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Theoretical Essay

“Truth” and success: economic utilitarianism as a discourse in clash with education and science

Érika de Moraes

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https://orcid.org/0000-0002-6571-3971


Keywords

Constituent discourse
Truth
Economy
Education

Abstract

Constituent discourses, such as the religious and the philosophical, are those that legitimize themselves, relying on “their own truth”, while other discourses, such as journalistic ones, seek to base their arguments on other legitimizing sources. Nowadays, the economic discourse seems to rise to a maximum degree of constituent discourse, as shown by the “success formulas” that circulate in discursive practice. In this paper, we present a theoretical discussion about the constituent discourses and the notion of “truth”, in the light of some data, with the objective of, on the one hand, reflecting on the emergence of the economic discourse as the main constituent of the present time and, on the other hand, expanding discussions on the material functioning of this discourse in a corpus of digital media. The theoretical-methodological assumptions of the French Discourse Analysis support our work, in which we mobilize: the theoretical conception of the constituent discourses, according to the framework proposed by Maingueneau; the reflection on “truth” and “subjectivity”, based on Lacanian psychoanalysis. We understand that the supremacy of the economic discourse plays a decisive role in the reproduction of historical-scientific denialism, since, among other factors, it justifies policies centered more on economics than on education and science.

Introdução

Maingueneau (2006) apresenta como discursos constituintes aqueles que se “autofundamentam”, a exemplo do discurso religioso e do filosófico. Enquanto outros discursos, caso do jornalístico, buscam sustentar seus argumentos em outras fontes legitimadoras, os discursos constituintes são aqueles que se autolegitimam, apoiando-se em “sua própria verdade”. Em uma entrevista realizada por Oliveira, Angermuller aponta uma interessante hipótese, a de que o discurso da economia possa estar se impondo como um novo discurso constituinte da contemporaneidade, respeitadas as diferenças entre as nações: “É difícil determinar com clareza quais seriam os discursos constituintes hoje em dia. Talvez a economia... antes dos demais” (OLIVEIRA; ANGERMULLER; 2018, p. 3459). Tal hipótese vem ao encontro de dados que temos analisado em pesquisas a respeito da propagação de certo tipo de “discurso do sucesso”, associado ao enriquecimento financeiro (MORAES, 2019, 2021).

Embora tenhamos buscado reconhecer a parte positiva da emergência de tais discursos, ao menos no nível do “dito” (a importância da educação financeira na vida de todo cidadão), os dados demonstram a hegemonia de um aspecto cujos efeitos são bem menos positivos, a saber, o estabelecimento de uma “verdade” voltada à legitimação da ideia da “inteligência financeira” como sinônimo da “inteligência em geral”; ou da “educação financeira” como correlata da “educação em geral”, tratando-se, assim, de sentidos que deslizam e suprimem outras possibilidades.

Neste trabalho, apresentamos uma discussão teórica a respeito dos discursos constituintes e da noção de “verdade”, à luz de alguns dados, com objetivo de, por um lado, refletir sobre a hipótese proposta por Angermuller e, por outro, ampliar as discussões provenientes da análise de tais dados, com embasamento nos pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso de linha francesa.

Essa discussão alinha-se à compreensão do crescente movimento negacionista em relação a fatos históricos e científicos que “reconfigura” a prática discursiva contemporânea. Entendemos que a soberania do discurso econômico desempenha papel determinante na reprodução do negacionismo histórico-científico, uma vez que, entre outros fatores, justifica políticas centradas mais na economia do que na educação e na ciência. O papel dos discursos hegemônicos influencia seja o descrédito ou a defesa da ciência. Quando o discurso vigente é o de que “o mais importante é lucrar”, o lucro (para poucos) torna-se um fim em si mesmo, desprovido do contexto de uma sociedade forte, inclusive economicamente, com oportunidades democráticas, inclusivas e estimulantes para sua população.

A fim de abordar essa problemática, trataremos, nos tópicos seguintes: da concepção teórica sobre os discursos constituintes conforme o quadro proposto por Maingueneau (2006, 2010); de uma reflexão sobre “verdade” e “subjetividade”, noções que apontam possibilidades de desconstrução de discursos dominantes, com fundamentação na psicanálise lacaniana; de alguns dados que demonstram o funcionamento material de tais discursos vigentes, para então, por fim, propor algumas considerações finais.

1. Discursos constituintes

Ao situarmos nosso trabalho no quadro teórico-metodológico da Análise do Discurso francesa (AD), é considerado o entrelaçamento dos três aspectos que atravessam os discursos: a linguagem – como estrutura que os materializa; a historicidade – que possibilita a elevação de determinados discursos, dadas as condições de produção; o papel do inconsciente, conforme compreendido por Freud e Lacan, nos atravessamentos que implicam os posicionamentos discursivos. Trata-se de uma complexidade que leva a uma compreensão mais apurada (mas que não se impõe como “nova verdade”) sobre o funcionamento dos discursos e os efeitos de sentido que eles promovem, afetando as visões de mundo proeminentes nas sociedades.

Assim, a própria noção de “verdade”, desse ponto de vista teórico, só pode configurar-se entre aspas, como uma marca de heterogeneidade mostrada, no sentido de Authier-Revuz (1990), uma vez que não há um sentido estabelecido para qualquer noção, ainda mais uma tão complexa como esta. O campo filosófico já discutiu, por diversos caminhos, a noção de “verdade”, o que, segundo a teoria do discurso constituinte, pode implicar um novo problema, dado que a própria filosofia é um discurso constituinte. Para o campo discursivo, trata-se de compreender que “a verdade” é constituída nos discursos, pautada em posicionamentos. É assim que, para um negacionista da ciência, uma posição como a de que “vacina faz mal” pode ser sustentada como verdade e assim por diante.

