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Theoretical Essay

The dialogical approach and discourse: a study on social representation about the deaf

Tayana Dias de Menezes

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https://orcid.org/0000-0002-9338-8395


Keywords

Theory of Social Representation
Dialogical approach
Discourse

Abstract

The purpose of this article is to review the dialogical approach of Ivana Marková (2006), discussing the productivity of the perspective for linguistic analyzes, especially in the analysis of Van Dijk's social-cognitive discourse (2006). The author's studies are contextualized within the scope of the Theory of Social Representation developed by Serge Moscovici. The key concepts of the theory are taken to form an analysis model capable of accounting for the intricate relationships between language, cognition and the subject. In addition, it was examined how the articulation between the approach of Marková (2006; 2017) and Discourse Analysis helps to understand the (re)construction of Social Representation on the deaf within the discourse of the deaf subjects who are part of the Letras- Libras community from UFPE. It was found that the notion of deficiency still guides the (re) construction of the representation on the deaf, however this element is anchored by the notion of healthy body / defective body within the discourse of the deaf themselves.

Introdução

O trabalho é circunscrito pela perspectiva da Teoria da Representação Social (TRS) da psicologia social, desenvolvida por Moscovici. O objetivo do artigo é revisar a abordagem dialogal de Ivana Marková (2006), discutindo a produtividade da perspectiva para as análises linguísticas em geral. Os estudos da autora são contextualizados no âmbito da TRS. Os conceitos-chave da TRS são tomados para a formação de um modelo de análise capaz de dar conta das intricadas relações entre linguagem, cognição e sujeito. Além disso, é preciso também expor alguns conceitos oriundos das abordagens dos discípulos de Moscovici, isso porque eles lançam luz sobre aspectos que não foram abordados na grande teoria, como por exemplo a estrutura interna da representação social (RS). A TRS é encarada como a grande teoria e abarca outras abordagens, como a abordagem de Jodelet, mais conhecida como a abordagem culturalista, a abordagem de Abric, mais conhecida como abordagem estruturalista, a abordagem de Doise, mais conhecida como abordagem societal e a abordagem de Marková, conhecida como dialogal. Focaremos nesta última porque o discurso e as interações, mediadas pela linguagem – seja oral ou escrita –, são centrais no seu desenvolvimento. Encaramos a linguagem, assim como Marcuschi (2002), como uma forma de cognição sócio-histórica, isto é, como um sistema simbólico, um elemento constitutivo do conhecimento que auxilia os sujeitos sociais a dizer e compreender o mundo. Desta maneira, a língua é um canal de acesso aos conhecimentos sobre a realidade social.

A TRS ajuda a compreender e explicar como os sujeitos e grupos elaboram, transformam e comunicam, por meio de discursos, as suas realidades. Além disso, ela auxilia no entendimento sobre como as representações, materializadas em textos que circulam na nossa sociedade, imbuídas de significados abstratos, influenciam o comportamento, as crenças, os valores das comunidades e dos sujeitos sociais e legitimam as diversas práticas sociais. Com base na abordagem dialogal de Marková e na análise Sociocognitivista do Discurso, será analisado como são (re)construídas as RS sobre os surdos dentro de narrativas dos sujeitos que participam no curso de Letras- Libras da UFPE. A esfera social foi selecionada porque os seus membros são sujeitos que têm acesso aos conhecimentos sobre o universo da surdez, sejam surdos ou ouvintes.

Este trabalho é relevante porque vivemos num momento histórico em que os grupos minoritários lutam por participação social. Os surdos fazem parte desses grupos que têm, aos poucos, ganhado espaço social – inclusive com a criação de diversos cursos no país do Letras-Libras, incluindo a própria UFPE. Eles, hoje, são agentes também nas universidades. Mas, apesar da atual participação social dos surdos em diferentes esferas ainda se verifica práticas discriminatórias contra eles que são naturalizadas. Por isso, é urgente compreender o que sustenta essas práticas no seio da sociedade. A TRS e a Análise Sociocognitivista do Discurso podem fornecer o arcabouço necessário para cumprir essa tarefa.

1. Conceitos-chave da TRS

Na TRS, a realidade social e o comportamento individual são interdependentes, o processo de gênese das representações coincide com o momento de sua manifestação por meio da interação entre os agentes sociais. Para Moscovici (2015), as representações fazem parte do senso comum, elas têm vida no mundo cotidiano: numa interação com nossos amigos, na mídia, nos jornais, “as representações sustentadas pelas influências sociais da comunicação constituem as realidades de nossas vidas cotidianas e servem como o principal meio para estabelecer as associações com as quais nós nos ligamos uns aos outros” (MOSCOVICI, 2015, p. 8). Moscovici (1978), em seu estudo seminal, analisou a RS sobre a psicanálise dentro dos discursos jornalísticos. Marková (2006) propõe que a RS deve ser estudada por meio dos “gêneros de comunicação”. Por isso, defende-se que o discurso é um lugar privilegiado de acesso à RS.

