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Research Report

A Crisis in the Value of Science: between exclusion and participation

Regina Souza Gomes

Universidade Federal do Rio de Janeiro image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0002-7042-8235


Keywords

Ideological value
Science
Discursive semiotics
Tensiveness

Abstract

The value of science has become the subject of political debate in government speeches in the past two years. Official documents, manifestos by scientists and news articles have highlighted these conflicts. The objective of this study is to discuss, based on French semiotic theory, the ways in which the value of science is discursively constructed, considering the thematic and figurative paths and their interrelationship in a specific cognitive context that is inscribed in objects that are sometimes material, utilitarian, and brief and sometimes immaterial, universal, democratic, and long-lived. In addition, we will show how the use of tensive, gradual and dynamic operations help explain the value of the value of science: the extensive syntax of blending and sorting and the intensive syntax of tone and atony demonstrate how excessive field restrictions or an undifferentiated mixture of cognitive and pragmatic domains are used to frame the notion of science. The analysis will consider government websites, documents and notices (CAPES and CNPq), as well as the manifestos, articles, websites and reports of researchers and scientific entities published in 2019-2020. We observed that the discrepancies and tensions between the values ​​broadcast in government speeches and those found in the speeches of researchers and scientific organizations impede productive dialogue.

Introdução

A ciência passa a ter protagonismo e a ser alvo de disputas nos discursos que circulam tanto nas mídias quanto nas redes sociais. As reportagens de jornais têm mostrado isso, havendo mesmo matérias que tematizam o valor da ciência em meio à crise sanitária em que nos encontramos1. Mas essa discussão já aparece há algum tempo, com os constantes cortes dos investimentos nas universidades e nas pesquisas científicas, tendo se asseverado com as novas diretrizes do presente governo. E parece ser também um fenômeno mundial, como aponta Margarida Salomão, em live do Abralin ao vivo2.

De um lado, há os discursos de valorização da ciência; de outro lado, o descrédito que instituições de pesquisa e cientistas vêm sofrendo do governo e de uma parcela da população. Entre o descrédito e a defesa acalorada, como surge a ciência nesses discursos?

Para fazermos essa análise, tomaremos a semiótica discursiva como base teórica e levaremos em conta: (a) o conceito de valor em semiótica, considerando seu caráter relacional; (b) as operações e dispositivos semânticos de triagem e de mistura que vão explicar as modulações e o dinamismo que permitem apreender o valor do valor, a partir de Zilberberg (2001; 2011; 2012); (c) os percursos temáticos e figurativos3 em que se inscreve o tema da ciência, constituindo-se como um universo cognitivo específico.

Para tanto, selecionamos como corpus tanto pronunciamentos amplamente noticiados de personalidades governamentais, documentos, editais e notícias publicados nos sites da CAPES e do CNPq, quanto pronunciamentos, manifestos, cartas e notícias publicados por cientistas e sites de associações científicas nos dois últimos anos (2019-2020).

Na próxima seção, desenvolveremos o conceito de valor para a semiótica e sua importância para a compreensão dos discursos e, a seguir, faremos a análise, observando principalmente as operações de triagem e mistura, assim como os aumentos e diminuições quantitativos de tonicidade (ZILBERBERG, 2012) que constituem o valor da ciência nos textos selecionados.

1. O valor do valor

A semiótica atribui grande importância ao conceito de valor para a explicação do sentido dos textos e dos objetos semióticos. Num nível mais abstrato, constitui as axiologias fundamentais que dão unidade ao texto, convertendo-se em objeto de busca dos sujeitos e entre eles circula nas narrativas. Enfim, discursiviza-se como valores ideológicos, surgidos das relações entre as figuras e temas (FIORIN, 1996). Estes são construídos no discurso a partir de uma rede relacional que os discretiza em oposição a outros valores, manifestados ou pressupostos, com os quais polemizam.

O valor que a ciência comporta nos discursos depende, portanto, das relações semânticas que entretém com outros valores que constituem o universo do conhecimento humano, relativos aos valores modais do saber e do crer (GREIMAS, 1983). Nos textos analisados, o saber científico entra numa rede de relação com o saber experiencial, individual ou coletivo, do senso comum e com os dogmas, que correspondem ao sistema de crenças no qual o saber decorre do crer. Essas relações ora estabelecem oposições e contradições, ora se aproximam e se sobrepõem.