Um posicionamento – ainda que “não verdadeiro” – pode ser defendido com base em argumentos parciais, que considerem apenas aqueles pontos de interesses compartilhados na formação discursiva do enunciador de determinado discurso. Uma forma de buscar um efeito de imparcialidade (a imparcialidade plena é sempre inviável) é o apoio em uma pluralidade de fontes credenciadas, como busca fazer (ao menos como orientação teórica) o jornalismo. Cada vez mais, no entanto, apresenta-se a necessidade de considerar a construção dos posicionamentos, porque nem todos eles podem ser sustentados como verídicos, ainda que possam ter fontes legitimadoras que os defendam. É o caso, por exemplo, do aquecimento global tratado como “exagero de ambientalistas” ou “climatismo”.

Assim, os sujeitos que ocupam posições discursivas “recortam e colam” da rede interdiscursiva as fontes legitimadoras que servem à sustentação dos discursos já compartilhados em suas próprias formações. Há discursos que se apoiam em especialistas (em saúde, nutrição, psicologia etc.) ou ainda em “discursos superiores” (o filosófico ou o religioso), sendo esses últimos, portanto, autolegitimadores.

Segundo Maingueneau (2006, p. 34), os discursos constituintes “se definem pela posição que ocupam no interdiscurso, pelo fato de não reconhecerem discursividade para além da sua e de não poderem se autorizar senão por sua própria autoridade”. O linguista explica que o discurso constituinte opera na sociedade uma função de produção simbólica que se poderia chamar de archeion, termo grego que, segundo o autor, apresenta uma polissemia interessante, uma vez ligado a archè: “fonte”, “princípio”, remetendo a “comando”, “poder”, a uma autoridade: “O archeion associa assim intimamente o trabalho de fundação no e pelo discurso, a determinação de um lugar associado a um corpo de enunciadores consagrados e uma gestão de memória” (MAINGUENEAU, 2006, p. 33, itálicos do autor). Para Maingueneau, discursos como o religioso, o científico e o filosófico são “evidentemente constituintes”, enquanto outros, como o político, parecem operar sobre um plano diferente, apoiando-se sobre os discursos constituintes, ou seja, “invocando a ciência, a religião, a filosofia etc.” (p. 34).

O autor observa que a característica da “constituição” não funciona de uma única maneira, podendo adotar regimes diversos. É com base nessa diversidade de funcionamento que afirma que não há impedimento para considerar a literatura como um discurso constituinte, embora isso possa surpreender. O estranhamento seria efeito de se assimilar “constituinte” a “fundador”, o que não é uma relação necessária: “não é porque não reflete seu fundamento sob o modo do conceito ou da revelação divina que a literatura não pertence a essa categoria” (MAINGUENEAU, 2006, p. 34). Em outro texto, Maingueneau reafirma a ideia de que a literatura seja um discurso constituinte, ainda que, “diferentemente do discurso filosófico ou do discurso religioso, em particular, a literatura não é um discurso fundador” (MAINGUENEAU, 2010, p. 61). Uma teoria do discurso constituinte, assim, considera o universo discursivo como um espaço heterogêneo, no qual “a ‘constituíncia’ não funciona de uma só maneira, ela adota tantos regimes quantos são os distintos discursos constituintes” (MAINGUENEAU, 2010, p. 61). Em outras palavras, não é necessário refletir seu fundamento “na forma do conceito ou da transcendência divina” para que um discurso participe dos discursos constituintes. É nesse sentido que se pode pensar, também, o discurso econômico como um discurso constituinte.

Discursos constituintes são frequentemente mobilizados por outros discursos para dar sentido e solidez aos atos da coletividade, funcionando como “fiadores de múltiplos gêneros do discurso” (MAINGUENEAU, 2006, p. 34). A remissão ao discurso constituinte é muito comum no jornalismo, cujos procedimentos se pautam na legitimação por meio de fontes conceituadas, assim, o jornalista recorre com naturalidade à autoridade do intelectual, do teólogo, do filósofo. Tais discursos constituintes conclamam um estatuto singular, “discursos-limite”, funcionando como fonte legitimadora: “só um discurso que se constitui tematizando sua própria constituição pode desempenhar um papel constituinte para outros discursos” (MAINGUENEAU, 2006, p.34-5, itálicos do autor). Dessa forma, inscrevem-se em um paradoxo constitutivo, uma vez que “esse Absoluto a partir do qual se autoriza é supostamente exterior ao discurso, para que possa lhe conferir autoridade, mas deve ser construído por esse mesmo discurso para fundá-lo” (MAINGUENEAU, 2006, p. 35). Uma observação importante é que “conforme a época e as civilizações, a função de archeion não mobiliza os mesmos discursos constituintes” (ibid.), assim, é a observação social dos discursos de nossa época que permite identificar o discurso econômico como um discurso soberano. A “pretensão” de tais discursos seria a de delimitar o “lugar comum da coletividade, o espaço que engloba a infinidade de ‘lugares-comuns’ que aí circulam” (ibid.), levando determinados argumentos a serem compreendidos como tácitos.

Discursos constituintes concorrem entre si, ameaçando-se uns aos outros:

os discursos constituintes se excluem e se atraem em uma irredutível imbricação: o discurso científico, por exemplo, é incapaz de se afirmar sem invocar a cada instante a ameaça do discurso religioso ou do discurso filosófico, os quais não cessam de renegociar seu estatuto em relação a ele. (MAINGUENEAU, 2006, p. 36)

É nesse motivo que sustentamos a hipótese de que a soberania contemporânea do discurso econômico, ao impor peso em seu lado da balança, é supressora do discurso da ciência, o que estabelece relação com a proeminência de discursos negacionistas (anti-científicos). Como regra geral, discursos constituintes “agem” de uma maneira a não se deixarem ser estudados como “um discurso entre os outros”. Esta é, para Maingueneau, uma diferença fundamental entre a filosofia (que opera como discurso constituinte) e a AD (que busca analisar a operacionalidade dos discursos).

