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Experience Report

The corpora of the PHPB-Project: some old & new recipes for doing semantics with them

Rodolfo Ilari

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https://orcid.org/0000-0002-9474-8655


Keywords

Historical Linguistics
Historical Semantics
Brazilian Portuguese
Projeto de Historia do Português Brasileiro

Abstract

In this paper, I recall my past experience of reading in a semantic perspective a sample of the corpora assembled by the Project for the History of Brazilian Portuguese. In the course of this analysis, I realised how poor is the idea that any difficulty we feel while reading old texts of our language is due to changes in meaning. I also realised that our analytical tools must be refined in various ways, and that our explanations must be checked carefully against  an usually complex  historical and linguistic background.

Introdução

Como professor da Unicamp, falei com alguma frequência a um público parcialmente desconhecido, e o fiz às vezes contando o que eu andava remoendo naqueles dias. Vou fazer algo parecido hoje, sem a pretensão de dizer grandes verdades, e pedindo desculpas de antemão aos que ficarem comigo nesta “Abralin ao vivo”, se por acaso a conversa for pouco interessante.

Pretendo refletir sobre a experiência que vivi há dois ou três anos, de voltar a fazer semântica diacrônica no contexto do Projeto de História do Português Brasileiro.

Vou começar falando da Linguística Diacrônica, de seu passado mais do que glorioso, de sua morte e de seu renascimento das cinzas; falo em seguida de algumas leituras em semântica diacrônica que me marcaram nos anos de formação; e finalmente conto o que foi para mim o drama de escrever um capítulo sobre a história semântica do português brasileiro. Espero não ser muito confuso. Em várias décadas de ensino, sempre me esforcei para explicar as coisas com clareza, mas o melhor que consegui foi o elogio de um aluno querido, hoje professor na UFPR, que sempre me animava dizendo que, nessa parte da clareza, eu tinha melhorado. Infelizmente, sou obrigado a reconhecer que, depois que me aposentei tudo piorou.

1. A Linguística Diacrônica, em três momentos

Na USP dos anos 60, como aluno de graduação, ainda conheci a linguística diacrônica que vinha do século XIX. A disciplina de Filologia Portuguesa nos oferecia então um aprendizado de gramática histórica do português bem diferente da análise sintática que havíamos conhecido no colégio. Líamos versões medievais de vidas de santos, que teríamos de traduzir para o português moderno, acompanhando-as de explicações etimológicas (exemplo: teríamos que explicar que o baculum em que se apoiava São Bernardo era um bastão e não qualquer outra coisa). Naquela época as universidades de menor prestígio ensinavam uma análise sintática bem tradicional, que aplicava a Camões e ao Padre Vieira distinções sibilinas como a do adjunto adnominal e do complemento nominal; no confronto, a gramática histórica da USP cercava-se de uma aura mais “científica”, e representava o estudo da língua no nível superior por excelência.

Mas em meados da década de 1960 a Linguística Diacrônica entra numa fase de maré baixa e acaba sendo marginalizada, devido à concorrência de teorias mais “modernas” e mais atraentes. Entre essas teorias estão:

(1) Saussure e o estruturalismo

· Os autores que tiveram influência na implantação do estruturalismo em São Paulo foram sobretudo franceses: Greimas, Pottier, Todorov, Barthes...

· O estruturalismo trazia consigo não só muitos nomes em –ema, mas também a ideia de que a língua tem que ser estudada como sistema, ou seja, em sincronia.

(2) Chomsky e o gerativismo

As primeiras gramáticas chomskianas viam a língua como um sistema formal semelhante aos da lógica: tratava-se de encontrar para qualquer língua as regras de formação que, aplicadas a seu léxico, “gerariam” todas e somente as sentenças bem formadas. Também nesse programa, não entrava a história.

Essas ideias tiveram uma repercussão fortíssima sobre os nossos estudiosos da linguagem; rapidamente, levaram a colocar no lugar do filólogo um outro tipo de profissional, o linguista, que se declarava olimpicamente desinteressado pelo passado da língua (nem tudo foi ruim nessa nova postura; ela levou, por exemplo, a olhar para a língua falada como uma realidade sistemática, não como uma balbúrdia degenerada).

Muita coisa mudou, é claro, em relação ao panorama dos anos 1960: a linguística brasileira, como sempre aberta as influências estrangeiras, segue outras orientações:

· praticamente não se fala mais em estruturalismo;

· o gerativismo conheceu renovações constantes, fez escola e passou a ocupar-se por as- pectos da língua que, num primeiro momento, havia desconsiderado (um deles, a semân- tica); também criou interfaces, uma das quais, no Brasil, foi com a sociolinguística;

· em oposição ao gerativismo, surgiram várias orientações funcionalistas;

· firmou-se uma linguística de corpus consistente, e grandes repertórios de dados foram sendo reunidos sobre o português dos dois lados do Atlântico (no Brasil: o Tycho Brahe, os corpora do NURC e os corpora do PHPB; em Portugal: o Floresta Sintática, e vários outros reunidos no Linguateca, para citar só alguns).

A verdade é que, embora tenha deixado de ser a orientação majoritária dos pesquisadores brasileiros, a linguística diacrônica nunca foi totalmente abandonada. Por exemplo, dois grandes nomes de linguistas que se mantiveram investigando a história da língua nas últimas décadas são Rosa Virgínia Mattos e Silva e Mary Kato. E a linguística diacrônica está vivendo ultimamente um retorno significativo, impulsionada por vários fatores, entre os quais:

· o velho drama da busca de uma identidade para a variedade brasileira da língua por- tuguesa em face da variedade europeia: desde o século XIX, muitos autores partem do princípio de que o português americano e o português europeu diferem porque sofre- ram evoluções diferenciadas, inclusive do ponto de vista semântico, e investem na des- crição dessa evolução; um modo de adotar esse caminho consiste em identificar os “idiotismos” do PB e recuperar sua história;

· a circulação de teorias formalizadas que partem da semântica sincrônica para analisar a mudança semântica (por exemplo, as teorias da gramaticalização);

· a montagem de grandes acervos que documentam a língua escrita no Brasil desde o tempo da colônia até os dias atuais;

· os projetos temáticos ligados ao nome do prof. Ataliba Teixeira de Castilho, como o Português Caipira e o PHPB, que tiveram o efeito de dirigir as atenções para a neces- sidade de descrever a história do português brasileiro, e que estimularam projetos aná- logos, em cascata.

