua Portuguesa (leitura, produção oral e escrita e análise linguística). Essas pesquisas trazem reflexões sobre a forma como o professor de Língua Portuguesa concebe a linguagem e a enunciação dos aprendizes, e de que modo estrutura sua prática, visando à elaboração de propostas de trabalho condizentes com as tendências atuais de compreensão de aprendizado. Os estudos mantêm uma relação entre si, primeiro por buscarem formas de colaborar para práticas pedagógicas mais satisfatórias, na educação básica; segundo por trabalharem sob a égide da mesma perspectiva teórica. E, por fim, conectam-se em função de integrarem uma rede discursiva que explicita a concepção de língua e de ensino vigente no espaço escolar, conforme demonstramos a partir da apreciação do primeiro estudo o qual, entre outras motivações, serviu de base para o desenvolvimento dos demais trabalhos, uma vez que contempla vozes de outras professoras de língua materna, cujas vivências são semelhantes àquelas vivenciadas pelas pesquisadoras.
Uma vez que os estudos embasam-se no mesmo aporte teórico, a teoria dialógica da linguagem, faremos, num primeiro momento, uma abordagem dessa perspectiva teórica. Em seguida, discutiremos a contribuição da análise discursiva para o desenvolvimento das proficiências em leitura e produção discursiva e textual, tendo como foco os estudos em questão.
1. Teoria dialógica da linguagem no ensino e aprendizado de língua portuguesa
Ao pautarmos nosso trabalho pedagógico e de pesquisa na análise do funcionamento social da linguagem, entendemos, forçosamente, que é a atividade humana o nosso foco; é a interação entre os participantes de um “diálogo”. Diálogo, entre aspas, por se tratar na teoria bakhtiniana de um conceito muito mais amplo da palavra que o usual, não remetendo necessariamente a uma conversa face a face, in praesentia.
A palavra alheia é a motivação de todo discurso. O texto que ora escrevemos é motivado por uma série de discursos que norteiam a edificação de tendências pedagógicas, a exemplo de postulados com quais nos deparamos, no entorno acadêmico, sobre as vertentes da linguística funcional; dos discursos produzidos no debate social sobre educação; ou ainda pelo diálogo com nossos próprios discursos, os quais sempre podemos revisitar, com vistas a transformações, ampliações ou para ratificá-los. Há entre os interlocutores de qualquer situação interativa um evento discursivo em foco, sobre o qual se apresentam conjeturas, entendimentos, visões sobre seu feitio, etc. Conforme Voloshinov/Bakhtin (1926, p. 5) “Esses julgamentos e avaliações referem-se a um certo todo dentro do qual o discurso verbal envolve diretamente um evento na vida, e funde-se com este evento, formando uma unidade indissolúvel.”
Para Bakhtin a linguagem tem como característica o plurilinguismo, dado seu caráter heterogêneo. Já o plurilinguismo é constituído pelo dialogismo, que corresponde às inúmeras vozes que entram em relação no processo interacional: “A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo.” (BAKHTIN, 2010b, p. 88). Refletindo o discurso de Bakhtin, Di Fanti (2003) aponta o plurilinguismo e o dialogismo como peculiares ao discurso, em função dos quais a interação discursiva se concretiza.
O plurilingüismo na teoria dialógica do discurso, ao contrário de abordagens conservadoras, não se restringe à diversidade de “línguas nacionais”, mas sim preserva a diversidade de vozes discursivas – posições que constituem o discurso – como característica fundamental para a concepção de linguagem. É o próprio dialogismo incorporado no discurso, a dinâmica entre vozes sociais engendradas em um espaço inter-relacional nos limites de uma “língua nacional”. (DI FANTI, 2003, p. 102).
Conforme a autora, o dialogismo que se encontra subjacente ao plurilinguismo deve ser compreendido como “vozes sociais” e, ainda, como “línguas sociais”, em situações pragmáticas, trazendo em sua constituição “a ambiguidade”, “a polissemia” e “a ideologia” (DI FANTI, 2003, p. 103).
As vozes sociais, oriundas de cada recanto em que o evento discursivo é iluminado, integram sistemas ideológicos, através dos quais são urdidas visões de mundo. Os conflitos de interesses, as aquiescências e as discordâncias geradas em torno de discursos são, na verdade, posicionamentos ou juízo de valor frente às ideologias, sob o qual figura a enunciação. As peculiaridades são inerentes ao discurso por seu caráter ideológico, o qual se entrevê nas interrelações do cotidiano, pautadas a partir da ideologia oficial, implementada pela religião, pela arte, ciência, entre outras instituições. Atribuem-se a essa ideologia as alcunhas de ideologias constituídas, sistemas ideológicos, sistemas ideológicos estabelecidos. (BAKHTIN, [1929], 2006, p. 120-123).
O discurso é dialógico porque responsivo – suscita posicionamentos – e é também remissivo ao discurso de outrem que, a depender da intenção, do conhecimento, da cultura, ou por assim dizer, do “lugar de fala” do locutor, poderá ter facetas iluminadas ou obscurecidas, ampliadas, inovadas, revistas e assim por diante. E é o discurso também ideológico porque não há resposta isenta ou não determinada por esse “lugar de fala”: “A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.” (BAKHTIN, [1929] 2006, p. 34).
No final dos anos de 1990, o governo federal lançou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que figuram como marco de uma nova concepção de ensino e aprendizagem, impulsionada pela chamada “guinada pragmática” (MARCUSCHI, 2008), também denominada “virada pragmática”. Esse advento promoveu um grande debate social sobre o papel do aprendiz e do professor em relação à construção do conhecimento, bem como às possibilidades de transposição didática da produção científica, nos diversos campos do saber. No caso da linguística, estudiosos como Sírio Possenti, Carlos Alberto Faraco, Ingedore Koch, Irandé Antunes, Maria Helena Moura Neves, Angela Kleiman, entre muitos outros, passaram a discutir os avanços científicos e o trabalho com Língua Portuguesa na educação básica, tendo por base as vertentes multidisciplinares da linguística (linguística de texto, análise do discurso, análise da conversação, sociolinguística, psicolinguística, etnografia da comunicação, etnometodologia).
Para Mendes (2008), estudiosa da perspectiva pedagógica que denomina “Abordagem Intercultural”, adotar uma concepção de língua e de ensino integrada com a realidade da atividade humana representa uma singular e importante evolução do processo educacional, humanístico e linguístico, como observamos a seguir.
