Introdução
“Pertencemos a uma época cuja civilização corre o perigo de ser destruída pelos meios da civilização” (Nietzsche, 1878/2006)
Começo com algumas palavras que indicam direções de reflexão que me servem de impulso. O meu já conhecido silêncio, a casa e a rua, a mundialização, a humanidade incerta, a contradição profunda, mais que profunda, entre capitalismo e vida, me levam ao que me sugere o tema. E este me faz pensar nas fronteiras da linguagem, na indistinção, agora formuladas em silêncio que se espalha, na metaforização do susto global do capitalismo, mas sobretudo nosso: palavras que tornam presente, sob qualquer forma que tome o sentido, o da pandemia com que nos defrontamos. Que nos contém, que nos atravessa, mais ou menos silenciosamente, como sujeitos humanos, e que, metaforizando-se, faz irromper sentidos latentes. Nossas palavras se encharcam dos sentidos de pandemia, e nossas interpretações se espalham, inquietas. Sentidos fogem (E. P. Orlandi, 2012). Há algum tempo tenho trabalhado com a relação presença/ausência, com a insegurança das palavras, com a invisibilidade de sujeitos e de sentidos, com o incompreensível, e com o inacreditável, nas fronteiras da linguagem. Campanhas de desinformação, milícias digitais do mal, guerra de informação, são comuns e atuais na produção de emoções que ligam os sujeitos às telas, às redes.
Podemos considerar a Pandemia como um “acontecimento discursivo” que domina as discursividades. Sobre tudo que dizemos paira a metaforização dessa ameaça global. Contagiando não só as posições-sujeito, mas também as palavras, os sentidos. Este pode ser um ponto de partida: a metaforização da pandemia, atravessando fronteiras na linguagem, indistinguindo sentidos, irrompendo em palavras que surgem de qualquer parte. Considero a metáfora, não só como a tomada de “uma palavra por outra” (Pêcheux, e Lacan). Na metáfora, penso que “palavras falam com palavras”, “uma palavra fala “com” outras”, produzindo transferências de sentidos, equívocos. Silenciosa ou explicitamente, com ou sem nosso consentimento, com ou sem nosso conhecimento. De várias maneiras, é disso que vamos tratar. Da metaforização.
Partindo da relação que estabeleci (2001) entre constituição, formulação e circulação dos sentidos, tomo como perspectiva de entrada nessa análise a “circulação”, pois, as discursividades contemporâneas têm na circulação seu ponto forte. Não se pode, na análise, ignorar como circulam os sentidos. E o que proponho pensar como propriedade discursiva, na conjuntura atual, é o que eu chamo de “volatilidade da interpretação”.
Nas discursividades contemporâneas, dominam, no imaginário da comunicação, duas noções: a da “interatividade” e a da “rede de informação”. Quando falo em volatilidade da interpretação estou, nessa situação discursiva, ou nessas condições de produção, - que privilegiam a interatividade e em que dominam as redes – referindo à diluição do real (pela força do imaginário) e à evanescência dos fatos (que são produzidos.1 de múltiplas maneiras). Quanto mais se fala em fatos, mais eles se desvanecem. Na volatilização das interpretações.
Interpretações voam para todos os lados, embora estejamos sempre mergulhados em um oceano de repetições, que nos leva à ilusão de que nada se mexe. Mas há muita andança no meio das repetições. Em outras palavras, a interpretação é sujeita a uma variança que não se controla. Mesmo que, ao cair no mundo, seja pega por sujeitos ou por grupos que se inscrevem e aos sentidos em uma ou outra formação discursiva determinada e isto vai significar por estes grupos, por estes sujeitos em suas posições. Afirmar esta pluralidade possível de sentidos, múltiplas versões, mesmo que vindas da repetição, não significa que se esteja atravessando o imaginário, que não se esteja na diluição do real2. Continuamos na volatilidade de interpretações. E não estou aqui pensando, ou tratando de separar o que é fake ou fato, ou verdade e mentira. Embora isso já tenha merecido de minha parte alguma reflexão (2018), no presente estudo, refiro a essa avalanche de discursos desencadeados pelas tecnologias de linguagem, mais abundante ainda em tempos de quarentena. Algazarra nos processos de significação. Ao falarmos, significamos, e nos significamos, assim como aos outros, e somos significados por eles. Isto é muito mais que “interatividade”.