2. Minhas incursões pela linguística diacrônica são, em sua maioria antigas

Guardo lembranças marcantes do curso de letras na USP dos anos ’60:

(a) as etimologias que o Prof. Lauro Mistura entremeava a suas aulas de tradução de Ca- tulo – essas etimologias me impressionavam pela sagacidade com que os romanos ti- ravam palavras abstratas de experiências concretas (exemplo: na palavra equilibrium, estão presentes as raízes do verbo labor, laberis, lapsus sum, labi “cair”, e de aequor, aequoris, que se refere à a linha do horizonte, no mar, onde não há nunca desníveis);

(b) os cursos de linguística, ministrados na USP pelos professores Theodoro Henrique mau- rer Jr. e Isaac Nicolau Salum;

(c) na UNICAMP como professor, respondi quase sempre pela disciplina “Linguística Ro- mânica”, e escrevi um livro com esse mesmo nome que passou por duas editoras e por várias reimpressões, algumas das quais piratas;

Já aposentado havia mais de 15 anos, recebi o convite do Prof. Ataliba Castilho para organizar um volume sobre semântica diacrônica do PB. Resisti por vários anos a esse con- vite, mas por fim venci o medo e a preguiça, aceitei (com o amigo Ataliba nunca tem jeito) e me vi envolvido, junto com meu antigo aluno Renato Basso, hoje professor na Federal de São Carlos, na tarefa de coordenar uma equipe, que produziria um volume coletivo sobre o tema; nessa obra coletiva, também me comprometi a escrever um capítulo. O livro acabou saindo no começo deste ano, com o título Semântica diacrônica do português brasileiro; contém 12 capítulos, um dos quais é o meu, que tem por título “Ruídos semânticos na leitura dos documentos antigos do PB”. Nesta fala, pretendo restringir minha exposição aos pro- blemas que enfrentei na elaboração desse capítulo, o que já está de bom tamanho, e co- meço dizendo que, como costuma acontecer na maioria dos empreendimentos humanos, eu me achei menos mal preparado quando tudo terminou do que no início. Isso se deveu, entre outras coisas, a uma velha dúvida, que pode ser resumida na pergunta:

3. O que vem a ser mudança de sentido? Afinal, o que é uma “mudança semântica”?

Muitos linguistas se fizeram essa pergunta no passado, e suas respostas continuam úteis. Cito, dentre os muitos, dois autores cuja leitura me marcou desde cedo:

· um deles é Stephen Ullmann, autor de uma Semântica que circulou antes da virada em favor do estruturalismo e do gerativismo, e que tem um capítulo denso sobre mudança;

· o outro é o francês Antoine Meillet, cuja obra Como as palavras mudam de sentido (1915-16) ganhou recentemente uma tradução brasileira excepcionalmente cuidadosa. Meillet foi um dos primeiros autores a ver na negação do francês o resultado de um fenômeno de gramaticalização, e é frequentemente citado como o pai dessa noção; mas, como no caso de Ullmann, as mudanças semânticas por ele estudadas formam uma lista bastante variada. E não poderia ser de outro modo, porque as mudanças de sentido que ocorrem na língua seguem os caminhos mais disparatados.

Justifico a afirmação de que as mudanças semânticas são de vários tipos, lembrando que há mudanças que podem afetar unidades, mas também construções:

· no primeiro conjunto (unidades) estão não só palavras completas, mas também unidades sub-lexicais, por exemplo morfemas: Oliveira (2020) estuda a trajetória do sufixo –o desde sua dupla origem latina (investigada pelo grande romanista Jakov Malkiel) até o português de hoje, onde, em acréscimo ao sentidos antigos de “aumentativo expressivo” (como em mulheraço, golaço) ou de “golpe dado usando um certo tipo de objeto como arma” (como em chicotaço) passou a significar também um certo tipo de protesto (há alguns anos, panelaço e apitaço, mas hoje também beijaço, abraçaço etc.);

· no segundo conjunto (o das construções), podemos incluir desde a gramaticalização de perífrases até mudanças da regência verbal que revelam uma reinterpretação; um exemplo clássico de gramaticalização de perífrase é a que fez de estar + gerúndio um auxiliar que indica ação em desenvolvimento (tipo: estou chegando), a partir de locu- ções nas quais estar era um verbo de sentido pleno, que significava “estar de pé / estar parado”; nessa fase mais antiga da língua, o gerúndio atribuía ao sujeito uma ação si- multânea ao fato de estar de pé ou parado (tipo ele está na porta do templo cuidando para que ninguém entre). O melhor exemplo de como a mudança da regência verbal pode revelar uma reinterpretação sempre foi para mim a que afetou o verbo esquecer, cuja história é uma sequência de reinterpretações: em esqueceu-me o livro (a constru- ção ainda encontrada em Machado de Assis), o sujeito do verbo era a coisa que foi es- quecida e o indivíduo distraído que a esqueceu era tratado como um “beneficiário” (fa- lar de beneficiário aqui é piada, porque quem esquece é geralmente um azarado – eu que o diga, que vivia esquecendo a chave de meu fusca dentro do carro fechado, era obrigado a dar socos na porta para soltar a trava, e fui interpelado várias vezes pela polícia do campus por isso). Etimologicamente, esquecer é um descendente do verbo cadĕre, “cair” ou mais precisamente de seu frequentativo ex+cad+escĕre, que também significava “cair”, “escapar”, “fugir” (até hoje dizemos “me foge o nome dessa rua”), e a mudança de construção pode significar que o verbo deixou de ser entendido como um verbo de movimento para o tornar-se um verbo psicológico (como amar etc.) ou de co- nhecimento (como saber).

4. Por que os sentidos mudam?

Tão importante quanto entender como os sentidos mudam, seria entender por que os sen- tidos mudam.

No passado, apontou-se como uma das principais causas das mudanças semânticas a busca da “expressividade” ou “afetividade”. O exemplo mais citado era então o da pa- lavra latina testa, que indicou, originalmente o “casco da tartaruga”, e depois qualquer vaso de barro ou moringa da cor do casco da tartaruga. Em algum momento, alguém deve ter achado engraçado representar a cabeça dos desafetos como uma moringa de terracota, a patuleia gostou da ideia e assim testa acabou por substituir caput com o sentido de “cabeça”. É por isso que o italiano e o francês chamam a parte do corpo que fica acima do pescoço de testa e tête, respectivamente (ao passo que as línguas da Península Ibérica, mais conservadoras, retiveram com esse sentido cabeça, que é um de- rivado de caput, via capitia).

A busca da afetividade não terminou com testa, tête, ou cabeça: um italiano que tenha problemas de dinheiro não pára de “grattarsi la zucca” (literalmente: coçar a abóbora), um francês sem ideias é quelqu’un qui n’a rien dans la citrouille (literalmente: alguém que não tem nada na abóbora), o que mostra que testa e tête, como nomes da cabeça, perderam sua expressividade original, abrindo o caminho para novas maneiras de representar o “coco” das pessoas. Quanto aos brasileiros, eles têm – além de “coco” – a opção de dizer ao colega “não esquente a moringa”, recuperando – quem diria – a velha imagem do vaso de barro lançada pelo latim vulgar.