A representação social (RS) é um tipo de conhecimento prático que estabelece conexões entre os sujeitos e os objetos, podendo ser este último de natureza social; material ou ideal. É a RS que atribui valores simbólicos aos objetos. É, também, uma construção do sujeito – pode-se focalizar os processos cognitivos envolvidos no processo de construção de conhecimento ou enfatizar os mecanismos intrapsíquicos, motivacionais etc. –, mas também é uma construção social – pode-se focalizar o processo de pertencimento do sujeito social a uma comunidade (isso envolve questões identitárias) e sua participação em práticas sociais e culturais enquanto agente social. Jodelet (1989) define a RS como um “conhecimento prático” e afirma que “qualificar esse saber como prático se refere à experiência a partir da qual ele é produzido, aos quadros e condições nos quais o é, e sobretudo ao fato de que a representação serve para se agir sobre o mundo e sobre outros (JODELET, 1989, p. 43-45)”. Em outras palavras, a RS é um amálgama de conhecimentos: experiências individuais, conhecimentos socialmente compartilhados, dentre outros que direciona os sujeitos a agirem e se posicionarem socialmente. A RS é um processo social – uma vez que boa parte de nossos conhecemos, nossas crenças e nosso sistemas ideológicos são adquiridos por meio de interações, de práticas sociais e das discursivas –, mas também é um processo cognitivo.

O conhecimento, na TRS, não está condicionado à verdade, o que é relevante para a teoria é a relação entre crença e conhecimento segundo o olhar dos sujeitos sociais, que transformam a informação: omitem alguns detalhes, acrescentam outros segundo os seus interesses. A relação dos sujeitos com a realidade não é um dado, mas o resultado de processos, além disso a relação entre ambos não é nem direta nem estável, “o objeto do conhecimento não só é suscetível de ser uma elaboração do sujeito solipsista, mas também de um sujeito interagindo com o seu meio social” (ALAYA, 2014, p. 354). O sujeito, inserido num meio social específico, e, portanto, imerso num sistema complexo de crenças e relações transmitidos e apreendidos por meio de discursos, percebe os objetos e, consequentemente, os reelabora. Essa ação não se dá apenas em um sentido, por isso à medida que os sujeitos (re)constroem os objetos, eles mesmos são modificados e sua relação com o outro também. Ou seja, a relação é dinâmica, há uma tensão constante entre os elementos: o sujeito, o objeto e o outro. Dessa maneira, é um equívoco pensar nas representações como mediadoras entre o conceito e a percepção, elas, na verdade, têm propriedades tanto sensoriais quanto cognitivas. Por meio delas, os sujeitos percebem o objeto e o tornam, para si, real. Conceito e percepção são intercambiáveis.

Desse modo, a RS não serve como um espelho da realidade, não é uma mera reprodução do real, mas uma (re)construção por distorções, exclusão e inclusão, segundo as expectativas e os interesses dos sujeitos sociais. “As representações não fazem apenas representar o real, eles lhe dão forma [...]. A informação recebida é transformada. Portanto, há um vaivém de informações, uma interação entre a representação e a realidade” (ALAYA, 2014, p. 359).

Enquanto elemento cognitivo e social, Moscovici (2015) aponta dois mecanismos de processamento da RS fundamentais que explicam o seu funcionamento: a ancoragem e a objetivação. Ancorar seria classificar, denominar. Comparamos o novo, seja uma ideia, uma pessoa, um objeto, com o elemento prototípico de um grupo específico e decidimos se ele pode ou não pertencer ao grupo em questão. É importante dizer que essa comparação não é uma observação analítica lógica das características entre os elementos em questão, é uma comparação generalizadora ou particularizadora que aproxima ou afasta o objeto das características que por hora são salientes do elemento prototípico. A objetivação, por sua vez, é um processo estruturante, ou seja, o conhecimento sobre o objeto abstrato ganharia forma, se tornaria quase tangível. Moscovici (2015) afirma que objetivar é reproduzir um conceito em uma imagem. Ele complementa dizendo que nem todos os conceitos podem ser ligados a uma imagem.

Especialmente, o processo da ancoragem esclarece a dinâmica da RS – tanto como processo cognitivo como social. Apesar de Moscovici ser o percursor da teoria, foi seu discípulo, Abric, quem elaborou um arcabouço teórico necessário para descrever com mais precisão a estrutura interna da RS. A Teoria do núcleo central deixa claro como uma RS pode, ao mesmo tempo, adaptar-se ao contexto imediato e ser resistente às mudanças. A RS é composta por dois sistemas: o núcleo central – elemento mais estável dentro da estrutura da RS, ou seja, aquele que não muda mesmo que receba informações que o contradigam, os indivíduos procuram processar a informação nova em coerência com o núcleo, ele é a essência da representação e quem garante a perenidade dela – e o sistema periférico – elemento mais flexível, Abric (2003) e Flament (2001) apontam as funções do sistema periférico: 1) concretização: é na periferia que a representação se ancora na realidade; 2) regulação: ele se adapta ao contexto imediato, absorve novos conteúdos em função de alterações na situação; 3) prescrição dos comportamentos: os conteúdos do sistema periférico funcionam como esquemas organizados pelo núcleo, definem o que é e o que não é normal de dizer ou de fazer numa situação específica, isto é, servem como guias numa situação dada.