A sala de aula é o lugar privilegiado, o ambiente no qual essas relações têm lugar, pois é aí onde os conflitos, as tensões e afastamentos (advindos do encontro de diferentes culturas e do embate de aspectos sociais, políticos, psicológicos, afetivos etc.) podem ser negociados em prol da construção de um novo espaço para a edificação de um conhecimento comum, formado pelas contribuições de todos. (MENDES, 2008, p. 58).
A linguística tradicional ou formal não dá conta dos sentidos que as situações pragmáticas imprimem aos enunciados, por excluir da análise o sujeito, o encontro das diversas culturas que, conforme podemos depreender da afirmação de Miotello, contribuem para a expansão do universo semântico da linguagem.
As palavras, nesse sentido, funcionam como agente e memória social, pois uma mesma palavra figura em contextos diversamente orientados. E, já que, por sua ubiquidade, se banham em todos os ambientes sociais, as palavras são tecidas por uma multidão de fios ideológicos, contraditórios entre si, pois frequentaram e se constituíram em todos os campos das relações e dos conflitos sociais. (MIOTELLO, 2005, p. 172).
Em consonância com os posicionamentos discutidos, as pesquisas ora contempladas comportam uma abordagem discursiva da linguagem, sem, no entanto, deixar de apreciar a forma linguística, compreendendo que o exame do sentido não exclui nenhum tipo de análise; ao contrário, enriquece-a. Tomamos o discurso como ponto de partida, avançamos para o sistema linguístico, sem prejuízo da análise discursiva propriamente dita, como bem instrui Bakhtin.
A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes. Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser o seguinte: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual. (BAKHTIN, [1029], 2006, p. 127).
Ao lado da tradicional abordagem da língua como objeto estruturado e estruturante, com a difusão dos PCN, a reestruturação das licenciaturas no início deste século, a intensificação do Programa Nacional do Livro Didático, tudo isso intermediado pelo grande interesse do meio acadêmico pela criação de um novo paradigma educacional, o ensino de línguas passou a ter o processo de leitura e de comunicação oral e escrita como central. Além disso, também o debate em torno da variabilidade da língua passou a ocupar o espaço escolar. No entanto, há ainda hoje muita resistência e falta de entendimento quanto à abordagem linguística que considere a língua um objeto heterogêneo (ANDRADE, 2014). Todavia, entendemos que uma abordagem tradicional não é necessariamente insuficiente para a construção do conhecimento, sobretudo se não reduz a possiblidade de reflexão em torno da diversidade sociolinguística brasileira e, também do preconceito linguístico que paira sobre variedades populares do português.
O trabalho com os eixos da leitura e da produção escrita e mesmo a produção oral é razoavelmente satisfatório, segundo observamos com a análise de livros didáticos e também a partir de um diálogo com professoras da educação básica, mas o ensino de gramática permanece segundo os preceitos da tradição gramatical, em detrimento da tão discutida “reflexão linguística”, que poderia se dar sob a ótica dos elementos discursivos e variáveis da linguagem, como demonstram os estudos em foco.
2. Discurso, sistema linguístico e o processo pedagógico
Nesta seção, abordamos sucintamente os trabalhos de pesquisa voltados para questões de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa, a partir dos quais oferecemos sugestões de ordem prática, que podem ajudar professores/professoras na complexa tarefa de ampliar a competência linguística de seus aprendizes. Mas, antes de darmos início a esta parte da exposição, entendemos ser necessário apresentar a definição da expressão “transposição didática”, que tomamos como ferramenta para tecer nosso trabalho.
Consideremos a explicação dada pelas estudiosas Kleiman e Sepulveda, a seguir.
A passagem, para a escola, do conhecimento produzido pelas ciências, e a transformação sofrida por esse conhecimento durante essa passagem, se chama transposição didática. [...] No caso do ensino de Português, o conhecimento produzido por filólogos e linguistas passaria por um processo de transformação que levasse em conta as necessidades de formação do professor de português e este conhecimento, por sua vez, passaria por outros processos de transformação que levassem em conta os objetivos e necessidades dos alunos na aula de Língua Portuguesa, que envolvem aprender a ler com compreensão, produzir textos em diversos gêneros e refletir sobre a própria língua. (KLEIMAN; SEPULVEDA, 2012, p. 11-12).
Observemos que o processo de transposição didática envolve o “ato responsável” do docente formador e, subsequentemente, do docente da educação básica. “Ato responsável” é um conceito bakhtiniano que se encaixa perfeitamente nesta reflexão, porque diz respeito à forma como nos comprometemos com um evento da vida, sobre o qual exercemos responsabilidade: “A razão teórica em sua totalidade não é senão um momento da razão prática, isto é, da razão decorrente da direção moral de um sujeito único no evento do existir singular.” (BAKHTIN, 2010, p. 59).
2.1. Vozes nem sempre ouvidas – Diálogo de professoras2
Durante o doutorado, entre os anos de 2010 e 2014, visitamos escolas públicas nas cidades de Porto Alegre (RS) e Feira de Santana (BA), a fim de conhecer a repercussão do livro didático produzido nos anos seguintes à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), quando, mediante ação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), a compilação das obras deveria atender a requisitos oficiais e serem submetidas à avaliação, por docentes de instituições de ensino superior.
Acreditando que as professoras sentiam-se favorecidas com o novo perfil de sua principal ferramenta de trabalho, fomos surpreendidas com posições essencialmente contrárias à nossa crença. As professoras fizeram severas críticas ao material e à falta de resposta do PNLD a uma série de demandas: os livros não chegavam com regularidade; nem sempre o material selecionado era o que a escola recebia; o MEC não mantinha um canal de comunicação eficiente com os professores, diretores e coordenadores; a coletânea de leitura, em geral, era incompatível com o nível do estudante; o conteúdo era dissociado da realidade escolar e, por conta disso, entre outras razões secundárias, o livro didático pouco contribuía para uma boa prática pedagógica nessas escolas. Enfatizamos ainda que as críticas eram similares nos dois Estados.
Mediante esse conhecimento panorâmico, concentramos nossa pesquisa de campo numa escola municipal de Feira de Santana, realizando visitas, estudando os dados do IDEB e das avaliações nacionais da escola. Por fim, três professoras concordaram em conversar e permitiram que a nossa conversa fosse gravada.
Com ampla experiência em educação e ainda com uma formação continuada em nível de especialização, essas professoras compartilharam informações muito relevantes para a nossa pesquisa, no que concerne à sua concepção e ensino de língua e sobre o livro didático.