A busca da expressividade/afetividade continua sendo um dos grandes motores da mudança de sentido, e gera ciclos nos quais se produzem inovações impactantes que rapi- damente se desgastam, abrindo espaço para a busca de novas soluções de impacto (quem quiser um exemplo, pode pensar nos vários nomes que já foram dados ao dinheiro, na lin- guagem familiar, e em como alguns desses nomes soam hoje antiquados e inexpressivos). Mas é importante lembrar que sempre houve mudanças e inovações semânticas que pouco tinham a ver com expressividade, e nesse caso estão as criações verbais que resolvem os problemas de denominação criados pela assimilação de novas tecnológicas, de novos há- bitos, valores ou modas. Cito, dois exemplos:

· Meu primeiro exemplo refere-se à expressão “indústria agrícola”: As palavras indústria e agrícola apareciam juntas no título de uma notícia de jornal da região de Campinas do final do século XIX, que um colega historiador tinha descoberto num arquivo da ci- dade. Esse colega julgou necessário recorrer a um linguista para interpretar correta- mente a notícia, porque, para ele, a expressão indústria agrícola era contraditória, e tornava incompreensível o artigo como um todo. Não há contradição nenhuma na ex- pressão indústria agrícola, se pensarmos que indústria significa, na origem, qualquer coisa como “atividade produtiva”; o artigo de jornal, velho então já de mais de meio século, tinha como referência um quadro das atividades produtivas anterior à industri- alização do século XX. Hoje, quem ouve ou lê a expressão “indústria agrícola” pensa provavelmente nas fábricas que produzem as máquinas utilizadas pelos agricultores, acepção que encontramos, por exemplo nos seguinte trecho de uma página da internet: “Indústria agrícola Neugart: Transmissões para maquinaria agrícola. A agricultura muito tempo que chegou à alta tecnologia. Grandes máquinas de colheita circulam pelos campos, e mesmo na sementeiras ou adubagem, ao alimentar ou ordenhar ani- mais, é necessária tecnologia que se espera seja especialmente resistente e durável (https://www.neugart.com/pt-br soluções/setoriais/industria-agricola”) (devo o exem- plo ao revisor anônimo que leu e comentou este escrito).

· Meu segundo exemplo é um trecho do capítulo de A língua portuguesa no Brasil, em que o africanista Jacques Raimundo descreve a criação de palavras que acompanhou a implantação da indústria açucareira no nordeste brasileiro. Transcrevo um trecho longo desse capítulo, porque além de tudo é gostoso de se ler:

A morada do sesmeiro, a casa-grande, de aspecto solarengo, sombria e acaçapada, à frente ou ao lado alargava-se num telheiro espaçoso sobre grossas colunas ou balaustradas: era a va- randa; mas teve logo outro nome que se recolheu ao gentio: copiar ou copiá. Esta mesma palavra serviu ainda a designar uma sorte de capélio ou caramanchão, coberto de latadas floridas. O aumento da criadagem, em geral moleques ou mucamas, muita vez exigiu que se estendesse a casa solarenga para trás, e à nova construção chamou-se puxado. Fizera-se do particípio pas- sivo um substantivo, emprestando-se-lhe uma significação desconhecida em Portugal. Engenho, a máquina ou maquinismo que se inventou a fim de beneficiar uma indústria, passou a designar o estabelecimento em que se cultivava a cana e se fabricava o açúcar; engenheiro foi também o dono ou senhor de engenho. Engenhoca, de ardil ou armadilha, foi o pequeno engenho que se destinava especialmente ao fabrico do açúcar e da aguardente de cana, e preferiu-se até como sinônimo desta. Nos engenhos, onde o trabalho se multiplicava, aproveitando-se da cana quanto lhe tomasse lucrativa a indústria, adotaram-se vários termos ou criaram-se outros com o auxílio da justaposição: feitor-mor, o lugar-tenente do senhor do engenho; mestre do açúcar, o que di- rigia a fabricação do açúcar; soto-mestre ou banqueiro, o imediato do mestre; ajuda-banqueiro ou soto-banqueiro, o auxiliar do banqueiro. Carapina foi a colaboração do gentio ou do caboclo, seu descendente, para nomear o carpinteiro. Segundo os cargos ou funções, ou conforme os objetos ou utensílios, exigiam-se outros termos: caixeiro não era apenas o indivíduo que punha nas caixas de madeira o açúcar, mas ainda o que na cidade, como preposto do patrão, recebia as caixas e negociava com elas; caldeira era a vasilha grande, feita de cobre, na qual se purgava ao fogo o sumo da cana, e caldeireiro quem se ocupava do serviço da purga; taxa era outra vasilha, também de cobre, na qual se cozia o caldo purificado e taxeiro quem cuidava de vigiá- la durante o cozimento. Ao sumo da cana, passada na moenda, chamava-se caldo, antes mesmo de cozido, e depois de cozido melado, em vez de melaço à melhor ou à certa. Ao açúcar, conso- ante as castas, deram-se vários nomes e citam-se aqui alguns: primeiro o branco e o masca- vado; desta palavra, ao modo de outros particípios como pagado e pago, fez-se a forma mas- cavo. A um segundo tipo do branco chamou-se redondo (...) A outro tipo chamou-se branco-ba- tido ou apenas batido; a outro mel e remel ao que escorria do batido...

É claro que, nessas e em muitas outras criações em série de palavras pelas quais pas- sou o português em solo brasileiro, a afetividade e a expressividade não entram. E qualquer um de nós seria capaz de lembrar momentos de inovação tecnológica ou de mudança de valores que tiveram o efeito de popularizar itens lexicais antes desconhecidos, ou que ame- açaram a sobrevivência de palavras antes correntes; para não falar das modas e hábitos importados (alimentares, do vestuário ...), os quais trazem frequentemente consigo um vo- cabulário estrangeiro que, num primeiro momento, choca e atrapalha os falantes (como o famoso cheeseburguer sem queijo), mas sempre dá um jeito de naturalizar-se.

5. Meus modelos abandonados para a redação de um capítulo: as exposições sistemáticas de Wartburg e Migliorini, e finalmente as edições de clássicos de minha infância.

Quando comecei pensar o meu capítulo, por volta de 2018, eu tinha como referência alguns trabalhos lidos durante meu curso de graduação que contam a história de lín- guas europeias conhecidas.