A circulação de linguagem, nas condições de produção dos discursos que vivemos nesta conjuntura, se tinge das cores da pandemia, se espalha. Para usar uma palavra própria ao acontecimento discursivo que vivemos: “contamina” todos os sentidos. Casa vira “abrigo”, lugar seguro; o trabalho em casa, vira funcionalmente “home office”, compra de supermercado é “delivery” majoritariamente3; como significar, efetivamente, o que é “aglomeração”? A partir de que número, de que situação4? Funcionários da saúde, só neste momento, viram “heróis”. Antes não eram, mesmo que pensemos as condições do sistema de saúde no Brasil. “Vulnerabilidade” se substitui a pobreza, mas não só. Quando se trata da covid19 ou se tem os “infectados” ou os que estão em “recuperação” ou os “mortos”. E são x casos “registrados”5. Suspeita nas palavras. Os números não fecham, mas estas categorias se mantêm como se, na sua manutenção, estivesse o controle do sistema de saúde. E das vidas. A palavra “solidariedade” sai para a rua. E, em falta de tratamento adequado ou de vacina, vivemos em “isolamento social”. Às vezes declinado como “distanciamento social”. Não era isolamento social a situação em que vive a maioria da população em suas “comunidades”? O que é efetivamente “isolamento social”? Distanciamento?6 De um lado, dificuldade de nomeação, de outro, o excesso de palavras disponíveis. Na dificuldade de nomeação, tudo se veste de nome e de sentido, metaforizando-se, como efeito da pandemia. Sabemos, no entanto, que os sentidos não estão nas palavras, mas nas relações que se estabelecem. E não é do mesmo sentido que se revestem as interpretações quando na “#fique em casa” temos como intérpretes os idosos, os jovens, os bolsonaristas, ou os empresários, os comerciantes, ou os “vulneráveis”, ou seja, os que estão abaixo do nível da pobreza. Essa # nos devolve um ponto crítico do capitalismo: a relação capital/trabalho. Diferentes sentidos, diferentes interesses, diferentes posições-sujeito, diferentes formações discursivas, sob o sentido dominante de pandemia7. Como tenho afirmado, não há senão versões, e como é próprio da linguagem, o texto é lugar de variantes, de variança, e, na abertura do simbólico, o texto se presta a vastos gestos de interpretação8, tanto de repetição quanto de diferença, de paráfrases (o mesmo) e de polissemia (o múltiplo).
A volatilidade da interpretação é a contraparte da diluição do real. Fatos ou eventos se exaurem em versões. Os sentidos não são carreados por nenhum real. Se já trabalhávamos, em Análise de Discurso, com “identidades descartáveis”, temos convivido, contemporaneamente, com “sentidos descartáveis”. As pessoas se desembaraçam deles logo que lhes for necessário, ou se recolhem neles assim que isso lhes der um ponto de sustentação.
Algo parece, no entanto, persistir de forma incerta na produção dessas textualidades: a busca da liberdade, como princípio de vida social, ainda que inconsciente e, muitas vezes, mal significada9. Esta busca insiste.
1. A análise
Nossos materiais de análise estão representados aqui por dois textos, o de um vídeo de uma psicanalista, cujo título é “Conspiração: entre a negação e o Apocalipse”, e outro de um Facebook, que começa com “Bolsonaro esconde sua doença desde o início de 2018....”. Nesses dois materiais de análise, saliento a questão da “narratividade” e da “metaforização”.
