Introdução
No primeiro semestre de 2015, a mídia de diversos países noticiou a inclusão do pronome ‘hen’, de gênero neutro, no Dicionário da Academia Sueca (SAOL).1 Embora essa alternativa de neutralização de gênero na língua sueca venha sendo discutida desde a década de 1960 por ativistas dos direitos das mulheres, em contrapartida para as formas ‘hon’ (feminino) e ‘han’ (masculino), foi somente na última década que a discussão sobre inclusão de um gênero neutro nas línguas com sistemas binários de gênero (i.e., oposição entre masculino e feminino) retornou para o campo de debates e discussões. No decorrer do segundo semestre de 2015, foram explicitadas muitas propostas para inclusão de um gênero neutro – algumas com chancela institucional –, a fim de incluir pessoas que não se sentissem representadas pelas formas de marcação de gênero então usualmente disponíveis nas línguas. Por exemplo, nos Estados Unidos, a Universidade do Tennessee produziu uma nota oficial2 com a sugestão para que se passasse a fazer uso das palavras ‘ze’, ‘hir’, ‘hirs’, ‘xe’, ‘sem’, ‘xyr’ no lugar dos pronomes ‘he’, ‘she’ e suas flexões.
No mesmo ano, aqui no Brasil, foram registradas estratégias de inclusão de gênero por meio de um “manifesto para uma comunicação radicalmente inclusiva”3 proposto por Pri Bertucci, CEO (Chief Executive Officer – diretora executiva) da Diversity BBox, e pela psicóloga Andrea Zanella, que discutiram uma terceira possibilidade de forma pronominal no português – ‘ile’, ‘dile’ – como alternativa de marcação neutra na língua ao invés dos pronomes pessoais ‘ele’ (masculino) e ‘ela’ (feminino), assim como para as formas preposicionadas ‘dele’ (masculino) e ‘dela’ (feminino). A ideia é não apenas questionar e combater a primazia atribuída ao masculino, mas também representar as identidades de pessoas que não se reconhecem nem como homens, nem como mulheres – denominadas, então, não-binárias.
Observa-se que essa proposta – visando a romper com o binarismo de gênero, marcado inclusive na estrutura gramatical – não parte especificamente de linguistas, mas sim de pessoas ligadas a instituições e movimentos sociais, e este parece ser um fenômeno global, pelo menos no ocidente. Este movimento soma-se a outras ações de ativismo pela inclusão de grupos silenciados ou subjugados, em suas diferentes seccionalidades.
Não excluídos, evidentemente, os aspectos estruturais de inegável relevância à produção, compreensão e análise linguística, entendemos que as experiências em sociedade se fazem essenciais para o uso e a descrição da língua, visto que é em instâncias sociais que ela efetivamente se manifesta. Como linguistas, entendemos, pois, que parte da nossa tarefa é observar os limites e as relações entre as mudanças de caráter linguístico e social. Assim, propomos-nos a observar as novas estratégias de marcação de gênero no português brasileiro, instigados pela chamada do simpósio Língua, gramática, gênero e inclusão, atividade do evento Abralin Ao Vivo,4 de cujo debate participamos, junto a Pedro Perini Surreaux, com a moderação da Profa. Dra. Raquel Meister Ko. Freitag, do Prof. Dr. Luiz Carlos Schwindt e da Profa. Dra. Ana Paula Rabelo. A proposta do simpósio reconhece que as línguas codificam experiências no mundo por diferentes caminhos, incluindo relações de poder, e que os sistemas linguísticos tendem a estabelecer uma relação com o gênero social, assumindo em geral o masculino como padrão. A partir do entendimento de que essa categoria é construída socialmente, movimentos pela representatividade de outras identidades de gênero vêm, como dissemos anteriormente, implementando alternativas aos recursos linguísticos disponíveis para subverter essa tendência. Essas novas formas compreendem o que se rotula como linguagem inclusiva, isto é, uma linguagem por meio da qual se defendem sistemas sem marcação ou mesmo com marcação dupla ou neutra de gênero. Este cenário desperta discussões que interessam à Linguística, entre as quais destacamos: sistemas que não contam com gênero neutro podem ser convertidos ou adaptados em/para sistemas de tal natureza? É possível efetivarem-se – e, se sim, como? – recursos gramaticais que vêm sendo empregados para promover o uso inclusivo de gênero nas línguas? Qual é o papel dos valores sociais envolvidos na implementação desses recursos?
Subjacente à proposta de mudança, fica evidente uma tensão no que tange à relação entre gênero, língua e sociedade. No entanto, não é raro que se assumam alguns equívocos: apesar de comumente corresponderem à mesma estrutura para a sua atualização na língua, gênero social e gênero gramatical são, na verdade, conceitos distintos. Enquanto gênero gramatical – ou morfológico – refere-se a uma marcação desinencial no sistema linguístico (amplamente conhecida), gênero social – ou identidade de gênero – associa-se a maneiras de ser no mundo biossocial e, por vezes, fala-se deste conceito de maneira inadequada.
Tradicionalmente, costuma-se entender que apenas duas categorias compõem as concepções de gênero (seja gramatical, seja social): feminino e masculino. Tanto na perspectiva social quanto na perspectiva linguística, é comum ver-se o masculino como a forma não marcada e genérica, ao passo que o feminino é tipicamente compreendido como o diferente, gerado a partir do masculino.5 Por essa razão, no português não haveria problema, a priori, em se dizer ‘amigos’, em referência única a pessoas de gênero feminino e de gênero masculino.
Entretanto, para nomear o conjunto dos substantivos que se referem a entidades passíveis de atribuição de gênero ou sexo, como seres humanos, vem ganhando destaque e projeção na sociedade como um todo, e no próprio meio acadêmico, o fato de que essa acepção do masculino como genérico e do feminino como dependente inscreve-se em um roteiro social que, por tradição, história e costume, privilegia identidades masculinas. Logo, consideramos que, embora associado à estrutura da língua, este sistema de referência ajuda a atribuir às identidades masculinas posições de maior poder; relega às identidades femininas posições marginais, tipicamente silenciadas; e se demonstra incapaz de abranger todas as possibilidades de gênero, visto que, conforme afirmamos anteriormente, há pessoas não-binárias, isto é, que não se sentem representadas pela divisão binária entre feminino e masculino.6 É desse cenário que surgem estratégias de neutralização pronominal, como ‘hen’, no sueco, ‘ze’, no inglês, e ‘ile’, no português, exemplificadas anteriormente.