Maingueneau propõe que uma análise da “constituição” dos discursos deva se ater “a mostrar a articulação entre o intradiscurso e o extradiscurso, a imbricação entre uma representação do mundo e uma atividade enunciativa” (MAINGUENEAU, 2006, p. 36). No caso do discurso econômico, propomos que essa articulação deva levar em conta diversas modalidades enunciativas, como cadernos econômicos, entrevistas, canais sobre finanças, relatórios financeiros de corretoras de valores e casas de análise, materiais de autoajuda e manifestações diversas que, no fio enunciativo, tecem e evocam o discurso econômico como soberano.

Na impossibilidade de analisar toda essa cadeia discursiva de uma só vez, e sem incorrer no risco de tomar casos como “meros exemplos”, é preciso remeter a elementos dessa cadeia que indiquem as bases da materialidade desse discurso, os quais possam ser confrontados com outros trabalhos de pesquisa. Trata-se da necessidade de analisar a enunciação manifesta como “dispositivo de legitimação do espaço de sua própria enunciação, a articulação de um texto e uma maneira de se inscrever no universo social” (MAINGUENEAU, 2006, p. 36). Essa necessidade está em consonância com um princípio fundamental exposto por Maingueneau (2006, p. 36), o da impossibilidade de dissociar, “na constituição discursiva, as operações enunciativas pelas quais se institui o discurso, que constrói, assim, a legitimidade de seu posicionamento, e o modo de organização institucional que o discurso ao mesmo tempo pressupõe e estrutura”. Enquanto a rede interdiscursiva é, por definição, “abstrata”, os textos que a compõem permitem que o funcionamento dos discursos seja apreendido em sua materialidade.

Maingueneau (2006, p. 39) observa ainda que a noção de discurso constituinte não se encerra em uma tipologia estritamente linguística, nem a uma ordem de grade sociológica ou psicossociológica, atravessando todas essas ordens. São as enunciações que “gerenciam” os posicionamentos e “configuram” os discursos constituintes, sendo tais posicionamentos “eles próprios inseparáveis de grupos que os elaboram e os fazem circular” (MAINGUENEAU, 2006, p. 40). Dessa forma “se constituem” os discursos que, ao mesmo tempo, autorizam a si mesmos e aos outros. Paradoxalmente (mas Maingueneau alerta que se trata de um paradoxo apenas aparente), os discursos constituintes, na “intenção” de se dirigirem ao “auditório universal”, dirigem-se nominalmente a uma comunidade reduzida: “é nesses grupos que se mantém uma memória e que os enunciados podem ser avaliados em relação às normas, partilhadas pelos membros da comunidade associada a tal ou a qual posicionamento” (ibid.). Tal funcionamento pressupõe a existência de “redes institucionais específicas, de comunidades discursivas que partilham um conjunto de ritos e normas” (ibid., itálicos do autor). É notório que grupos dominantes terão maior potencial no gerenciamento de memória, assim, conforme as épocas, tal ou tais comunidades discursivas representarão o papel dominante. Em nossos dias, a proeminência de discursos demonstra que a comunidade da hegemonia econômica ocupa um papel preponderante em relação à comunidade científica, sobretudo no que se refere a valores e políticas de Educação.

Antes de passar para a exposição analítica de alguns dados, abordaremos a noção de “verdade”, considerando que todo discurso constituinte se impõe como uma “verdade autoautorizável”. Para tanto, buscamos suporte em uma reflexão de ordem psicanalítica, com base especialmente em Lacan, visto que, por princípio, a AD entende que os discursos são tanto atravessados pela historicidade (pelas lutas de forças entre discursos coexistentes) quanto pelo inconsciente. A desconsideração de fatores relacionados ao inconsciente e ao psíquico faz parecer que os discursos não sejam atravessados por subjetivações específicas, aparentando serem “universalmente verdadeiros”. Considerar tais fatores, por sua vez, sinaliza os pontos de incoerência de tais discursos que se impõem como soberanos.

2. A “verdade” e a subjetividade no campo da psicanálise1

A psicanálise, cuja elaboração sobre o inconsciente é fundamentalmente relevante para a compreensão dos discursos, enfrentou a noção de “verdade” ao romper com uma visão anterior de psicologia, reivindicando uma nova concepção de ciência. Para fundar-se, a psicanálise funda também uma metapsicologia, a partir da qual, entre outros efeitos, do ponto de vista clínico, o sintoma psíquico deixa de ser apenas o correlato de alguma outra doença física para ser a própria doença, “a verdade” do paciente analisado. Antes, “para o doente, assim como para o médico, a psicologia era o campo do ‘imaginário’ no sentido do ilusório; logo, o que tem significação real, o sintoma, por conseguinte, só pode ser psicológico ‘na aparência’” (LACAN, 1936/2020, p. 84-5), fazendo com que a medicina da época buscasse “outra coisa” verdadeiramente “grave”, para além dos sintomas psíquicos.

Para a compreensão dos discursos, importa ressaltar que as descobertas da psicanálise rompem com um paradigma calcado no “Real”. A psicanálise vem reforçar que “a verdade do sujeito importa”, que não há “uma verdade” única e objetiva, uma vez que as visões de mundo são sempre perpassadas pelas formas com que o Simbólico atravessa cada sujeito.