Desloco a narratividade do campo literário e da classificação de gêneros, e a considero (E. Orlandi, 2010), como “a maneira pela qual a memória se diz em processos identitários, apoiados em modos de individuação dos sujeitos, afirmando, vinculando seu pertencimento a espaços de interpretação determinados, consoantes a específicas práticas discursivas”. Tomo, assim, a narratividade no funcionamento da memória discursiva, tendo em conta a historicidade, a materialidade do discurso. Memória estruturada pelo esquecimento: “alguma coisa fala antes, em outro lugar e independentemente” diz Pêcheux (1975). Eu parafrasearia: “algo fala em mim antes que eu fale”. Na memória discursiva, esta que nos constitui, fala uma voz sem nome, segundo Courtine (1982), e o que tenho proposto é observar na narratividade, como a memória se diz, nesses sujeitos, por gestos de interpretação aí presentes, materializados10.
Observemos a narratividade nestes textos. Ambos referem/praticam11 o que se tem chamado de “teorias da conspiração”.
Analisaremos, primeiro, o do Facebook, francamente ligado à política, que fala da “doença” de Bolsonaro. Segundo a autora, ele a esconde desde quando foi diagnosticado, tendo recorrido aos milagres da Igreja, fugindo de tratamentos adequados que seriam visíveis. Isto porque era preciso que “o genocida não fosse diagnosticado com doença grave que prejudicasse a sua candidatura”. Genocida, a cada vez formulado, traz, entre outros, o sentido de Pandemia. Em ano eleitoral, Bolsonaro “vendia uma saúde que não tinha”, escondendo sua real situação (...)”. Como os médicos indicaram cirurgia, e ele não podia mostrar esta fraqueza na campanha, surge a “fakada” como solução. “Um atentado resolveria o problema”. A “fakada” escondeu a doença de Bolsonaro, que pode fazer sua quimioterapia enquanto estava no hospital. Observemos que “fakada” escrita com K remete a Fake, negando assim o fato pela interpretação. Continua a articulista: “no dia da eleição, o TSE ficou fora do ar e só voltou quando a vitória do “genocida” já estava garantida”, e “Bolsonaro ainda esperou subir a rampa, antes de entrar para mais uma cirurgia”. Termina dizendo: “Eles querem guerra civil e vão construí-la, seja enterrando pilhas e pilhas de brasileiros com corona vírus, seja enterrando Bolsonaro com honras de chefe de Estado, seja aproveitando de uma crise epidêmica para criar outra. Não subestimem genocidas. Eles não querem que o Brasil sobreviva até 2022”. O gesto de interpretação remete às eleições e costura uma versão, uma interpretação para a história.
Não vamos aqui falar em verdade ou mentira. Não é disso que tratamos, mas sim das versões que, circulando, constituem um sítio de significação, objeto de múltiplas interpretações. Pela análise da narrativa, procuramos explicitar a maneira como a memória desse sujeito se diz em seus processos de identificação. E como o imaginário acolhe sentidos e os distribui.
Nos anos de 1990/2000, trabalhei muito com “boatos” (E. Orlandi, 2001, 2003), o que me deu alguma experiência na leitura destes textos. O boato como forma de discurso pode ser pensado paralelamente ao da “conspiração”, pelo que tem de gatilho social, ou seja, só funciona se se espalhar12. Discurso próprio às redes sociais e, neste caso, também à pandemia, enquanto acontecimento discursivo13.
Passemos agora ao da psicanalista que apresenta um vídeo, falando a partir de sua posição-sujeito psicanalista14.
Inicia, dizendo: “Imagina que eu sou um país, a China. E “imagina” que eu tenho um país que tem terras férteis, plantas, águas, minérios, commodities, riquezas. País rico que eu quero e preciso. E “imagina” que eu tenho um inimigo, um rival comercial, os Estados Unidos, que têm muito dinheiro, um exército maior que o meu.”. Continua dizendo: “A guerra biológica é muito mais barata. Vai eliminar meus inimigos e vai me deixar relativamente protegida. Eu sou a China: “Vou descobrir um vírus, vou soltar o vírus numa parte da minha população, matar uma porcentagem mínima”. Vai, então, espalhar o vírus pelo mundo15. Além disso, este vírus “foi bem pensado. Só mata velhos e preserva os jovens”. O resultado é que “vou ter uma massa de jovens proximamente escravizada pelo mundo e vou eliminar os velhos, os pensadores, os líderes, a elite global. Desse modo este país conquista o poderio global”. A narrativa continua: “Você não está entendendo, diz ela, que “é isto que aconteceu” (construção de um evento). Isso “não faz sentido”? (uma proposta de interpretação, uma versão). Não “articula” tudo de maneira bem dirigida? Não pensa que aí tem uma “mão dirigente”: “Um que sabe tudo que está acontecendo e que vai acontecer”.
