Introdução
Durante o século XX, milhares de caboverdianos foram levados a São Tomé e Príncipe (STP). Atualmente, cerca de 33% da população absoluta de STP, país da região insular do Golfo da Guiné, é constituída de caboverdianos e descendentes. Se considerarmos a população apenas da ilha do Príncipe, essa porcentagem se eleva, chegando a 80% (FEIO, 2016; SEMEDO, 2016). Em que pese a significativa representatividade demográfica de descendência caboverdiana no presente e também no passado de STP, sua migração para o arquipélago e seus efeitos subsequentes remanescem como temas de parcas discussões e pesquisas – inclusive sobre o aspecto linguístico, sendo esse aspecto objeto de um artigo em preparação (FREITAS; BANDEIRA; AGOSTINHO, em preparação). Diante disso, o presente estudo possui como objetivo tratar das condições de vida dos caboverdianos contratados em STP e as visões sobre esse grupo dentro da sociedade santomense e principense no decorrer do tempo. Para fins de análise, coletamos informações a partir de investigações prévias cujas temáticas fossem não só a trajetória histórica da migração caboverdiana para São Tomé e Príncipe, mas também a sua permanência no arquipélago após 1975, ano de independência de STP (BERTHET, 2011, 2012, 2016; CARREIRA, 1983, 1984; FEIO, 2016; NASCIMENTO, 2001, 2003, 2004; SEIBERT, 2014, 2015; SEMEDO, 2016; SOUSA, 2014-15). Ademais, são trazidas também informações coletadas em trabalho de campo preliminar realizado na Ilha do Príncipe em 2018. Na ocasião, foram realizadas entrevistas com 20 a 30 minutos de duração com seis informantes, três nascidos em Cabo Verde e que migraram para STP e três descendentes de caboverdianos nascidos em STP. Os informantes são residentes das roças Sundy e Belo Monte, propriedades agrícolas construídas para o cultivo de cacau e café no período colonial. A estadia na Ilha do Príncipe foi curta, durando somente alguns dias, assim, não foi possível elaborar um quadro de informantes divididos por critérios sociais, como sexo, idade, local de nascimento, sendo selecionados a partir de sua disponibilidade. Uma vez que em STP não há um Comitê de Ética para regulamentar pesquisas com seres humanos, antes do início das entrevistas, foi apresentado um termo de consentimento livre e esclarecido com informações gerais sobre a pesquisa, havendo a anuência dos participantes. As entrevistas podem ser divididas em duas partes: num primeiro momento, ocorreu uma conversa em que as entrevistadoras perguntaram sobre aspectos gerais da presença caboverdiana em STP, como as condições de vida na infância, relatos sobre o regime de trabalho, entre outros. Essa conversa inicial não seguiu um roteiro estrito, sendo a escolha dos assuntos guiada a partir da percepção das pesquisadoras sobre qual tema deixava o informante mais confortável, estimulando-o a falar. Contudo, dois aspectos estiveram presentes nas seis conversas: informações sobre a ida de caboverdianos para STP e as condições de trabalho nas roças. Em seguida, solicitou-se que o informante traduzisse alguns vocábulos de português para kabuverdianu. Neste artigo, serão apresentadas informações referentes à primeira parte das entrevistas, sendo a segunda parte foco do artigo em preparação sobre aspectos linguísticos do kabuverdianu falado no Príncipe.
O perfil sociolinguístico dos informantes é apresentado a seguir:
Origem | Sexo | Idade* | Idade de migração | Moradia | |
---|---|---|---|---|---|
Informante 1 | Cabo Verde¹ | masculino | 62 | 8 | Sundy |
Informante 2 | Cabo Verde² | feminino³ | 82 | 19 | Sundy |
Informante 3 | Cabo Verde⁴ | masculino | 51 | 2 | Belo Monte |
Informante 4 | Príncipe | masculino | 43 | - | Belo Monte |
Informante 5 | Príncipe | masculino | 43 | - | Sundy |
Informante 6 | Príncipe | masculino | 48 | - | Belo Monte |
*Em 2018.
¹Este informante migrou para o Príncipe com sua mãe.
²Esta informante migrou para o Príncipe com o marido.
³Buscamos coletar relatos de homens e mulheres de forma equilibrada, contudo, infelizmente os homens estavam mais disponíveis para participar da pesquisa do que as mulheres. As entrevistas foram realizadas durante o dia e, nesse horário, as mulheres estavam trabalhando fora de casa ou em serviços domésticos, como o preparo de refeições. Como a estadia na Ilha do Príncipe foi curta, não foi possível solucionar essa disparidade, o que será feito em estudos futuros.