Lacan (1948/2020, p. 120) critica “a mentalidade antidialética de uma cultura que, por ser dominada por fins objetivantes, tende a reduzir ao ser do eu toda a atividade subjetiva”. Lacan reforça, de várias formas complementares, os questionamentos em torno do descentramento do eu que a psicanálise torna possíveis: “Quem, senão nós, há de questionar o status objetivo desse [eu] que uma evolução histórica própria de nossa cultura tende a confundir com o sujeito?” (ibid.).

Quando Lacan (1953/2020, p. 241) reivindica o lugar da psicanálise, considerando tanto a necessidade de “retorno à sua história quanto de uma reflexão sobre seus fundamentos subjetivos”, instaura, também, o lugar da “verdade do sujeito”. Do lugar da Análise do Discurso, ressaltamos a importância das considerações da psicanálise como um dos pilares do tripé discursivo (ao lado da linguagem e da historicidade), sendo essa tríade articuladora dos gestos simbólicos que constituem as “verdades” sociais. As teorias se convergem, uma vez que é na linguagem que Lacan, assim como os analistas de discurso, articula o lugar do simbólico, em consonância com a História.

Por caminhos distintos, mas complementares, as teorias demonstram a instabilidade das “verdades” constituídas como inquestionáveis. No entanto, os discursos vigentes dominantes fazem parecer que existe uma “verdade estável”, calcada nesses mesmos discursos dominantes. É assim que a preponderância da economia em detrimento de outros aspectos se impõe na atualidade. E é no discurso, incluídos os seus silêncios, que a imposição de certas verdades dominantes se articula: “Mesmo que não comunique nada, o discurso representa a existência da comunicação; mesmo que negue a evidência, ele afirma que a fala constitui a verdade; mesmo que se destine a enganar, ele especula com a fé no testemunho” (LACAN, 1953/2020, p. 253).

Se Lacan diz que “é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas” (LACAN, 1953/2020, p. 277), não significa que as coisas não existam em si. Trata-se de trazer à tona o seu caráter simbólico, permitindo vislumbrar que as verdades são constituídas por vieses ideológicos, inconscientes, historicamente instituídos, conforme demonstram os inúmeros e aprofundados estudos no campo da Análise do Discurso.

As contribuições da psicanálise são fundamentais para a compreensão do lugar do sujeito como um lugar de descentramento. Lacan propõe ir além do clichê da conscientização (da ideia de “tomar consciência sobre algo”), mostrando que qualquer “impressão de consciência” é atravessada pelo simbólico. Em nossa interpretação, a “consciência mais próxima à verdadeira” teria relação com o entendimento (mais “consciente”) do simbólico que a atravessa. A própria linguagem é atravessada pelo símbolo da consciência, daí que a “consciência” aqui aparece como metáfora do que, em realidade, nada tem de “consciente”, mas envolve um despertar para esse lastro do simbólico.

Os enunciados que emergem da rede de interdiscursividade demonstram que indivíduos, interpelados como sujeitos, defendem a “verdade do sistema” como sua “verdade pessoal”. Nesse sentido, Lacan (1953/2020, p. 294) identifica que “lidamos com escravos que se tomam por mestres e senhores que encontram numa linguagem de missão universal o esteio de sua servidão”. Sem perceber, os sujeitos se afastam de sua “própria verdade”, ou seja, de sua mais profunda subjetividade, para a qual a análise (psicanalítica) o despertaria de volta, ao buscar “liberar a fala do sujeito”, introduzindo-o “na linguagem de seu desejo” (ibid.).

As teorias psicanalíticas da subjetividade apresentam elementos que contribuem para a desmontagem das bases do discurso da autoajuda do enriquecimento, demonstrando que há mais complexidade do que apontam termos como mudança de mentalidade ou mindset. Por outro lado, o sucesso desse discurso se dá justamente pela falta de acesso à educação de forma ampla e geral, não restrita à “educação financeira”.

Quando, na luta de forças entre discursos contemporâneos, um se impõe como soberano em relação a outro, algum(ns) deles se enfraquece(m). Investem-se de autoridade aqueles discursos alçados por sujeitos que ocupam posições compatíveis às sustentadas pelos discursos dominantes. É o que veremos na seção a seguir, que mostra, materialmente, o fortalecimento de discursos de ordem econômica em detrimento de outros, como se houvesse apenas uma “verdade” possível e uma única forma de ser interpelado como sujeito, como homo economicus.

3. À luz de alguns dados

Ao inscrever-se no projeto da AD, o analista “não pode se contentar em raciocinar em termos de atores, de posições e de lutas pela autoridade” (MAINGUENEAU, 2010, p. 50). “É preciso traduzir isso em termos de identidade enunciativa”, completa. Os posicionamentos implicados nos discursos convivem em relação de concorrência, mas não se trata, nos termos de Maingueneau, de um “confronto aberto”. Assim, não é de forma direta que o discurso econômico irá “dizer” que se opõe ao discurso da ciência e da educação, é necessário compreender os imbricamentos discursivos. De antemão, e por princípio, depara-se com um problema inerente à Análise do Discurso relacionado à constituição de corpora, já que “a unidade de análise pertinente não é o discurso em si, mas o sistema de relação com outros discursos por meio do qual ele se constitui e se mantém” (ibid.).