Nesta seção foi discutido, brevemente, as bases que sustentam a TRS e as características principais da RS, enquanto elemento cognitivo e social e a sua organização interna. Nas próximas seções, serão discutidas as bases da abordagem dialogal em Marková (2006), elo maior entre a TRS e a linguística, e as bases da Análise do Discurso Sociocognitivista que oferece um arcabouço teórico-metodológico para as análises.

2. A abordagem Dialogal

A Teoria de Marková (2006, p.120) gira em torno de um conceito central: themata que, por sua vez, enfoca as “antinomias dialógicas”1. Embora numa primeira leitura os conceitos pareçam ser intercambiáveis, são distintos: toda themata é uma antinomia, mas nem toda antinomia é uma themata. “A ideia de themata nos remete às antinomias do pensamento [...] que modelam as atividades mentais dos humanos, por exemplo, da formação de conceitos, significados em linguagem e imagens” (MARKOVÁ, 2006, p. 252). Antes mesmo de conceituar a themata, Marková (2006, p. 55) defende que “a capacidade de fazer distinção como sendo um aspecto essencial da inteligência [..] o início do pensar, saber ou ter ideias, começava com a discriminação entre opostos ou antinomias assim como calor/frio”. Portanto, pode-se, inicialmente, pressupor que antinomias se refere a pares de opostos que fundamentam o pensamento humano.

Marková (2006) defende que é a themata quem ancora a constituição do núcleo central e do sistema periférico da RS, sendo, portanto, o conceito fundamental para a compreensão dos significados simbólicos que dão vida a uma RS. Segundo Marková (2006, p. 243), “a themata enfoca a questão das antinomias dialógicas”. O diálogo em Bakhtin, autor que influencia Marková, é encarado como a tensão entre a pluralidade de vozes. Para o pensador russo, a palavra é o lugar privilegiado onde pode-se observar essa luta, pois esta é resultado de um processo de interação entre o eu e o outro na realidade viva, é signo ideológico porque constitui as entonações do diálogo vivo entre os atores com os valores sociais, “a palavra dita, expressa, enunciada, constitui-se como produto ideológico, resultado de um processo de interação na realidade viva” (STELLA, 2010, p. 178). Por isso, nas análises, observaremos as thematas dialógicas que (re)constroem a RS sobre o surdo dentro dos discursos que circundam uma esfera social específica.

As antinomias e, consequentemente, as thematas seriam, segundo Marková (2006), o resultado dos diálogos constantes que marcam uma sociedade. A themata também está presente no pensamento do senso comum, marcado por antinomias. Mas, as antinomias do pensamento de senso comum só se tornam themata se gerarem, no seio de uma sociedade, tensão e conflito no discurso público. Isto é, para que uma antinomia do pensamento se torne uma themata, ela precisa ganhar relevo social, ser problematizada dentro do discurso público – “as antinomias no pensamento de senso comum se tornam themata se, no curso de certos eventos sociais e históricos, isto é, políticos, econômicos, religiosos, etc., elas se tornam em problemas e se tornam o foco da atenção e a fonte de tensão e conflito” (MARKOVÁ, 2006, p. 252). Pode-se concluir que themata são antinomias de pensamento que, por alguma razão, entram para o debate público e, consequentemente, ganham destaque social, tornam-se centrais nos discursos que circulam em sociedades específicas, uma vez que elas estão no cerne do pensamento social e orientam a maneira como os sujeitos categorizam os objetos que os circundam, dentro de uma relação dialogal entre o Alter- Ego- Objeto.

A autora defende que a estrutura da RS é thematizada de uma maneira particular em épocas específicas e certos significados ou conteúdos são enfatizados. Em outras palavras, Marková (2006) defende que a base para a estabilidade ou mudança no pensamento, na forma de conceber a realidade é fundamentada por themata e por processos de thematização. Isso significa afirmar que tanto a organização dos conteúdos do núcleo como da periferia das representações socais têm como base antinomias que podem tornar-se themata, como anteriormente exposto. Para esclarecer, Marková (2006, p. 246) sugere um exemplo: “nós podemos imaginar o núcleo de uma representação social da Aids como estando organizado em torno de antinomias como sujeira/limpeza, moralidade/ imoralidade, vida/ morte, ou até mesmo em torno de várias antinomias, ao mesmo tempo”. Dessa maneira, para Marková (2006) uma representação social é organizada por um núcleo central, elementos periféricos e antinomias que, por sua vez, constituem a base para a organização da qual a RS se apresenta. É inegável que o debate sobre os mais diversos grupos minoritários – negros, mulheres, surdos etc. – ocupam um lugar de destaque dentro do discurso público. É esperado, portanto, que a (re)construção das RS sobre o surdos esteja organizada com base em thematas. Na seção seguinte, discutiremos as contribuições teórico-metodológicas da análise Sociocognitivista do Discurso, especialmente em Van Dijk (2006), para a análise da RS.

