Considerações iniciais
Este artigo põe em cena o ensino de Língua Portuguesa na escola. Já disse, em situações anteriores, que não há como analisar qualquer fato da língua sem considerar seu funcionamento em textos, em dada situação de enunciação, uma vez que as pessoas usam a língua para produzir sentido e dizer algo umas para as outras, organizando o mundo sob seu ponto de vista. Assim, pode-se pensar que nem a língua em si mesma, nem a palavra isolada nos dão sua dimensão semântica. Isso só é possível no texto. Nesse particular, a construção do sentido das palavras dá-se a partir da organização (textual) das unidades linguísticas – disponíveis na língua – colocadas em relação, ou seja, é o próprio sistema de regras da língua posto em funcionamento por alguém. Essas observações se inserem na linha teórica relativa aos estudos da linguagem, especialmente no que se convencionou chamar Teoria Enunciativa, realizados pelo linguista Émile Benveniste. Essas considerações benvenistianas, aqui colocadas, almejam subsidiar reflexões acerca do trabalho com a língua na escola, quando professores de Língua Portuguesa se propõem a realizar trabalhos com o texto em suas aulas na escola de educação básica e, principalmente, quando têm como objetivo o ensino da leitura e da escrita. Então, o foco desta reflexão é o texto, enquanto unidade de sentido no trabalho com a língua na escola. Um trabalho amparado em uma perspectiva enunciativa.
Émile Benveniste, teórico que ampara esta reflexão pelos seus estudos enunciativos ao pensar a língua e propor um modo de ver a linguagem, não discute diretamente a noção de texto ao longo de seus Problemas de linguística geral – ao menos não como isso é feito nos parâmetros atuais da Linguística. No entanto, acredito possível inferir de seus trabalhos uma noção sintonizada à ideia de uso da língua e de organização em dada situação enunciativa. E é em Benveniste que esta escrita se inspira. Eis o percurso que pretendo fazer.
Primeiramente, pontuo, como forma de justificar a pertinência do que adiante será proposto, algumas constatações do que se tem visto (pela minha prática docente na educação básica e superior) nas escolas no que respeita o ensino de Língua Portuguesa. Em seguida, proponho um deslocamento, qual seja: no texto de 1963 – Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística –, Émile Benveniste traz a natureza dupla do objeto da linguística enquanto ciência da linguagem e ciência das línguas. Diz Benveniste (1963/1995, p. 20): “a linguagem, faculdade humana, característica universal e imutável do homem, não é a mesma coisa que as línguas, sempre particulares e variáveis, nas quais se realiza. É das línguas que se ocupa o linguista e a linguística é em primeiro lugar a teoria das línguas.”
A partir disso, quero trazer uma das ponderações de Benveniste, que é o estudo das línguas, para chegar ao estudo do funcionamento da linguagem. Ele se preocupava, como já havia ponderado Saussure, com a tarefa do linguista. Assim, uma pergunta se coloca: de que deslocamento estou falando? Benveniste afirma que “é das línguas que se ocupa o linguista”; quero propor que um professor de língua – neste caso o de português – além de ensinar língua, (também) deve se ocupar da descrição língua, para entender seu funcionamento e mostrá-lo no texto quando propõe as atividades de leitura e de escrita aos seus alunos. Poderíamos questionar: qual a diferença entre ambos, linguista e professor? Em seguida, faço um recorte no texto de 70, o Aparelho formal da enunciação, evidenciando os instrumentos colocados em funcionamento no ato da enunciação. É deles que me ocupo para tratar do ensino da língua, na escola, quando a questão é ensinar a ler.
Este texto não tem a pretensão de fazer grandes reflexões teóricas, mas alguns (des)encaminhamentos que podem provocar discussões futuras, a partir do lugar que se coloca o trabalho com o texto na escola, quando se trata do fazer docente nas aulas de Língua Portuguesa. A ideia é trazer a realidade vivida na escola, apontar uma questão teórica possível para embasar a reflexão e, a partir daí, operar o deslocamento, uma vez que a teoria de Émile Benveniste não trabalha com ensino, mas suas reflexões possibilitam esse deslocamento. A eles, então.