Tratando da autoridade conferida aos discursos constituintes, Maingueneau considera que “mais do que de ‘enunciado’, de ‘texto’, ou de ‘obra’, a questão aqui é a de inscrições” (MAINGUENEAU, 2006, p. 43, grifo do autor). A “inscrição” é reveladora de que o corpus não se esgota, uma vez que as mais diversas manifestações enunciativas podem se inscrever no campo de determinados discursos, buscando sua própria legitimação e, ao mesmo tempo, alimentando a legitimação dos discursos que a sustentam. Explica Maingueneau:

A inscrição é radicalmente exemplar: ela segue exemplos e dá exemplo. Produzir uma inscrição é não tanto falar em próprio nome, mas seguir os traços de um Outro invisível, que associa os enunciadores-modelo de seu posicionamento e, no limite, a presença daquela Fonte que funda o discurso constituinte: a Tradição, a Verdade, a Beleza... (MAINGUENEAU, 2006, p. 43)

O autor complementa que a inscrição “se implanta pela defasagem de uma repetição constitutiva”, sendo uma das características dos enunciados pertencentes aos discursos constituintes “serem ao mesmo tempo mais ou menos fechados em sua organização interna e reinscritíveis em outros discursos” (ibid.). O discurso econômico se prolifera, entre outros lugares, em perfis de influenciadores diversos que se autointitulam educadores financeiros. Por essa razão, nesta seção, não invocamos um corpus específico, mas tratamos de pontos comuns entre enunciações e enunciadores que não se esgotam.

Em trabalho anterior (MORAES, 2019), tratamos especificamente do ethos discursivo de Nathalia Arcuri, fundadora do canal e da empresa “Me Poupe!”, divulgado como “o maior canal de entretenimento financeiro do mundo”. As análises demonstraram que o discurso sobre educação financeira deslizava facilmente para o discurso sobre educação em geral. O caso de Nathalia Arcuri representa, simultaneamente, o de uma “enunciadora-modelo” e o de uma enunciação que remete a outras fontes legitimadoras, sempre de ordem econômica (como o apoio em especialistas sobre investimentos e na literatura sobre economia ou finanças comportamentais).

Em outro trabalho (MORAES, 2021), tratamos de um exemplo muito “interessante” do ponto de vista da análise, em que um jovem influenciador, no exercício de se inscrever no lugar simultâneo do aprendiz e do educador financeiro, publicou o vídeo “FACULDADE É PRA IDIOTA - Como alcançar o Sucesso sem faculdade”2, produzindo como efeito de sentido que “o que importa é ganhar dinheiro e aumentar patrimônio”: cursar uma faculdade não é garantia disso, logo, segundo o raciocínio em questão, é “coisa pra idiota”. No referido trabalho, no qual detalhamos a análise desse enunciado, mostramos que os discursos de influenciadores financeiros, sejam novos ou mais experientes, estão interconectados. Sem que um legitime explicitamente o ponto de vista do outro, os discursos que os constituem são legitimadores de ambos.

A esses casos já analisados, podemos somar outros de ordens diversas, não necessariamente intitulados como “educação financeira”, mas compostos como “educativos”, daí o efeito de deslizamento do sentido de educação financeira para o de educação em geral. O vídeo mencionado acima foi publicado em janeiro de 2019, pouco tempo depois do caso que se relata a seguir, o que denota relação de interdiscursividade.

Em novembro de 2018, quando homenageado por uma faculdade particular e já nomeado futuro ministro da Educação pelo governo eleito, Ricardo Vélez Rodríguez, afirmou: “O aluno tem que sair do segundo grau pronto para o mercado de trabalho. Nem todo mundo quer fazer uma universidade. É bobagem pensar na democratização da universidade, nem todo mundo gosta”. Completa que “o segundo grau teria como finalidade mostrar ao aluno que ele pode colocar em prática os conhecimentos e ganhar dinheiro com isso. Como os youtubers, ganham dinheiro sem enfrentar uma faculdade”. Esse pronunciamento foi divulgado em reportagens de diversos veículos de comunicação, entre os quais a revista Fórum (“É bobagem...”, 2018).

É digno de nota que o discurso de Vélez, a um só tempo, retoma e inaugura discursos que circulam sobre “o verdadeiro sentido da educação”, a saber, educação pelo dinheiro. Pode-se dizer que tal discurso pertence à mesma matriz que o caso de “faculdade pra idiota”, sendo então (previamente) legitimado por alguém que ocuparia uma função oficial na educação pública. Visões legitimadas por governos são determinantes para a implementação de políticas públicas.

Tal matriz discursiva é perpetuada em enunciados de diferentes ordens, sobretudo no discurso motivacional, expresso em mídias sociais, dos quais elencamos alguns, todos publicados no Instagram em 2021. Conforme propõe Castells (2000, p. 368) a “observação participante do autor” é uma fonte importante para a coleta de dados e, ainda que os mais diversos recortes sejam possíveis, é o acompanhamento da rede de interdiscursividade que torna possível sustentar o recorte como representativo. Apresentamos, a seguir, alguns desses enunciados, acompanhados de uma descrição de sua “cena de enunciação” que, conforme Maingueneau (2006), é parte relevante da constituição do ethos dos enunciadores:

a) “Ganhe dinheiro sem sair de casa” [o enunciado é acompanhado de uma ilustração de uma pessoa sentada em frente ao computador, recebendo da tela um saco de dinheiro. A imagem é acompanhada da seguinte descrição: “Chegou a hora de ter a liberdade financeira que você tanto espera sem sair do conforto da sua casa!”]

b) “Crenças limitantes” [Esse enunciado é acompanhado da ilustração de um cérebro, rodeado de outros enunciados que representam as crenças limitantes: Isso não é para mim... Eu não consigo... Felicidade dura pouco... A grama do vizinho é mais verde... Tudo precisa ser perfeito... Eu não consigo... Nasci pobre, vou morrer pobre... Sou velho demais para isso...]