As propostas de marcação de gênero neutro – i.e., nem feminino, nem masculino – em línguas com sistemas binários evidenciam, assim, diferentes razões pelas quais devemos tratar deste assunto chamado de ‘linguagem inclusiva’, ‘linguagem não-binária’, ou ‘linguagem neutra’ (uma denominação ainda bastante polêmica), principalmente no que diz respeito a uma busca pela não especificação de uma identidade de gênero na gramática. Nos casos apresentados anteriormente (e.g., ‘ile’, ‘dile’), as estratégias de neutralização corresponderiam à categoria de ‘pronome neutro’, empregada em alusão a elementos pronominais que poderiam ‘neutralizar’ a marcação de gênero na língua, a fim de não rotular os seus referentes como masculinos ou femininos. Tais estratégias de neutralização, contudo, não se restringiriam apenas aos pronomes, visto que, em diversas línguas, como o português, marca-se gênero em diferentes classes gramaticais.
É preciso lembrar que as formas de não especificação de gênero nas línguas binárias (no Brasil, por meio de, e.g., -@, -x, -e, ‘ile’, ‘elu’, ‘ilu’) nascem de uma necessidade social, evidenciada por movimentos da sociedade civil: as estratégias de não especificação de gênero emergem para atender a uma demanda identitária de determinados grupos da nossa sociedade (MÄDER; SEVERO, 2015). Do ponto de vista teórico, as noções de identidade de gênero e de marcação de gênero gramatical são distintas, e as estratégias linguísticas aqui discutidas, embora altamente custosas para a sua produção linguística, são formas as quais instauram – ou, ao menos, prenunciam – certa produtividade na marcação de gênero no português brasileiro.
Entretanto, essas novas formas de marcação de gênero não atingem em igual escala toda a estrutura do português, visto que, por exemplo, morfemas, fonemas e condições de estrutura silábica são mais resistentes à mudança linguística (cf. SCHWINDT, 2020). Os esforços para a inserção dessas novas formas no sistema de marcação de gênero no português parecem indicar que suas aplicações dependem de um conhecimento extralinguístico (como a discussão sobre questões de gênero, sexualidade e não-binariedade referentes à comunidade LGBTQIA+). Evidencia-se, pois, conforme dito por Schwindt (2020, p. 18), que “um movimento deliberado de mudança no sistema gramatical depende da clareza coletiva sobre o referente semântico das formas inovadoras e da consciência de que, seja qual for esse referente, sua representação formal será sempre um recorte categorial”.
Por ser resultado de um movimento, um manifesto, com a consciência dos falantes sobre a mudança no sistema linguístico proposta, e com todo o engajamento e o esforço para a implementação das novas formas, este tipo de ação enfatiza a intrínseca relação entre língua e sociedade, e a Sociolinguística pode contribuir para a explicação do fenômeno. Para Blommaert (2010, p. 28), “a Sociolinguística é o estudo da língua como um complexo de recursos, dos seus valores, distribuição, direitos de propriedade e efeitos”,7 o estudo de usos concretos, pelos quais as pessoas fazem diferentes investimentos sociais. Portanto, as diferentes manifestações de gênero social na língua devem representar um tópico de interesse sociolinguístico, tal qual apresentamos neste trabalho, ao buscarmos oferecer uma devolutiva ao debate sobre as novas estratégias de marcação de gênero no português brasileiro e reforçarmos a compreensão de que gênero gramatical e gênero social são conceitos distintos. Trata-se, enfim, de uma discussão que certamente se depara com barreiras do sistema linguístico, mas que se origina essencialmente em questões sociais e identitárias associadas ao fenômeno.
Nessa perspectiva, apresentamos neste texto uma descrição sobre as formas que fogem à tradicional binariedade na marcação de gênero no português; discutimos algumas restrições impostas pelo sistema linguístico ao emprego de formas que fogem à tradicional marcação de gênero na língua; e evidenciamos as questões sociais que geram e decorrem das estratégias de neutralização de gênero na gramática. Eis, então, a relevância de se discutir sobre língua, gramática, gênero e inclusão – conforme o título do simpósio que motivou a escrita deste ensaio –, com ênfase tanto na descrição e compreensão das formas linguísticas associadas à não especificação binária de gênero, quanto nos valores sociais que fazem tais formas emergirem. Para tanto, primeiro, explicitamos a relação entre as formas da linguagem binária (masculino vs. feminino) e marcações identitárias; em seguida, descrevemos o tratamento do gênero neutro no português e as potencialidades e limitações da implementação morfológica da não especificação de gênero na nossa língua; por fim, contrapomos tais restrições impostas pelo sistema linguístico às demandas sociais que originam as estratégias de neutralização ou não especificação de gênero, ao que concluímos este artigo.
1. As formas da linguagem binária e construções identitárias
Conforme afirmamos, a ‘linguagem neutra’ ou ‘não-binária’ nasce, certamente, de uma demanda social que, então, se manifesta na estrutura linguística, além de em outros aspectos da cultura. Reiteramos aqui o nosso entendimento de que a compreensão de fenômenos da língua exige um atento olhar às experiências sociais que motivam os usos linguísticos, inclusive aqueles usos inovadores.
A necessidade por se representar na gramática da língua a existência de um gênero neutro advém, assim, do reconhecimento de que as formas tipicamente associadas aos gêneros (i.e., formas de feminino e masculino, sobretudo com a primazia deste como genérico) não são suficientes para caracterizar todas as pessoas, já que nem todas se sentem plenamente representadas por uma matriz binária de gêneros, ou mesmo por referências genéricas feitas pelas formas de masculino. É, portanto, uma lacuna na representação de grupos sociais por não encontrarem, nas formas majoritariamente consolidadas na gramática, uma correspondência para a sua forma de ser. As nossas identidades são o resultado da história social na qual nos inserimos e que ajudamos a construir; elas se referem à nossa própria experiência no mundo biossocial, mas, para além das experiências, pressupõem uma identificação com outras identidades (ou, ainda, um afastamento delas). Afinal, de acordo com Eckert e McConnell-Ginet (2003), o gênero – uma das diversas ‘facetas’ das nossas identidades – é colaborativo, pois não é feito sozinho.