1. Ensinar Língua Portuguesa na escola: o foco no texto
As práticas docentes desenvolvidas na escola nos últimos anos já provaram que as atividades voltadas para a descrição do funcionamento da língua, de forma isolada, não contribuem para o desenvolvimento das habilidades de uso da língua. O exercício pelo exercício não leva a uma reflexão sobre o funcionamento da língua. Não é por meio de atividades de catalogação de entidades, de classificação de palavras e do reconhecimento de suas funções na frase que alguém será capaz de usar a língua de forma eficiente e crítica nas diversas situações discursivas1. Isso significa dizer que não são essas atividades de classificação que vão garantir a aprendizagem da leitura por alunos em sala de aula. É preciso um trabalho que evidencie o funcionamento da língua em textos, mostrando como ler um texto.
Não há dúvida de que a ineficiência da escola e o mau desempenho dos estudantes da educação básica estão intimamente relacionados ao trabalho desenvolvido no interior da sala de aula. A função do professor de Língua Portuguesa vai muito além de um simples dar conteúdos gramaticais. Partimos do princípio de que nossos alunos, tendo como suporte as aulas de Língua Portuguesa, devem ser capazes de melhorar seu desempenho linguístico, ou seja, desenvolver sua competência comunicativa. Isso significa que os aspectos sintático-semânticos do texto não podem ser desconsiderados, ou seja, não há como analisar qualquer fato de língua sem considerar seu funcionamento no texto.
Daí a razão de defender que o ensino de Língua Portuguesa deve ultrapassar o nível da palavra e da frase e ter na leitura e na escrita do texto o eixo principal do trabalho escolar. Nesse sentido, as ações desenvolvidas na escola devem priorizar atividades de análise de uso da língua no texto lido e escrito na escola. Afinal, a escola não pode estar afastada da vida. Na vida, usamos textos o tempo todo – para expressar o que queremos, o que sentimos. A linguagem nos constrói todos os dias e a competência comunicativa do falante melhora à medida que ele entende “o que significa colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1970/2006, p. 82). Nesse contexto, o falante é o aluno que está na escola de educação básica.
Acredito que a realidade do ensino e da aprendizagem na escola aponta para a carência de uma concepção de língua e de linguagem por parte dos professores, corroborando com uma carência teórica dos educadores acerca desses conceitos em especial. E é a linguagem em uso e a língua organizada em textos que possibilitam conhecermos o falante – homo loquens – que vive e atua em sociedade; que fala com outro homem. Assim, não basta saber o que significa cada uma das unidades da língua que compõe um enunciado; é preciso perceber que relações essas unidades do sistema linguístico mantêm com outras unidades em dada situação de uso. Assim, tomo as palavras de Benveniste (1963/2005, p. 22): “[...] a língua é um arranjo sistemático de partes. Compõe-se de elementos formais articulados em combinações variáveis”. Essas combinações variáveis da língua estão nos textos que lemos e escrevemos. Por isso, precisamos torná-los objetos de estudo, de ensino e de aprendizagem nas salas de aula de Língua Portuguesa da educação básica. Essas questões de olhar a língua em uso são objeto de diferentes perspectivas teóricas, que buscam discutir o ensino da língua portuguesa em sala de aula. A partir daqui, proponho o deslocamento de que anunciei: refletir sobre essa questão pela teoria enunciativa de Émile Benveniste e suas ponderações sobre língua e linguagem, tendo presente um trabalho de leitura e escrita na escola.
2. Olhar a língua no texto, pela enunciação: tarefa do professor
Esta seção se destina a um olhar muito particular de um aspecto trazido no texto de 1963 de Émile Benveniste, Parte I, do Problemas de Linguística Geral I, destinada a “transformações da linguística”. O texto que recorto dessa primeira parte do PLG I é o texto Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística, em que Benveniste observa que a linguística tem duplo objeto: é a ciência da linguagem e a ciência das línguas. Benveniste, nesse texto, retoma uma preocupação de Saussure2 – colocada no Cours – acerca da tarefa da Linguística e do linguista, chamando a atenção para a questão de saber em que consiste e como funciona a língua. Vamos às palavras do sempre pai da linguística, Saussure, que já trazia o questionamento: “Qual é, enfim, a utilidade da Linguística? [...] Mas é evidente, por exemplo, que as questões linguísticas interessam a todos – historiadores, filólogos etc. – que tenham de manejar textos.” (CLG, 2006, p. 14). Em seguida, Saussure afirma que a tarefa do linguista é “antes de tudo denunciá-los e dissipá-los tão completamente quanto possível”. Ele trata das “questões linguísticas” que cabem a todos. E ele trata dos textos e de seu funcionamento. Quando Saussure, na segunda tarefa da Linguística, afirma que se devem procurar as forças que estão em jogo na língua e deduzir suas leis, sem dúvida, trata da descrição das línguas. Pontuo que, no trabalho de sala de aula, essa “descrição das línguas” diz respeito ao trabalho do professor que deve mostrar aos alunos como a língua funciona em textos.