Um deles é Evolution et structure de la langue française, de Walther von Wartburg. Wartburg entrou na história da linguística como autor de um grande dicionário etimo- lógico do francês; esse dicionário é enorme, e era o resultado de uma convivência de décadas com dados do francês de todas as épocas, anotados em fichas que ocupavam um prédio, mas a estrutura de Evolution et structure é simples: alterna capítulos de sin- cronia e de diacronia (por exemplo um capítulo sobre o ancien français é seguido por um capítulo de transição que leva ao moyen français, e assim sucessivamente até o francês de hoje). Um plano possível para o meu capítulo consistia em alternar momen- tos de estabilidade e de mudança.

Outro modelo possível seria a História da Língua Italiana de Bruno Migliorini, que eu lembro ter lido numa edição compacta que soltava as folhas. Neste outro livro, sincronia e diacronia não são separadas tão claramente, mas contam-se os choques de realidade que a língua italiana viveu nos vários séculos, e descrevem-se as principais inovações que apa- receram em cada um deles; este seria um modelo talvez mais fácil seguir, no capítulo que se esperava de mim.

Esses dois modelos (que não falavam só de semântica) me pareceram logo inalcançá- veis, como de resto a história do português europeu de Ivo Castro. Refletindo sobre eles, acabei me convencendo de que o nível de experiência necessário para falar de sincronias e diacronias de uma língua só se consegue depois de décadas de trabalho, e não depois de meses. E aí a opção que me pareceu mais condizente com minhas inseguranças foi partir para uma análise minuciosa dos documentos. Passou então pela minha cabeça a miragem de uma antologia, contendo uma dúzia e meia de textos abundantemente anotados, que exemplificariam todas as inovações linguísticas ocorridas no português brasileiro desde a criação das Capitanias até a última eleição. Acho que tirei essa ideia das edições escolares da Ilíada, da Odisséia e da Eneida que me faziam ler em criança, nas quais o texto vinha acompanhado por uma infinidade de notas destinadas a explicar uma língua literária já antiga (o texto era sempre o de uma tradução italiana do final do século XVIII dessas obras antigas). O projeto de uma da antologia anotada de textos do PB antigo nunca mais saiu da minha cabeça. Era mais um sonho irrealizável, mas penso que foi através dele que cheguei à ideia de que eu poderia atacar as sincronias passadas anotando pacientemente minhas “dificuldades de leitura”, ou, como eu preferi dizer (fica mais bonito), os “ruídos semânticos” encontrados nos textos que andava lendo. Em princípio, essas dificuldades ou “ruídos” de- nunciariam mudanças da língua.

6. Até então, eu tinha lido...

(a) Jornais (notícias, anúncios, materiais de entretenimento...); Testamentos; Correspon- dências pessoais, uma peça (Sangue Limpo, de Paulo Eiró, que foi escrita em 1863, mas se passa nos anos da Independência).2

(b) Quantitativamente, é bom dizer, essas leituras eram apenas uma pequeníssima parte do material levantado por meus colegas do PHPB e de outros projetos análogos...

(c) Seja como for, investi nas atividades de ler e anotar um tempo enorme. Minhas ativi- dades não seguiam um plano, mas tiveram logo o efeito de dissipar a ideia ingênua de que toda dificuldade de leitura apontaria para uma mudança da língua. Vejamos como.

7. Onde eu tinha chegado, graças à leitura desse material

Como seria de esperar, encontrei de cara nesse material não uma boa safra de mudanças semânticas, mas o retrato de um Brasil muito diferente do de hoje. As impressões mais cho- cantes provêm dos jornais, e referem-se à agressividade dos artigos de opinião e à desu- manização do escravo que emerge dos anúncios em que se pede a colaboração dos leitores para recapturar escravos fugidos.

Nos jornais antigos, boa parte do espaço que hoje seria dedicado às notícias era ocu- pado por “cartas do leitor”, que não visavam a divulgar fatos, mas criavam, elas próprias, um fato novo. O mais comum era que essas cartas procurassem dar notoriedade a seus autores desancando um adversário político (que era tratado de traidor da pátria ou mons- tro), desqualificando opiniões alheias como asneiras, ou chamando algum jornal concor- rente de papelucho ou pasquim. Fica difícil, hoje, determinar a gravidade desses insultos; e nesse sentido eles são tão opacos para nós quanto as inúmeras citações latinas – sempre extensas, no mais das vezes truncadas ou erradas – cuja única função era passar aos lei- tores uma imagem de erudição e competência.

Por outro lado, os jornais do século XIX nos lembram constantemente que o Brasil foi um país escravagista, porque os anúncios referentes à venda de escravos ou à captura dos escravos fugidos têm neles presença constante. Em meados do século XIX, este segundo tipo de anúncio era o mais frequente, e tinha chegado a um modelo-padrão que compreen- dia, com pouca variação de ordem, 5 partes: 1) a referência à fuga e a data; 2) o nome do escravo fugido; 3) sua descrição física, 4) instruções para devolução ao proprietário, 5) a promessa de uma recompensa. Há tudo isso neste anúncio do Farol Paulistano de 11 de ja- neiro de 1829 que transcrevo em seguida (de Guedes & Berlinck 2000):

[1 A 20 dias fugio desta Cidadade] [3 um muleque da Costa] [2 de nome Miguel, [ 3 edade 18 annos, estatura ordinaria, bem preto, algum tanto delgado, dentadura miuda, e ralla, Carpinteiro; levou camiza, e calças de algodão, jaqueta de baetão azul] , [4 quem delle tiver noticias farà o favor de avizar ao Conego Jeronimo Pais] , [5 que saberá agradecer].

Não por acaso a parte mais extensa destes textos é sempre a “descrição física”: ela começa normalmente pela distinção entre “crioulos” (afrodescendentes nascidos e criados no Brasil) e “escravos de nação” (trazidos da África), depois da qual vêm a procedência afri- cana, dada por topônimos como Angola, Moçambique, Congo, etc. e/ou por nomes de etnias propriamente ditas, como fula (pela etnia, os leitores da época conseguiriam recuperar tra- ços somáticos como a cor da pele, a aparência do cabelo e a conformação do rosto), e o grau de aculturação (através da distinção entre negros boçais e negros ladinos). Vinham em seguida características físicas mais individualizadas, com destaque para quaisquer marcas visíveis no corpo, de nascença ou causadas por acidentes, doenças e castigos; o jeito de andar e de falar e outros hábitos eram outros tantos fatores de identificação. Em suma, numa época em que não era possível identificar as pessoas pela imagem, a caracte- rização física era substituída por uma descrição verbal muito exata, na qual poderiam en- trar também a roupa e os instrumentos de trabalho que o escravo tinha levado consigo na fuga. A recompensa pela captura tinha um nome que surpreende hoje: alvíssaras. Muitos termos que encontramos nestes anúncios mudaram de sentido com o tempo (moleque, cri- oulo, boçal, ladino...), mas os sentidos antigos podem ser facilmente recuperados.