Essas pesquisadoras mostram que sexo e gênero, apesar de comumente (e muitas vezes equivocadamente) correlacionados, são per se conceitos distintos. Segundo Eckert e McConnell-Ginet (op. cit.) sexo refere-se a atributos sobretudo biológicos, pautados principalmente por um potencial reprodutor e tipicamente associados à(s) genitália(s) de que se dispõe: pênis para homens; vagina (e seios) para mulheres. Gênero social (ou identidade de gênero), por outro lado, é uma performance social que também se expressa por recursos linguísticos e, portanto, passa a ser compreendido como ato performativo, constituído por uma variedade de papeis e identidades, desempenhadas pelas pessoas a depender do espaço social e do momento histórico. Sendo o gênero performativo, podemos também utilizar a língua de diferentes maneiras, a fim de nos adequarmos às performances pelas quais nos apresentamos. Neste caso, o gênero não é um atributo dado naturalmente, mas é uma superfície regulada por tudo aquilo que é posto na estrutura social, orientada pela história que nos circunscreve. Por isso, o gênero, enquanto identidade social, passa a ser compreendido como efeito (BUTLER, 1990; 1992; 1994). Note-se ainda que gênero social e gênero gramatical (ou morfológico), como já expusemos, são também conceitos distintos: por definição, gênero gramatical se refere a marcações estruturais na gramática da língua, nem sempre com contrapartes sociais explícitas, ao passo que gênero social se associa às identidades das pessoas, conforme construídas ao longo da sua vivência no mundo biossocial.
A perspectiva de Eckert e McConnell-Ginet (op. cit.) acerca de sexo e gênero se conecta àquela de Blommaert (2010) quanto à relação entre eventos comunicativos específicos e a história geral: de um lado, toda interação humana ocorre em um local específico, em um tempo específico, com sujeitos particulares; por outro lado, apesar das diferenças tempo-espaciais, há uma herança que, advinda de tempos e locais outros, continua orientando nossas práticas e, então, promove determinadas semelhanças.
Ostermann e Keller-Cohen, por exemplo, em artigo publicado em 1998, analisaram testes de personalidade de revistas para garotas adolescentes e concluíram que esses quizzes orientavam as leitoras, como ‘boas garotas’ que deveriam ser, a se comportar de determinadas maneiras para despertar o desejo sexual masculino. Van Damme, em um trabalho de 2010, investigou performances de gênero e roteiros de sexualidade em séries adolescentes transmitidas pela televisão. A conclusão do trabalho foi que a sexualidade das personagens femininas era vista por elas mesmas como objetificada ou como prêmio a ser conquistado por um garoto. Altera-se o tempo, de 1998 a 2010. Altera-se o meio, de revistas impressas a séries televisivas. Mas determinados padrões se perpetuam: levam-se as garotas a se adequarem às demandas masculinas.
Desse modo, afirma Moita-Lopes (2006), são observadas algumas oposições nas dinâmicas de poder em meio às quais nos situamos. Existe um centro do poder, e este é tradicionalmente ocupado pelas identidades compreendidas como ‘normais’, ‘o padrão’. Estas são tipicamente identidades de homens brancos heterossexuais. Entretanto, nas margens, mais afastadas do centro de privilégio e detenção do poder, estão as identidades ‘marcadas’, estigmatizadas: identidades como as de mulheres, pessoas negras e não heterossexuais, que são vistas como desviantes em comparação com aquelas em posição hegemônica. Estabelece-se, então, por tradição, que homens brancos heterossexuais, naturalizados como detentores do poder, sejam vistos como a base para a construção das demais identidades sociais, que, por sua vez, são muitas vezes reconhecidas a partir das identidades de homens brancos heterossexuais e em submissão a eles. Na perspectiva que estamos assumindo, as identidades sociais não são inatas aos seres, tampouco imutáveis. Portanto, se ainda hoje homens brancos heterossexuais ocupam uma posição hegemônica, de maior prestígio e privilégio, eles não o fazem porque ‘esse lugar é seu por direito’, menos ainda porque ‘a natureza quis assim’. Se isso ainda ocorre, devemos à construção da nossa história, que por muito tempo silenciou e tornou invisíveis outras identidades, como as de mulheres, pessoas negras e não heterossexuais, taxando-as de desviantes. Estabelecemos então – nós, em sociedade, o que é necessário reforçar – uma hierarquia de identidades; nesta, inclui-se uma hierarquia de identidades de gênero.
Tão presentes e potentes são as noções de gênero orientadoras das nossas práticas que, mesmo quando não falamos explícita e objetivamente deste tópico, ele se faz presente. Um exemplo são os rituais que rodeiam o nascimento de um bebê. O tópico em questão é, em princípio (e de modo geral), a celebração de uma nova vida. De toda forma, lá está ele, o gênero: desde a decoração do quarto até a escolha do nome. Como Eckert e McConnell-Ginet (2003) demonstram, nomear um bebê de ‘Maria’ é fazer muito mais do que associar uma estrutura linguística a uma pessoa; o nome ‘Maria’ já traz consigo uma atribuição de feminilidade – ou identidade feminina – à pessoa assim nomeada. Desde o nascimento (senão antes), essa pessoa, que mal conhece o mundo, já é vista como menina e sofre a imposição de se comportar como tal. Tudo porque outros sujeitos associaram ‘comportamentos de menina’ (por tradição e estereótipo) à identificação de uma vagina. Se o órgão identificado fosse, ao contrário, um pênis, o nome ‘Maria’ já não seria bem-vindo, mas ‘João’, sim; e as expectativas seriam outras: outros modelos de comportamento, outros roteiros de vida. As referências que fazemos às pessoas são, portanto, sempre impregnadas de gênero e estabelecem valores assimétricos aos gêneros identificados – o que se manifesta pela língua.