3. Contribuições teórico-metodológicas da Análise Sociocognitivista do Discurso para a análise da RS

Nesta seção, embasaremos teoricamente, especialmente por meio de Van Dijk (2006) e Falcone (2016), a metodologia utilizada nesta pesquisa. Para compreender a (re)construção da RS sobre os surdos dentro do curso de Letras-Libras da UFPE e como ela é ancorada, serão analisadas entrevistas com sujeitos surdos participantes do curso. A teoria foi selecionada porque ela dá conta de esmiuçar o discurso sem ignorar os pilares que o constituem. Em outras palavras, a teoria encara a cognição – elemento indispensável ao analisar a RS – na interface entre o discurso e a sociedade. Além disso, Van Dijk (2006) leva em conta o conhecimento para pensar sobre a (re)construção dos discursos que circulam socialmente.

Foi exposto, nas seções anteriores, a interrelação entre os sujeitos, a cognição e a linguagem dentro da TRS, especialmente, dentro da abordagem dialogal, que encara o discurso como um lugar privilegiado para entender o embate das vozes sociais e a (re)construção das RS. No entanto, não faz muito tempo, os estudos discursivos estavam sustentados apenas na relação discurso/sociedade. Dentro da Análise Crítica do Discurso, defende-se o discurso como uma prática social, um meio que os sujeitos se utilizam, enquanto agentes, para agir na sociedade e sobre outros. Em outras palavras, os discursos são influenciados pelo meio social, mas podem também influenciar a ordem social. No entanto, Van Dijk (2015) defende que essa relação dialética “permanece bastante vaga e necessita de maior especificação” (VAN DIJK, 2015, p. 20). Para torná-la mais precisa e clara, Van Dijk (2015) propõe a existência de um terceiro elemento que intermedia a díade sociedade/ discurso: a cognição social. O autor conclui que “as representações sociais em nossas mentes (tais como os conhecimentos socialmente compartilhados, as crenças, as atitudes e as ideologias2) atuam como a ‘interface’ necessária entre as interações de nível micro e o texto e a fala individuais, por um lado, e as macroestruturas sociais, por outro” (VAN DIJK, 2015, p. 19). Isso acontece porque a cognição social é responsável pelo monitoramento da produção e interpretação dos discursos. A análise Sociocognitiva do Discurso, especialmente em Van Dijk (2015), é uma das perspectivas que considera a interrelação entre os sujeitos, a cognição e a linguagem, materializada em discursos. O autor leva em conta a RS, sob a perspectiva de Moscovici, e sua teoria demonstra os influxos da TRS, dentro dos estudos linguísticos.

Ainda sobre a relação entre discurso, sociedade e cognição, Falcone (2016, p. 60) afirma que “a nossa forma de perceber, compreender, categorizar e, por fim, construir os ‘objetos do mundo’ resulta de atividade contínuas e situadas, que se dão na interação social. Assim, trata-se de perceber como as pessoas agem sobre o mundo, no mundo, com o mundo”. Pode-se assim compreender – uma vez que as RS são amálgamas de conhecimentos socialmente compartilhados, experiências individuais, dentre outros que colaboram na construção da realidade social – que os pressupostos da TRS podem ajudar a esclarecer a relação entre o discurso e a sociedade mediado pela cognição. Afirmamos isso porque um agente discursivo, que age “sobre o mundo, no mundo e com o mundo” (FALCONE, 2016, p. 60), é sempre um agente social e cognitivo. Olhamos e enunciamos a realidade, não como um objeto dado, mas como uma realidade filtrada pelos olhos dos diversos sujeitos sociais e as RS estão no cerne desse processo. Desse modo, tanto as TRS podem auxiliar os estudos linguísticos, quanto a linguística pode contribuir para os estudos da RS. Marcuschi (2002, p. 46) afirma que “sem uma língua não saberíamos produzir nem distribuir conhecimentos”, isso ratifica o que foi defendido: há uma relação de influxo mútuo entre a língua e a fabricação de conhecimento. Nas análises, será observado como os sujeitos, situados num contexto específico (o curso de Letras-Libras), (re)elaboram seus conhecimentos, sustentados por RS, sobre os surdos e comunicam a realidade por meio do discurso.

Para atender esse objetivo, foram entrevistados (em libras) um total de doze participantes surdos do Letras- Libras UFPE, mas por uma quentão de espaço será apresentado apenas quatro dessas entrevistas. Cada um dos entrevistados pertence a períodos distintos dentro do curso. A entrevista foi composta por duas perguntas, uma delas elaborada segundo os padrões do Cenário Ambíguo3 – proposto por Abric. As perguntas servem como guia para os sujeitos elaborarem e externarem conhecimentos, crenças e valores sobre o surdo e elementos que circundam a surdez, como a libras.

Figure 1. Figura 1 – Texto 1 que compõe a entrevista

Figure 2. Figura 2 - Texto 2 que compõe a entrevista

Após mostrar os textos para os participantes, as pergunta realizadas foram: 1) os textos são coerentes? Por quê? e 2) sob sua perspectiva o que é deficiência? As entrevistas em Libras foram gravadas e depois traduzidas, de Libras para português escrito, pela própria pesquisadora. Para assegurar a exatidão da tradução, todas foram revistas por uma professora surda do curso de Letras-Libras da UFPE.