As distinções e discretizações, combinações e convergências semânticas se fazem de forma gradual e dinâmica nos textos, por operações e dispositivos discursivos. A pergunta que se faz é como surgem os valores, como eles se formulam nos textos, com toda a sua complexidade? Zilberberg (2001; 2011; 2012) nos ajuda a pensar nessas questões, discutindo a complexidade dos valores como produto de valências (categorias dinâmicas que correspondem a um eixo da intensidade, relativo aos afetos, e um eixo da extensidade, relativo aos estados de coisas), cuja estabilidade faz surgir o valor. Nesse sentido, propõe as operações sintáticas extensas da mistura e da triagem e as intensas da tonicidade e atonia. Os valores discretos e absolutos surgem das operações de triagem, que vão desbastando os conteúdos semânticos tomados como estranhos ao valor, orientando-o para maior tonicidade, aumentando-lhe a força, privilegiando a concentração e a exclusão. As operações de mistura agregam conteúdos semânticos que dão ao valor sua extensão e seu número, sua distribuição, dando-lhe um caráter integrador. A lógica da triagem leva à exclusão e à exclusividade, os chamados valores de absoluto; a lógica da mistura leva à participação e à distribuição, ou seja, aos valores de universo. Nas operações de intensidade, são os “mais” e os “menos” que regulam o acento, ou seja, o grau de tonicidade com que os valores são postos em discurso.

A ciência, tal como as outras grandezas semânticas em geral, reclama essa análise mais refinada, que vai delineando o valor que esse valor tem, suas tensões, seu movimento entre a sua tonicidade discreta (o que é ciência “de fato”, sua importância) e as misturas que alargam seu domínio. Observemos então como se dão nos textos esses dispositivos.

2. A ciência e a doxa: a mistura e a triagem, o excesso e o equilíbrio

Nas falas de Ministros do Estado brasileiro, em episódios noticiados em 2019, o fazer dos cientistas, baseado em dados e metodologias, controle e verificação, foi questionado, tendo como parâmetro as convicções pessoais, implicações incongruentes e mesmo a fé.

Nesse ano, o ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra, colocava em descrédito o estudo da Fiocruz sobre o uso de drogas no Brasil. Segundo a reportagem do G1, em 29/05/2019, o ex-ministro teria dito que o instituto “tem o viés de defender a liberação das drogas” e, por sua suposta posição ideológica, teria a qualidade e a isenção do estudo comprometidas. A pesquisa, segundo a mesma reportagem, ouviu mais de 16 mil pessoas, em 4 anos de trabalho e o envolvimento de mais de 500 profissionais de diferentes áreas, da epidemiologia à estatística. Para contestar os dados e os resultados da pesquisa da Fiocruz, o ex-ministro teria dito: “Eu andei nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a ver com as drogas, eu não entendo mais nada” (Exame, 08/08/19).

Assim, em seu pronunciamento, o então ministro pôs em dúvida os resultados obtidos pela pesquisa, que ocorreu numa duração extensa (concretizado na reportagem por “4 anos de trabalho”) e com grande número de dados (figurativizado por “16 mil pessoas” ouvidas), envolvendo inúmeros pesquisadores (citando a reportagem, “500 profissionais de diferentes áreas”). Para desqualificar o trabalho dos cientistas, o ex-ministro cita uma ação prosaica e cotidiana, a sua experiência individual e pontual de andar nas ruas de Copacabana, e um raciocínio implicativo e causal inaudito, incongruente e não comprovado: implicitamente, no dizer do ex-ministro, as ruas vazias de Copacabana decorrem da violência, que, por sua vez, decorre da epidemia das drogas. Além disso, imputa aos pesquisadores e aos resultados da pesquisa, que deveriam embasar as políticas públicas, uma parcialidade e um interesse ideológico que, na verdade, contrariamente, ocorrem justamente na fala do ex-ministro.