Observando a discrição em relação às participantes, utilizamos os seguintes códigos, em substituição aos seus nomes: as três professoras são identificadas como R3, A2, U1 e a nossa identificação é Doc. Além destes códigos, na transcrição do diálogo aparecem outros, úteis à análise da “entoação”, que é na teoria bakhtiniana um dos aspectos de estabelecimento do sentido do discurso, a saber: palavras grafadas em maiúsculas para demonstrar ênfase, espanto, surpresa etc.; “interf.”, abreviatura de “interferência”; “inin.”, abreviatura de “ininteligível”. Organizamos esta parte em tópicos, com apresentação de trechos da conversa e algumas considerações, o mais sucintamente possível, devido ao limite de páginas deste artigo. Também, por este mesmo motivo, não trazemos neste espaço uma análise da construção composicional dos enunciados, nem elementos de estilo, nem do chamado “gênero de acabamento” (diz respeito a idiossincrasias, marcadores conversacionais, explicitação da relação do locutor com o objeto, entre outros). Para verificação da análise dialógica do discurso de que ora tratamos, sugerimos a leitura de Andrade (2014, p. 99-128).
Vejamos alguns dos tópicos tratados com as professoras da educação básica.
i) O trabalho articulado entre gramática e texto, e da Língua Portuguesa com outras áreas, oferecido pelo livro didático
A interdisciplinaridade é hoje um aspecto da aprendizagem escolar muito propagado e desejável, seja através da articulação entre os pares, seja na prática individual de cada professor, como discutimos em Moura e Andrade (2016). O livro didático deve atender a essa demanda, buscando superar a fragmentação dos saberes, já que o cérebro humano constrói o conhecimento mediante a apreensão do todo. Da mesma forma e, principalmente, devido à indivisibilidade funcional entre aspectos gramaticais e discursivo-textuais, o ensino de gramática não deve se dar alijado da composição textual.
Não é sem razão que a professora R3, a seguir, avalia como positiva a obra que oferece textos relativos ao conhecimento produzido em outras áreas, enquanto que a falta dessa articulação é vista como um fator de insuficiência nos livros. Ela também avalia como insatisfatórios livros que não trabalham a diversificação de gêneros textuais.
R3: “Linha e entrelinha” traz muito gramática e o texto. Valoriza muito tipologias bem diferentes, textuais, você encontra textos de História, Geografia, de Ciências... você diz assim, OLHA!... que casam com as outras disciplinas (enfatizando a diversidade) (interf.: Doc...)
Doc: Interdisciplinaridade...
R3: Interdisciplinaridade. Agora, a “Porta de papel” não. É uma portinha assim bem diferente, viu? Para um ensino tradicional, ela atende a proposta, mas pra nova proposta não! Pra nova não! (enfaticamente).
ii) Da extensão dos textos nas obras didáticas e a compatibilidade com a realidade do estudante
Doc.: E o que você acha dos textos?
A2: Assim, uma característica que eu acho interessante são os textos de apoio, no caso, principalmente, os livros de História, de Geografia e de Ciências... Eles vêm com textos de apoio. Só que o ruim de Português, não falando dos textos de apoio mais, mas do texto a ser trabalhado com o aluno. São textos MUITO extensos (enfatizando)... Em geral são textos MUITO longos (enfatizando)... e eu acho que uma marca negativa nos livros é justamente essa, não considerar que os níveis de aprendizagem são diferenciados, de escola pra escola, de região pra região e a gente tem meninos aqui na 5ª. série que não sabem nem ler nem escrever direito (tom grave), então se considerasse essa diversidade (enfatizando), os textos seriam menores e aí um texto menor daria tanto para o que está num nível mais avançado quanto os que não acompanharem.
É importante notar que a coletânea de leitura é a impulsionadora de todo o aprendizado em Língua Portuguesa e, por isso, a oferta de textos deve ser a mais adequada possível. A entoação enfática empregada pela professora A2, conforme destacamos na transcrição de sua fala, faz sentido devido à imensa relevância dos textos constantes nas obras didáticas.
A2: Então, então... Não consideram a diversidade de contextos, não é? As marcas regionais, é... é como se o aluno não se visse naquilo que ele lê, você não encontra nada que a gente pudesse fazer qualquer alusão à realidade dos alunos ou das vivências dos nossos alunos, são textos extensos, que em geral os alunos não são capazes de ler e que tratam de temas que não são tão atraentes pra eles porque fogem daquilo que eles vivenciam cotidianamente.
Segundo explica A2, alunos com dificuldades de leitura e escrita não são contemplados pelas coleções, devido à falta de correspondência entre os temas propostos nas obras e a realidade do discente, não despertando o seu interesse. E o problema ainda mais se intensifica, se a coletânea de leitura oferece textos muito “extensos”, dificultando o aprendizado daqueles alunos que não têm uma proficiência bem desenvolvida.
iii) Concepção de língua e ensino, na prática docente e no livro didático
Desde a “virada pragmática”, o discurso acadêmico tem se centrado nas alteridades, na diversidade, na inclusão de valores distintos dos estabelecidos pela ideologia constituída. No entanto, no campo das ciências da linguagem, o trabalho parece nunca ser suficiente, pois há uma imensa falta de entendimento das proposições da Linguística para a esfera da educação. Para uma visão realista da situação, acompanhemos os posicionamentos das professoras em relação ao princípio da heterogeneidade da língua, aquilo que norteia e embasa sua prática e como o livro didático se apresenta quanto ao problema.
Doc.: ... A língua como objeto heterogêneo, um conjunto de variedades... Vocês adotam essa perspectiva, de ensinar a língua naquela perspectiva de que não tem erro em língua, que a língua é variável?
R3: Eu estou trabalhando MUITO isso em língua. Eu vou falar a verdade!
Doc.: Fale a verdade, pelo amor de Deus, senão não adianta...
R3: Não é verdade, que por mais que os linguistas falem, né... porque assim, na prática, na prática eu falo assim, no dia a dia, se alguém falar “nós foi”, coisa parecida, a gente não vai... a gente entendeu a mensagem... mas quando eu estou na sala de aula, até pela formação que eu tive...
Doc.: Tradicionalista...
R3: É! E os cursos que a gente vai tomando, a gente vai modificando alguma coisa. O menino fala “nós vai”, eu não digo a ele que ele tá errado. Vamos procurar situações, pelo menos eu faço assim... situações, de textos, ou um filme... que existe uma outra possibilidade de falar daquela forma, agora, na MINHA CASA, eu enquanto pessoa, se falar, eu corto logo, oh, eu digo logo: vai pra onde? (risos). Entendeu? Mas nos outros espaços, eu respeito, não discrimino...