⁴Este informante migrou para o Príncipe com os pais.
Desse modo, a discussão sobre o movimento migratório caboverdiano para STP será apresentada na seção seguinte. Inicialmente, são descritos aspectos relativos às condições de vida dos contratados nas roças, como as relações com os demais segmentos populacionais de STP e o regime de trabalho; ao passo que em seguida, são reveladas algumas visões acerca da ida massiva de caboverdianos para STP, tanto do ponto de vista dos caboverdianos (visão sobre si mesmos) quanto dos forros, angolares e principenses. Por fim, são apresentadas as considerações finais do estudo.
1. A migração caboverdiana para São Tomé e Príncipe
Na segunda metade do século XIX, com a exploração econômica de cacau nas chamadas roças, as ilhas de São Tomé e Príncipe dão início ao regime de trabalho chamado contratado (NASCIMENTO, 2001; 2004). Alguns anos antes de a abolição da escravatura entrar em vigor nas ilhas (em 1869) (BERTHET, 2012), trabalhadores de diversas nacionalidades começam a afluir para o arquipélago do Golfo da Guiné. Dentre esses grupos de imigrantes, destacam-se os caboverdianos.
Feio (2016) aponta que a chegada de caboverdianos a STP tem início em 1903 e se mantém durante todo o século XX, sendo as décadas de 30, 40 e 50 aquelas com maior número de contratados. Crises de fome e seca que assolaram o arquipélago caboverdiano durante esses períodos podem ser vistas como propulsoras da migração, que contou também com maciça promoção por parte das instituições governamentais (cf. NASCIMENTO, 2001; BERTHET, 2016). Abrangendo um amplo recorte temporal, essa migração envolveu caboverdianos com as mais diversas vivências e provenientes das várias ilhas do arquipélago, como Santiago, Fogo, Brava, São Nicolau e São Vicente.
Quanto às cifras da migração para STP, observa-se que os números aumentaram consideravelmente na segunda metade do século XX: entre 1900 e 1922, 23.978 caboverdianos contratados foram para STP; entre 1940 e 1949, esse número foi de 20.884; já no período entre 1950 e 1973, 34.530 caboverdianos saíram para STP. Somando as cifras dos três períodos, chega-se a um total de 79.392 pessoas – dados de Carreira (1984) citados por Semedo (2016). Muitos caboverdianos se mantiveram em STP após a independência em 1975, passando a compor parte da sociedade: segundo o censo de 2012, 1/3 dos habitantes de STP são caboverdianos ou seus descendentes (SEMEDO, 2016). Considerando especificamente o Príncipe, os números correspondem a 80% da população total de acordo com Feio (2016).
Nas subseções seguintes, será possível conhecer um pouco mais sobre a realidade dos caboverdianos em STP.
1.1. Condições de vida dos contratados
A ida de trabalhadores caboverdianos para STP impõe uma nova realidade aos roceiros, que administravam as grandes propriedades de terras em STP que cultivavam o cacau: até então, eles estavam acostumados com trabalhadores angolanos – cuja contratação passou a ser mais difícil, com as cifras diminuindo consideravelmente – e temiam a chegada dos caboverdianos. O medo dos roceiros se baseava no fato de os angolanos serem considerados mais ‘pacíficos’ e acostumados ao serviço na roça do que os caboverdianos, vistos como mais ‘rebeldes’ e cônscios de seus direitos (NASCIMENTO, 2001).
A percepção dos roceiros acerca dos contratados ilustra o surgimento de uma visão depreciativa dos caboverdianos: eles eram vistos em geral como maus trabalhadores (em comparação com os angolanos, definidos como ‘verdadeiros animais de carga’ em relatos da época), agressivos e propensos à vadiagem1. Segundo Sousa (2014-2015), os caboverdianos não estavam em condições de competir com os trabalhadores angolanos e moçambicanos, tendo em vista que os últimos estavam mais habituados ao clima da região. Ademais, o autor salienta que também houve uma mudança brusca na dieta alimentar e no estilo de vida em comparação ao que tinham em Cabo Verde. A visão a respeito dos caboverdianos era tão desfavorável que se considerava inclusive que eles poderiam influenciar negativamente os angolanos a se rebelarem, o que estimulou, por um lado, a prática de separar os dois grupos em diferentes áreas de trabalho nas roças e, por outro, a presença de alguns angolanos entre caboverdianos (sobretudo os recém-chegados) como instrumento de controle e modelo de comportamento. Mesmo com as dificuldades de contrato em Angola, os roceiros não deixavam de solicitar a ida de trabalhadores desse país para STP, os quais serviriam para apaziguar os oriundos de Cabo Verde. Ademais, começaram a circular em STP comentários racistas que associavam os caboverdianos à inferioridade.