c) “A regra 50/30/20 – o método usado por milionários” [O enunciado é acompanhado da ilustração de um pote que representa qual porcentagem da renda deve ser usada em cada aspecto da vida, a saber: 50% para itens essenciais (transporte, alimentação, moradia, contas, estudo); 30% para diversão (jantares, Netflix, lazer, assinaturas); 20% para poupar (investimentos, emergências, objetivos)]

d) “O BBB que o Brasil acompanha (Big Brother Brasil) / O BBB que o Brasil deveria acompanhar: B3 – Brasil Bolsa Balcão. Agora você entende por que o Brasil não vai pra frente?” [ilustrado com o logo do BBB e o da B3]

e) Será que o problema é quanto você ganha? [Este enunciado é acompanhado da ilustração de dois personagens, que incorporam dois exemplos: Carlos, 37 anos, ganha R$ 4.500,00 por mês, gasta R$ 4.400,00, investe R$ 100,00 e possui um patrimônio de R$ 20.400,00. Maria, 24 anos, ganha R$ 2.500,00 por mês, gasta R$ 1.700,00, investe R$ 800,00 e possui um patrimônio de R$ 38.800,00. É reforçada a pergunta inicial: “o problema está no quanto você recebe ou em como você administra suas finanças?”]

(Enunciados de posts da rede Instagram)3

O post a) representa um discurso bastante propagado atualmente, fazendo apologia às tecnologias digitais, o de que é possível “ganhar dinheiro sem sair de casa”, conquistando a “liberdade financeira”, “do conforto de sua casa”. Tal discurso não problematiza as diferenças de condições entre as pessoas, a possibilidade de ter um computador e, além disso, o acesso ao letramento digital, a disponibilidade de “uma casa confortável” com espaço adequado para o trabalho, as habilidades para trabalhar na internet, a vocação para este e não outro tipo de trabalho. Ao não problematizar, sustenta que “todo mundo é capaz de conquistar a liberdade financeira com essa mesma fórmula”.

O post b) apresenta um conjunto de “crenças limitantes”, que reproduzem enunciados que circulam com frequência na chamada literatura motivacional, a qual costuma recorrer a argumentos da “neurociência”, só que de forma descontextualizada, a fim de aparentar cientificidade, daí a imagem do cérebro referendando esses argumentos como supostamente científicos. A reunião desses enunciados (que expressariam as crenças) faz parecer que, basta superá-los, para então superar as tais crenças limitantes.

O post c) expõe uma fórmula matemática para a pessoa poupar 20% de sua renda, o que leva à sustentação do argumento de que “só não poupa quem não quer”. O post, em si, não apresenta qualquer discussão a respeito da baixa renda da maioria dos brasileiros.

O post d) apresenta uma visão polarizada em que só existiriam dois tipos de pessoas: aquelas que assistem ao reality televisivo Big Brother Brasil (a maioria) e aquelas que investem na bolsa de valores (uma minoria). Segundo o post, como o Brasil assiste ao BBB, mas não investe na B3, o país não vai para frente. Logo, constrói-se uma espécie de silogismo: se todos passassem a investir na Bolsa, o país iria para frente. O exemplo é particularmente interessante porque apresenta uma construção discursiva que faz parecer que a crítica a esse post só poderia vir de alguém que gosta de assistir BBB, o que, certamente, é efeito da cena de enunciação.

Quanto ao post e), em relação aos personagens fictícios, não podemos deixar de reconhecer que Maria é representada como tendo mais educação financeira do que Carlos. A questão importante é aquilo que não é dito no post: que as diferenças de renda e capacidade de investir no Brasil não se resumem ao exemplo de Carlos e Maria (que poderiam, ao menos parcialmente, ser justificados pelas idades fictícias apresentadas, estando os personagens fictícios em momentos diferentes da vida e da “carreira”), mas implicam diferenças na casa de milhões e bilhões entre o alto executivo e o operário do chão de fábrica.

É válido observar que, embora os posts supracitados não tenham problematizado a renda dos brasileiros, essa problematização chega a ser mencionada no trabalho de personalidades como Nathalia Arcuri, da “Me Poupe!”. Foi bastante visualizada uma entrevista televisiva em que, ao responder sobre “o que fazer com um salário mínimo”, a educadora financeira responde que esse brasileiro precisa de uma renda melhor. Na sua rede de discursividade, Nathalia Arcuri apresenta muitas “dicas de renda extra”. Bruna Andriolli, que foi a primeira personagem do reality Me Poupe! (do qual tratamos em MORAES, 2019), ganhou um quadro no canal Me Poupe! e nele também apresenta dicas de renda extra. Em um desses vídeos, divulgou dicas de renda extra para professores, enfermeiros etc., faltando contextualizar que tais profissões já ocupam um bom espaço da jornada dos profissionais que nelas atuam. Embora tais vídeos tenham muitos seguidores e sejam majoritariamente elogiados, alguma problematização aparece em comentários (minoritários), como em um que aponta que a enfermagem lida com vidas e anota: “vejo colegas sobrecarregado [sic] pegando plantão sem aguentar”. A réplica a esse comentário amplia a contextualização: “Não é questão de ganância e sim desvalorização. Pagam muito mal para enfermagem, e a situação só piorou com a pandemia. Tem que cobrar das autoridades para melhores salários, o profissional é o menos culpado de precisar”. Esses comentários figuram entre outros 239 neste vídeo (na data pesquisada) que, em grande maioria, elogiam as dicas de renda extra, sem qualquer problematização.

Figure 1. Figura 1. Comentários no YouTube. Fonte: PrtScr de comentários no vídeo “Renda extra para professores, fotógrafos, designs, enfermeiros”, publicado no Canal “Me Poupe!” (Quadro “Te vira linda”, por Bruna Andriolli) em 6 de abril de 2021. Acesso em jun.2021.