4. Análises

Para analisar como a RS sobre o surdo é (re)construída dentro do discurso dos próprios surdos, foram averiguados diferentes relatos por meio de entrevistas semiestruturada. A RS é uma (re)construção tanto social como cognitiva que perpassa o discurso dos sujeitos.

Os textos são coerentes? Por quê?

RELATO 1

Texto 1: Sim. Espera, mas só um diferente: menino. Imagem, segunda. Diferente? Não sei. Eu acho nada a ver. A primeira certa cadeirante. Surdo, certo. Quarta acho [...] entendi. Não sei. Imagem última não sei. Quarta não conheço [...] amputado. Texto 2: Surdo, certo. Cego, bengala, certo. Cadeirante, certo. Certo!

RELATO 2

Texto 1: Não, primeiro cadeirante; segundo parece natural; terceiro surdo; quarto amputado. Mas, o segundo natural não combina deficiente. Texto2: Primeiro surdo; segundo cego; terceiro cadeirante. Combina deficiente tudo, sim.

RELATO 3

Eu percebi imagem tema texto aqui primeira tema cadeirante. Onde? Ônibus cadeirante muito, acessibilidade. Ok! Segundo: só pessoa, mas não ficou claro não. Parece outra deficiência, pode mental. Mental problema cabeça silêncio. Pode novo ............ desenho. Terceiro. Não, verdade segundo não tem informação nada porque a primeira aqui novo desenho. Terceiro tema: surdo, Lei sempre sabe o que o surdo. Quarta: deficiente amputado, não tem braço, nada. Só.

RELATO 4

Texto 1: Minha opinião, grupos: grupo mental; grupo surdos; grupo deficientes perna deficiente. Também down, próprio mental próprio. Grupos separados, quatro grupos. Primeiro grupo próprio exemplo libras, não sabe libras, mas pode oral; gestos. Também esse grupo mental grupo deficiente perna comunicação.............. porque próprio mental. Grupos inclusão, mais importante: união, Lei. Lei Brasil mais importante porque importante, só. Dois diferente! Deficiente perna cadeira de rodas; dois pessoa cachorro guia? Pessoa normal; pessoa. Surdo; amputado. Importante corpo igual, certo? Como surdo comunicação pessoa outra normal? Libras. Cadeira de rodas sabe libras, sabe amputado. Sabe comunicação. Entendeu? Só. Os quatro iguais. Texto 2: Sim, porque deficiente barreira. Porque barreira. Antes barreira. Tem Lei, LBI barreira livre, aberta passagem. Só.

2) Sob sua perspectiva o que é deficiência?

RELATO 1

Tem Libras diferente. Motivo surdo foco tem surdez, ok! Deficiente tem outro, exemplo cadeirante. São coisas diferente. Tem diferente motivos. Surdo só foco surdez. Deficiente é próprio cadeirante foco problema perna, cego próprio olho, visão. Próprio diferente. Minha opinião, surdo não é deficiente. É só problema surdez não é deficiente. Normal. É humano igual. Só.

RELATO 2

Deficiente outro pouco diferente porque surdo corpo pode igual ouvinte. Deficiente difícil barreira. Exemplo, não tem porta larga cadeirante barreira, difícil! É mais difícil um pouco que para o surdo.

RELATO 3

Então, minha opinião, depende eu vejo pessoa deficiente ele surdo, mimado. E surdo ajudar! Não! Corpo normal não é deficiente, só deficiente audição, só. Deficiente, mas corpo igual ouvinte, só. Problema nada, mas ouvinte entender o quê? Identidade surdo.

RELATO 4

Pergunta difícil. Grupo surdo próprio identidade, próprio dele. Aceita sabe porque deficiente pode fácil grupo de deficiente barreira passagem pode fácil deficiente afastar. Surdo como? Pode como? Pode como, por isso lei. Pode lutar. Corpo normal, problema audição.

Ao responder sobre a coerência do texto 1, o autor do relato 1 reconhece, sem dificuldades, cadeirantes e surdos. Embora afirme, inicialmente, não conhecer e, logo depois de ter tomado um tempo para identificar a que grupo a quarta imagem do texto 1 fazia referência, autor a reconhece e classifica a imagem como “amputado”. No entanto, sobre a segunda imagem, o autor afirma que “não sei. Eu acho nada a ver”, mas antes de julgar que a segunda imagem não tem nenhuma relação com as demais, o autor a reconhece como “menino”. Em outras palavras, o autor distancia o grupo “menino” dos demais: “cadeirantes, surdos e amputados”. Já em relação ao texto 2, o autor não encontra nenhuma imagem divergente. Surdos, cegos e cadeirantes estão, segundo a perspectiva do autor, dentro de um mesmo grupo social.