Essas considerações inicias destinam-se à reflexão acerca do trabalho de língua portuguesa na escola. A partir do que se coloca, traz-se à discussão o papel do professor de língua: este deve ter presente que ensinar língua, significa mostrar aos alunos o funcionamento, a organização, o engendramento da língua em uso nos textos trabalhados em sala de aula, sejam eles numa dimensão de leitura e/ou escrita. Diante disso, queremos dar início ao deslocamento que se propõe neste texto: a ideia não é trabalhar com a questão da leitura em si, mas trazer a reflexão de que o professor, assim como o linguista, deve ter presente a seguinte premissa: ensinar língua para ler e escrever, significa descrever o funcionamento da língua em textos. Acreditamos que assim se ensina ler e escrever.
Benveniste pensa a tarefa do linguista a partir de Saussure, considerando necessário que o linguista tenha um ponto de vista sobre a linguagem, sabendo qual o princípio que a organiza. Como defende Flores (2013, p. 67), “[...] uma das tarefas do linguista é ir aos fundamentos para, por eles, chegar aos dados elementares, o que significa instaurar um ponto de vista. ” E, ainda, tomo outras palavras de Flores (2013, p. 68): “O objeto da linguística benvenistiana é a linguagem tomada em toda a sua amplitude, na relação com as línguas e, obviamente, com a língua.” Isso, neste texto, tem uma importância distinta, pois o objeto de que se trata diz respeito a algo que funciona de determinada maneira, porque possui um arranjo que lhe é próprio e que pode ser descrito. Nesse caso, a língua, enquanto arranjo sistemático de partes, composta de elementos articulados em combinações variáveis, segundo certos princípios de estrutura, será descrita pelo linguista, para que se observe o funcionamento da língua. Eis o linguista se ocupando do fenômeno que constitui a linguagem humana.
Portanto, o linguista tem como tarefa descrever a língua e seu funcionamento em textos. Já disse Saussure há tanto tempo. Este é o deslocamento que pretendo fazer: assim como o linguista, esta é a tarefa do professor de língua, dedico-me ao da língua materna: descrever o funcionamento da língua e mostrar esse funcionamento em análises textuais, principalmente pelas atividades de leitura e de escrita, descrevendo o funcionamento da língua em uso no texto em questão. Poderíamos perguntar: qual a diferença entre a tarefa de um e de outro? O linguista descreve o funcionamento da língua; o professor descreve o funcionamento da língua, para ensinar seus alunos a usá-la; para ensinar seus alunos a ler e a escrever. Então, acredito que a tarefa do professor de língua deve incluir a tarefa do linguista ao descrever o objeto da linguística – a língua. Como diz Benveniste (1995/1963, p. 25), “a abordagem descritiva, a consciência do sistema, a preocupação de levar a análise até as unidades elementares, a escolha explícita dos procedimentos são outros tantos traços que caracterizam os trabalhos linguísticos modernos”. Isso pode se dar, por exemplo, pela descrição dos instrumentos do aparelho de formas da língua. Uma reflexão acerca dos procedimentos acessórios, discutidos no texto de 70 – O Aparelho – é tema da próxima seção.
3. Procedimentos acessórios: uma descrição necessária
O título da seção traz o que efetivamente me inquieta. Nesta seção, farei considerações acerca dos instrumentos apontados por Benveniste no texto de 70, o Aparelho. Antes disso, o texto de 70 merece algumas ponderações, pois precisamos de algumas premissas de Benveniste, para que possamos construir a reflexão desejada neste texto. Desde já esclareço que não vou trabalhar com o texto do Aparelho em sua integralidade. Estou fazendo um recorte para um deslocamento posterior.