Quanto à convivência diária entre caboverdianos e roceiros, segundo Nascimento (2001), conflitos recorrentes marcaram essa relação. Os roceiros adotavam práticas de grande repressão, o que não era prontamente aceito por caboverdianos, outrora pequenos proprietários ou assalariados. Os caboverdianos mostravam-se, então, resistentes à postura de subserviência até então exigida dos contratados (e observada entre os angolanos). Junto aos comportamentos de resistência, combinavam-se também casos de acomodação, em que os caboverdianos pareciam concordar com as condições impostas. Um dos motivos para tal concordância era a perspectiva de repatriamento, de liberdade do trabalho pesado e retorno ao seu país de origem.
No que tange à percepção e aos anseios dos próprios caboverdianos quanto à migração para STP, Nascimento (2001) pontua que, para os caboverdianos, a ida para STP era vista como um retrocesso social (e, conforme mencionado acima, foi motivada pelos episódios de seca e crises de desabastecimento de insumos). O informante 3, por exemplo, menciona que seus pais relembravam que, nos anos de 1965/1966, o arquipélago caboverdiano vivenciava uma crise que se refletia na escassez de comida, o que foi uma motivação para a ida para STP:
Naquela altura, era 1965, um ano depois Cabo Verde sofreu uma crise, não tinha comida em Cabo Verde, as pessoas começaram a viajar, umas foram para Angola, outras foram para Moçambique, outras foram para a Guiné Bissau, cada um procurou um lugar para onde ir... porque Cabo Verde estava numa situação pobre, não tinha alimentação para as pessoas comerem não. Então cada um começou a viajar... viajou... foi para fora, pra Angola, Moçambique, Cabo Verde. Cada um procurou uma vida de... vida para sair. Cabo Verde não tinha recurso2.
No seu país de origem, muitos gozavam de uma melhor condição econômica e social, sendo, por exemplo, proprietários de pequenas terras ou assalariados. Chegando a STP, tais caboverdianos em sua quase totalidade passaram a compor (junto com outros outrora de status social mais baixo) a mão-de-obra das roças, responsável pelo trabalho braçal; assim, as nuances sociais existentes no arquipélago da Alta Guiné se esfacelaram. Os caboverdianos foram tratados como um todo indistintamente, com exceção de um pequeno número deles que pôde atuar em repartições públicas ou em serviços particulares. A ideia de que a migração para STP significava um passo para trás pode ser percebida também pelo fato de muitos caboverdianos saberem ler e escrever, sendo considerados como “gente letrada demais” para o trabalho nas roças. O domínio da leitura e da escrita pelos caboverdianos era visto de forma negativa pelo fato de que, nas ilhas de STP, havia europeus que não eram alfabetizados. Assim, lidar com trabalhadores com mais conhecimentos que eles poderia ser um entrave à subordinação. Ademais, sabendo ler e escrever, os caboverdianos podiam se comunicar com os que estavam fora das roças (e inclusive fazer queixas para os órgãos oficiais com relação às condições de trabalho, algo que era recorrente), o que não era bem recebido pelos roceiros, uma vez que o domínio dos serviçais se baseava, entre outros, nos contatos sociais circunscritos à roça e no domínio parco do português (NASCIMENTO, 2001).
O acesso anterior dos caboverdianos a maiores salários e um maior letramento se refletiam em uma maior probabilidade de questionamentos das condições de trabalho (NASCIMENTO, 2001). Esse fato ficou patente com relação à prática vigente da Curadoria, desde o início do trabalho contratado, de descontar 3/5 dos salários dos contratados. Aplicada sem maiores problemas com os angolanos, os roceiros chamaram a atenção para futuras dificuldades de aceitação dos descontos por parte dos caboverdianos em decorrência não só de seu maior conhecimento, mas também do fato de muitos deles enviarem parte dos salários para suas famílias em Cabo Verde. Diante disso, em 1904, a Curadoria decidiu não realizar os descontos. Esse episódio revelou um embate dos roceiros com as instâncias oficiais personificadas na Curadoria, contudo não se deve pensar que o interesse dos roceiros era defender os caboverdianos (já que por trás da pretensa defesa dos contratados estava o desejo de não ter dificuldades no cultivo das roças, mantendo a produção elevada e, por conseguinte, os lucros) nem que a relação entre roceiros e Curadoria era sempre de oposição. Os roceiros de fato não queriam que a Curadoria efetuasse os descontos, mas precisaram recorrer a essa mesma Curadoria para solicitar a rescisão de contratos que, por um erro, estabeleciam salários mais elevados aos contratados do que o previamente acordado. Nota-se, assim, que os roceiros dependiam em alguma medida das instâncias oficiais para realizarem seu trabalho e darem lucros a seus patrões.