Outros traços mais ou menos esperados desse Brasil antigo foram emergindo da lei- tura: a importância do mar (da navegação, dos portos) para a vida das capitais; e a exis- tência por trás da região litorânea de um sertão onde vivia uma população pobre e neces- sitada de amparo, que invadia as cidades nos momentos de grande fome. E não é surpresa encontrar novidades velhas como o eterno endividamento crônico das administrações re- gionais, o atraso crônico no pagamento de professores, a precariedade dos serviços públi- cos, a presença de instituições como a igreja, o exército e ... as confrarias. É claro que os documentos antigos falam desse mundo submerso usando a língua do tempo, mas de um modo geral o contexto nos ajuda a não perder o fio da meada. Encontrei contudo impasses mais problemáticos e mais intrigantes para um linguista.

8. Os ruídos propriamente ditos e suas implicações teóricas

8.1. Ingenuidade da equação ruído = arcaísmo

Alguns documentos me colocaram diante da necessidade de recuperar informações histó- ricas. As palavras côvado (de um tecido) ou alqueire (de sal) já indicaram no passado uni- dades de medida que caíram em desuso com adoção pelo Brasil do Sistema Métrico Deci- mal. Com alguma paciência, e com a ajuda dos dicionários, descobre-se o que significavam algumas dessas medidas: o côvado media, convencionalmente, 66 centímetros e o alqueire de sal, 160 quilos; mas nunca mais saberemos quantas cabeças e quantos dentes de alho eram esperados num maço (a unidade maço de alho, ao lado do preço do dia, é presença constante nos anúncios dos armazéns de secos e molhados). Para o historiador da econo- mia colonial poder traduzir as antigas medidas em pesos e grandezas atuais é essencial. Mas o semanticista interessado em mostrar o que mudou na língua precisa também decidir se as palavras que as indicavam se arcaizaram. Não estariam elas no mesmo caso do subs- tantivo carro e do verbo cuidar, que aparecem com sentido antigo nos provérbios “A pior roda do carro é a que mais chia” e “Quem usa cuida”? Dada a importância do automóvel na vida moderna, quem ouve “carro” pensa logo no veículo que abastecemos no posto de ga- solina, mas o carro do provérbio é o velho carro de bois da fazenda colonial, que chiava de propósito para informar o fazendeiro sobre o que estariam fazendo os escravos, longe da casa grande. Quanto ao verbo cuidar do provérbio, ele significava “preocupar-se”: “quem costuma agir de má fé (quem é useiro nisso), espera um comportamento igual por parte de seus semelhantes, por isso vive preocupado (cuida). Claro, a acepção hoje corrente para cuidar é “tratar” (da saúde, da conservação, da forma). Para entender os provérbios, con- vocamos esses sentidos antigos, que então não parecem mais arcaicos.

8.2. Dificuldade de dizer quando começa um neologismo

Na outra ponta das mudanças semânticas que ocorrem ao longo do tempo, temos um pro- blema parecido para estabelecer quando um sentido novo foi criado. Até meados do século XX, os jornais falavam do esporte como uma atividade socializante, que dispensava torci- das organizadas, arrecadações milionárias, cartolas e TV, e atraía principalmente atletas amadores, filhos de famílias abastadas. Veja-se como um cronista esportivo da década de 1950 fala de uma partida de futebol jogada no interior do estado:

Futebol no interior. Vitoriosa excursão do Sampaio Correia á Uzina Estivas. Fidalgamente re- cebidos os Ferroviários natalenses. Atendendo um convite que lhe fora formulado, pela diretoria do Estivas F. C., recentemente eleita, excurcionou domingo passado á Uzina Estivas, o esquadrão do Sampaio Correia Sport Club que fora até ali, para participar dos festejos comemorativos do terceiro aniversario de fundação do clube local. À sua chegada em Estivas, os ferroviários tive- ram carinhosa recepção, rumando logo após para a residência do sr. Antonio Laurentino onde lhes foi servido um cock-tail. A’ tarde, no estádio Adauto Rocha, os ferroviários puderam corres- ponder às gentilezas recebidas, proporcionando dois belíssimos espetaculos de futebol, aos tor- cedores locais. No cotejo | preliminar, os tricolores triunfaram merecidamente por 3x0, goloando Emilio, Godi e Alexandre. O quadro vencedor alinhou assim constituido: (...) O juiz da partida foi o desportista José Paulino, que se houve com acerto, facilitada que foi a sua missão pela conduta exemplar dos diligantes. Por nosso intermédio, a embaixada do Sampaio Correia Sport Club agradece a diretoria de Estivas F. C. e em particular à familia Laurentino, todas as manifestções de apreço que lhe proporcionaram.

O esporte mudou, mas dificilmente alguém diria que as mudanças ocorridas depois de 1950 mudaram o sentido da palavra esporte. Em compensação, muitos diriam que o sentido que damos hoje à palavra carro é diferente da que se dava à palavra carro quando o carro era um veículo de tração animal. Mas passemos a outro tipo de “ruído”.

8.3. Empregos surpreendentes se revelam usuais e a mudança de sentido é favorecida por textos de um gênero específico

Ao ler algumas cartas do século passado estranhei o fato de que seus redatores se assi- navam como “veneradores” do destinatário: a escolha desta palavra me soou de cara como um ato de bajulação deslavada. Venerar é, tecnicamente, um termo religioso que, numa escala definida pela importância do objeto de culto, se situa logo abaixo de adorar. Faz sentido adorar a Deus e venerar os santos, por exemplo. Como os destinatários das cartas não pertenciam a nenhuma hagiografia consagrada, pensei inicialmente que os autores de algumas cartas tinham criado por iniciativa própria um sentido novo, profano e escandalosamente bajulatório, a partir do sentido religioso. Vi depois que esse uso não era um fato isolado, e sim uma característica de um certo tipo de carta cujos autores ocupavam uma posição subalterna. Isso levanta a seguinte pergunta: quando uma pala- vra passa a ser usual e esperada num tipo particular de texto, estamos diante de uma inovação semântica? E a inovação afeta a língua, afeta um tipo particular de texto, ou é apenas um uso figurado da linguagem?