Segundo sua análise, os sujeitos têm necessidade de um Deus, um líder, um chefe. E ela chega ao seu ponto de inflexão, definindo “conspiração”, em seu campo analítico: “A conspiração sempre funciona assim. Ela preserva o lugar de um Deus, de um líder ex-máquina, e que tem o domínio do que está acontecendo. Que, ao poder controlar, é todo poderoso. Para o bem e para o mal. Deus ou demônio. Revolucionários do bem ou do mal. O que o sujeito, que “não consegue abrir mão” desse sistema, “não suporta”, é o “aleatório”, o “caos”. Não suporta a “condição humana” que está “à mercê do que lhe acontece” sem função paterna, sem mãe potente, sem um “outro” que faça tudo e pode controlar a sua, a nossa vida, mesmo ocultamente. Mesmo que eu tenha medo, diz ela, eu prefiro lutar contra um inimigo, eu suporto melhor um mundo que conspira contra mim, do que um mundo sem conspiração. Um mundo do acaso, do aleatório causa muita angústia. É muito sofrimento eu imaginar que pode realmente ter acontecido aquele salto bioquímico que fez uma mutação genética. Conclui: “É um acaso que funda a vida, (...)”.
Esta é uma apresentação do texto em seu conjunto significativo, segundo o ponto de vista do psicanalista. Em que ela analisa o que o sujeito interpreta. E o sujeito, na interpretação da analista, aparece como o humano que não suporta o acaso e o aleatório. Prefere imaginar, fantasiar, uma mão poderosa que ele possa responsabilizar. Essa é a narrativa feita da posição-sujeito psicanalista e seu dispositivo de interpretação.
O que, em um primeiro gesto de análise, já podemos apontar – no “modo” como a articulista e a psicanalista “narram o que narram” – é que a relação de sentidos aí exposta é uma relação de sentidos com o Sistema, em que estão significadas as “formações discursivas” – reflexo, no discurso, das formações ideológicas - que administram os gestos de interpretação. Daí derivam as versões, com interpretações que se assentam em supostas “verdades”, em um caso, ou “imaginação”, “fantasias”, no outro.
Todo texto é espaço de produção de diferentes versões16. Flutuantes. Nascedouro de variantes (E. Orlandi, 2001), nos textos, as versões transbordam. O silêncio, por sua vez, aí trabalha abundantemente: o texto é território movente, incerto, impreciso. Mexe profusamente com a relação dito/não dito, com a presença-ausente, com as bordas do silêncio, com o entremeio dos sentidos. Observamos gestos de interpretação latentes na vontade de domesticar os sentidos do silêncio. Lugar de tensão, de incompletude e de dispersão dos sujeitos e de fuga de sentidos. As versões exploram múltiplas direções de sentidos. O que as rege são as condições de produção e as formações discursivas em que os sujeitos se inscrevem, significando(se).
2. Imaginário, imaginação, fantasia
O imaginário não é mentira, e nem cabe na noção de fantasia. Ele faz parte da maneira como o sujeito é constituído, na produção de sentidos. Não há prática simbólica sem imaginário. Não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. Ideologia, aqui, discursivamente definida como imaginário que nos liga a nossas condições materiais de existência; pois a relação entre linguagem pensamento e mundo não se corresponde termo a termo, e, por outro lado, há injunção à interpretação: diante de qualquer objeto simbólico, não podemos não interpretar, perguntamos pelos sentidos. A ideologia é uma prática, significante.