Doc.: Mas você acha que essa é uma atitude só sua, é?...
R3: Não, eu to falando porque... porque assim, os linguistas falam desse jeito, “ah, é porque tem que respeitar a linguagem local.” Temos, sim. Agora quando nós vamos testar o nosso conhecimento em outro espaço, em um concurso público, em qualquer outro concurso, ou numa entrevista, ninguém vai aceitar essa linguagem, ninguém vai dizer: “olha os linguistas hoje estão falando que temos que aceitar a questão da linguagem local.” Ninguém aceita numa entrevista. Quer me dizer que... (inint.) em FALAR BEM e isso corresponde falar bem de acordo à gramática, escrever bem, de acordo à ortografia e à gramática, então na teoria e na fala tudo pode, quando se parte pra escrita ou para uma situação de arranjar um emprego ou você estar diante de uma plateia, as pessoas não aceitam isso.
Doc.: Não adianta, não é?
R3: Então por que fala desse jeito, pro professor fazer desse jeito e na hora, na situação real (ininteligível), não é aceito?
Um dos pontos que consideramos mais marcante nestes enunciados é forma como a professora R3 se posiciona quanto à ideologia constituída, no que tange à necessidade de se trabalhar a linguagem numa perspectiva variacionista, conforme visão prevalente na esfera acadêmica, ou seja, no âmbito ou na instância na qual se produz o discurso da ciência. Um aprofundamento maior no grande debate que se trava a esse respeito demonstraria que não se trata de tentar substituir uma norma por outra ou de simplesmente fazer oposição ao sistema estabelecido de que fora das variedades cultas não existe variedade correta. Enquanto que no bojo da transposição da linguística para o ensino, tentamos buscar formas mais producentes de se utilizar o conteúdo das gramáticas pedagógicas tradicionais, possibilitando que figurem como ponto de chegada da ampliação do vernáculo, por parte do discente, este objetivo central acaba sendo obscurecido nos discursos daqueles que resistem a mudanças. Pensamos que o ato responsável em relação a essa situação é resistir e insistir numa prática pedagógica satisfatória, a qual, conforme mencionamos anteriormente, poderia contemplar com alguma profundidade o plurilinguismo linguístico e social que caracteriza o Brasil.
A resistência em relação ao trabalho com a diversidade linguística, como identificamos no posicionamento das professoras participantes, deve-se à apreensão de que o estudante não assimile a norma culta da linguagem e se torne um sujeito menosprezado socialmente e sem chances de crescimento pessoal e profissional. Implicitamente, essa é uma posição que reflete a ideologia constituída sobre uma formação que priorize a manutenção da visão de mundo preponderante. Entendemos que o não enfrentamento da realidade linguística corresponde a uma pedagogia insatisfatória, uma vez que, ao se obscurecer o plurilinguismo linguístico, se obscurecem, consequentemente, vozes sociais que deveriam participar dos debates que podem contribuir para transformações sociais importantes, a exemplo da redução das desigualdades sociais que atingem, principalmente, sujeitos que têm seu lugar de fala não iluminado.
Doc.: Agora R3, minha pergunta é a seguinte: você acha que as obras de Língua Portuguesa tão trabalhando nesse sentido? De respeitar a diversidade linguística e de adotar, de fato, essa concepção?
R3: Não!
Doc.: Não?
R3: Não, até porque quando tem tirinha, mesmo que tenha Chico Bento, sempre dá um jeitinho de trabalhar, botar entre aspas e colocar como se escreve: “Não precisa escrever da forma não sei o quê...” Eles sempre tão dando uma coisa... (interrupção de U1) “Escreva de acordo aplicando o pronome ou verbo...” Eles vão usar pra isso.
Doc.: Vai trabalhar... usa aquela variedade não culta para trabalhar em conformidade com a culta.
R3: Eles fazem isso no livro. Não sei se vocês perceberam aí... (ininteligível)
U1: Eu acredito assim, que quando a gente tá na discussão da variedade linguística, acho que tá se discutindo em torno do respeito ao outro, respeito à diversidade, respeito à regionalidade... quando se fala em educação formal, na escrita, na leitura o que quer que seja, quando vai se cobrar as avaliações institucionais, tudo é de acordo com A LÍNGUA FORMAL. Então, quando eu falo em respeito e todo o discurso hoje dos linguistas é em torno desse respeito dessa variedade mas tem uma sociedade que vai lá cobrar a linguagem formal!
U1: E a escola tem que atender a essa cobrança social, até porque fala, né, a escola... que educação eu quero, pra que é que a escola tá trabalhando com aquele modelo de educação, pra que modelo de sociedade? Então você só tá lá no discurso e não muda... é tanto que a mudança ortográfica era pra ter sido pra quando? E você vê que tá se protelando porque há toda uma outra discussão sobre essa mudança ortográfica, mas você percebe que não é fácil, não foi fácil tirar alguns acentos, não foi fácil reescrever algumas palavras... imagine, vai ser fácil eu considerar algumas regionalizações e dizer que são formais, a partir daquele momento vão passar a ser formais? Não é simples... então eu acho que já tem sido um avanço a discussão da variedade linguística...
Como resposta, após ter conhecido de perto a recepção do discurso da academia pela comunidade da educação básica, não apenas por intermédio da pesquisa de campo, mas também pela nossa atuação na graduação e na pós-graduação, propusemos o projeto “Pró-Aula”, no âmbito do qual temos implementado pesquisas e planos de intervenção pedagógica, a exemplo dos trabalhos que passamos a abordar a seguir, cuja íntegra encontra-se em Santos (2017) e Silva (2017).
2.2. A gíria nossa de cada dia
A pesquisa que ora discutimos foi produzida entre os anos de 2016 e 2017, a qual resultou na dissertação intitulada “A gíria nossa de cada dia: o uso de gírias por estudantes da EJA em situações interacionais de sala de aula” (SANTOS, 2017). A proposta da pesquisa, seguida de um plano de trabalho pedagógico, surgiu a partir da verificação de que a gíria é um importante recurso linguístico presente na fala de nossos estudantes, inerente ao seu discurso, independentemente da situação: seja em conversas com os colegas, durante apresentação de trabalhos escolares, em diálogos com professores e dirigentes, o estilo não varia. Ocorreu-nos, então que, dada a importância dessa forma de expressão para aquele grupo em especial, seria pertinente realizar um estudo aprofundado do objeto “gíria” e abordar a questão, promovendo situações pedagógicas que focalizassem o fenômeno, de forma a levar os alunos a refletir sobre o tema.