Entrando por esse caminho, percebe-se que as palavras ganham um sentido inespe- rado em textos de um gênero determinado, e isso cria a necessidade de olhar para os textos por um viés que não tem a ver nem com coerência ou coesão, nem com estilo, mas princi- palmente com o gênero do próprio texto, suas funções e as condições em que é produzido e circula. Muita gente diria que isso já não é semântica, mas o que importa é entender onde estou querendo chegar, e para isso uso mais dois exemplos, tomando a liberdade, no primeiro deles, de partir dos dias de hoje e recuar no tempo (correndo o risco de ser acu- sado de “fazer semântica diacrônica de fasto”, para usar uma expressão que se ouvia mais facilmente algumas décadas atrás, no interior de São Paulo).

Meu primeiro exemplo é a chamada publicitária “Chegou a Moderninha”. Alguns meses atrás, as redes brasileiras de televisão ainda anunciavam o lançamento de uma “máquina de cartões” chamada “a Moderninha”, que teria a recomendá-la um formato compacto, uma extrema versatilidade de uso, e um preço convidativo. O anúncio compreendia uma sequência de imagens que sugeriam versatilidade, associando à tal maquininha a figura de uma atriz jovem, miúda e risonha, que vivia em poucos segundos vários papéis (balconista, investidora, empresária etc.) sempre com muito sucesso. Pois bem: na Internet, o mesmo lançamento foi feito mediante um texto escrito que começava com os seguintes dizeres:

Chegou a nova Moderninha: com design moderno e formato compacto que cabe no bolso, a nossa nova máquina de cartão é considerada a mais avançada do mundo.

Chamo a atenção para a primeira palavra desse texto, chegou. Para o leitor brasileiro, essa palavra anuncia sem possibilidade de equívoco um lançamento comercial, porque esse uso do verbo é corrente na propaganda dos jornais e da televisão; mas se procurarmos esse sentido do verbo chegar nos dicionários, encontraremos somente aproximações como “começar a acontecer” ou “aparecer concretamente” (que são ruins porque a ideia de co- mércio e lançamento de um novo produto não entra). Por que o verbo chegar e não outro entrou para o vocabulário dos lançamentos comerciais?

Uma resposta plausível está nos anúncios que as lojas mandavam publicar nos jornais durante o Império e a Primeira República: nessas épocas, os jornais não traziam imagens (suas matérias eram exclusivamente escritas) e reproduziam em seus textos a fala que o dono da loja faria de viva voz com os fregueses. Ora, numa época em que escasseavam as indústrias, a renovação dos guarda-roupas dos elegantes e das elegantes de capitais de província como Natal, João Pessoa ou Fortaleza dependia crucialmente da chegada de na- vios vindos de outras cidades costeiras, da capital com produtos da Europa. As novidades chegavam, literalmente, por navio, e os anúncios típicos poderiam ser como o da Tipografia Laemmert, de Natal:

ANNUNCIOS | PARA O ANNO NOVO DE | 1890 | FOLHINHAS DE LAEMMERT | E | ALMANAK DE LEMBRANÇAS | Vende-se nesta typhographia | Acaba tambem de chegar para a mesma | typographia: | Cartões de visita, papel de differentes | qualidades e marcas. etc. etc. ||

Minha hipótese é que o verbo chegar assumiu o sentido de lançamento de um produto nesse contexto. Teríamos dificuldade de chegar a essa explicação se, além da situação his- tórica, não conhecêssemos o gênero de texto jornalístico – anúncios escritos em tom de fala – por meio do qual os comerciantes mandavam recados aos potenciais fregueses. Nesses anúncios, o aviso “chegou” valia aproximadamente por “foi recebido pelo último na- vio e está disponível para compra”. (A contra-prova que não fiz consistiria em ver se o verbo era usado na mesma acepção em Portugal). É claro que essa hipótese só poderia ser con- firmada por uma investigação específica. Mas parece inegável que, no contexto descrito, as ideias de chegada e de lançamento comercial se aproximam naturalmente.

Meu segundo exemplo também retorna aos anúncios do século XIX, e mostra de ma- neira ainda mais evidente até que ponto a criação de novos sentidos está ligada ao gênero de texto. Num tempo em que – não custa repetir – os jornais traziam pouquíssimas imagens, a variedade de itens à venda numa loja teria que ser descrita por meio de enumerações. Ora, as enumerações tornam-se enfadonhas quando repetem as mesmas palavras, por isso redações como brins ingleses e brins franceses teriam que ser evitadas. Assim, os anunciantes, em vez de brins ingleses e brins franceses, começaram a escrever brins ingle- ses; ditos franceses. Tinham criado assim um anafórico sui-generis que aparece eventual- mente redobrado, na forma ditos ditos, quando se trata de falar de um subconjunto que faz parte de um conjunto já citado. Neste anúncio de 18473, o anafórico dito aparece mais de 30 vezes, três das quais na forma dito(a) + dito(a).

Annncio. (sic) || DEPRESSA, DEPRESSA FREGUEZES, á loja do verdadeiro barateiro M. P. P. Vasconcellos, aonde se acha um completo sortimento de fasendas de todas as qualidades, como sejaõ ricas chitas as mais modernas que tem vindo a este mercado, para vestidos de senhoras a 160, 180, 200, 240, e 280 reis; ditas para cobertas a 240, e 280; riscadinhos muito finos em cores fixas, tanto para jaquetas como para vestidos, e camisas, a 200, e 240; ditos francezes a 300 reis; cortes de cambraia muito fina com listas de cores o mais bonito que se tem visto neste genero, a 7$500 ; dita intitulada – praser e alegria (...) meias de sede a 1$, e ditas de pezo a 3$, e 4$; ditas ditas pretas a 3$200; ditas ditas para homem 4$; ditas de laia a 2$600; etc.

Esse “anafórico de loja de fazenda” dito dito) é linguisticamente sofisticado; teve largo uso em várias capitais e sobreviveu até tornar-se supérfluo quando os anúncios mu- daram, focando um ou outro campeão de vendas, alardeando seu preço e tornando-o visí- vel pela imagem. Onde os comerciantes do século XIX foram buscar o “anafórico das lojas de fazenda” é um problema; eu tinha pensado logo na linguagem jurídica, porque os juristas falam até hoje uma língua que só eles entendem – na qual ocorrem anafóricos derivados do particípio passado de verbos de dizer como o mencionado X, o referido Y, o dito M, o supracitado N, o supramencionado P etc. Mas um historiador da música brasileira que leu meus apontamentos, o prof. Rogério Budasz, da Universidade da Califórnia/Riverside, me fez notar que em inglês a palavra ditto indica as aspas invertidas usadas para evitar repe- tições de nomes nas enumerações em coluna, e que esse recurso é antigo. É possível, por- tanto, que tenhamos aqui um empréstimo. Seja como for, a palavra aparece num gênero particular de texto, e resolve um problema em quatro movimentos: 1. era preciso enumerar; 2. era preciso abreviar a expressão das enumerações; 3. Recorreu-se então aos anafóricos dito 4. e depois dito + dito. Hoje, esses anafóricos já não se usam; sua presença em textos cria um “ruído de leitura” que precisa ser explicado.