Se, na fala de Osmar Terra, o fazer científico se confunde com impressões pessoais e convicções infundadas ou a elas se subordina, a depender do seu “alinhamento” ao programa de governo, para a ministra Damares Alves é a fé que deve ocupar o domínio da ciência. Em janeiro de 2019, uma matéria do G1 (09/01/19) relata a polêmica em que se envolveu a ministra Damares Alves, a partir do destaque dado nas redes sociais de um vídeo de 2013, no qual a ministra diz que a igreja evangélica “perdeu espaço na ciência” e que “os cientistas tomaram conta dessa área”. Ao buscar excluir os cientistas como protagonistas do fazer científico e a aplicação do conhecimento produzido por eles no ensino das ciências, construindo um paradoxo, Damares Alves esvazia a ciência de seu valor intrínseco, substituindo-o pelo da crença religiosa.

Essa indiferenciação entre os valores cognitivos do conhecimento científico, do senso comum e da fé destitui da ciência os elementos semânticos que surgem como fundamentais nos discursos dos cientistas. Nestes dois casos, as operações de mistura, ao incluir as convicções (pessoais ou religiosas) no campo da ciência, acabam por levá-lo à mistura extrema, à perda de sua especificidade. A operação de mistura está, então, submetida à tonicidade elevada: há demasiada mistura e, assim, não se podem mais distinguir os domínios do crer e do saber, que se fundem. É importante destacar que essas operações de mistura são constantes nas falas de personalidades públicas nas mídias sociais, tendo como destinatários as pessoas em geral, o grande público não especializado, os que não são cientistas.

Contrariamente aos pronunciamentos dos ministros, em artigo no Jornal da Unicamp, Peter Schulz (2020), professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas da UNICAMP, sintetiza particularidades semânticas recorrentes nos discursos de cientistas sobre a ciência: (a) a sua delimitação, em oposição a outros valores do universo cognitivo; (b) o caráter aspectual durativo do fazer científico, tomado como um processo em marcha e o exercício de seu rigor metodológico e investigativo, opondo-se à perfectividade do produto, resultado possível da pesquisa científica. Diz o pesquisador:

A ciência, quando admirada, é vista pelo público pelos seus resultados, que vêm moldando, desde o século XIX, o imaginário do que chamamos de progresso. Quase todos pareceram contentes com essa maneira de ver a ciência. No entanto, é uma visão muito restrita e perigosa, pois essa percepção deixa de lado o principal: a ciência é o seu processo de obter os tais resultados que são admirados. Ciência é episteme, não doxa, repetindo assim, com outros termos, o título deste texto [Covid-19: ciência não é opinião, mas conhecimento].

[...]

Resumindo uma mensagem importante até aqui: ciência para ser usada para o bem comum é um consenso da comunidade científica, construído cuidadosamente com muitos estudos validados pelos colegas anônimos que analisam cada trabalho. Ou, tentando ser mais rápida, com muitos grupos trabalhando ao mesmo tempo para ter os vastos resultados necessários para se construir conhecimento e não opiniões. Ou seja, ciência não é o resultado anunciado de um único trabalho, é a construção de um consenso pela comunidade científica (SCHULZ, 2020).

Nesse artigo, o enunciador distingue, então, o saber científico de um saber corriqueiro (opiniões não validadas). A ciência relaciona-se aos temas do “processo”, da “episteme”, do “consenso”, da validação, da “análise”, da “construção do conhecimento” conjunta. O público, ao contrário, associa esse saber a “progresso” e a “resultados”, qualificados pelo professor como relativos a “uma visão muito restrita e perigosa”.

Para o cientista, é preciso operar com a tensão entre o saber e o não-saber (ainda), e trabalhar com a referência interna, ou seja, a dosagem e o cotejamento do saber que se constrói, o que se põe em circulação na comunidade científica, com o saber já acumulado. É necessário também que o cientista encare, julgue e determine a qualidade dos dados que maneja, com todos os problemas que isso comporta, o que se traduz, no artigo de Schulz, como um consenso que se constrói na comunidade científica. O pesquisador aplica, então, por um lado, a triagem de grandezas para a constituição do que é ou que não é científico; por outro lado, ao tratar do processo investigativo que o caracteriza, é a mistura (a colocação em circulação do conhecimento, a participação, a construção coletiva) que é chamada para compor o seu sentido. Diferentemente das personalidades políticas anteriormente citadas, o dizer do cientista busca o equilíbrio entre a exclusão e a participação, triando o que é estranho ao valor da ciência e acolhendo as misturas admissíveis, necessárias para regular as trocas entre o saber e o crer.