O autor do relato 2 julga o texto 1 como incoerente porque classifica as partes que compõem o texto como: “cadeirante”, “natural”, “surdo” e “amputado”. Enquanto o cadeirante, o surdo e o amputado são categorizados como deficientes e por isso combinam entre si, o “natural” diverge dos anteriores: “o segundo natural não combina deficiente”. O lexema “natural”, utilizado para classificar a segunda imagem que compõe o texto 1, pode referir-se ao que é produzido pela natureza; que acontece segundo uso, a norma ou o que se espera. Dessa forma, além de ouvintes e surdos serem categorizados de maneiras distintas, o primeiro grupo seria a regra de acordo com o léxico selecionado na construção do discurso do entrevistado. O texto 2 é julgado como coerente porque as imagens que o compõem combinam entre si, segundo o ponto de vista defendido pelo autor, ou seja, pertencem todos a uma mesma categoria: deficientes. Não há no texto em questão a presença de nenhum elemento estranho que faça parte de uma categoria distinta.

No primeiro texto, o autor do relato 3 atribui sentido para todas as partes que o compõem: a primeira imagem, “tema cadeirante”; a terceira imagem, “tema surdo”; a quarta imagem, “deficiente amputado, não tem braço nada”. O autor não apresentou dificuldade para entender essas imagens. No entanto, no que diz respeito à segunda imagem, o autor procurou, sem muito sucesso, atribuir sentido a ela fazendo uma correlação entre a segunda imagem e as demais: “parece outra deficiência, pode mental. Mental problema cabeça silêncio”. Como a primeira, a terceira e a quarta imagens, segundo o discurso construído pelo autor, apresentam indivíduos com deficiência, a segunda imagem causa estranheza e incompreensão porque “segundo só pessoa, mas não ficou claro não”. Numa tentativa de atribuir sentido para esta, o autor seleciona uma possível “deficiência”: problema mental. O objetivo do autor é formular um sentido para que as imagens se combinem. Elas precisam, por isso, mostrar traços de semelhança, ou seja, precisam fazer parte de uma mesma categoria. A segunda imagem não poderia ser apenas “pessoa”, isso criaria uma ruptura entre esta e as demais. Numa segunda tentativa de atribuição de sentido, o autor admite que pode se tratar de um “novo especial desenho”. A incompreensão causada pela imagem, portanto, não seria por causa da inadequação desta dentro do texto, mas por ser “nova”, uma vez que o autor justifica por que não a conhece. Não se trata apenas de um novo desenho, mas de um “novo especial desenho”. Aqui, o autor usa o sinal de especial, mas dentro do contexto faz referência à deficiência, isto é, ainda assim o autor procura na deficiência o traço de semelhança que interliga a segunda imagem com as demais, sendo esta categoria o fio principal de conexão entre as partes que compõem o texto.

Em contrapartida, o autor não apresenta qualquer dificuldade para ler e atribuir sentido ao texto 2 e por isso o julga coerente, “texto aqui combina tudo, percebi claro” (grifo meu). O autor percebe claro porque neste não há nenhuma imagem que possa suscitar estranheza ou incompreensão.

Ao separar os grupos que compõem o texto 1, o autor do relato 4 procura atribuir sentido para cada parte e os categoriza como: “grupo mental”; “grupo surdos; “grupo deficientes perna deficiente”. A segunda imagem que compõe o texto 1 causa no autor do relato uma certa estranheza que o motiva afirmar que o “dois diferente”. Mas, antes disso, numa tentativa de atribuir algum sentido para a imagem que a tornasse coerente em relação às demais, o autor categoriza o grupo como “grupo mental”, “down, próprio mental”. O autor seleciona, dentro de uma infinidade de possibilidades, uma das categorias que fazem parte, segundo a perspectiva social hegemônica, dos grupos dos deficientes. Isso é revelador no que diz respeito a como o autor enxerga os demais: surdos, cadeirantes etc.

Num segundo momento, o autor procura novamente atribuir outro sentido à imagem; “dois pessoa cachorro guia?”, mas descarta rapidamente a possibilidade. Novamente, para fazer sentido dentro do texto, ancora a imagem sobre a noção hegemônica da deficiência, categorizando o grupo como cegos.

Por fim, categoriza o grupo como “pessoa normal”. Ele o categoriza não mais como “grupo mental”, “down”, ou cego, mas como “normal”. Logo depois compara o surdo com a pessoa “normal”, segundo o seu ponto de vista, e os afirma iguais porque “importante corpo igual”. Por meio dos relatos, observa-se que, para os surdos, a noção da normalidade está ancorada à ideia do corpo sem defeito, assim como a noção da deficiência está ancorada aos defeitos físicos visíveis. Isso é significativo porque nos auxilia a compreender por que ora o surdo se auto categoriza como deficiente ora iguala-se ao grupo “pessoa outra normal”.