A proposta de intervenção pedagógica foi precedida de uma atividade diagnóstica com vistas à coleta de informações com relação à presença de vocabulário gírio no discurso oral dos alunos. A atividade diagnóstica consistiu na filmagem de uma aula, na qual fizemos um debate em torno do tema “Traição”, esperando que a turma se expressasse de forma espontânea, de modo a coletarmos o vernáculo daquele grupo.
A nossa expectativa foi confirmada e, mediante o estudo do vídeo, foi possível fazermos um levantamento tanto de aspectos discursivos, a propósito da entoação, da alternância dos sujeitos, da forma como o objeto era focalizado, quanto de aspectos linguísticos: a partir da transcrição das enunciações, pudemos quantificar as gírias presentes nos enunciados; analisar o tipo de construção sintática mais suscetível ao emprego desse vocabulário; observar a relação de sinonímia entre os vocábulos gírios e os da variedade culta; e a variação linguística, o que nos possibilitou realizar atividades com objetivos específicos, de forma a propor exercícios que estimulariam a utilização de outros recursos além da gíria.
Com a análise, notamos que os meninos empregavam mais gírias do que as meninas e que as gírias constantes no discurso feminino são mais sutis em comparação às gírias chulas presentes no repertório masculino. Percebemos ainda, durante o processo diagnóstico, atitudes de bullying por parte de alguns alunos em relação a um colega, por sua orientação sexual homossexual, fato que acabou suscitando o tema “Comunidade LGBT” para dar sequência à pesquisa, de forma a discutir uma questão bastante polêmica e socialmente pertinente, sobretudo no espaço de formação intelectual, ética e de respeito ao próximo.
Nossos procedimentos metodológicos organizaram-se sob o modelo de Sequência Expandida, de Cosson (2014), a qual prevê sete etapas que versam sobre decodificação, compreensão e construção de sentidos. Embora esse instrumento tenha sido desenvolvido para estudos literários, adaptamos para o ensino da linguagem, inclusive porque nos utilizamos também do texto literário.
Sob o tema “Comunidade LGBT”, levamos um vídeo em que o então deputado e hoje presidente, Jair Bolsonaro, dialoga com o público jovem em um programa de auditório, expressa sua visão sobre homossexualidade, a partir do que enfocamos não só o conteúdo do discurso (preconceito, conservadorismo, intolerância e outros), como também o estilo, a alusão a outros enunciados, confrontando a posição desse político com o discurso de Jean Wyllys, também ainda deputado, homossexual e ativista da causa LGBT.
Com o cotejo dos discursos e a observação da construção composicional dos gêneros, organizamos um debate, realizando reunião em grupos com três componentes, em espaços diferentes da escola para gravar as discussões. Essas gravações foram transcritas e posteriormente, cada grupo expôs à turma o resultado das discussões, respondendo a questionamentos previamente elaborados e estando atentos ao uso da variedade linguística em função da situação comunicativa. Após as apresentações, os alunos fizeram novamente transcrição, desta feita das apresentações, e compararam com as anteriores, observando a diferença no uso da língua em cada contexto interacional.
Em outro momento, os estudantes participaram de uma mesa-redonda, abordando a Lei Maria da Penha e os Direitos Humanos, temáticas estas escolhidas tanto por sua relevância social, quanto pelo fato de estarem em evidência, requerendo da escola um tratamento adequado dos discursos sobre a visão de mundo que dá suporte ao machismo, ao feminicídio e a outras formas de violência. Além disso, o debate de assuntos sensíveis acaba por suscitar a espontaneidade, favorecendo o uso da variante gíria e o posicionamento crítico, valorativo dos aprendizes, possibilitando focalizar a construção composicional dos enunciados proferidos e os julgamentos evidenciados. De fato, nesse momento, em virtude da defesa de suas posições, observamos a predominância do uso de vocábulos gírios, o que é perfeitamente plausível, visto que o automonitoramento linguístico é quase irrelevante, em contextos de debates acalorados. Mas é importante ressaltar que alguns alunos fizeram observações quanto a esse uso prevalente de gírias, mesmo com instruções para que o coloquialismo fosse evitado. Consideramos também oportuno abordar o movimento de mudança linguística, com a finalidade de aliar a observância do fenômeno da variação e os elementos não estáveis do discurso, que promovem o desenvolvimento dos gêneros discursivos.
Propusemos, assim, a leitura da crônica “Antigamente”, de Carlos Drummond de Andrade (1993), por abordar situações do cotidiano, campo majoritário do vocabulário gírio. E, conforme verificamos anteriormente, na entrevista com as professoras, a coletânea de leitura, incluindo o texto literário é impulsionadora de todo o aprendizado em Língua Portuguesa e, por isso, a oferta de textos deve ser adequada e variada. Ao lado disso, a utilização da crônica objetivou abordar traços discursivos específicos. Como se trata do gênero “crônica”, seria interessante mostrar brevemente o papel da gíria em um texto como esse. Além disso, os alunos deveriam estar atentos às várias possibilidades de uso da língua que sofre mudanças em função não apenas de época, como também de estilo individual, como acontece com expressões gírias.
A princípio, o desconforto foi tão significativo que houve resistência por parte de alguns alunos, que se recusaram a ler, temendo não conseguir pronunciar as palavras de forma correta, por se tratar de vocábulos anacrônicos. Porém, à medida que conseguiam interpretar, sua curiosidade se aguçava e a atividade tornou-se muito interessante, sobretudo porque tomaram conhecimento de gírias antigas e descobriram a importância do uso do dicionário.
O texto de Drummond possibilitou também a realização de um trabalho linguístico muito produtivo, que foi a retextualização (MARCUSCHI, 2010) da crônica, de modo a torná-la mais acessível. A atividade se realizou com a substituição de certas palavras, por expressões mais próximas da atualidade, resguardando-se o sentido. Os discentes foram instruídos a utilizar o gênero de acabamento que preferissem, ou seja, a construção composicional ficou ao gosto de cada grupo, desde que traços peculiares ao gênero fossem mantidos, como a narrativa bem humorada do evento ou em estilo grave, uma certa objetividade linguística, as condições para reflexão sobre o tema.