3. A triagem e a exclusão

Tendo observado as operações que discretizam (ou não) o conhecimento científico do conjunto do universo cognitivo humano, em que concorrem as modalidades do crer e do saber, nos textos analisados também se delimita como se configura a extensão do campo do conhecimento científico (suas áreas e temas), além da percepção de como se caracterizam as ações que figurativizam o fazer científico.

Os editais e chamadas para financiamento de projetos e distribuição de bolsas concretizam, por meio da definição de áreas estratégicas, as restrições e exclusões tematizadas no discurso do ex-ministro da Educação, em tuíte publicado em 27 de setembro de 2019, ao comentar a atribuição de bolsas para o ensino básico de ciências. Diz ele: “Ciências, no caso, é física, química ou biologia (Não tem para xxxxxlogia)”. Nos textos oficiais, por meio de sucessivas operações de triagem, excluem-se inúmeras áreas de conhecimento do recebimento de bolsas de estudos, tanto na pós-graduação, quanto na iniciação científica, e mesmo as áreas que restam têm o escopo de temas financiáveis bastante reduzido. Há valorização tônica das áreas de tecnologias, enumeradas como “estratégicas, habilitadoras, de produção, para o desenvolvimento sustentável e para a qualidade de vida”. Mesmo nessas áreas, ainda se interpõem mais restrições e exclusões, como se vê na Portaria no 1122 de 19/03/2020 do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC):

Art. 3º A Área de Tecnologias Estratégicas contempla os seguintes setores:

I - Espacial;

II - Nuclear;

III - Cibernética; e

IV - Segurança Pública e de Fronteira.

[...]

Art. 4º A Área de Tecnologias Habilitadoras contempla os seguintes setores:

I - Inteligência Artificial;

II - Internet das Coisas;

III - Materiais Avançados;

IV - Biotecnologia; e

V - Nanotecnologia.

[...]

Art. 5º A Área de Tecnologias de Produção contempla os seguintes setores:

I - Indústria;

II - Agronegócio;

III - Comunicações;

IV - Infraestrutura; e

V - Serviços.

Parágrafo único. A área referida no caput tem como objetivo contribuir para o aumento da competitividade e produtividade nos setores voltados diretamente à produção de riquezas para o país.

Art. 6º A Área de Tecnologias para o Desenvolvimento Sustentável contempla os seguintes setores:

I - Cidades Inteligentes;

II - Energias Renováveis;

III - Bioeconomia;

IV - Tratamento e Reciclagem de Resíduos Sólidos;

V - Tratamento de Poluição;

VI - Monitoramento, prevenção e recuperação de desastres naturais e ambientais; e

VII - Preservação Ambiental.

Parágrafo único. A área referida no caput tem como objetivo contribuir para o equilíbrio entre desenvolvimento econômico, social e preservação ambiental.

Art. 7º A Área de Tecnologias para Qualidade de Vida contempla os seguintes setores:

I - Saúde;

II - Saneamento Básico;

III - Segurança Hídrica; e

IV - Tecnologias Assistivas (DIÁRIO Oficial da União, Portaria 1122 de 19/03/2020).