É fácil passar de constatações como essa para a generalização de que as palavras da língua mudam de significação no interior de textos de um certo gênero4, e daí para a obser- vação de que muitos dos fenômenos que chamamos de mudanças de sentido começam num gênero particular e depois passam à língua comum. Reencontramos aqui uma obser- vação de Meillet para quem muitas mudanças de sentido consistem em transferir para a língua geral do país usos que eram exclusivos de um grupo. Mas também somos orientados no sentido de explorar uma relação sentidos / gêneros textuais que até o momento não tinha entrado na história.

9. Repercussões da mudança sobre o sistema linguístico.

Encontrar evidências fortes de que um “ruído de leitura” pode levar a uma história que tem por protagonista um determinado gênero textual foi certamente a lição mais impor- tante que retirei de meu trabalho de comentador contumaz de documentos. Mas há uma outra lição não menos importante, originária de meus “ruídos”, que preciso registrar. Ela se deixa resumir na recomendação de considerar sempre, além da palavra problemática, seu “entorno”. Por “entorno”, entendo aqui tanto os contextos frasais em que a palavra pode entrar quanto as associações que ela evoca, em suma as velhas e boas relações sintagmáticas e associativas de que falava Saussure. Mais uma vez, vou tentar me expli- car através de dois exemplos:

· Competência, competição, competitivo - Um anúncio publicado num jornal de Natal em 22 de agosto de 1897 dizia literalmente o seguinte:

Grande fabrica de Mallas, bolças, caixões fúnebres e caixões para anjinho. Também na mesma fabrica concerta-se malas e bolças. Preço sem competência, Agrado e sinceridade. Rua 25 de Dezembro nº 3. Julião Bento da Costa.

Deixemos de lado o fato, hoje estranho, de que o artesão Julião Bento da Costa comer- cializava ao mesmo tempo malas de viagem e caixões de defunto – e estes para adultos e crianças – e fixemo-nos no fato de que, para dizer que seus preços eram imbatíveis, ele usou o termo competência, onde usaríamos hoje competição. As duas palavras derivam do mesmo verbo latino competere, e competência já expressou no passado tanto o sentido de “rivalidade” quanto o sentido de “idoneidade para atuar ou julgar em determinadas circuns- tâncias”. É um dos tantos casos em que a língua usou a morfologia para tirar dois resulta- dos diferentes de uma mesma ideia (que na origem era a de dois caminhos que chegam a num mesmo ponto). É claro que a distinção afetou as novas criações situando-as numa ou noutra vertente (competitivo se liga ao sentido recente de competição, não ao de compe- tência); com competente, é o contrário.

· Digital - Uma separação análoga de sentidos se observa ainda melhor na história da palavra digital, bem mais antiga do que pensa quem a conheceu recentemente via in- formática. De acordo com as informações do dicionário Houaiss, a palavra digital já existia na língua portuguesa na primeira metade do século XIX, tendo sido registrada em 1836 na primeira edição do dicionário de F. S. Constâncio. De fato, o Constâncio dedica a essa palavra dois verbetes, a saber (1) e (2); por outro lado, quatro verbetes próximos, a saber (3), (4), (5) e (6):

(1) DIGITAL, adj. A (Lat. digitalis), dos dedos / relativo aos dedos e

(2) DIGITAL, s.f. (substantivação do precendente) – : purpúrea, dedaleira, planta medicinal.

(3) DIGITAÇÃO, s.f. (do Lat. digitus, dedo), des. ção. T. de anat., endentação das fibras de dois músculos semelhantes (sic) ao cruzamento de dois dedos,

(4) DIGITADO, A. (Lat. digitatus) t. de bot., recortado, disposto em forma de dedos da mão aberta. Folhas digitadas.

(5) DIGITIFORME (Lat. digitiformis), que tem a forma de dedo.

(6) DIGITOS, s.m.pl. (Lat. digitus, dedo), t. de astr., as doze partes iguaes em que se supõe dividido o diâmetro do sol e da lua, nos cálculos de eclipses

Confirmam que, no começo do século XIX, a raiz latina √digit- era produtiva, mas evo- cava invariavelmente a ideia de “dedo” (como o faria hoje impressão digital). Os dedos in- tervêm nas ações que chamamos atualmente de digitar e digitação, mas estas ações têm hoje como instrumento indispensável o computador, que se opõe à máquina de escrever, tão obsoleta quanto as atividades de datilografar e datilografia. De todas essas palavras, a que teve a história mais rica foi, evidentemente, digital. Esse adjetivo assumiu um sentido em que se opõe a analógico e deu origem ao verbo digitalizar, que indica a ação de dar a qualquer conteúdo um formato passível de ser lido por meios eletrônicos. Quanto a dígito, já não é lembrado como termo da astronomia; firmou-se como o nome que se dá a um es- paço ou ao caractere que o ocupa, numa composição gráfica.

As vicissitudes pelas quais passaram as palavras digital, dígito e seus derivados in- cluem o aparecimento de novos sentidos. Mas perceber isso não basta. No mínimo, a história que acabamos de evocar mostra (1) que os novos sentidos se estabeleceram em contraposição aos de outras palavras que, de início, como o senhor José Pinto Ferraz da Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade, não tinham entrado na história (caso de analógico, em oposição a digital), (2) que a busca de uma propriedade recentemente descoberta pode levar a novas competências profissionais e a novas formações de pa- lavras (por exemplo a de digital-izar), e (3) que em certas ações estão associadas a um determinado instrumento (para digitalizar é necessário um dispositivo eletrônico, e não a velha máquina de escrever) etc.

Tudo isso dá à mudança semântica uma complexidade que poderia passar desper- cebida. Por exemplo, a informação de que a palavra digital já existia em 1836 torna-se pouco esclarecedora se não considerarmos os sentidos que a palavra tinha na época, e teve depois. No caso particular de digital, é espontâneo lembrar que os novos sentidos se fixaram depois do advento dos computadores pessoais, isto é, no final do século XX ou já no atual. Mas por trás disso também haveria mais história a ser investigada: quais foram as alternativas que a língua considerou e descartou? Que compreensão do fenômeno novo levou ao sucesso de algumas escolhas verbais e ao fracasso de outras? Todas essas perguntas e muitas outras justificariam uma reflexão atenta, e pode ser que para algu- mas delas exista uma boa resposta.