O texto O Aparelho Formal da Enunciação, de Émile Benveniste, publicado originalmente em 1970, no décimo sétimo número da revista Langages e a pedido de Tzvetan Todorov, ficou mais conhecido em 1974 quando publicado nos Problemas de Linguística Geral II. Este texto reúne reflexões anteriores a 70 e se destaca pelo impacto que causou – na comunidade linguística da época, por ser o único texto (de Benveniste) que carrega – já no título – a palavra enunciação. Como foi um texto escrito para linguistas e por estar publicado na revista Langages, foi possível escolher e tratar de temas próprios e específicos do campo, questioná-los, estudá-los, mobilizando críticas e observações acerca dos estudos normalmente feitos e propondo outras visões sobre o que se estava fazendo na linguística da época. Destaco que, para Benveniste (1989), foi fundamental a essa discussão de 70 trazer a diferença entre emprego das formas e emprego da língua, uma vez que ele entende este último (o emprego da língua) numa dimensão enunciativa e aquele (o emprego das formas) numa perspectiva da linguística que se fazia naquele tempo. Afirmo isso amparada no que diz o próprio Benveniste (1989/1970, p. 81):
Gostaríamos, contudo, de introduzir aqui uma distinção em um funcionamento que tem sido considerado somente pelo ângulo da nomenclatura morfológica e gramatical. As condições de emprego das formas não são, em nosso modo de entender, idênticas às condições de emprego da língua. São, em realidade, dois mundos diferentes, e pode ser útil insistir nesta diferença, a qual implica uma outra maneira de ver as mesmas coisas, uma outra maneira de descrever e de as interpretar.
Benveniste faz uma distinção entre as condições de emprego das formas e da língua. Diz que são “mundos diferentes” e que isso implica “uma outra maneira de ver as mesmas coisas” e salienta o que neste estudo é primordial: “uma outra maneira de descrever e de as interpretar”. Sem dúvida alguma, essa diferença deve ser feita. E deve ser feita com o rigor que lhe é necessário. Gostaria de chamar a atenção, primeiramente, que esses “mundos diferentes” me parece que não são tão diferentes assim. Afinal, estamos falando de língua, esse mundo é a língua. Isso é fundamental. Isso é o que traz um mundo diferente. Precisamos entender muito bem isso que diz Benveniste.
Quando Benveniste (1989) traz o emprego das formas, ele traz as relações internas da língua, as condições sintáticas, ou seja, as relações de ordem sintagmática e paradigmática da língua. Esse é o emprego das formas da língua. Conforme Flores (2013, p. 163), “[...] se restringe à investigação das regras que fixam as condições sintáticas, das possibilidades paradigmáticas, das regras de formação, das ocorrências morfológicas, das possibilidades combinatórias, entre outras relações do âmbito da forma linguística”. Sem dúvida, trata-se de uma parte necessária de toda descrição linguística, uma vez que esse emprego está ligado às estruturas linguísticas, ou seja, o emprego das formas está ligado às regras internas de formação e de emprego dos signos, os quais conferem à língua o seu caráter estrutural. A essas regras, o próprio Benveniste (1989, p. 81), no primeiro parágrafo, já dedica um comentário: “[...] é um conjunto de regras fixando as condições sintáticas nas quais as formas podem ou devem normalmente aparecer uma vez que elas pertencem a um paradigma que arrola as escolhas possíveis.” Se voltarmos no tempo, Benveniste, em 1954, quando refletiu sobre as tendências recentes (da época) em linguística geral, observou a organização interna e as leis de organização dos traços distintivos. Afirma Benveniste (1995, p. 9): “Esses elementos ordenam-se em séries e mostram em cada língua arranjos particulares. Trata-se de estrutura, em que cada peça recebe a sua razão de ser do conjunto que serve para compor.” Mais adiante, nessa mesma reflexão, ainda afirma: “Entende-se por estrutura, particularmente na Europa, o arranjo de um todo em partes e a solidariedade demonstrada entre as partes do todo, que se condicionam mutuamente [...]” (BENVENISTE, 1995/1963, p. 9). Se quiséssemos ainda insistir no assunto, Benveniste, em 1963, no texto Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística, refletindo sobre a função da linguística, afirma: “Trata-se, com efeito, de saber em que consiste e como funciona uma língua.” (1995/1963, p. 22). E mais adiante, ratifica o que já havia dito em tempo pretérito: “a língua é um arranjo sistemático de partes. Compõem-se de elementos formais articulados em combinações variáveis, segundo certos princípios variáveis, segundo certos princípios de estrutura.” (1995/1963, p. 22). O que temos aqui? Uma reflexão já anterior de que o emprego das formas da língua diz respeito ao arranjo intrínseco, sintagmático e paradigmático da língua, já proposto no CLG, se podemos nos arriscar a dizer isso, sem aprofundar a questão nesse momento. Temos aqui o emprego das formas numa perspectiva da gramática da língua.