Exemplo disso pode ser encontrado no estudo de Pinheiro (2020a), que analisa as ocorrências de ‘puto’ e ‘puta’ em textos jornalísticos, pela perspectiva da gramática de construções (BYBEE, 2010; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013). O autor observa que ‘puto’, no masculino, se encontra predominantemente em construções que indicam extrema irritabilidade, o que parece atribuir às identidades masculinas características mais agressivas e, assim, mais poderosas. Já em relação ao uso de ‘puta’, no feminino, as ocorrências deste item são mais frequentemente associadas à construção [filh- da puta], pela qual se instancia uma referência pejorativa à sexualidade feminina – marcada em [da puta]. Acrescentamos aqui o fato de que não aparentam ser incomuns usos de ‘filha da puta’ em referência a homens, com o primeiro substantivo no feminino. Isso ilustra que não há uma correspondência isomórfica entre gênero social e gênero gramatical (nesse caso, por meio da desinência de gênero) e, ao mesmo tempo, reafirma o uso do feminino como marca de pejoratividade. Entretanto, Pinheiro (2020b) analisa empregos amigáveis e afetuosos da palavra ‘puta’ feitos por um homem heterossexual dirigindo-se também a outro homem heterossexual, seu amigo, em contextos como: ‘Te amo, puta’. Trata-se de uma relação de impolidez simulada, pela qual esses sujeitos – ocupantes de posições de prestígio na hierarquia social – transformam a palavra-tabu ‘puta’, marcada pelo feminino, em uma estratégia de identificação de semelhantes. Nas palavras do autor, “transformam um signo de identidades já marginalizadas em um signo de identidades já prestigiadas, reforçando a submissão de mulheres (cuja sexualidade é estigmatizada) a quem, por pressuposição, as domina” (PINHEIRO, 2020b, p. 307).
Ainda quanto aos valores assimétricos expressos na gramática da língua para diferentes identidades de gênero, retornamos agora à utilização do masculino como forma genérica no português. Monaretto e Pires (2012, p. 162) observam que, na simplificação da declinação nominal do latim para o português, as formas do gênero neutro latino – que correspondia, principalmente, a elementos inanimados – “foram absorvidas ora pelas palavras de gênero masculino, ora pelas de gênero feminino”. Dessa ‘absorção’, resultou na gramática do português a atual oposição entre feminino e masculino, sendo este, porém, o gênero reconhecido como não marcado. A isso Mäder (2015) denomina ‘sexismo gramatical’. Trata-se de uma estratégia linguística – o emprego de uma forma ao invés de outra – que tem origem na naturalização de um gênero (o masculino) e na marcação de outro gênero (o feminino) como o diferente.8 Isso se evidencia fortemente em oposições como ‘amigos’ e ‘amigas’, ‘meninos’ e ‘meninas’, pares opostos apenas pela marcação de gênero – tanto na gramática, especificamente pelas suas terminações, quanto nos referenciais – e que, no entanto, teriam apenas no masculino, ‘amigos’ e ‘meninos’, a possibilidade de referência genérica, sem especificar uma designação única para homens. O sexismo refletido na gramática fica explícito quando observamos o conjunto de substantivos que aludem a seres sexuados e, como já discutimos, é comum – apesar de equivocado, por definição – tratarmos gênero e sexo como se fossem o mesmo conceito. Na verdade, é em substantivos como ‘mãe’/‘pai’, ‘aluno’/‘aluna’ que a categoria gramatical de gênero se conecta aos traços conceituais de gênero social ou até mesmo de sexo biológico.9 Logo, reiteramos a necessidade de se compreender que estas categorias – gênero gramatical e gênero social (além de sexo biológico) – são distintas entre si.
O problema indicado acima parece menos explícito nos casos de substantivos que fazem referência a elementos assexuados, i.e., elementos aos quais não se imagina atribuir sexo biológico, nem identidade de gênero. Afinal, não parece socialmente danoso marcar ‘mesa’ como feminino e assumir que ‘teto’, masculino, não tenha desinência de gênero ou tenha desinência zero, pois não se corre o risco de ferir a identidade de alguém.
Contudo, mesmo elementos assexuados não parecem escapar completamente dos nossos estereótipos normativos de gênero. Eckert e McConnell-Ginet (2003, p. 68) chamam atenção para o fato de que, em alemão, se atribui o gênero gramatical masculino à lua, ao contrário do que ocorre em francês, que entende a lua como ‘ela’. Consequentemente, segundo as autoras, poetas franceses e alemães costumam personificar a lua de modos distintos. Além disso, em alemão, características tipicamente ‘masculinas’ costumam ser associadas a mesas, que, nesta língua, são descritas pelo gênero masculino; já em francês, mesas são designadas pelo gênero feminino e, assim, costumam receber características ‘femininas’. Para fazer uma analogia com o português – língua em que o gênero gramatical é recorrentemente marcado –, vejamos, apenas a título de exemplo, a oposição entre ‘lua’, vocábulo de gênero feminino, e ‘sol’, de gênero masculino. Não parece ser incomum associarmos o sol à força, ao poder e à destruição, ao passo que a lua, segundo nos parece, é tipicamente associada ao romantismo e à beleza. Por um lado, essa afirmação certamente demanda estudos mais sistemáticos, a fim de confirmá-la (ou contestá-la) e de verificar a sua abrangência para outros casos. Não parece gratuita, no entanto, a relação estabelecida entre os gêneros gramaticais associados a essas palavras e os significados com os quais se empregam, já que força, poder e agressividade são características amplamente vinculadas à masculinidade, ao contrário do romantismo e da beleza, que se atrelam a traços mais ‘femininos’ (ECKERT; McCONNELL-GINET, 2003).10
Podemos, ainda, levantar outro argumento que contraria a tradicional caracterização do masculino como genérico e não marcado no português. Nas escolas, comumente ouvimos falar em ‘reuniões de pais’, mesmo que, muitas vezes, a participação majoritária seja de mães. O que se nota, neste caso, não é a oposição entre uma desinência e a sua ausência, mas a oposição entre dois vocábulos inteiramente distintos no que se refere à sua estrutura e que, ao mesmo tempo, se contrapõem pelos papeis associados às identidades sociais às quais aludem. Emergem, assim, alternativas como ‘reuniões de responsáveis’. Agora, o título do evento não parece se restringir a apenas um grupo de indivíduos – homens – nem parece privilegiar esse grupo como não marcado e generalizante. No entanto, ainda que o substantivo ‘responsáveis’ não especifique, em si mesmo, gênero masculino ou feminino, outras palavras – como adjetivos e determinantes – demandam essa marcação de gênero ao se associarem ao nome, e não é incomum que sejam empregadas com o gênero masculino: ‘os responsáveis’, algo que também se evidenciaria em prováveis referências anafóricas por meio, por exemplo, do pronome ‘eles’.