10. O que se salva da experiência

Penso ter contado alguns dos dramas vividos ao tentar escrever meu capítulo com base em meus “ruídos”, e entendo que é tempo de fazer um balanço da experiência. O que sobrou dela?

Antes de mais nada, sobrou um sentimento de gratidão enorme para com os colegas que vasculharam arquivos e encararam as tarefas – preliminares mas nada fáceis – de procurar textos onde havia notícia de sua existência, de resgatá-los do desgaste e da perda, e de editá-los. Por trás dessas tarefas há toda uma ciência, que eu só conheço de ouvir dizer. Devo aliás confessar que eu nunca teria a paciência necessária para enfrentar as autoridades das bibliotecas e arquivos, nas negociações que sempre são indispensáveis para ter acesso aos próprios documentos; sabemos que esses materiais, quando não an- dam sumidos em alguma caixa, são objeto de uma proteção doentia. Sou igualmente grato aos colegas que idealizaram os projetos que chamaram a atenção para esses materiais e os fizeram circular, dando a eles o formato eletrônico possível (observe-se que os formatos eletrônicos possíveis no começo do século eram bem mais precários e trabalhosos do que os de hoje, e que ainda há muito a fazer).

E, claro, sou grato ao Prof. Ataliba Castilho pela oportunidade única que me ofereceu (fugi dele por alguns anos, mas não era para valer) e a meu colaborador, o Renato Basso, por aguentar minhas conversas sem direção, em alguns momentos.

Mas aqui se trata principalmente de esclarecer se a experiência me trouxe algum aprendizado, e de dizer em que consistiu. Pois bem, um aprendizado existiu, embora tenha sido diferente do que eu esperava:

(a) ele consistiu, antes de mais nada, em dissipar a expectativa de que os textos dariam acesso, por acúmulo de evidência, a grandes catástrofes semânticas, ocorridas nos cinco séculos de existência do PB. Na passagem do latim para o português houve grandes rearranjos semânticos (por exemplo, a perda do neutro, o desaparecimento do sistema de casos, a substituição do sistema aspectual infectum-perfectum por um sistema de tempos). Nada de comparável foi encontrado nos documentos do português americano que li e anotei. O português brasileiro incorporou um sem- número de palavras africanas e ameríndias, mas essa é uma história diferente, pouco visível nos documentos que sobraram. Foi um pouco frustrante constatar essa pobreza de fatos a relatar, e concluir que a prática de anotar ruídos levava invariavelmente a juntar migalhas.

(b) Outros caminhos (métodos) teriam sido possíveis e teriam sido provavelmente mais rentáveis, por exemplo o de fixar-se em um fenômeno bem delimitado e acompanhar sua consolidação ao longo do tempo; este caminho permite fazer uma cronologia muito exata do fenômeno estudado e das características com que se cristaliza; permite var- rer os corpora mediante recursos computacionais e, nesse sentido, é mais rentável e mais seguro. A quem queira ver os bons resultados desse e de outros caminhos que não vão atrás de “ruídos de leitura”, aconselho a leitura dos outros 11 capítulos do volume 8 da coleção do PHPB, do qual se extrai um quadro bem mais completo e otimista dos caminhos que a semântica pode seguir no estudo diacrônico do português brasileiro.

(c) Outra constatação foi que os conceitos intuitivos de arcaísmo e neologismo são nebu- losos: não vale a pena chamar de arcaísmo toda e qualquer palavra ou construção que não entendemos porque caiu em desuso. Nomes antigos de coisas antigas têm um lu- gar próprio na língua e é oportuno que estejamos preparados para utilizá-las. É o que procurei mostrar usando como exemplo os provérbios e das unidades de medida. E a dúvida não vale só para as noções de arcaísmo e neologismo.

(d) Aprendi também que as mudanças semânticas que nos chamam a atenção ficam mais compreensíveis quando consideramos as associações (colocações, oposições) que elas evocam, dentro e fora de sua constelação de cognatos; foi o que procurei mostrar re- capitulando a história das palavras dígito e digital.

(e) E, principalmente, me convenci de que a mudança de sentido das palavras pode depen- der de condições criadas por seu uso em textos ou contextos de tipo particular, um fe- nômeno que hoje é estudado pela linha de pesquisa conhecida como “modelo das tra- dições discursivas”. Não me considero capaz de falar dessa orientação, mas posso di- zer que a ela foi dedicado um inteiro volume na coleção do PHPB (o de número sete, = Andrade e Gomes 2018), e que os trabalhos desse volume são sérios e brilhantes, e dão da teoria das tradições discursivas um quadro teórico bem delineado, além de demons- trar possíveis aplicações. Fica uma sugestão à Diretoria da Abralin para que convide esses colegas para uma sessão de “ABRALIN ao Vivo”, que será certamente esclarece- dora para muitos outros colegas, velhos e jovens.

Antes de concluir, gostaria de dizer que o trabalho de anotar documentos antigos me trouxe além de uma enorme satisfação (cada louco com sua mania), uma aflição constante por perceber que, por trás da língua documentada nos textos, podia estar escondida uma outra língua: trata-se evidentemente da língua falada da época em que os documentos fo- ram escritos, e nada mostra melhor o caráter elusivo desta variedade de língua do que os testamentos. Há em todo testamento antigo pelo menos duas vozes: a do indivíduo que ex- prime suas últimas vontades e a do funcionário que redige a partir dessa manifestação um documento que terá valor legal no futuro, e é esta última que chega até nós. Além disso, muitos testadores, ou por serem analfabetos, ou por estarem fisicamente impossibilitados de escrever, ditavam num primeiro momento suas vontades a uma pessoa de sua confiança que tinha o domínio da escrita, o que acrescentava ao texto que chegou até nós uma ter- ceira voz. Querer chegar dos documentos escritos à língua que as pessoas falavam é um sonho, ou se quisermos um pesadelo, e aqui reencontramos a afirmação – justa mas terrível – de que a linguística histórica sempre tenta fazer o menos pior uso possível de materiais geralmente precários.

Para concluir, fica a certeza de que os materiais levantados nesse grande esforço co- letivo que é o PHPB foram recuperados para ser lidos, e seria um desastre se uma próxima moda teórica os condenasse a mais décadas de esquecimento. Como um galo só não tece a manhã, ficam aqui meu convite e minha exortação para que mais gente (catadores de ruídos ou não) se volte para eles.

How to Cite

ILARI, R. The corpora of the PHPB-Project: some old & new recipes for doing semantics with them. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 1, p. e301, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n1.id301. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/301. Acesso em: 26 apr. 2024.

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