Do ponto de vista da análise de discurso, e tomando a questão da volatilidade das interpretações, como propus para a análise, o que observamos de imediato é o funcionamento “imaginário” da discursividade atual, desencadeando gestos de interpretação que “metaforizam” acontecimentos reais (como a pandemia). Como se trata do tema da conspiração, o que temos é uma “argumentação” que vai em direção à suspeita, isto é, uma proposta de interpretação que sustenta a “suspeição”17. Analisando o relato da psicanalista18, podemos observar que ela inicia e insiste na formulação “você imagina”. Isto nos leva, na análise de discurso, diretamente para a questão do “imaginário”, da ideologia, das imagens que se faz. Para a psicanalista, este “você imagina” se dirige para a “imaginação e a fantasia”. Há, pois, uma relação, mas também uma diferença fundamental entre a perspectiva da psicanalista e a do analista de discurso.
Para o analista de discurso, o imaginário está presente no que chamamos de “formações imaginárias” que projetam a “situação” do sujeito, objetivamente descritível, para a sua “posição-sujeito” discursiva em que conta, não sua situação objetiva, mas a imagem que ele faz de si mesmo, do outro e do referente, no caso, do fato (em um caso, a facada, no outro a Pandemia)19. Ora, analisando estes discursos, é exatamente disto que se trata. No texto da articulista, o que domina a sua relação, enquanto sujeito, com o político são as imagens que são feitas do presidente, de sua doença, da facada, das eleições. Imaginário gerido pelas relações de poder e de forças, se significando no discurso político. Imagens que a articulista trabalha como “verdades”. No caso da psicanalista, também se argumenta com supostas imagens feitas pelos sujeitos a respeito da mundialização e da organização dos sistemas de poder que caracterizam o poder global, assim como gerem o domínio econômico. Uma guerra, desta vez, não feita por exércitos, mas biológica, feita por vírus. Dada a teoria da conspiração que se exercita nestas narrativas, as razões em que se assenta a argumentação, são, para nós, razões postas pelo “imaginário” do sujeito ao inscrever-se em determinadas formações discursivas. Para a psicanalista, são imaginação, fantasia, e estas noções a levam para todo um campo teórico e analítico próprio. A fantasia, nas teorias que são do campo psicanalítico, é relevante, e parte importante da análise, relacionando-se ao inconsciente
Na psicologia em geral, a “fantasia” é considerada um mecanismo de defesa, que existe apenas na “imaginação” de quem o cria, visando uma satisfação “ilusória”, que não é da vida real. Tem, muitas vezes, sentido negativo. Já para Freud, a fantasia é um recurso valioso pois o tratamento constrói-se pela exploração do espaço da fantasia. Buscando, a partir da teoria da sedução, acompanhar modificações no papel da fantasia em relação à verdade, Freud apresenta uma distinção entre “verdade histórica” e “verdade material”. As fantasias - que são ficções, lendas pessoais pelas quais o sujeito altera seu passado, sua história - compõem a verdade a que Freud denomina verdade histórica. E a verdade material é distinta da histórica, por se restringir à experiência de eventos na realidade material. A verdade histórica é composta pelas experiências na realidade material e as fantasias do desejo. Isto se pensarmos o inconsciente. Freud diz proceder como poeta para construir a verdade histórica, e não como arqueólogo (verdade material). Diz ele que “o artista pode transformar suas fantasias em criações artísticas “e “o sujeito pode conseguir, através de seus esforços, transformar suas desejosas fantasias em realidade”20. Suas ilusões em realidade.
Na análise de discurso, a ilusão é necessária para constituir o sujeito e os sentidos (porque o sujeito se constitui na ilusão de ser a origem dos sentidos, e os sentidos se constituem na ilusão da realidade do pensamento, ou seja de que os sentidos só podem ser aqueles).
Desse modo, e sem ignorar a importância da noção de fantasia na psicanálise, tomo discursivamente a formulação em que está a palavra “imagem” e me volto para uma análise feita, desta vez, pela análise de discurso, que se centra na noção de imaginário para esta reflexão.
3. Argumentação
A argumentação, no modo como a considero, é um processo discursivo que se dá na instância das “coisas a saber”, (Pêcheux, 1990), que nos chegam não pelo conhecimento, mas por um “saber” que não se aprende, mas funciona produzindo seus efeitos, e que nos dá garantias de viver num mundo semanticamente normal. Funciona como convicções21, na instância da ideologia.