A partir do exposto, torna-se claro, então, que, nas palavras de Nascimento (2001), o funcionamento das roças dependia do controle dos roceiros sobre as instâncias públicas (ou seja, os dois segmentos deveriam estar em sintonia) a fim de que os desejos deles fossem legitimados pelo poder oficial. A situação vivenciada na ilha do Príncipe mostra o quanto essas forças deveriam estar numa espécie de equilíbrio para um funcionamento satisfatório das roças. Em 1904, o delegado do curador foi acusado de não dar suporte aos roceiros, não reprimindo os caboverdianos que cometiam delitos, como pequenos furtos, e praticavam supostos atos de indisciplina, como a recusa ao trabalho. Os roceiros afirmavam que o delegado estaria do lado dos serviçais e questionavam a aplicação rigorosa da lei somente para os agricultores, sendo mais branda para os serviçais. Os relatos de insubordinação por parte dos caboverdianos cresceram (ainda que não se tenha certeza de veracidade de todos os relatos), o que atendia ao interesse dos roceiros de recuperar o apoio irrestrito das autoridades. Nos episódios reportados, os roceiros enfatizavam a relação entre a indisciplina recorrente nas roças e a perturbação da ordem pública, para que, assim, pudessem chamar a atenção das autoridades. No decorrer do ano de 1903, os caboverdianos conseguiram algumas vantagens, impondo determinados limites ao poder dos roceiros, que deram um pequeno passo atrás em suas práticas de coerção seja para preservar suas vidas, seja para evitar a propagação de maus exemplos. O cenário só começou a mudar em favor dos roceiros em finais de 1904 quando o antigo delegado do curador foi deposto e um novo governador distrital tomou posse, diminuindo o poder atribuído ao delegado do curador.
Quanto à inserção do elemento caboverdiano na sociedade santomense, Feio (2016) aponta que houve desde o início uma espécie de divisão entre os “verdadeiros” santomenses e os contratados e seus descendentes (vistos pelos nativos como “os outros”, “os estrangeiros”). De acordo com Nascimento (2003), o desejo de separação pode ser observado em ambos os grupos: muitos santomenses mostravam-se incomodados com o fato de vários caboverdianos serem alfabetizados, com um maior acesso ao universo letrado, e muitas vezes associados ao padrão europeu (deve-se ter em mente que Cabo Verde ainda é visto como um país “menos africano” em relação a outros como a Guiné-Bissau e STP); já os caboverdianos planejavam deixar as roças e fazer parte das comunidades de fugitivos, afastando-se, assim dos santomenses. Essa separação também foi apontada na pesquisa de campo: o informante 1 relatou que, inicialmente, ocorria exclusão dos caboverdianos no Príncipe há algumas décadas (por volta de 40 anos), observada, por exemplo, nos bailes na hora da dança:
Todas as festas, eu ia, depois... naquele tempo, os... os descendentes de cá não dançavam com os caboverdianos. Havia exclusão. Eu ia para a festa, eu chegava lá e ficava lá... tinha vez que não dançava com nenhuma... nenhuma... eu não dançava nada, eu não dançava nada. Dançava só com as pessoas que eu conhecia. Agora se ia alguém de Sundy, eu já podia conseguir dançar um bocadinho mais, de lá de cidade, nada. Mas depois foi mudando, agora se você vai, já estão atacando (risos).
Outra divisão comum ocorria entre os próprios contratados. Entre 1926 e 1961, Seibert (2015) alega que, enquanto os contratados angolanos e moçambicanos eram identificados legalmente como indígenas, os contratados de Cabo Verde e locais de STP não estavam sujeitos ao estatuto de indígena3. De todo modo, em geral, os contratados africanos tinham uma vida apartada da população nativa nas plantações, eram, portanto, segregados da convivência social conjunta. A despeito dessa hostilidade e até mesmo de relatos colhidos por Feio (2016) relacionados a punições por parte dos próprios administradores das roças com relação às interações entre os dois grupos e perseguições a caboverdianos, na prática, santomenses e caboverdianos interagiam entre si, inclusive por meio de relações comerciais não oficiais. Ademais, com o passar dos anos, o convívio entre santomenses e caboverdianos (seus descendentes) tornou-se mais frequente. Seibert (2015) pondera que, embora houvesse, com o tempo, uma diminuição do distanciamento entre os grupos, as antigas barreiras coloniais não se dissolveram integralmente.