Embora na questão 1, o autor agrupe surdos, cegos e cadeirantes, na segunda questão, ele distancia o surdo do sujeito cadeirante e do cego. Na sua opinião, os surdos não podem ser categorizados como deficientes, diferente do cadeirante: “deficiente tem outro, exemplo cadeirante. São coisas diferentes. [...] Deficiente é próprio cadeirante foco problema perna”. Os surdos, por vezes, ancoram a deficiência como um defeito visível no corpo, por isso não categorizam o surdo como deficiente, mas os aproximam do ouvinte, enquanto cegos e cadeirantes que possuem problemas físicos visíveis podem ser categorizados como deficientes. Pode-se concluir que a deficiência, uma vez que ela não é contradita no canário ambíguo, é elemento organizador do núcleo central da RS sobre o surdo. Ela é ancorada nas thematas: Nós (surdos)/ Eles ouvintes – é recorrente no discurso a categorização do surdo em oposição ao ouvinte, isso apenas não acontece quando os surdos falam sobre a integridade física do grupo –, normalidade/ anormalidade, corpo são/ corpo defeituoso – é também recorrente no discurso a organização entre os grupos, cegos, surdos, cadeirantes, “pessoa normal”, sustentado pela noção hegemônica de “normalidade”.

Os surdos ora agrupam cegos, surdos, cadeirantes e amputados (observar a resposta da primeira questão), ora afastam os surdos desses outros grupos mencionados (observar a resposta da segunda questão). Conclui-se, por isso, que os surdos ancoram a deficiência em duas categorias distintas: aqueles que enfrentam barreiras sociais – por isso surdos; cegos; cadeirantes e amputados são ora agrupados – e aqueles que apresentam um defeito físico visível – deste grupo apenas cadeirantes, cegos e amputados fazem parte. Além disso, pode-se notar que a antinomia humano/ não humano orienta os autores ao (re)construir a RS sobre o surdo e ao categorizar o mesmo grupo: “é só problema surdez não é deficiente. Normal. É humano igual”.

O autor do relato 3 categoriza o surdo como deficiente por causa da perda/ falta/ limitação auditiva, mas, ao mesmo tempo, por não apresentar nenhuma limitação corporal visível, o surdo não é categorizado como deficiente. Assim como os demais, o discurso do autor demonstra que os surdos ancoram a noção de deficiência a partir da ideia de perda/ falta/ limitação auditiva, mas o grupo social cria subcategorias dentro da categoria deficiente: aqueles que apresentam limitações corporais visíveis e aqueles que não as apresentam. É por ancorar a deficiência a partir dessas subcategorias que os surdos ora se aproximam dos ouvintes, ora se aproximam da mesma categoria em que fazem parte os cadeirantes, os cegos e os amputados.

Pelas repostas dadas, pode-se observar que, apesar das informações sobre o universo da surdez, os surdos se auto categorizam como deficientes. Esse é, portanto, um elemento central na RS sobre o surdo. No entanto, a deficiência, dentro dos discursos dos sujeitos surdos, é ancorada de uma maneira peculiar: está associada ao corpo com ou sem defeitos físicos visíveis. Além disso, o grupo ancora a deficiência em duas categorias distintas: aqueles que enfrentam barreiras sociais e aqueles que apresentam um defeito físico visível.

5. Conclusões

Os estudos circunscritos na TRS, especialmente a abordagem dialogal de Marková, contribuem para os estudos linguísticos, especialmente no que diz respeito aos trabalhos que centralizam o discurso sob um foco sociocognitivista. Isso porque é no espaço público e no discursivo em que se estabelece o diálogo entre o Eu e o Outro e onde se (re)formula a compreensão que os sujeitos têm, enquanto agentes, da realidade social. A abordagem de Marková foca “na interação e interdependência entre Ego e os Outros, e em sua experiência engajada, no conhecimento e comunicação na vida cotidiana” (MARKOVÁ, 2017, p. 23). Marková (2006) encara o discurso como um lugar privilegiado para entender o embate das vozes sociais e a (re)construção das RS. Em outras palavras, “as representações sociais [...] atuam como a ‘interface’ necessária entre as interações de nível micro e o texto e a fala individuais, por um lado, e as macroestruturas sociais, por outro” (VAN DIJK, 2015, p. 19).

Levando em conta o arcabouço teórico, a partir da análise dos relatos, conclui-se que os sujeitos surdos têm dificuldades de entender a segunda imagem que compõe o texto 1. Os autores tecem comentários sobre a incoerência dela no contexto apresentado: “mas, o segundo natural não combina deficiente” (relato 2); “espera, mas só um diferente: menino, imagem segunda. Diferente? Não sei, eu acho nada a ver” (relato 1). Os surdos categorizaram o grupo retratado pela segunda imagem como: “natural”, “menino” e “pessoa”, essa categorização salienta o que a imagem apresenta de dessemelhante em relação às demais: enquanto as outras representam algum tipo de deficiência, ela representa apenas uma “pessoa” (relato 3). Alguns dos autores procuram atribuir sentido à imagem e, consequentemente, (re)estabelecer uma ligação entre ela e as demais imagens que compõem o texto. Por isso julgam que a segunda figura apresenta um novo ícone para a deficiência mental; “segundo: só pessoa, mas não ficou claro não. Parece outra deficiência, pode mental. Mental problema cabeça silêncio. Pode novo desenho” (relato 3); “grupos: grupo mental; grupo surdos; grupo deficientes perna deficiente. Também down, próprio mental” (relato 4). O texto 2, por sua vez, não causou nenhuma dúvida ou estranhamento, todos os entrevistados concordaram que as imagens, surdos, cegos e cadeirantes combinavam.