Por fim, ainda tratando dos deslizamentos de sentidos desses discursos, registramos em nossa “observação participante” a seguinte manifestação de uma seguidora da página de Nathalia Arcuri, em um comentário em post do Instagram: “Não tenho emprego fixo, mas não fico um mês sequer sem dinheiro, pq adivinha? Eu aprendi a fazer TCC e cobro por isso”. Como o comentário suscitou críticas, a autora procurou se explicar: “Não é vender tipo: faço tudo e vendo. É revisar, colher citações, corrigir, ou até mesmo criar, sim, um tópico que seja. Pode da cana [sic]? Pode. Mas no momento é o que me ajuda (...)”. Do ponto de vista acadêmico, sabe-se que a atividade de compra/venda de TCC não é ética, o que ilustra o perigo da “renda extra a qualquer custo”. Embora tenha se tentado alegar o trabalho de revisão, a postagem deixou margem para a possibilidade da compra/venda de TCC, podendo, inclusive, como uma das consequências, desprestigiar o real trabalho de revisores qualificados (o que nada tem a ver com venda de TCC e exige formação e competência especializadas). Ilustra, também, que o problema da educação é muito mais profundo que a falta de educação financeira: é preciso que, desde a escola básica à universitária, haja condições para ensinar/aprender efetivamente a escrever, pesquisar, atuar de forma ética, o que também implica condições adequadas de trabalho para os profissionais da educação. Por princípio ético e educativo, a possibilidade de que um TCC possa ser comprado/vendido com finalidade de gerar renda precisa ser rechaçada.

Figure 2. Figura 2. Trecho de comentário em post do Instagram. Fonte: PrtScr de comentário em post publicado em 25 de março de 2019. Post com foto de Nathalia Arcuri, cuja descrição inicia com o texto: “Eu nunca fui adepta às variações da renda variável...”. Post com mais de 2000 comentários. Acesso em mar.2019.

Ainda em relação ao desprestígio dos profissionais de educação em geral (e prestígio da educação financeira), coletamos os seguintes comentários em um vídeo do Canal “Me Poupe!”:

- Naty! Você já pensou em um projeto para ensinar finanças e empreendedorismo para crianças? Isso para ser realmente colocado na grade curricular de colégios. Seria fantástico!

- Primeiro é preciso capacitar as jumentas das professoras, a maioria sequer sabe matemática básica. Com todos [sic] respeito as exceções, aquelas poucas que sabem.

(Comentários no vídeo intitulado “Por que abri mão do patrocínio milionário? E as 3 lições que eu deixo dessa Jornada”, publicado no canal Me Poupe! em 30 de novembro de 2020.)

Figure 3. Figura 3. Comentários no YouTube. Fonte: PrtScr de comentários no vídeo intitulado “Por que abri mão do patrocínio milionário? E as 3 lições que eu deixo dessa Jornada”, publicado no canal “Me Poupe!” em 30 de novembro de 2020. Acesso em Nov.2020.

O primeiro comentário tinha recebido 372 curtidas até a coleta de nosso Print. O segundo, bastante ofensivo em relação às professores, havia recebido 12.

Os dados apresentados dialogam entre si, construindo uma rede de interdiscursividade. Os enunciadores não são os “criadores” desse discurso, muito ao contrário, legitimam um discurso constituinte dado, ao mesmo passo em que fortalecem o mesmo discurso por meio de suas enunciações, sem que essas enunciações o inaugurem. Os casos não se esgotam. Seria necessária uma ampla rede de pesquisadores para dar conta dos diversos modos de enunciação desses discursos, mas os dados expostos conseguem demonstrar a efervescência de enunciações que partem dessa mesma matriz discursiva na atualidade. Acompanhando enunciações da mesma rede (por exemplo, comentários de seguidores do canal “Me Poupe!”), depara-se com a reverberação do discurso de que “falta educação sobre finanças nas escolas”. Convidamos os leitores a observarem, nas mais variadas enunciações, como se manifesta o argumento de que a ampliação da “educação financeira” dentro das escolas seria suficiente para resolver o problema da educação. Os dispositivos tecnológicos são decisivos para a sustentação desse discurso dominante. Como diz Castells, ao tratar do que entende como capitalismo global e tecnologia informacional:

Sem dúvida, a habilidade ou inabilidade de as sociedades dominarem as tecnologias e, em especial, aquelas tecnologias que são estrategicamente decisivas em cada período histórico, traça seu destino a ponto de podermos dizer que, embora não determine a evolução histórica e a transformação social, a tecnologia (ou sua falta) incorpora a capacidade de transformação das sociedades, bem como os usos que as sociedades, sempre em um processo conflituoso, decidem dar ao seu potencial tecnológico. (CASTELLS, 2000, p. 26)

Quando analisadas em conjunto, as enunciações demonstram de forma mais concreta o que parece inapreensível, dada a abstração da rede de interdiscursividade: o fato de que um mesmo posicionamento dominante pode fundamentar enunciados aparentemente distintos. Segundo Maingueneau (2006, p. 35), “cada discurso constituinte aparece ao mesmo tempo como interior e exterior aos outros, que ele atravessa e pelos quais é atravessado”. É assim que uma mesma “constituíncia” atravessa discursos como o de informação financeira, investimentos, autoajuda e, mais recentemente, educação.