Nascimento (2001) afirma que, dentre os caboverdianos, eram comuns as recusas, veladas ou explícitas, ao volume de trabalho nas roças, que costumava começar cedo por volta de 5 ou 6 da manhã e se estender até o final do dia. Diante das recusas, os roceiros optaram não pelo enfrentamento, que se traduziria num uso da violência para obrigar a retomada do trabalho à força, mas por uma postura mais prudente, inclusive recorrendo à Curadoria. Essa atitude dos roceiros decorria da certeza de que episódios de violência poderiam dificultar ainda mais o recrutamento de novos contratados. Para resolver os casos de recusa ao trabalho, a alternativa mais usada era enviar os caboverdianos para trabalhar na fortaleza de São Sebastião por um período determinado, após o qual o contratado voltaria para a roça. Em casos mais raros (e sobretudo nos casos recorrentes que começavam a atrapalhar a manutenção da disciplina), era possível executar a rescisão do contrato ou mesmo a troca de empregador, com o contratado passando a trabalhar em outra roça. Como última solução (e a mais radical) estava o degredo dos caboverdianos, especialmente para Angola e Moçambique (NASCIMENTO, 2001).
Com o passar do tempo, os casos de recusas ao trabalho dentre os caboverdianos foram se tornando cada vez mais frequentes, o que ajudou a criar e disseminar estereótipos sobre eles. Tais estereótipos terminavam por considerar que determinados aspectos lhes eram intrínsecos, e não decorrentes das próprias condições de vida nas roças e do tratamento dispensado pelos patrões, que acabavam moldando atitudes semelhantes entre os contratados (NASCIMENTO, 2001). Essa atribuição de traços imanentes ocorria a despeito da diversidade social existente entre os caboverdianos (antes de sua ida a STP), que se refletia numa maior heterogeneidade de comportamentos. Ademais, como sublinhado por Nascimento (2001), ainda que, dentre os serviçais, as queixas e negações ao trabalho fossem de fato mais recorrentes entre os caboverdianos, esse cenário podia decorrer de aspectos relacionados às próprias condições de trabalho, e não às especificidades dos caboverdianos. É importante pontuar que, em muitos casos, a recusa ao trabalho estava relacionada ao roceiro ou mesmo ao patrão, não propriamente ao trabalho em si.
Como forma de resistir às condições impostas pelos roceiros, Nascimento (2001) menciona que os caboverdianos também praticavam pequenos furtos e roubos, os quais tinham diversas motivações, como ter acesso a itens proibidos aos serviçais e reforçar a ligação com a terra. A forma mais extrema de resistência (a fuga) também era usada pelos caboverdianos, porém em menor número do que os demais trabalhadores, como os angolanos. As causas para essa menor recorrência à fuga estariam no reconhecimento por parte dos caboverdianos da dificuldade de se integrarem aos nativos e também na esperança da repatriação, que estaria perdida nos casos de fuga. Além disso, em comparação com os angolanos, os caboverdianos também criaram alternativas para lidar com a vida difícil nas roças a partir de suas vivências anteriores e da conjuntura política do período, que preconizava um menor uso da força nas roças a partir de 1903.
Ainda com relação às fugas, algumas vezes, o que se considerava uma fuga não o era propriamente, sendo uma ausência momentânea da roça por algumas horas. Em 1904, no Príncipe, eram constantes as saídas dos contratados das roças para passear por algum tempo na cidade. Diante disso, o governador do Príncipe passou a exigir dos agricultores que os serviçais portassem consigo um documento de autorização das saídas; caso contrário, seriam detidos (NASCIMENTO, 2001). Essa medida – também mencionada em Berthet (2016) – demonstra que os contratados viviam um regime semelhante à escravidão4 (tema que será discutido com mais detalhes na seção seguinte). A necessidade de autorização para deixar as roças reflete o controle dos roceiros sobre os direitos dos caboverdianos de ir e vir, o que gerava grande incômodo nos contratados. A esse respeito, segundo Nascimento (2001), é possível conjecturar que esse controle sobre suas vidas, juntamente com o tipo de trabalho, deve ter sido o aspecto mais incômodo para os caboverdianos. A questão do controle foi inclusive uma das principais causas de revoltas nos primeiros anos da migração para STP. Esse isolamento nas roças era realmente menos aceito pelos caboverdianos do que pelos contratados angolanos. Conforme aponta Nascimento (2004), os caboverdianos possivelmente sofreram mais com a ausência de uma convivência comunitária do que com relação ao volume de trabalho na roça. Portanto, o exílio social foi possivelmente a principal motivação para o retorno de alguns a Cabo Verde.