Alguns dos relatos aproximam o surdo dos ouvintes porque “corpo igual” (relato 2); “corpo igual, corpo igual. Diferente mão voz visual, ouvinte ouve. Corpo igual. Diferente surdo libras ouvinte fala” (relato 3). Isto é, para os autores, de um ponto de vista, o do corpo, o surdo se aproxima do ouvinte porque fisicamente os sujeitos de ambos os grupos são semelhantes, isto é, não apresentam nenhum defeito físico visível. Outras vezes, na primeira questão, no cenário ambíguo – o surdo se distancia do ouvinte e se aproxima do grupo dos cadeirantes, cegos e amputados. Levando em conta também a segunda questão, sobre o conceito da deficiência, pode-se concluir que a aproximação ou o distanciamento entre os grupos sociais ocorre porque o surdo ancora a deficiência sob o sustentáculo de duas subcategorias distintas:

Figure 3. Figura 3 – Ancoragem do núcleo central no discurso dos alunos surdos

No primeiro grupo estariam surdos, cadeirantes, cegos, amputados etc, por isso a aproximação entre estes na primeira questão e o estranhamento causado pela segunda imagem que compõe o texto 1. No segundo grupo, estariam apenas cadeirantes, cegos e amputados. Os surdos não se identificam com esse grupo porque, fisicamente, são semelhantes aos ouvintes e, consequentemente, não se auto categorizam como deficientes: “deficiente outro pouco diferente porque surdo corpo pode igual ouvinte” (relato 2); “corpo normal não é deficiente, só deficiente audição, só [...]. Mas, corpo igual ouvinte” (relato 4). Verifica-se, pelo discurso dos autores, que a deficiência está diretamente ancorada na noção de corpo são ou corpo defeituoso. Esse é o parâmetro usado pelos surdos para categorizar os sujeitos que pertencem ou não à categoria, quando fazem referência à segunda subcategoria da deficiência.

A abordagem dialogal, como exposto, gira em torno do conceito de themata. O processo de thematização se dá dentro do discurso público e é responsável pela formação de conceitos e pela (re)elaboração dos conhecimentos socialmente compartilhados. Além disso, é, em parte, responsável pelo processo de ancoragem da própria RS. Nas análises dos discursos dos sujeitos surdos pesquisados, participantes do curso de Letras-Libras da UFPE, é possível verificar a centralidade da categoria “deficiente” na RS sobre o surdo, mas esse elemento, além de ser ancorado de maneira peculiar, é, também, sustentado pelas thematas: Nós (surdos)/ Eles (ouvintes); normalidade/ anormalidade; capacidade/ incapacidade; corpo são/ corpo defeituoso. A teoria de Marková procura explicar o processo de (re)significação da RS e, consequentemente, da (re)significação da própria realidade social. Todo o processo se dá por meio do discurso, o lugar de embate entre as vozes sociais, e é por meio da língua que (re)construímos nossos conhecimentos sobre a realidade. Marková (2017, p. 362) defende que:

comunicação e linguagem são fenômenos baseados em vários tipos de tensão entre falante e ouvinte essenciais para o conceito de representação social. Representações são formadas, mantidas e alteradas na e por meio da linguagem e das comunicações e, igualmente, o uso de palavras e atributos vinculados a significados transformam a representação social [tradução nossa]4.

Marková (2017), na citação, defende que as tensões entre os sujeitos sociais acontecem na e por meio da linguagem e são responsáveis pela manutenção, alteração ou perpetuação dos significados que ancoram a RS. O conceito de themata dá conta desse processo de tripla natureza: cognitivo; social e discursivo. Conclui-se, por meio dos discursos analisados, que aos olhos dos surdos a deficiência faz parte da representação social sobre o surdo, mas apenas quando está ancorada na subcategoria “aqueles que apresentam limitações e enfrentam barreiras sociais” – “só deficiência audição, só” (relato 4) –; mas quando a deficiência está ancorada na subcategoria “aqueles que apresentam defeitos visíveis no corpo”, os surdos rejeitam a categorização, porque o surdo é considerado “normal. É humano igual” (relato 1). Além disso, a RS sobre o surdo, aos olhos dos próprios surdos, é organizada por thematas como Nós/ Eles; normal/ anormal; corpo são/ corpo defeituoso.

Compreender o processo e o conteúdo da RS sobre o surdo, ajuda a entender práticas discriminatórias que, hoje, ainda estão naturalizadas dentro da nossa sociedade. A visão do outro sobre o surdo, perpassa a própria noção do surdo sobre ele mesmo. Noções perniciosas sobre o grupo ainda são propagadas por meio das interações cotidianas. Estudar e entender os processos envolvidos da (re)construção da RS sobre o surdo, pode ajudar na tentativa de subversão de práticas excludentes.

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MENEZES, T. D. de. The dialogical approach and discourse: a study on social representation about the deaf. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e421, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id421. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/421. Acesso em: 24 apr. 2024.

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