A argumentação se sustenta no mecanismo discursivo de “antecipação”, funcionando por relações imaginárias: a imagem que eu faço da imagem que fazem de alguém (Bolsonaro/China), ou de algo (fakada/ pandemia) etc, produzindo-se assim sobre aquilo que o outro poderia interpretar, significar. Enquanto mecanismo de administrar as interpretações, a argumentação é ideologicamente estruturada, ou seja, é a ideologia que fundamenta a argumentação. O que aí conta é o imaginário, que, para o analista de discurso, não é ficção nem fantasia. É uma prática. A “fantasia”, em nossa análise, é um “efeito de sentido” mobilizado na argumentação, que é base para a produção dos sentidos de “conspiração”22.
Insistimos em que, na análise discursiva, o imaginário “não” é fantasia, ou melhor, que a fantasia é da ordem da “imaginação”, do devaneio, e o “imaginário” é da ordem das imagens produzidas pelas formações imaginárias, pela “ideologia”. Nos casos analisados, os sujeitos assim argumentam, inscritos em formações discursivas específicas, ideologicamente constituídas, identificando-se com determinados sentidos23.
Distinguimos realidade e real. Da perspectiva da ideologia é o imaginário que produz a ilusão subjetiva, que constitui o sujeito, e que se presentifica na realidade. Quanto ao real, ele pressupõe ruptura com o imaginário, atravessamento. Processo pelo qual, sendo a ideologia um ritual com falhas, e também podendo ser falho o modo pelo qual o sujeito é individuado na articulação simbólico-política do Estado, por instituições e discursos, os sujeitos podem-se deslocar, resistir, inscrevendo-se em outras formações, identificando-se com outros sentidos. Sentidos vazam, pela produção de efeitos metafóricos, pelo deslizamento de sentidos. Produzindo outras versões, por gestos de interpretação outros. Há aí transformação, movimento. Porque há real.
Sabemos que, ideologicamente, são nossas certezas que nos iludem, pois é a ideologia que produz as “evidências” tanto dos sentidos como dos sujeitos. É justamente na transparência da linguagem, sua evidência, que mora o equívoco24.
Com a análise, procuramos atravessar as transparências, as ilusões, e nos deparamos com o não exato, o não-Um, o múltiplo, na volatilidade das interpretações.
Pensando a argumentação em sua estruturação pela ideologia, como propomos, importa refletir sobre algo que vamos desenvolver mais adiante sobre um princípio discursivo elaborado por Pêcheux (1975), o do primado do ser sobre o pensamento.
4. Concluindo: linguagem, pensamento, mundo
Tenho retomado, para a reflexão, em meus trabalhos recentes, o que diz Pêcheux quando parte da seguinte tese: “o real existe, necessariamente, independentemente do pensamento e fora dele, mas o pensamento depende, necessariamente, do real, isto é, não existe fora do real”(idem). Ele formula, pois, um princípio fundamental para a análise de discurso: o “primado do ser sobre o pensamento”.
Da afirmação do primado do ser sobre o pensamento podemos derivar outra formulação: a de que é “a existência que precede a consciência e não o contrário”. Nessa conjugação teórica, materialista, é que analisamos as falas da articulista e da psicanalista.
Considerando a relação linguagem, pensamento e mundo, afirma Pêcheux que o pensamento “não tem, em absoluto, (...), a interioridade subjetiva da “consciência” – que, sem trégua, as variedades do idealismo lhe atribuíram” (idem, 1975). Os processos de significação são sempre historicamente determinados no confronto do simbólico com o político.
Se considerarmos, pois, as atuais discursividades, vemos que o processo, em que se instalam funcionamentos discursivos e se constituem posições-sujeito, com “suas” verdades, tem menos a ver com a “interioridade” subjetiva – ou com sua “consciência” – do que com seus gestos de interpretação, na produção de efeitos de sentidos.
Vale observar que a relação com o silêncio desloca duas fronteiras: entre o dito e o não-dito e entre o dito e a exterioridade que o determina, confrontando-nos com a natureza histórica da significação, articulando o simbólico com o político.