A marcação de gênero, do ponto de vista estritamente gramatical, configura-se como a distribuição de classes mórficas para itens nominais de modo semelhante ao que ocorre para as conjugações verbais. Porém, é na oposição entre a informação gramatical de gênero e as oposições semânticas decorrentes que surgem, enfim, estratégias – algumas das quais já foram mencionadas aqui – que visam a quebrar com o paradigma binário de feminino e masculino conforme estabelecido e reforçado pela nossa história. A seguir, descrevemos algumas dessas estratégias de neutralização de gênero, isto é, de estratégias que fogem à tradicional especificação de gênero feminino ou masculino.
2. Formas de neutralização de gênero no português brasileiro: inovações e obstáculos
Se, por um lado, Camara Jr. (1970) assume a não marcação de gênero para o masculino e o estatuto de forma marcada para o feminino, por outro o pesquisador identifica a existência de um gênero neutro, que, no entanto, seria próprio a alguns pronomes, como ‘alguém’, ‘ninguém’ e ‘outrem’. Para Camara Jr. (1970, p. 75), esse “gênero neutro”, como então chamado, “se trata a rigor de vocábulos diversos das formas gerais [masculinas] respectivas algum, nenhum e outro” (destaques no original). Nota-se, pois, a centralidade atribuída pelo teórico às formas masculinas, caracterizadas por ele como gerais. O fato é que, na prática, mesmo os pronomes identificados por Camara Jr. como neutros podem facilmente perder a sua suposta neutralidade. Não são raras sentenças como ‘Alguém muito sábio tomou uma decisão’, em que o adjetivo ‘sábio’ se refere a ‘alguém’ – a priori, um pronome neutro – como se em concordância com masculino. Nos termos de Mäder (2015), acreditamos que isso poderia ser uma evidência do sexismo gramatical que comumente orienta as nossas atitudes.
Contudo, a categorização de ‘gênero neutro’ (ou ‘não-binário’) – conforme atualmente se tem denominado – não se atrela exclusivamente a determinados itens pronominais, visto que tais itens não seriam suficientes para representar, linguisticamente, as performances de gênero de todos os grupos da sociedade. Ainda que haja pessoas que não veem relevância social, tampouco relevância sociolinguística, no questionamento às formas do tradicional paradigma de gênero (feminino/masculino) – geralmente por não se sentirem prejudicadas por ele –, há outras que esse paradigma não contempla. Entre as pessoas que se reconhecem não contempladas, encontram-se, por exemplo, mulheres que consideram danosos o privilégio, o caráter genérico e o status padrão tipicamente atribuídos ao masculino em detrimento do feminino; encontram-se também pessoas não-binárias, cujas identidades de gênero não se limitam aos modelos preestabelecidos de masculinidade e de feminilidade. É diante destas limitações do sistema da língua e da busca por representações identitárias que nascem as formas de neutralização do gênero na gramática, para abarcar no sistema linguístico as pessoas que não se veem representadas pelo sistema tal qual descrito e empregado por tradição.
Quanto às formas da linguagem denominada neutra, observamos que as pessoas as utilizam para efetivamente atender às representações de gênero pelas quais se reconhecem no seu próprio entorno. As formas construídas para uma linguagem neutra no português brasileiro (tais quais -x, -@ e -e, como possíveis desinências sem especificação de gênero, e os pronomes ‘elu’, ‘ilu’ e ‘ile’), sendo unidades de uso na língua disponíveis para os falantes, podem tornar-se variantes, desde que, com frequência cada vez mais maior, as pessoas as utilizem, em diferentes graus de monitoramento, para marcar o gênero no português (BYBEE, 2006).
Entretanto, os usuários da língua, quando produzem determinadas formas, precisam também atender a fatores cognitivos da ordem do processamento das informações. Neste ponto, de um lado, observamos que há certa dificuldade para que essas formas integrem a gramática, por serem altamente custosas do ponto de vista da produção e da percepção. Afinal, conforme discutiremos abaixo, é necessário certo grau de policiamento para aplicar tais estratégias de fuga à tradicional marcação de gênero – estratégias, na verdade, que muitas pessoas ainda não validam, ou nem mesmo reconhecem. Por outro lado, o conceito de gramática está associado a uma organização cognitiva das nossas próprias experiências com a língua, o que nos permite categorizar as formas linguísticas por semelhanças e analogias (BYBEE, 2006; 2010). Desse processo, não estão necessariamente excluídos aspectos de representação identitária na língua. Além disso, a gramática também é um componente de codificação comunicativa adaptativamente motivada e não arbitrária, e a estrutura por trás dessa codificação, de algum modo, reflete a estrutura da experiência humana (CROFT, 2003).
Desse modo, identificamos dois grupos gerais de formas linguísticas em competição para a marcação de gênero nas palavras em língua portuguesa:
(i) de um lado, há a marcação binária de gênero, já amplamente conhecida (que conta com as formas de feminino e masculino), na qual, para Camara Jr. (1970), a flexão de gênero feminino ocorre pelo acréscimo da desinência -a aos nomes biformes, que se referem às entidades sexuadas, em oposição ao morfema zero, indicativo de masculino;
(ii) de outro, evidenciam-se na língua usos inovadores das formas denominadas neutras, as quais pressupõem que tanto o feminino quanto o masculino têm as suas respectivas desinências na gramática do português e que a organização binária não é suficiente para contemplar todas as identidades de gênero.
Trataremos a seguir de estratégias que representam o grupo (ii).
Segundo Schwindt (2020), no português brasileiro atual, estas são algumas estratégias linguísticas que visam à inclusão de outras identidades de gênero, sem que o masculino seja privilegiado: (i) o emprego concomitante de formas masculinas e femininas nos vocativos – e também em outros itens – em vez do uso genérico do masculino (‘prezados e prezadas’); (ii) a inserção de novas marcas ortográficas no final de nomes (‘prezad@s’ ou ‘prezadxs’); (iii) a ampliação na função de marcas já existentes no português (‘prezades’); e (iv) a alteração de base em pronomes (‘ile’ e ‘dile’). Neste ensaio, discutiremos as estratégias apresentadas em (ii), (iii) e (iv), por serem usos inovadores não apenas de um ponto de vista intrinsecamente gramatical, mas também por partirem do reconhecimento de que a tradicional distinção entre feminino e masculino se demonstra insuficiente.