Muitas outras atividades se fizeram, perfazendo o percurso do discurso ao sistema, com vistas à construção do conhecimento de forma significativa, levando para o espaço da escola uma perspectiva diferenciada de aprendizado de Língua Portuguesa. Nesse sentido, os estudantes tiveram oportunidade de aprender a analisar discursos, refletir sobre sua própria postura em relação ao estudo da língua materna, ponderar sobre seus posicionamentos em torno de fatos polêmicos da sociedade brasileira, além de se compreenderem como aptos a produzirem seus discursos, orais e escritos, sem amarras. Isto pudemos constatar pela forma desenvolta com que produziram raps e poesia, para fechamento do tema Comunidade LGBT. Em suas produções, os alunos empregaram ou não o fenômeno gírio, atentos às diferentes esferas discursivas, nas quais estão inseridos cotidianamente.
Para finalizar, gostaríamos de reiterar alguns aspectos que consideramos importantes. Primeiro é que na produção de rap os alunos demonstraram o próprio estilo, cientes das esferas de uso da variante gíria e outras expressões do cotidiano, usufruindo da língua materna com toda a sua dinamicidade, além de ter compreendido o quão é irrelevante se exaltar com a orientação sexual alheia, enquanto o problema da violência é deixado de lado. Na poesia, os aprendizes apresentaram uma linguagem mais formal, observando o padrão linguístico gramatical. Organizaram o texto em versos e estrofes, ainda que sem rimas, por opção, adotando a ideia de que a convivência com o outro é melhor quando se respeitam as diferenças.
Por fim, ao tomarmos o discurso como ponto de partida, criamos oportunidades para que os estudantes vivenciem situações comunicativas variadas e lidem com a diversidade de linguagens, de valores, de visões que lhes possibilitem desenvolver tanto as proficiências objetivadas com o trabalho da linguagem, quanto a capacidade para refletir criticamente sobre assuntos que se lhes apresentem, em qualquer situação. Voltando-se, sobretudo, para a questão da compreensão no processo interativo, a teoria discursiva dialógica da linguagem considera a variedade de sentidos expressos, nas diversas situações da atividade humana, contribuindo para melhores resultados nas aulas de língua materna.
2.3. A pontuação: operadora sintática, semântica e enunciativa
Dos numerosos aspectos que devem ser observados e aprendidos a respeito da língua, para se desenvolver a competência comunicativa, a pontuação exerce papel crucial, pois é de fundamental importância para a organização e apresentação do texto escrito, além de ser um dos fatores responsáveis pela atribuição de sentidos. Segundo Dahlet (2007), a função primeira da pontuação é dotar o texto escrito de legibilidade, possibilitando a sua compreensão, tanto na leitura silenciosa, quanto na leitura oral. É o que passamos a focalizar, com base na pesquisa por nós realizada, em torno do problema da pontuação em textos de alunos do ensino fundamental (SILVA, 2017). Reiteramos que, conforme disposto na parte teórica deste texto, a abordagem realizada tem como base o discurso, da qual nos apropriamos dos conceitos de gêneros discursivos, enunciação, entoação, construção composicional do texto e estilo, para então chegarmos às especificidades da pontuação.
A pontuação numa perspectiva discursiva nos permite analisar a associação entre o discurso oral e o escrito, que a escola costuma fazer, levando o aluno a se esforçar em reproduzir, na escrita, as pausas e as entonações que são próprias da fala, em detrimento de uma abordagem de aspectos da língua escrita. Dahlet (2002) lembra-nos de que, contrariamente ao oral, que é uma comunicação in situ, o escrito é uma comunicação deslocada no tempo, pois o escritor pode a qualquer momento apagar, transformar o texto, sem que nada apareça na versão final.
A entonação é fundamental para a constituição de sentidos dos enunciados, pois ela oferece indícios sobre o pensamento e posicionamento do sujeito. Qualquer palavra pronunciada de maneira expressiva e dentro de um contexto é um enunciado. A entonação é um elemento constitutivo da linguagem, pois é por meio dela que o discurso entra em contato com a vida, com os sujeitos. Quando se trata do texto escrito, o contexto entonacional extratextual, como defende Bakhtin (2011), se realiza parcialmente no processo de leitura. Tanto o oral, quanto o escrito precisam de algo que delimite as posições dos elementos nos enunciados. Na oralidade, a entonação se encarrega dessa função e, na escrita, os sinais de pontuação tentam recuperá-la, mesmo que de forma imperfeita.
É imprescindível termos em mente que os recursos da escrita diferem dos recursos da fala e assim melhor contribuir para o aprendizado desse tópico. A pontuação abarca tanto a produção, quanto a recepção de textos, contribuindo para a legibilidade, a constituição de sentido e para a compreensão das várias possibilidades de relações dialógicas entre os enunciados, manifestando-se no nível da palavra, da frase e do texto.
[...] na verdade, todos os sinais de pontuação, em todos os níveis (de palavra, de frase ou de texto) trazem consigo uma dimensão enunciativa. Isso mostra que o sentido se constrói em situação (in situ), quer dizer, à medida que a comunicação se elabora como tal. Em guisa de contra modelo ao critério da norma, uma análise do processamento argumentativo de vários sinais de pontuação ilustra a maneira como a pontuação participa do sentido em elaboração no ato de comunicação escrita. (DAHLET, 2006, p. 25-26).
Ao se pontuar um texto, um aspecto inerente da linguagem fica evidenciado: a sua dialogia. Pontuamos um texto justamente por acreditar na existência de um leitor, havendo uma grande flutuação ou liberdade para pontuar. No entanto, as decisões dependem do domínio ou competência do usuário para refletir sobre a estruturação do texto e sobre a relação entre as diversas partes que o compõem, estando essas flutuações, também, amarradas às características dos gêneros discursivos.
Com o objetivo de desenvolver atividades que levassem os alunos a reconhecer a importância dos sinais de pontuação para a organização textual, de modo a perceberem os diferentes efeitos de sentido atrelados aos seus discursos, aperfeiçoando, assim, as habilidades de ler, compreender e produzir textos, aplicamos uma proposta de intervenção pedagógica, em uma turma de 7º ano, em Xique-Xique, Bahia, em 2017.
A metodologia utilizada apresenta a perspectiva da pesquisa-ação, pois esse tipo de pesquisa permite que, depois da detecção do problema, trace-se um plano de ação para modificar a realidade encontrada. Optamos pelo procedimento da sequência didática, que foi desenvolvida em 29 horas/aula. Adotamos uma abordagem qualitativa, em que a análise dos dados foi realizada por meio da observação e da leitura dos textos produzidos.