Curiosamente, nem a educação está incluída nas áreas consideradas estratégicas. Apesar da aparente inclusão da sustentabilidade e da qualidade de vida, que representaria uma preocupação com o bem estar social, há, no entanto, um movimento em direção à exclusividade de ações nesses campos de saber, estabelecendo uma concentração ainda mais restrita. As preocupações governamentais estão na aplicação das pesquisas em segurança pública e de fronteiras, com os produtos materiais, com a riqueza material, a competitividade industrial, mercadológica e econômica, com assistência utilitária. As ciências básicas, humanas e sociais somente são admitidas se contribuírem para o desenvolvimento das áreas definidas como prioritárias na Portaria no 1122 de 19/03/2020, como podemos comprovar no excerto abaixo da Portaria no 1329 de 27 de março de 2020, publicada posteriormente ao protesto de organizações científicas, representantes de importantes grupos de pesquisa e universidades em relação à absoluta exclusão das Humanidades do apoio financeiro governamental:

Art. 1º A Portaria nº 1.122, de 19 de março de 2020, publicada no Diário Oficial da União nº 57, de 24 de março de 2020, Seção 1, página 19, passa a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 2º ..........................................

.......................................................

Parágrafo único. São também considerados prioritários, diante de sua característica essencial e transversal, os projetos de pesquisa básica, humanidades e ciências sociais que contribuam para o desenvolvimento das áreas definidas nos incisos I a V do caput." (DIÁRIO Oficial da União. Portaria 1329 de 27/03/2020).

Essa mesma tendência aparece nos editais que se voltam especificamente para as demandas decorrentes da pandemia do COVID-19, que dão ênfase aos produtos, como EPIs, respiradores, vacinas, remédios etc., e não há referência a ações integradas de prevenção ou a estratégias de promoção de atendimento de saúde mais eficaz à população.

Nos editais e documentos governamentais voltados para os cientistas, ao invés da mistura, há a triagem, de modo a excluir da ciência o que sempre esteve em seu campo, como as ciências humanas e sociais. E essa triagem também apresenta tonicidade superlativa, fazendo subtrações de subtrações: entre os campos das ciências, algumas áreas (tecnologias, saúde, produção) e, dessas áreas, apenas alguns campos de pesquisa.

O papel utilitário da ciência nos discursos governamentais aprofunda-se ainda em outras ações, como a que envolve um programa acordado entre o MEC e o MJ, o PROCAD. Em notícia publicada no site da CAPES, em 17 de janeiro de 2020, percebe-se o papel subsidiário da ciência nas políticas de governo, chegando a confundir, nesse programa, os estudos científicos com o fazer próprio das áreas de segurança pública do Estado, reduzindo-se, praticamente, a um serviço de inteligência policial:

As pesquisas científicas irão auxiliar as forças de segurança principalmente no enfrentamento ao crime no país. Os estudos poderão traçar a origem de drogas e mapear redes de tráfico, identificar com precisão a autoria de crimes, por meio de exames de DNA em objetos, pessoas, corpos carbonizados e vítimas de violência sexual, além de ajudar no mapeamento de lavagem de dinheiro por meio de inteligência artificial e combater crimes de corrupção, pedofilia e invasão de privacidade com o uso do rastreamento. ("MEC e MJ estimulam pesquisas científicas para enfrentamento de crimes". Portal do Governo Brasileiro, 17/01/2020).

Desse modo, nos documentos e acordos oficiais, mesmo quando o princípio da participação está em jogo, como no programa que envolve o MEC, o MJ e o PROCAD, este não se dá por colaboração, mas produz uma confusão entre diferentes domínios e campos de ação.

A ciência tem, portanto, nesses discursos, como único papel relevante sua aplicação pragmática e imediata, a criação de riquezas e a competitividade econômica, excluindo uma visão mais universalista, participativa, interdisciplinar, ética e reflexiva das ciências, consideradas estas últimas grandezas indesejáveis e repulsivas, sob o ponto de vista governamental. O fazer científico desejável para esses sujeitos é, então, regido pelas sucessivas operações de triagem, pelo princípio da divisão, pelo fechamento e pelo interdito. Segundo Fiorin (2008, p. 32), o fazer científico “governado pelo princípio da triagem tem um aspecto descontínuo e tende a restringir a circulação de objetos”, caracterizando-se pela “presença do exclusivo e do excluído”.

Mesmo quando age sob o princípio da participação e pela operação da mistura, a ciência, nesses discursos governamentais, leva em conta o cotejo dos desiguais: há grandezas superiores e grandezas inferiores. Estabelece-se, assim, uma hierarquia em relação a áreas, ações e temas considerados melhores e os piores, e a ciência básica, as ciências humanas e sociais só são admitidas se estiverem a serviço das tecnologias prioritárias.