Observa-se, na escrita, a ocorrência de formas com -x e com -@, como em ‘meninx’ ou ‘tod@s’. Apesar de possíveis na escrita, essas estratégias não se demonstram produtivas na fala pelo fato de não serem pronunciáveis, já que o sistema ortográfico do português não prevê correspondência para esses caracteres no sistema fonológico, particularmente em núcleo de sílaba (SCHWINDT, 2020, p. 19). Devido a essa falta de correspondência, o uso de -@ e -x, como demonstra Lau (2017), pode nos levar a pronunciar ‘tod@s’ ou ‘todxs’, por exemplo, como ‘todas’ ou ‘todos’, reforçando a dicotomia entre feminino e masculino que se intencionava quebrar. Além disso, o uso de -@ pode indicar não uma fuga à tradicional especificação de gênero, mas uma suavização de ofensa, como parece demonstrar o exemplo em (1), retirado do título de um vídeo no YouTube:
(1) Galera tentem banir esse filh@ d@ put@ ele me bani da live dele ele mim xinga ele e desumilde
Notamos, em (1), que apenas a expressão ‘filh@ d@ put@’, em negrito, contém o uso de -@, ao contrário das demais referências, sublinhadas, ao mesmo sujeito que teria sido assim caracterizado. O gênero masculino está, na verdade, fortemente marcado (em 'esse', 'ele', 'dele'). Acrescenta-se a isso o fato de que leitores de palavras para pessoas com deficiência visual muitas vezes não reconhecem tais usos com -@ e -x, visto que operam a partir de uma linguagem matemática binária, pré-estabelecida.
No entanto, principalmente a partir de 2016, depois de um anúncio publicitário de uma marca de cosméticos no Brasil, exemplificado na figura 2, estratégias que utilizam a vogal -e surgem como possibilidade para marcar neutralização de gênero na língua e, então, para representar pessoas não-binárias e fugir à generalização pelo masculino.
Carvalho (2019), em uma perspectiva da Gramática de Construções, defende a existência de três construções desinenciais de gênero, todas elas compostas por um elemento de base nominal [N], vinculado a uma desinência de gênero: uma construção de masculino [N-o], uma construção de feminino [N-a] e, por fim, uma construção sem especificação de gênero [N-e]. A defesa feita por Carvalho parte de um experimento linguístico cujos participantes deveriam atribuir gênero feminino ou masculino a diferentes palavras inventadas, que, por sua vez, eram compostas por um destes três padrões: [N-o], [N-a] ou [N-e], e.g., ‘bugiro’, ‘dubila’ e ‘rulafe’, respectivamente. A atribuição de gênero às palavras do experimento ocorreria por meio da associação entre elas e nomes próprios tradicionalmente reconhecidos como femininos (Maria, Ana, Patrícia...) ou masculinos (Mário, Milton, Robson...). Feito o experimento, estes foram os resultados encontrados: 63% dos nomes próprios associados às pseudopalavras terminadas em -a eram femininos; 66,7% dos nomes próprios atribuídos às pseudopalavras terminadas em -o eram masculinos. Contudo, para as palavras inventadas terminadas em -e, Carvalho observou um equilíbrio: 51% das respostas foram nomes masculinos e 49%, femininos. Isso indicaria, então, que, se as construções [N-a] e [N-o] vinculam-se aos gêneros feminino e masculino respectivamente, a construção [N-e] não parece estar relacionada a um gênero específico, considerada esta classificação binária.
Por vezes, Carvalho se refere à construção [N-e] como {SEM ESPECIFICAÇÃO DE SEXO/GÊNERO}, visto que tende a não se limitar nem ao feminino, nem ao masculino.12 Compreendemos, porém, ser mais adequado fazer referência a uma construção {SEM ESPECIFICAÇÃO DE GÊNERO}, sem menção ao conceito de “sexo”, visto que este se distingue do conceito de identidade de gênero enquanto efeito performativo dos indivíduos na sociedade. A figura 3, adaptada de Carvalho (2019, p. 76), ilustra a rede da construção desinencial de gênero proposta pelo autor.
Certamente, apesar das dificuldades já apresentadas neste ensaio, a estratégia com a vogal -e, ao contrário de -x ou -@, demonstra-se mais produtiva no português. Observemos o exemplo (2), retirado de uma postagem no Twitter, que se compõe exclusivamente por uma lista de palavras sem especificação de gênero, valendo-se da construção [N-e], todas elas pronunciáveis em português brasileiro:
(2) Pute vadie safade vagabunde estranhe chate tonte desgraçade prostitute raparigue esquisite esquizofrênique cadeirante feie aleijade aloprade atropelade burre idiote cachorre cadele presidiarie fedide otake filhe de pute degenerade gorde paranoique louque doide sem amigues
Apesar da listagem proposta, deve-se notar que as palavras no exemplo (2) seriam tradicionalmente opostas por pares femininos e masculinos (‘puta’-‘puto’, ‘vadia’-‘vadio’), o que, em princípio, favorece o uso da construção [N-e] – nos termos de Carvalho (2019) – como fuga à tradicional marcação de gênero. A única exceção é ‘cadeirante’, palavra comum de dois gêneros – como ‘estudante’ e ‘valente’ –, que, no entanto, também não viola o padrão estrutural apresentado. Casos que desafiam o uso da construção [N-e] serão comentados mais adiante.
Destacamos, ainda, o exemplo (3). Trata-se da transcrição de uma fala, em live pelo Instagram, de uma pessoa, profissional de Artes Visuais e denominada ‘R.’ (cujo nome está abreviado para preservar-lhe a identidade), que foge à marcação binária de gênero feminino ou masculino. Em negrito estão os itens nominais que, de acordo com a perspectiva de Carvalho (2019), seriam compostos pelo esquema [N-e], de não especificação de gênero.
(3) A gente tá honrade de estar participando disso, de ser selecionade numa mostra tão importante. Eu sou nascide e criade em Vila da Penha, no Rio de Janeiro, e formei em Cinema, passei 10 anos trabalhando com Cinema.
Além dos exemplos anteriores, chamamos atenção para o próximo exemplo, retirado da mesma live já mencionada e transcrito abaixo. O exemplo (4) corresponde à fala de uma pessoa denominada ‘G.’ (aqui, também com o nome abreviado). Sua namorade – conforme G. apresenta a seguir – é R., cuja fala está transcrita no exemplo (3).13
(4) Eu sempre explorei muitas áreas, tanto na música, quanto em fotografia, mas agora, com minha namorade, eu tenho explorado vários, vários, muito mais forte isso.