As palavras são, pois, presença e ausência. Há fuga de sentidos25. Há disputa pelo sentido, há fato a ser significado. Vale perguntar: que fato? Mobilização política da palavra que trabalha as fronteiras da interpretação. Quando entra a relação com o silêncio é mais o que não se diz que decide. Palavras que significam na incerteza. Os discursos que analisamos carregam uma polemização discursiva do estatuto significativo do “fato” pelo batimento entre dizer e não-dizer26. O dizer é apenas sussurrado, ao pé do ouvido. Mas não para aí e é passado adiante. Circula. Viraliza. Não é a verdade que importa. É a circulação. O ruído de seu potencial significativo.
Quanto à verdade, retomo o que diz Nietzsche (1873/1983): “O que é verdade portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas. Que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias(...)”. Quando as metáforas endurecem, palavras já não falam com outras e os sentidos se perdem.
A metaforização, a volatilidade das interpretações, levam-nos a compreender as formas como, nessa conjuntura (capitalista) da Pandemia, e com estes processos de significação, o homem interroga o sentido de sua humanidade27, e de sua busca de liberdade.
Há sempre o incompleto, a falha, a tensão entre a paráfrase e a polissemia. Tomo aqui a polissemia como diferentes movimentos de sentidos no mesmo objeto simbólico (versões). Na tensão entre estes processos, os movimentos podem ser contrários, contraditórios, divergentes, produzindo o que chamo “sentidos em fuga” (E. Orlandi, 2012). Tomo a palavra “fuga” no sentido musical, além do senso-comum: forma complexa de composição polifônica (polissêmica?) com base em um tema que é apresentado sob várias formas.
Como seres simbólicos e sócio-históricos, significar é vital em nossa existência, e não separamos linguagem e sociedade. Então, para terminar, reafirmo que o impulso que movimenta a sociedade na história é a sustentação de sentidos em direção à “construção da liberdade”. Vejo, assim, seja no modo como sentidos se expandem, ou fogem, formas de nos relacionarmos às coerções, nos modos em que praticamos a plasticidade de processos de significação.28
Se, de um lado, temos a volatilidade das interpretações, a diluição do real, e estas falas fantasiosas, o discurso tem sua materialidade29 e não é menos possível que estejamos fazendo sentido daquilo que, para nós, ainda não faz sentido, e estamos, face ao incompreensível, empurrando a história para a frente, consciente ou inconscientemente, atravessando fronteiras do imaginário e praticando o real concreto da significação. Para sobre-existir.
Anexo
O que apresento neste anexo é algo que faço, em geral, quando inicio um trabalho. São o que chamo, para mim, de “escritos sensíveis”. São o início de minhas análises e de reflexões, depois mais trabalhadas à luz da teoria e do método da análise de discurso. São rascunhos, escritos que me servem de impulso. São a minha relação com a linguagem. Para este trabalho, dado o tema, o que ressoou em mim, inicialmente, foi um verso de uma música de Caetano Veloso, Cajuína: “apenas a matéria vida era tão fina”. Que se desdobrou em muitas direções, ideias, sensações e formulações. Como acontece quando me preparo para escrever. Um pintor, amigo meu, dizia que antes de pintar, ele precisava encher uma tela com um jato de pintura que era, na verdade, uma forma dele conseguir começar a pintar o que queria pintar. O que vem em seguida é este exercício de dizer antes de dizer:
Pandemia (Páscoa de 2020)
Um silêncio profundo
Nas casas, nas ruas, nos países, no mundo.
Sente-se a mundialização, pelo avesso. Silêncio que se espalha.
E vão brotando palavras contidas, palavras mantidas às escondidas,
Atravessadas, latentes, ou apenas simples palavras de todo dia, silenciadas.
Silêncio mais que profundo.
A humanidade, as nossas certezas sobre ela sucumbem.
Tantas palavras sobre ecologia e se esqueceram que ecologia é ser humano
Antes de ser árvores, rios, ar.
Um susto do capitalismo: não possuímos nada nosso.
A não ser a vida.