Em contraponto a esses discursos, os cientistas e associações científicas, em manifestos, em cartas e em pronunciamentos na mídia, promovem a necessidade de inclusão de áreas humanas e sociais, da interdisciplinaridade, da ampliação, da diversidade e da distribuição do conhecimento como constitutiva do domínio da ciência. Assim, as operações de triagem se fazem por pejoração, em que deveriam estar excluídos os maus projetos (os que não observam o rigor e o método científicos) e tudo o que não seja ciência (a opinião e o dogma).

Em carta ao Ministro do MCTCI (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), de março de 2020, assinada pela SBPC, ABC e mais de 70 entidades científicas do país, reclamando da restrição de campo e da omissão das ciências básicas, humanas e sociais entre as áreas estratégias impostas pelo Ministério, se lê:

Uma questão central emerge: se não há a possibilidade de uma formação de pesquisadores em todas áreas e temas, o que será do futuro da ciência brasileira? Como seremos capazes de responder a problemas e desafios futuros da ciência, da tecnologia e da inovação, muitos deles imprevisíveis? ("CARTA da ABC e SBPC ao Ministro do MCTIC, Marcos Pontes, de 27/03/2020).

Como se vê, no dizer dessas entidades, a limitação de áreas, ações e temas do campo das ciências extrai do fazer científico justamente aquilo que lhe dá existência e o que lhe permite responder a problemas e desafios científicos e humanos.

Em manifesto de março de 2020, as mais de 70 entidades científicas, da qual a Abralin é signatária, citando o Projeto de Ciência para o Brasil (ABC, 2018), que contou com a contribuição de dezenas de destacados cientistas brasileiros, demarcam, por operações de mistura e pelo princípio de participação, a extensão do valor da ciência, abarcando finalidades mais abrangentes e universais, subvertendo as relações hierárquicas estabelecidas pelas portarias governamentais. No seu dizer, essas entidades assinalam a autoridade das ciências básicas em relação às ciências aplicadas:

O objetivo da ciência básica é simplesmente expandir o conhecimento humano. Mas sua importância não se limita a isso. O conhecimento adquirido pode inspirar soluções para problemas ou inovações que podem gerar benefício para a sociedade ou para o meio ambiente, por exemplo. Na maior parte dos casos a ciência aplicada se vale das descobertas e teorias científicas enunciadas e construídas pela pesquisa básica acumuladas ao longo de séculos. ("MANIFESTO sobre portaria nº 1122 do MCTIC recebe apoio de mais de 80 entidades científicas e 60 INCTs". Portal SBPC, 30/03/2020).

Diferentemente dos discursos governamentais, que se atêm aos produtos materiais e imediatos da ciência, esta é vista, nos discursos das associações científicas, como um devir: assim, do ponto de vista aspectual, as pesquisas abrem um leque de possibilidades e preveem a longevidade. O alcance dos estudos científicos, de qualquer área, é inesperado e imprevisível, por isso não se devem fazer restrições.

Desse modo, mesmo tendo como perspectiva a aplicabilidade dos conhecimentos científicos, essa ação mais pragmática deve ter alcance mais amplo e democrático, não devendo se ater a um retorno imediato. No discurso das entidades científicas, as ciências básicas, humanas e sociais encontram também lugar no desenvolvimento do país.

4. Considerações finais

Concluindo, no discurso governamental, o valor da ciência está investido em objetos materiais, pragmáticos e utilitários, as tecnologias e produtos. São, então, objetos consumíveis, sujeitos ao desgaste, aspectualmente transitórios, breves e ultrapassáveis. Se, neste caso, é a triagem e a exclusão que regem a produção do valor, a mistura e indiferenciação são responsáveis pela não distinção entre os saberes e fazeres científicos e os não científicos, confundindo ciência, opinião e dogma. Nas falas dos cientistas e pesquisadores, ao contrário, o valor da ciência se inscreve em objetos imateriais, nos processos investigativos, aspectualmente longevos, de alcance imprevisível, podendo ser aplicáveis ao bem comum. Balizados pela operação de mistura, esses discursos acolhem os temas da interdisciplinaridade e das humanidades em seu escopo. Para as agências de fomento e instâncias governamentais, o fazer científico tem sua importância diminuída, realizando papel adjuvante na produção de riqueza, voltado para o mercado e para o controle social, papel visto pelos cientistas como restritivo e irrisório, que orienta para a própria nulidade do valor da ciência.