Os corpos de G. e de sua namorade são, tipicamente, reconhecidos em sociedade como corpos masculinos. Entretanto, identificam-se estas pessoas, elas mesmas, com a não especificação de um gênero masculino ou de um gênero feminino. Apesar disso, devemos notar, em ‘minha namorade’ – expressão usada por G. –, que o possessivo ‘minha’ está marcado com a desinência associada ao feminino.
De acordo com a perspectiva defendida por Schwindt (2020), o feminino em ‘minha namorade’ advém da força de produtividade apresentada pelas formas já previstas para a materialização de gênero na língua portuguesa. A alta frequência com que se observa o possessivo ‘minha’, como outras formas femininas, torna-o mais disponível para uso default, de mais fácil e imediato acesso, o que, a priori, não ocorreria com um possessivo associado à construção [N-e], e.g., ‘minhe’.14
Por outro lado, a marcação de feminino no possessivo em ‘minha namorade’ pode revelar o efeito da representação mental do estereótipo de gênero social como possível interferência no processo sintático com o determinante. Como dizem Pinheiro e Freitag (2020, pp. 91-92),
A oposição entre a informação morfológica de gênero e oposições semânticas pode se relacionar à estereotipia porque o gênero pode adquirir caráter de conteúdo referencial. Com isso, a partir das construções estereotipadas enquanto esquemas sociais, as pessoas processam informações de percepção e cognição, possibilitando a construção de mecanismos para a compreensão do mundo complexo no qual vivem [...].
Muitas vezes, mesmo ao pretenderem conscientemente realizar a marcação de forma inclusiva, as pessoas esbarram em movimentos inconscientes que atuam para a regularização das formas, a partir das experiências com estereótipos compartilhados entre seus grupos sociais: na necessidade de se explicitar a informação gramatical de gênero nas palavras, por vezes pode-se recorrer à marcação de gênero a partir de representações mentais mais amplamente compartilhadas dos estereótipos de gênero. A marcação em ‘minha namorade’ explicita que a informação gramatical estará, na realidade, apresentada a partir da representação social dos estereótipos construídos sobre feminilidade e masculinidade. Especificamente nas falas de G. e sua namorade, R., observamos que continuamente se distanciam de marcações de gênero masculino: valem-se da vogal -e como não especificadora de gênero; valem-se até mesmo do feminino; e as duas estratégias funcionam a fim de G. e R. se distanciarem do masculino.
Além disso, não se deve negar que o emprego de estratégias de neutralização na língua demanda um alto grau de instrução acerca das estruturas linguísticas, das suas possibilidades de realização e das suas motivações sociais, além de um alto grau de instrução conceitual para as discussões sobre gênero. É necessário, portanto, um esforço cognitivo para aplicar a forma adequada nos contextos permissivos do ponto de vista estrutural.
Apesar de se opor com aparente sucesso a -o (masculino) e -a (feminino) em determinados vocábulos, a vogal -e, como desinência, encontra-se em alguns itens lexicais na posição associada à marcação de gênero gramatical e tais itens são comumente interpretados como masculinos. É o que ocorre em pronomes como ‘ele(s)’ e ‘este(s)’. Além disso, esse uso da vogal -e entra em conflito com outras formas já previstas na língua, a princípio comuns de dois gêneros, como ‘estudante’ e ‘presidente’, que, apesar de não trazerem em si uma oposição de gênero entre -o e -a, costumam se pluralizar genericamente pelo masculino: ‘os estudantes’ e ‘os presidentes’.
Nos nomes comuns de dois gêneros no português, observa-se outro problema gerado pela marcação de gênero e pela concordância baseada em gênero neutro. Por exemplo, em profissões como estudante, atendente e gerente, o modo como a profissão é apresentada (se é masculina ou feminina) interfere no julgamento que as pessoas fazem em relação a esses nomes, com marcação de -e, denotando um efeito cognitivo da estereotipia, socialmente construída, gerada pela frequência e saliência das profissões. Sugere-se, pois, um efeito de correspondência entre os estereótipos compartilhados com a informação de gênero gramatical (PINHEIRO; FREITAG, 2020).
Ainda em relação à linguagem neutra, conforme vem sendo denominada, têm ganhado destaque os itens pronominais ‘ile’, ‘ilu’ e ‘elu’, em oposição aos pronomes ‘ele’ e ‘ela’. A essas estratégias, Lau (2019; 2017) e Lau e Sanches (2019) acrescentam possibilidades como ‘professories’ e ‘autories’, nas quais se insere a vogal -i antes da vogal -e já prevista. Essas estratégias certamente representam tentativas de se afastar de formas já consagradas e que, por tradição, se associam ao gênero masculino. Entretanto, tais tentativas despertam outras questões.
Em relação ao pronome ‘ilu’, a alteração promovida na forma linguística ultrapassa a substituição de um fonema por outro; há, na verdade, duas alterações no item lexical. Como também indicado por Schwindt (2020), a primeira dessas alterações ocorre na base da palavra: substitui-se o primeiro e- por i-, como também em ‘ile’. Além disso, substitui-se o -e final por -u. Isso pode levar a maiores dificuldades na identificação, compreensão, assimilação e, consequentemente, uso efetivo do pronome. Outra questão digna de nota é o fato de a vogal -u, em final de palavra, perder o seu traço distintivo com a vogal -o, assemelhando-se a esta na pronúncia [ʊ], e isto pode aproximar as formas ‘ilu’ e ‘elu’ de uma marcação típica de masculino, como ‘ilo’ e ‘elo’. Nos casos das realizações de ‘professories’ e ‘autories’, devemos lembrar que, em português, a vogal -e em posição átona final tende a se aproximar à pronúncia da vogal -i. Desse modo, a inserção na escrita de uma (semi)vogal -i (quer se vise a um hiato, quer se vise a um ditongo) pode levar, tal qual apontado por Schwindt (2020, pp. 6-7), à monotongação em [ɪ] já tradicionalmente pronunciado e associado ao masculino.