Ao elaborarmos a proposta de intervenção pedagógica numa perspectiva discursiva da linguagem, à luz da concepção de Bakhtin e seu Círculo, defendemos o uso dos gêneros do discurso como norteadores das atividades. Bakhtin (2010, p. 71) define o discurso como um “[...] fenômeno social – social em todas as esferas da sua existência e em todos os seus momentos – desde a imagem sonora até os estratos semânticos mais abstratos.” Em se tratando de “palavra viva”, o discurso constitui-se na interação entre os falantes numa situação de comunicação por meio de enunciados, que são as unidades mínimas da construção discursiva.
A partir do gênero fábula, primeiro tradicional, depois contemporânea, várias atividades foram propostas com a finalidade de, gradualmente, permitir a consolidação dos conhecimentos sobre os conteúdos trabalhados. Por ser uma narrativa simples, de linguagem acessível aos alunos, acreditamos que a fábula pode ser um bom ponto de partida para um trabalho reflexivo sobre a pontuação. E, ainda, por se tratar de um gênero discursivo bastante escolarizado, já conhecido, se não por todos, pela maioria dos alunos, propicia boas condições para desenvolvermos atividades sobre sua estrutura organizacional, para que eles percebam como os sinais de pontuação são importantes na construção composicional do discurso. Dessa forma, as histórias que foram trabalhadas discutem questões atuais, a exemplo da preservação do meio ambiente e responsabilidade para com os próprios atos, a fim de direcionar o leitor para um novo posicionamento diante de certas atitudes ou crenças, além de, por sua composição textual, possibilitar uma abordagem diversificada dos sinais de pontuação, o que facilita a aprendizagem.
Como ilustração, passemos ao relato de algumas ações desenvolvidas durante a intervenção pedagógica, o conteúdo discursivo e formal trabalhado, procedimentos e objetivos das ações.
Utilizamos como instrumento pedagógico de leitura e análises discursivas o livro “30 fábulas contemporâneas para crianças”, do escritor Sérgio Capparelli (2008). Depois de apresentar a obra e a biografia do autor, fizemos um levantamento prévio daquilo que os alunos sabiam sobre o gênero discursivo fábula, propusemos a realização de uma pesquisa e discutimos o gênero, estabelecendo os fios dialógicos entre a tradição cultural e literária e a contemporaneidade, os aspectos composicionais, os elementos estáveis do gênero, as mudanças observáveis entre fábulas tradicionais e contemporâneas, tanto de aspectos discursivos, a propósito do caráter ideológico das narrativas, como na estrutura organizacional dos textos.
O fenômeno gramatical e discursivo da pontuação foi introduzido na intervenção por intermédio de uma das fábulas do livro, de cujo texto retiramos os sinais de pontuação, as letras maiúsculas de início de frases e parágrafos e ainda as alíneas. Esse texto foi oferecido para leitura, de modo a perceberem a importância dos sinais de pontuação na construção discursiva. Em seguida, propusemos a reescrita da fábula, em dupla, tentando pontuá-la. Fizemos posteriormente a exposição da fábula, em slide devidamente digitada e pontuada para os alunos compararem a pontuação. Essa atividade possibilitou o estudo do enunciado e a sua diferenciação da frase e também a observação de alternância dos sujeitos do discurso, demonstrando a articulação entre sentido do enunciado e a interlocução entre os participantes do evento discursivo, bem como a relevância do sinais gráficos de pontuação na organização enunciativa e narrativa.
As atividades de produção textual individuais se realizaram por meio de recontação, por escrito, de fábulas ouvidas, com as quais intercalávamos atividades de revisão de texto, em dupla; atividades de retextualização, intercambiando a posição discursiva de personagens, de modo a se inverterem perspectivas e visões de mundo; discussão coletiva e em dupla de aspectos da pontuação na organização textual, assim como para a atribuição de sentidos; atividades de análise do texto escrito, observando aspectos ortográficos, semânticos e gramaticais, incluindo a pontuação, reescrevendo-o para ser organizado em um livro.
Ao confrontarmos produções textuais anteriores ao projeto de intervenção, com as produções realizadas durante a intervenção, percebemos que, de um modo geral, houve um aumento no uso dos sinais de pontuação. A pouca ou a não ocorrência de certos sinais tem muito a ver com o gênero discursivo abordado. No nosso caso, os principais sinais que normalmente são empregados nas fábulas apareceram adequadamente empregados, como os dois-pontos e o travessão. Consequentemente, houve também avanços no nível de textualidade de algumas produções, bem como um amadurecimento na discussão de temas ensejados pelas leituras, debates e reunião de pares. Mediante esse desenvolvimento observado no aprendizado da leitura e da produção discursiva, reiteramos que as situações de aprendizagem devem permitir a reflexão sobre o uso da língua, tendo em vista o seu caráter discursivo e enunciativo. Isso só é possível, se considerarmos que nos constituímos como sujeitos, pensantes e atuantes, por meio da interação com os outros falantes, em situações sociocomunicativas intencionais e reais.
3. Conclusão
Nesta exposição fizemos reflexões sobre alguns problemas que se apresentam, há anos, ao ensino e aprendizado de língua materna, indicando sugestões de uma prática pedagógica pautada na interlocução discursiva, a partir dos dados de três pesquisas voltadas para este objeto.
Por estarem atrelados ao mesmo projeto de pesquisa (Pró-Aula), os trabalhos apreciados mantêm uma conexão entre si e, por isso, organizamos esta discussão seguindo a cronologia de realização das pesquisas. O primeiro relato esboça importantes posicionamentos de professoras da rede pública de ensino, posições estas que figuram nos bastidores da educação básica e que pouco são levadas em conta quando da implementação de políticas públicas, como a do PNLD e também na discussão que se faz no meio acadêmico.
Na sequência, o texto apresenta as sugestões pedagógicas, que tomam o discurso como marco para o estudo da linguagem, contidas em dois trabalhos baseados na pesquisa-ação. Tais estudos buscam demonstrar, na prática, possiblidades de se desenvolver as aulas de Língua Portuguesa, partindo de enunciados produzidos no entorno social e subsequentemente chegando ao sistema linguístico, através de uma abordagem reflexiva do texto e da gramática, embasada na produção oral e escrita do estudante.
Trabalhos dessa natureza, que se voltam para a atividade humana, extrapolando os limites do convencional e/ou conveniente, são laboriosos e exigem estudo, análise e tempo de dedicação, mas não são impossíveis de serem realizados. Conforme demonstramos, trata-se de uma atitude responsável.