Flores (2013, p. 163), ao pontuar a diferença trazida por Benveniste ao binômio emprego das formas e emprego da língua, afirma: “É sobre o emprego da língua que Benveniste constrói sua reflexão a respeito da enunciação [...]” E questiona: “que consequências é possível tirar dessa distinção à qual se liga a definição clássica da enunciação como ato individual de utilização da língua?” A partir do seu próprio questionamento, responde: “Entende-se, com isso, que ela é um ponto de vista da análise que considera o sentido, que incide em cada um dos níveis separadamente e/ou em inter-relação.” E conclui: “Benveniste, assim, opera, já no início do texto, uma ruptura com uma certa visão estratificada de língua e um alargamento da análise enunciativa estendendo-a a todos os níveis da língua.” Trago Flores (2013), neste início de reflexão sobre o emprego da língua, para auxiliar a elaborar minhas considerações acerca desse significativo conceito que impactou a comunidade linguística da época e continua nos tirando do lugar e nos conduzindo a olhar a língua de modo desconforme, singular, único a cada vez. Acredito que é desse lugar que um professor de Língua Portuguesa precisa se colocar para ensinar a língua. Acredito que não podemos esquecer o que diz o CLG: “é necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem.” (CLG, 2006, p. 16-17). Mas não esquecer das manifestações da linguagem, ou seja, da língua em uso. Enfim, voltemos ao Aparelho para entender esse emprego da língua.
Ao trazer o emprego da língua, Benveniste (1989/1970, p. 82) afirma: “o mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira.” Já de chegada, Benveniste (1989) afirma que esse mecanismo, esse aparelho, afeta não parte da língua, mas a língua inteira, toda a língua. Isso é importante, porque já temos aí uma noção de enunciação (“coisa” diferente do emprego das formas da língua). E imediatamente pontua a dificuldade: “A dificuldade é apreender este grande fenômeno, tão banal que parece confundir com a própria língua, tão necessário que nos passa despercebido” (BENVENISTE, 1989/1970, p. 82). Isso vai nos trazer o conceito, a seguir, de enunciação: “A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização.” Utilização de quê? Do aparelho. Do aparelho da língua que, mobilizado, constrói o aparelho da enunciação. Só nos resta imaginar a utilização do aparelho que traz o emprego das formas que atingem peculiaridades da língua em emprego, construindo o aparelho da enunciação. Benveniste (1989, p. 82) alerta: “É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto.”
O que me interessa singularmente é o que ele diz em seguida: “Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua por sua conta” (BENVENISTE, 1989/1970, p. 82). Por que isso me interessa? Por acreditar que, ao dizer que o locutor mobiliza a “língua por sua conta”, encontramos um locutor que toma a língua, escolhe as formas, evidentemente numa relação com o outro, combinando-as e determinando quais recursos linguísticos ele vai utilizar para produzir seus enunciados – na minha perspectiva, seu texto. Assim, marca-se nele. Percebemos com isso que língua e enunciação são conceitos distintos, mas constitutivos. Retomo uma reflexão que já fiz em outro momento (TOLDO, 2019), mas parece-me que cabe novamente e é necessária. Esse ato evidencia a ação do locutor que mobiliza a língua por sua conta, ou seja, o locutor que emprega as formas da língua – o aparelho da língua – e com elas produz diferentes enunciações à medida que revela a língua em emprego. Esse movimento deflagra o processo construído pelo locutor ao produzir seus enunciados.