Outro ponto mencionado por Nascimento (2001) é que os caboverdianos recorriam ao uso de força física a fim de se defenderem ou repararem uma situação danosa. Logo depois da chegada dos caboverdianos às ilhas, passam a ser cada vez mais abundantes os relatos de episódios de rebeldia e levantes por parte desses contratados, o que contribui para difundir a crença de uma difícil integração dos caboverdianos à vida nas roças. Esse estereótipo está relacionado com o da baixa fiabilidade dos caboverdianos. Assim, o argumento acerca da maior proximidade cultural e racial (fenotípica) entre os portugueses e os caboverdianos, que serviu durante muito tempo para marcar um distanciamento do arquipélago caboverdiano com relação ao resto da África (abrindo espaço para falar até de uma certa ‘europeização’ de Cabo Verde), começa a ser questionado com a migração para STP.
1.2. Percepções sobre a migração dos caboverdianos para São Tomé e Príncipe
Em seus trabalhos, Berthet (2011), Feio (2016) e Semedo (2016) trazem, além de registros históricos, reflexões obtidas a partir de depoimentos de caboverdianos e de santomenses (forros e angolares) que ajudam a entender melhor a concepção que os caboverdianos e outros segmentos têm da migração massiva caboverdiana para STP5.
Semedo (2016) discute a concepção vigente no imaginário coletivo de que a migração caboverdiana para STP seria a ‘pior migração caboverdiana’ ou ‘uma migração forçada’. A despeito dos aspectos realmente negativos dessa migração (como a já mencionada reprodução de práticas escravistas), a autora chama a atenção para o “perigo de uma história única” – conforme apontado por Chimamanda Adichie (2013) –, que se refere a considerar somente um único aspecto de uma situação, incorrendo em generalizações. Semedo (2016) alerta para a importância de considerar os diferentes pontos de vista ao abordar a história da chegada dos migrantes caboverdianos em STP, analisando não somente as narrativas oficiais, mas também os discursos dos próprios caboverdianos, o que permitirá compreender de forma mais satisfatória a realidade dessa migração. Assim, para a autora, não obstante a perspectiva negativa de que se revestem os relatos da migração caboverdiana, os caboverdianos que chegaram a STP se conectaram com a terra das roças, ressignificando a sua experiência e o chamado “território de desterro”, concebido, de forma diferente, como o lugar de início de uma nova vida, livre da fome e da miséria vigentes em Cabo Verde no período. Os contratados constroem, assim, o seu próprio espaço em STP, território que certamente traz elementos de Cabo Verde (lugar de nascimento desses trabalhadores), mas que não é uma mera reprodução do arquipélago, ultrapassando-o, incorporando traços da realidade de STP e tendo como resultado algo novo. Assim sendo, Semedo (2016) se contrapõe à ideia de que os caboverdianos em STP reconstruíram um território caboverdiano, totalmente ligado e reprodutor do original.
Para sustentar seu posicionamento, Semedo (2016) recorre a entrevistas realizadas em seu trabalho de campo. Alguns descendentes de caboverdianos, por exemplo, apontam que os discursos produzidos sobre eles sempre enfatizam os aspectos negativos, como as condições de vida dos segmentos mais pobres. Essa postura também se faz presente em publicações da época, como artigos e jornais, cujo foco recorrente são a pobreza e as dificuldades dos caboverdianos que vivem em São Tomé. Os entrevistados não negam que os caboverdianos vivencia(ra)m situações difíceis e desagradáveis em STP, mas se mostram incomodados de ser somente essa a faceta revelada pelos discursos e meios de comunicação (esse é o “perigo da história única” já mencionado).
Outro aspecto que comumente costuma trazer desconforto para os entrevistados é a visão de que nas roças falta comida para os moradores, sendo comum o cenário de fome. Os entrevistados logo tratam de negar essa realidade. Embora eles reconheçam que a vida na roça é permeada por dificuldades (maior em algumas roças do que em outras), acentuadas por questões políticas e econômicas, apontam que na cidade é que costuma haver casos de falta de alimentos, até mesmo pelo elevado preço dos produtos, e inclusive de pessoas que precisam pedir esmolas para ter o que comer.