Como ressalta Maingueneau, os discursos constituintes se modulam ao mesmo tempo em que constroem o quadro de seu dizer. Sua “força enunciativa” como um “discurso primeiro” é efeito da elaboração dos “dispositivos pelos quais o discurso encena seu próprio processo de comunicação, uma encenação que é parte integrante do universo de sentido que o texto procura impor” (MAINGUENEAU, 2006, p. 47). Trata-se de um dizer que constrói o próprio quadro possível desse dizer. Daí a importância de se enxergar o funcionamento desses discursos nos próprios quadros de comunicação, em gêneros diversos (um pronunciamento, um post ou comentário em rede social etc.) e conforme variadas cenografias. Um certo discurso econômico não será exposto necessariamente como um “tratado econômico”, mas nos matizes das variadas cenas de enunciação e, justamente por isso, configura um efeito de verdadeiro, soberano, inquestionável. Ao enunciar, um quadro é dado, pressuposto, e, simultaneamente, construído na enunciação. A análise demonstra, assim, o que permanece no nível do indizível: que o próprio quadro poderia ser outro, já que depende das forças dominantes em certo estágio da sociedade.

4. Considerações finais

Vimos que o discurso econômico vem se impondo como “o” discurso constituinte da atualidade de modo unilateralizante, inclusive apagando diversas formas de subjetividade e impondo uma “verdade” única. O “sucesso financeiro” emerge como um fim em si mesmo, não como resultado de uma sociedade que apoia a educação, a ciência e, assim, de forma democrática, amplia as oportunidades para seus cidadãos.

As discussões apontam a proeminência do discurso econômico como o provável “principal” discurso constituinte da contemporaneidade, mostrando quais são as forças preponderantes em nosso século, já que, “através da diversidade de séculos e de sociedades, a zona de ‘constituíncia’ está em reconfiguração permanente e não podemos nos contentar em ‘colar’ os recortes atuais nas situações que resultam de outro regime” (MAINGUENEAU, 2010, p. 61).

Quando a “educação financeira” se torna “o” objetivo educacional por excelência, outros discursos são relegados a espaços periféricos, como o da educação cidadã, humanística, da ética, do bem-estar social pautado em princípios democráticos, do direito trabalhista, das possibilidades de mobilidade social e, inclusive, progresso financeiro. Para que as mais diversas atividades profissionais contribuam para o progresso e bem-estar da sociedade, todos os tipos de trabalho precisam ser valorizados (profissionais da saúde, educação, limpeza e coleta de lixo, corpo técnico-administrativo, operador de máquina etc.). E, sobretudo, o lugar da ciência precisa ser garantido, a fim de que não sejam propaladas como verdadeiras ideias perigosas como a divulgação de supostos “tratamentos alternativos ou preventivos” para o coronavírus sem qualquer sustentação metodológico-científica.

Se remunerados com justiça, os mais diversos profissionais podem se beneficiar da chamada “educação financeira”. No regime capitalista, o operário do chão da fábrica é de importância fundamental para o crescimento e lucro de uma empresa, sendo justo que possa se beneficiar de parte desse lucro, como fruto de seu próprio trabalho. Para tanto, é preciso estar explícito que o investimento em educação compreende aspectos bem mais abrangentes do que a formação apenas em finanças. É a educação em sentido amplo que mostra que o mundo não se divide em um pequeno conjunto de pessoas espertas que sabem “vender(-se)” para gerar renda extra, enquanto todas as outras consomem os produtos e serviços vendidos.

Educar não se resume a “educar para faturar”, embora a educação não deva excluir a ascensão financeira. É justamente por isso que profissionais qualificados em suas funções deveriam ser valorizados. A nosso ver, não há melhor forma de distribuir renda do que gerar serviços de saúde e educação públicos e gratuitos de qualidade, com profissionais reconhecidos prestando esses serviços, afinal, também são cidadãos. Da mesma maneira, profissionais da iniciativa privada também contribuem para a sociedade e devem ter seus direitos garantidos por meio de leis trabalhistas sólidas e justas.

A falta de investimento amplo em educação sustenta discursos negacionistas, os quais põem por terra conhecimentos já bem fundamentados e restringem a educação à visão utilitarista exposta pelo ex-ministro Vélez Rodríguez. Entendemos que a supremacia do discurso econômico desempenha papel determinante na reprodução do negacionismo histórico-científico, uma vez que, entre outros fatores, justifica políticas centradas mais na economia do que na educação e na ciência.

Por paradoxal que possa parecer (paradoxo apenas aparente), concluímos dizendo que a educação financeira é importante. Mas não só. Por um lado, educação financeira compreende um conjunto de aspectos como economia doméstica, consumo consciente, psicologia econômica, sustentabilidade etc. Por outro, educação, em sentido amplo, compreende muito mais. Já que o discurso de que a educação financeira salvaria a educação em geral impera como o dominante, é preciso ressaltar sua lacuna. Remetendo a vocabulário típico da contemporaneidade digital, esta pesquisadora não é uma hater dos influenciadores sobre finanças e empreendedorismo. A questão é a necessidade, a partir do meu lugar de fala, de alcance incomparavelmente mais restrito, considerados os valores vigentes, de tentar mostrar o que não é dito. Para tanto, as análises tornam mais perceptíveis as relações entre uma representação do mundo e uma atividade enunciativa, iluminando o indizível.

Defendo, ainda, que a autocrítica deva ser feita dentro do sistema educacional, o que não implica a adesão à visão mercadológica sem reflexão. É válido estudar finanças (o que, aliás, já consta como tema transversal no ensino fundamental), sendo ainda mais relevante estudar uma complexidade de habilidades e competências, como leitura, interpretação de texto, matemática, ciências, artes, raciocínio crítico, educação para a informação, letramento digital etc. A lista é ampla e profunda, não se resumindo a um único aspecto.

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How to Cite

MORAES, Érika de. “Truth” and success: economic utilitarianism as a discourse in clash with education and science. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e467, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id467. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/467. Acesso em: 29 mar. 2024.

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