Avaliação
AVALIADOR 1: Fabiana Esteves Neves
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3724-221X
FILIAÇÃO: Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil.
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AVALIADOR 2: Fabiana Giovani
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5887-1058
FILIAÇÃO: Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, Brasil.
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AVALIADOR 3: Luciane Guimaraes de Paula
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1727-0376
FILIAÇÃO: Universidade Federal de Goiás, Goiás, Brasil.
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RODADA 1
AVALIADOR 1
2020-05-03 | 09:04
O relato de pesquisa apresenta três investigações relevantes para o ensino da língua portuguesa na educação básica. Porém, sugiro enunciar mais claramente a conexão entre as conclusões da primeira pesquisa e as das outras duas (e, se não for o caso, sinalizar isso explicitamente). O resumo sintetiza adequadamente o conteúdo do artigo. Também a fundamentação teórica é apropriada para os objetivos pretendidos.
Já as atividades descritas requerem alguns ajustes, necessários para explicar relações entre partes do texto e esclarecer alguns pontos focais, a fim de aprimorar a exposição e possibilitar maior aproveitamento pelo leitor, que não vivenciou as experiências relatadas. Para isso, no arquivo anexo, foram feitos comentários em balões, identificando os ajustes necessários e fazendo menção a outras partes do artigo; em verde, estão marcados os trechos que são citados nesses comentários. Marcados em amarelo estão os trechos que precisam de revisão linguística (duas correções desse tipo foram acrescentadas em vermelho). As alterações aqui requeridas e detalhadas são fundamentais para adequar o artigo à publicação.
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AVALIADOR 2
2020-06-13 | 05:53
O artigo em análise traz uma temática importante, mas apresenta senões que serão apresentados a seguir:
- O título não tem relação com o conteúdo do texto desenvolvido. As autoras não explicitam e não desenvolvem a questão das habilidades e competências.
- Há a apresentação de partes de três pesquisas, mas falta coesão entre elas. É preciso delimitar um fio condutor que ligue as três propostas.
- Toca-se na questão da transposição didática, mas a ideia não é retomada no texto.
- Há problemas conceituais. Gêneros discursivos e gêneros textuais são de ordem diferentes. As autoras utilizam a expressão 'gêneros discursivos textuais'.
- Há uso indiscriminado de 'ensino e aprendizado' e 'ensino e aprendizagem'. O que as autoras compreender por isso?
- O que "DO DISCURSO AO SISTEMA LINGUÍSTICO E DE VOLTA AO DISCURSO" do título tem relação com o relato de três pequisas? Não há uma retomada nas considerações finais.
- Ainda que o gênero do texto seja 'relato de pesquisa' falta uma coerência entre as pesquisas apresentadas de modo a formar um todo com sentido. No ínicio do texto, as autoras falam que vão 'discutir três trabalhos de pesquisa', mas o que fazem são falar resumidamente sobre eles, sem relacioná-los entre si.
- Em outro momento do texto, as autoras dizem que dos exemplos 'a partir dos quais oferecemos sugestões de ordem prática, que podem ajudar professores/professoras na complexa tarefa de ampliar a competência linguística de seus aprendizes. O relato não configura-se como sugestão.
- O item Discurso, sistema linguístico e o processo pedagógico não apresenta relação entre título e conteúdo.
- Fala-se dos PCN's, mas não se fala sobre a BNCC novo documento oficial orientador do ensino de língua que apresenta a questão das habilidades e competências. Tema expresso pelas autoras no título.
- Há problemas gramaticais no texto.
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RODADA 2
AVALIADOR 1
2020-06-30 | 19:40
A maior parte das alterações foi feita adequadamente, o que conferiu mais organicidade ao artigo. No arquivo anexo, apenas indiquei algumas adequações linguísticas e fiz um comentário.
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AVALIADOR 3
2020-07-21 | 14:28
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RODADA 3
AVALIADOR 1
2020-08-11 | 14:11
De modo geral, as orientações anteriores foram seguidas adequadamente. Houve apenas um problema: um dos meus comentários foi incluído no artigo, quando, na verdade, ele consistia em uma orientação para que as autoras alterassem o texto. O arquivo anexo contém a observação desse trecho e outras pequenas correções que passaram despercebidas (a revisão de texto é um trabalho sem fim... os erros de digitação se escondem e só aparecem depois de publicado o material!)
Depois de feitos os ajustes, não é neces´sario enviar de novo o arquivo para mais uma revisão; ele já pode ser publicado.
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AVALIADOR 3
2020-07-27 | 16:47
O artigo, de temática relevante, apresenta uma discussão voltada às questões de ensino-aprendizagem de LP (Língua Portuguesa do Brasil) ou LM (Língua Materna) na educação básica, fundamentado nos estudos bakhtinianos, a partir de 3 pesquisas realizadas. O texto demanda aprofundamento e explicitação teórica e metodológica, bem como análise dos dados e, principalmente, a revisão de uma unidade ao artigo, conforme os comentários realizados ao longo do texto (enviado, em anexo). Não há, metodologicamente, explicitação de critérios para a escolha dos textos utilizados nas atividades realizadas, assim como a explicitação acerca das noções teóricas que embasam a reflexão podem ser ditas desde o início do texto e ainda a justificativa do estudo (talvez, pela pressuposição de sua relevância) precisa ser mais evidenciada. O objetivo do trabalho está formulado e desenvolvido. Do ponto de vista formal e normativo, o trabalho está bem redigido e merece uma revisão rápida. Acatadas as modificações sugeridas, o artigo está aprovado e pode ser publicado.
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RODADA 4
AVALIADOR 3
2020-10-09 | 17:40
O artigo apresenta título condizente, resumo claro, com fundamentação teórica e se caracteriza como relato de uma experiência interventiva de ensino-aprendizagem de LP (Língua Portuguesa do Brasil) na educação básica. O texto foi bastante modificado na revisão feita, com aprofundamento teórico-analítico e reestruturação da unidade do artigo, atendendo às sugestões feitas. A justificativa do estudo foi melhor evidenciada, o que enriqueceu o trabalho apresentado e o objetivo formulado foi desenvolvido. Do ponto de vista normativo, o trabalho está bem redigido e merece ainda uma útlima revisão rápida para supressão de repetições e extinção de gerúndios desnecessários. A reflexão apresentada é relevante e as alterações realizadas foram substanciais e significativas. O artigo está aprovado e pode ser publicado.