Além desses registros, outra contranarrativa apresentada por Semedo (2016) está ligada a relatos de decepção de alguns caboverdianos que viajaram de STP para Cabo Verde. Uma das entrevistadas revela que a ideia de ‘mato abundante’ remetida pela palavra verde no nome do país criou grandes expectativas que logo foram desfeitas ao se defrontar com o cenário seco, permeado por arbustos (comparado com a vista verdejante da ilha do Príncipe, por exemplo). A escassez de água e o pedido para economizá-la também são vistos com ressalva por aqueles que vão ao arquipélago da Alta Guiné. Há nos relatos coletados um desejo de visitar (ou conhecer) Cabo Verde, contudo apenas para passear, não para se mudar para lá. Em nossa pesquisa, encontramos cenário semelhante. Os informantes 1 e 5 apontam que, apesar de terem uma identidade ligada a Cabo Verde – que se reflete em sua forma de falar e em costumes herdados da família –, não têm o desejo de se mudarem para lá. Os laços familiares e comunitários construídos em STP mostram-se mais fortes do que a ligação com a Alta Guiné. Essa postura demonstra que, apesar de ter contribuído com diversos elementos na construção da identidade da comunidade de ex-contratados, o arquipélago da Alta Guiné não é visto como um lar, sendo esse rótulo atribuído a STP.
A despeito de não considerarem Cabo Verde como um lugar para onde se mudariam e mesmo negarem sua relação com Cabo Verde quando instados a participar de debates políticos desse arquipélago, os informantes deixam claro que fazem parte de outro grupo (o dos caboverdianos), diferente dos santomenses. Assim, independentemente de terem nascido em Cabo Verde (primeiros contratados) ou não (caso da segunda geração de contratados em diante), existe uma identidade caboverdiana, responsável por unir o grupo e criar laços de solidariedade (SEMEDO, 2016).
Os registros colhidos por Semedo (2016) – alguns deles mencionados aqui e aos quais se juntam outros, relacionados à culinária e manifestações musicais e de dança – mostram que os caboverdianos e seus descendentes reconhecem que sua vida nas roças de STP é permeada por dificuldades, mas também por aspectos favoráveis. Desse modo, a migração não aparece sob uma forma maniqueísta (sendo apenas ruim), mas revestida de pontos tanto positivos quanto negativos. Do mesmo modo, Cabo Verde também não é visto de forma idealizada, como o paraíso perdido ao qual se deseja retornar. A ida de caboverdianos para STP originou uma nova comunidade que, a partir da base cultural caboverdiana, foi moldando e construindo suas vivências, uma amálgama de elementos caboverdianos e santomenses.
Ainda no que tange à percepção dos caboverdianos sobre a migração para STP (autopercepção), a partir das entrevistas realizadas, Berthet (2011) aponta que, para se referirem à migração, é comum os entrevistados, especialmente os mais velhos, fazerem uso de alguns marcadores temporais, a saber, tempo de branco, tempo do estado, tempo de hoje6. Os relatos associados a cada um desses períodos ajudam a construir a percepção que os caboverdianos têm sobre a migração para STP.
O tempo de branco se inicia com a chegada dos caboverdianos às ilhas de STP e se estende até 25 abril de 1974, data da revolta dos Cravos em Portugal (que derrubou o regime ditatorial), que teve como efeito em STP uma saída massiva dos funcionários das roças. Berthet (2011) chama atenção para o fato de que não é a independência de STP que é utilizada como marco miliário (1975), mas um acontecimento ocorrido um ano antes, cujos reflexos atingiram de maneira mais próxima os trabalhadores. As histórias contadas sobre o tempo de branco são marcadas por grande saudosismo (“naquele tempo as pessoas eram mais educadas, tudo era melhor”) e pela lembrança somente de aspectos positivos, como o acesso fácil aos serviços de saúde e à alimentação. Quanto ao trabalho, as lembranças apontam para um trabalho pesado, difícil e permeado por uma mobilidade nas atividades a serem realizadas, na medida em que os trabalhadores muitas vezes tinham que mudar de roça ou de ocupação a depender das necessidades de cada roça (BERTHET, 2011).
Sobre essa forma otimista de olhar para o passado, Nascimento (2004) menciona que é possível perceber uma espécie de reconstrução das narrativas relativas à migração para STP, encobrindo as verdadeiras razões da migração e os sofrimentos vivenciados. Segundo o autor, muitos caboverdianos optam por mascarar o cenário de intensa opressão vigente nas roças como uma forma de deixar claro o seu estatuto de homens livres, atribuindo à má sorte e ao destino os infortúnios.