Essa breve análise aqui desenvolvida já nos faz ver a distância que separa os discursos oficiais dos discursos dos cientistas, inserindo-se cada qual em um sistema de valores diverso e até contraditório. No documento “Relato e reflexões sobre reunião SBPC/Sociedades Científicas e Governo. O futuro da ciência brasileira?”, as entidades que o assinam (mais de 70, incluindo a ANPOLL e a ABRALIN) evidenciam, quase com espanto e revolta, essa cisão, avaliando que o papel temático do cientista se transmuta, na formulação discursiva oficial, ao do empreendedor e o da universidade “a uma indústria produtora de mercadorias para o mercado”, identificando as áreas estratégicas estabelecidas pelo MCTIC como as “aliadas ao mercado”. E questiona:

Quando perguntado, na reunião, onde entraria as ciências humanas nesse rol de áreas prioritárias, o presidente do CNPq respondeu com a seguinte situação hipotética: vamos supor que esteja aberto um edital de pesquisa para o setor de aeronáutica, caberia a um psicólogo, por exemplo, submeter uma proposta de pesquisa para investigar o comportamento de passageiros e tripulação. Resposta improvisada que não se sustentaria se fosse questionado sobre como fica a vida de quem pesquisa, por exemplo, filosofia pré-socrática, historiadores do período do golpe militar brasileiro, literatura negra no Brasil, sociólogos e cientistas políticos que pesquisam partidos políticos, geógrafos que estudam o movimento sem terra...? (RELATO e reflexões sobre a reunião SBPC/Sociedades Científicas e Governo. Portal ANPED, 30/03/2020).

Sem uma base axiológica comum, percebem-se as dificuldades de acontecer qualquer diálogo entre os sujeitos que estão dirigindo as políticas de desenvolvimento científico e os sujeitos que constroem o saber científico.

Além da dificuldade e até impossibilidade de diálogo que ocorre entre o cientista e os órgãos públicos neste momento histórico do país, os pesquisadores assinalam que esse problema também abrange a interação com a população em geral e mesmo com os profissionais formados nas universidades. Peter Schulz, em artigo anteriormente citado, diante dos perigos de deixar de lado o caráter processual, coletivo e consensual da ciência, que ele julga como fundamental, alerta que a lição a ser aprendida é “que esse estado de coisas pode levar a uma melhor educação sobre a ciência”. Em reportagem da Folha de S. Paulo, em 27/05/2020, a bióloga Natalia Pasternak mostra que, mesmo entre os médicos, em tempos de pandemia do coronavírus, em relação ao uso de fármacos, como a hidroxicloroquina, “em vez de medicina baseada em evidências, vemos alguns praticando medicina baseada em impressões”. E conclui: “Parece que a gente está fracassando na tentativa de ensinar método científico nos cursos de medicina, enfermagem e outros da área de saúde”.

Para os cientistas, em seus discursos e em seu fazer, na justa medida (porque não se trata de aceitar tudo, como as opiniões infundadas e os dogmas no domínio da ciência), o princípio de participação e da mistura dos iguais – as trocas, a interdisciplinaridade, o respeito e a valorização das diversas áreas e linhas teóricas – parece ser o ideal a ser alcançado. Além disso, buscar o diálogo com os sujeitos possíveis, melhorar a formação científica da população, fazer da ciência a busca pelo conhecimento desinteressado do mundo, que pode levar ao bem-estar dos homens e a responder a uma necessidade mais profunda de dar sentido à sua aventura humana de estar no mundo.

How to Cite

GOMES, R. S. A Crisis in the Value of Science: between exclusion and participation. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 1, p. e353, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n1.id353. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/353. Acesso em: 19 apr. 2024.

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