Evidenciamos, com isso, que a aplicação das formas da língua para neutralização de gênero demanda alta reflexão metalinguística, isto é, empregam-se determinadas estruturas do código linguístico para que se reflita sobre o próprio código – além, é claro, das reflexões sociais que motivam e decorrem desses usos. Parece, portanto, que a aplicação sistemática das regras de não especificação de gênero demanda níveis mais altos de escolarização, com um perfil específico de letramento, para pessoas verdadeiramente incluídas na discussão acerca das questões de gênero, sexualidade e identidade. Requer-se, então, um automonitoramento preciso e rápido para se empregarem as formas de neutralização de gênero em determinados ambientes estruturais do sistema linguístico. Como a história da mudança e da variação linguística tem nos mostrado, mesmo que haja na língua modificações a todo momento e novas formas emerjam para atender à necessidade comunicativa, uma mudança linguística apenas se instaura caso a condição estrutural do sistema, as necessidades comunicativas e os valores sociais das formas linguísticas produzidas sejam compatíveis com o processo de mudança e, assim, viabilizem-no.
3. Demandas sociais em oposição às restrições linguísticas
Do ponto de vista da estrutura linguística, como demonstramos, parece à primeira vista haver diversas barreiras para o uso de -e como estratégia de neutralização de gênero no português. Poderíamos, então, dedicar-nos a esmiuçar ainda mais os problemas decorrentes da fuga à marcação dos gêneros masculino e feminino. Em termos de estrutura linguística e de praticidade do uso, é possível que encontremos outras questões que demandam novas análises. No entanto, há algo que não devemos ignorar: todas essas formas de linguagem inclusiva partem de um posicionamento político; partem de identidades sociais que querem ser reconhecidas e questionam a soberania do masculino, em detrimento de outras identidades de gênero. Para Lemke (1995), por exemplo, não existe discurso que não seja ideológico, isto é, que não seja orientado por um repertório de experiências e pontos de vista:
Todos os discursos são ideológicos. Toda construção de significado pode ser compreendida a partir de uma dimensão orientacional. Orientamos os nossos significados para públicos projetados, e os orientamos dentro de um sistema de diferentes pontos de vista disponíveis na comunidade. Essas orientações envolvem preferências de valores; elas nos associam a um determinado posicionamento político e a um ponto de vista sobre o nosso tópico e sobre o nosso público. Elas são inescapáveis. (LEMKE, 1995, pp. 11-12)15
Todos os discursos ocorrem em determinados contextos sociais, dentro de um sistema de pontos de vista disponíveis. Lau (2019; 2017) e Lau e Sanches (2019), por exemplo, empregam nos seus textos estruturas linguísticas que visam à neutralização de gênero, pautada principalmente por usos como ‘elus’ e ‘váries autories’. Mesmo a forma com -x, impronunciável em português, é ainda encontrada em determinados contextos – sempre pautados pela escrita.
No mesmo ano de 2015, que situamos como marco temporal para o início deste texto, em uma prova e em um comunicado divulgado na instituição, docentes do Colégio Pedro II valeram-se da forma ‘alunx’ a fim de não especificar o gênero das pessoas que leriam tais documentos.16 Já em 2019, em artigo publicado pela BBC no site G1, Julian Cosmo Kahalia, pessoa não-binária, diz o seguinte acerca de possíveis dificuldades associadas à linguagem denominada neutra: “Não aceito que me tratem como ele ou ela. Pô, não é difícil usar a linguagem neutra. Dá pra aprender em uns cinco minutos. Puro preconceito de quem se nega a usá-las”.17
Na mesma reportagem que divulga a proposta inclusiva adotada por docentes do Colégio Pedro II, diz-se que a instituição recebeu determinadas críticas ao autorizar o uso de ‘alunx’. Pelas críticas às quais a reportagem faz referência, a escola estaria licenciando uma suposta ‘violação’ do português. Não é incomum, porém, sofrerem estigma usos linguísticos que se afastam do padrão estabelecido – especialmente quando tais usos, inovadores, marcam identidades sociais que também se afastam de identidades hegemônicas.
Portanto, ainda que restrições linguísticas – importantes à discussão – por vezes passem despercebidas (conscientemente ou não), há pessoas que já vêm incorporando às suas práticas discursivas estratégias de não especificar gênero segundo uma marcação binária. Existem restrições do ponto de vista estrutural no português para essas novas estratégias? Certamente. Porém, o fato de que essas pessoas conseguem usar uma linguagem que identificam como neutra e, de acordo com Kahalia, fazem isso sem aparente dificuldade deveria nos servir como motivação para buscar maneiras de compreender e legitimar os esforços empreendidos para se usar a língua livre das tradicionais especificações de gênero – ainda que, enquanto linguistas, não possamos ignorar aspectos estritamente estruturais como os indicados neste ensaio.
Estamos, a todo momento, nos referindo às identidades de diferentes pessoas e à sua forma de agir no mundo. Se, por um lado, a imposição de maneiras de se falar ou escrever leva a polarizações na sociedade – principalmente sem que se reconheçam os motivos que fazem emergirem novas representações linguísticas para referência aos gêneros sociais –, por outro devemos respeitar as identidades que se afastam da hegemonia e o seu desejo e direito de serem denominadas conforme se reconhecem.
Existem demandas sociais (e devem ser respeitadas) em relação à nomeação de gênero. Como linguistas, não é nossa função normatizar usos e prescrever novas regras. Contudo, é necessário evitarmos polarizações pautadas pelo desentendimento e, ao mesmo tempo, respeitarmos as existências de todas as subjetividades. Nós, linguistas, somos integrantes de uma comunidade científica cuja função é descrever e compreender fenômenos do mundo biossocial, no que diz respeito à linguagem. Portanto, ao nos atentarmos para os usos das estratégias de neutralização de gênero na gramática, podemos juntar esforços e, assim, propiciar diálogos entre pessoas que partem de diferentes realidades e defendem diferentes posicionamentos quanto às relações entre gênero social e gênero gramatical.
4. Agradecimentos
Pela leitura atenta e pelas inúmeras contribuições feitas a este ensaio, agradecemos à Profa. Dra. Raquel Meister Ko. Freitag, à Profa. Dra. Elisa Battisti, ao Prof. Dr. Luiz Carlos Schwindt e a Pedro Perini Surreaux. Os apontamentos certamente nos permitiram preencher lacunas que, antes, não havíamos identificado. Somos também bastante gratos pela oportunidade de participar do simpósio Língua, gramática, gênero e inclusão, como parte do evento Abralin Ao Vivo, cuja organização geral, em meio ao pandêmico ano de 2020, merece destaque, sobretudo por ter firmado proveitosas conexões entre linguistas de diferentes locais do mundo. Quaisquer equívocos que ainda persistam são de nossa inteira responsabilidade.