Nesta reflexão que hoje apresento, tomo “ato” como a relação do locutor com a língua e com o interlocutor, em dada situação comunicativa, essa sempre nova, única, singular, irrepetível; e “processo” como algo que se renova a cada instância de discurso, quando o aparelho da língua é colocado em funcionamento, ou seja, diz respeito a todo processo que este colocar a língua em funcionamento provoca. Assim, embora o uso da língua seja descrito no conceito de enunciação como um ato e um processo que compreendem apropriação e atualização, sintagmatização e semantização, são, na verdade, dois aspectos inerentes à conversão da língua em discurso. A sintagmatização está atrelada à noção de semantização e está a seu dispor à medida que evidencia o trabalho do locutor com a língua que a mobiliza por sua conta, na relação com o outro. O que temos aqui? A percepção de que o processo da enunciação é o que possibilita o emprego da língua; é o que evidencia o locutor operando com a língua, quando “mobiliza a língua por sua conta”.
É desse processo de agenciamento de formas e sentidos que Benveniste explica três aspectos que a enunciação comporta: a) o aspecto vocal da língua; b) a conversão individual da língua em discurso; c) o quadro formal de sua realização. Quanto ao aspecto vocal da língua, Benveniste traz a diversidade de situações nas quais uma enunciação pode ser produzida; quanto à conversão da língua em discurso, Benveniste (1989, p. 83) pondera sobre “como o ‘sentido’ se forma em palavras”, chamando a atenção para a questão de como distinguir essas duas noções e como descrever sua interação. Temos aqui o trabalho do agenciamento das formas, pelo locutor, observando “os procedimentos pelos quais as formas linguísticas da enunciação se diversificam e se engendram” (BENVENISTE, 1989/1970, p. 83); e quanto ao quadro formal de sua realização, trago as próprias palavras de Benveniste para tratar da pauta: “Tentaremos esboçar, no interior da língua, os caracteres formais da enunciação a partir da manifestação individual que ela atualiza”. Esses caracteres são necessários e permanentes, incidentais e ligados à particularidade do idioma. O quadro formal de realização da enunciação – o terceiro aspecto da enunciação – evidencia três elementos: o ato de enunciação, a situação em que a enunciação se realiza e os instrumentos de sua realização.
É nesses instrumentos que me detenho neste trabalho. Em Toldo e Flores (2015, p. 43), temos algumas considerações acerca disso. É através do ato que o locutor passa a ser elemento indispensável à enunciação, pois é ele [o locutor] quem realiza o ato individual de utilização da língua. Antes disso, “a língua não é senão possibilidade da língua” (BENVENISTE, 1989/1970, p. 83). Quando o locutor se apropria da língua e se enuncia, concretiza esse ato de enunciação. Assim, a língua é atualizada em uma instância de discurso, instaurando o locutor (que produz o ato da enunciação) e o alocutário (que produzirá outra enunciação
Quanto aos instrumentos, Benveniste (1989/1970, p. 84) afirma que a enunciação – enquanto uma realização individual – é antes de tudo um processo de apropriação que introduz aquele que fala. Isto é: “O locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios, de outro”. Então os instrumentos são os índices específicos e os procedimentos acessórios. É sobre isso que pontuo a partir de agora, a fim de tratar do que me proponho discutir nestas reflexões que apresento: o papel/a presença dos instrumentos no ato de o locutor mobilizar a língua por sua conta.
Ao tratar dos instrumentos, recorro uma vez mais às palavras de Benveniste (1989/1970: 84):
Enquanto realização individual, a enunciação pode se definir em relação à língua, como um processo de apropriação. O locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios, de outro.
Então, esses instrumentos são os índices específicos e os procedimentos acessórios. Iniciemos pelos índices específicos. O próprio termo “índice” já nos aponta para algo como “indica”, “especifica” o que é próprio do fenômeno a ser tratado. Como diz Benveniste (1989/1970, p. 84) “Esta situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas, cuja função é colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação”. Portanto, o que é específico da enunciação? Os índices de pessoa (eu/tu), os índices de ostensão (aqui/lugar) e os índices temporais (tempo), ou seja, as formas específicas das categorias de pessoa, tempo e espaço, manifestadas na enunciação, e estudadas por Benveniste em muitos textos anteriores a 70. Trago as palavras de Flores (2013, p. 168) para resumir a questão: “Os índices específicos da enunciação são exaustivamente estudados por Benveniste em vários textos e estão ligados às categorias de pessoa, tempo e espaço”. E para comprovar tal observação, Flores (2013) traz a nota de rodapé número 2, colocada na página 85, do texto de 70. Diz a nota de Benveniste: “Os detalhes dos fatos de língua que apresentamos aqui de um modo sintético estão expostos em muitos capítulos de nossos Problèmes de linguistique générale, I (Paris, 1966), o que nos dispensa de insistir sobre eles”. Portanto, parece-me que não cabe explicitar mais nada aqui. Acolho a nota de Benveniste, uma vez que estamos enunciando para alocutários conhecedores da obra do linguista francês e interessados no tema.
E quanto aos procedimentos acessórios? Se considerarmos o termo/a palavra “acessório”, já identificamos algo não obrigatório, mas necessário ao locutor que deseja mobilizar a língua de um modo e não de outro. Esses procedimentos vão marcar o modo como o processo da enunciação vai se construir; vão mostrar o modo como as formas da língua serão agenciadas, a fim de semantizá-las, mostrando como o “sentido se forma em palavras”; vão revelar como o locutor mobiliza a língua por sua conta; vão apontar o aparelho de funções de que dispõe o locutor; vão trazer à cena enunciativa caracteres formais da enunciação a partir da manifestação individual que ela atualiza; vão marcar a relação do locutor com seu interlocutor e com a língua que coloca em funcionamento; vão exibir um agenciamento sintático de caracteres que revelam um modo particular, único e irrepetível a cada vez que são empregados; vão manifestar como o locutor faz a conversão individual da língua em discurso; vão singularizar cada enunciado produzido, cada enunciação realizada. Ou seja, manifesta e atualiza o que diz Benveniste (1989, p. 84): “O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua manifestação faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno”.
Podemos dizer, então, que os índices específicos e os procedimentos acessórios são conceitos diferentes, mas constitutivos do aparelho da enunciação à medida que operam na construção de uma enunciação a cada vez única e particular. Isso tudo sinaliza marcas de subjetividade do locutor no enunciado que produz. Assunto para detalhar em outra reflexão.
4. Considerações finais
As reflexões que apresento não são finais, mas são as últimas para este momento. Sempre há, ainda, o que dizer. O trabalho com a língua – em textos – na sala de aula é sempre inconcluso e necessita de um olhar e um empenho efetivo por parte de professores ao se proporem como linguistas ao descrever a língua em funcionamento. Descrevê-la é tarefa do linguista e do professor: este, quando se propõe ensinar Língua Portuguesa; aquele, quando evidencia o emprego das formas no uso da língua. Ou seja, os trabalhos realizados com os textos em sala de aula devem ser regidos por professores-linguistas que desejam ensinar a ler e, por sua vez, a escrever, descrevendo o funcionamento da língua e mostrando como o falante faz para dizer o que diz. Assim se ensina língua.
Esse deslocamento só se torna possível, porque nos amparamos numa perspectiva enunciativa de ensino de língua. O professor de língua, dedico-me ao da materna, precisa descrever a língua, realizando um estudo da língua em textos, de um ponto de vista que leva em conta o sentido. A intenção é refletir sobre a formação de professores, observando suas atividades de análise, necessariamente enunciativas, com textos – nas suas dimensões de leitura e de escrita – na escola de educação básica.
Sendo assim, o que se deixa para reflexão é pensar o papel do professor de língua materna, que deve ensinar a língua em funcionamento no texto, seja em atividades de leitura ou de escrita. O importante é ter o texto como objeto de ensino da leitura e da escrita na educação básica, enquanto processo singular de aprendizagem. O que se propõe aqui é ancorar essa tarefa do professor de língua numa visão enunciativa de linguagem, em que o que importa é descrever (como um linguista) o funcionamento da língua no texto.
Referências
BENVENISTE, Émile. (1963). Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística. In: ______. Problemas de linguística geral I. 5. ed. Tradução Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. Campinas: Pontes, 2005. p. 19-33.
BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: ______. Problemas de Linguística II. Tradução Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1989.
FLORES, Valdir do Nascimento. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste. São Paulo: Parábola, 2013.
FLORES, Valdir do Nascimento. Problemas gerais de linguística. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
TOLDO, Claudia; FLORES, Valdir do Nascimento. Esboço de uma abordagem enunciativa do texto. In: TOLDO, Claudia; STURM, Luciane. Letramento: práticas de leitura e escrita. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. Organização Charles Bally, Albert Sechehaye. Colaboração de Albert Riedlinger. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.