Ademais, essa visão positiva da experiência de migração vai de encontro aos registros trazidos por Berthet (2016). A partir de relatos históricos da primeira metade do século XX, a autora aponta que a migração de Cabo Verde para STP era apresentada sob um viés negativo em poemas escritos por caboverdianos e eram abundantes os registros (em jornais e relatórios) de que em STP predominava um esquema de trabalho escravista. Um dos registros mencionados pela autora diz respeito à correlação entre altas taxas de mortalidade dos contratados e possíveis violências sofridas e remete a uma circular de 1929 de autoria da Curadoria Geral. Nela apontam-se os numerosos casos em que nos atestados de óbito não constava a causa da morte, o que estava sendo associado à falta de atendimento médico. Na prática, essa ausência de diagnóstico estava sendo amplamente usada para não mencionar o que levou às mortes. Para evitar tais interpretações errôneas, a circular defende que o diagnóstico sempre esteja presente nos atestados. De forma velada, o que o texto sugere é que mesmo que o contratado morresse em decorrência de maus-tratos, seu atestado de óbito deveria trazer alguma doença como causa da morte, encobrindo o real motivo. Outro registro trazido por Berthet (2016) é o de uma monografia publicada em 1950-1951 por Henrique Galvão (com coautoria de Carlos Selvagem), inspetor da administração colonial portuguesa. Nessa obra, os autores qualificam o regime de trabalho nas roças de STP, em 1940, como ultrapassado, com condições de trabalho desumanas e castigos físicos frequentes. Nesse período, Portugal ainda não havia ratificado convenções internacionais que buscavam dar direitos aos trabalhadores africanos e, assim, os tratava a seu bel-prazer. Os relatos de maus-tratos também estão presentes nas entrevistas que a autora realizou em STP em 1999 e 2000, 2003 e 2005, com lembranças das dores e humilhações do regime de trabalho. Em trabalho de campo, o informante 3 também sugere a ocorrência de maus-tratos não só contra os caboverdianos, mas também outros contratados, como os moçambicanos, que, por vezes, respondiam com violência: “muito branco maltrata muito preto, julga muito preto para baixo e também muito moçambicano também que recebia muito abuso de branco também, há moçambicano que mata muito branco também.” A correspondência do trabalho contratado com um regime escravista fica patente pelos registros apresentados por Berthet (2016), que menciona ainda que alguns entrevistados relataram que precisavam apresentar um documento (um livre passe) para saírem das roças, o que demonstra que os contratados não apresentavam o direito de circular livremente pelas ilhas, como também mencionado na seção anterior.
Semedo (2016) também defende que o esquema de trabalho chamado oficialmente de contrato na verdade replicava a escravidão – abolida oficialmente do reino português e de suas possessões em 1869, mas ainda vigorando na prática durante parte do século XX. A fim de comprovar seu ponto de vista, Semedo (2016) traça um panorama de como se dava a migração desde Cabo Verde. Em diversas cidades das ilhas, surge a figura do agente do recrutamento, responsável por reunir os caboverdianos que seriam enviados para as roças de STP. A informante 2, por exemplo, mencionou que era comum haver pessoas em Cabo Verde perguntando se algum caboverdiano tinha interesse em ir para o Príncipe. Ao buscar os caboverdianos para migração, esses agentes já reportavam as atividades a serem exercidas distintamente por homens e mulheres. A despeito de a imigração envolver oficialmente apenas a população adulta, sabe-se que inúmeras crianças e adolescentes saíram de Cabo Verde (acompanhados ou não de seus pais) – o que é comprovado pelos números de imigrantes que saíram de Cabo Verde em direção a São Tomé entre 1902 e 1922: 12.117 adultos e 825 crianças (SOUSA, 2014-2015). Sobre esse ponto, Semedo (2016) menciona que os recrutadores solicitavam que um menor de idade estivesse com um responsável, entretanto essa condição não era estritamente cumprida. Eram recorrentes os casos de perfilhação, com um adulto assumindo a responsabilidade sobre uma criança somente para fins de registro. Isso ocorria não somente em casos de ausência dos pais, mas também caso um casal tivesse mais filhos do que o permitido no contrato. Esse maior afrouxamento nas regras de recrutamento mostra que o foco era ter a mão de obra, independentemente de ser menores de idade ou não.
Segundo Semedo (2016), após serem recrutados, os contratados ficavam numa espécie de hospedagem esperando o navio que os levaria para São Tomé. Com relação às viagens, há relatos de contratados sobre as condições precárias nos navios: espaços superlotados, com trabalhadores tendo que dormir no chão, pouca comida, pessoas doentes ou mesmo morrendo durante a travessia. Em contrapartida, nas décadas de 1960 e 1970, há relatos mais positivos das viagens, apontando acomodações confortáveis, assistência médica e muita comida. Esse período coincide com movimentos independentistas nas colônias e uma maior pressão para salvaguardar os direitos humanos e combater práticas suspeitas de escravidão, havendo inclusive uma mudança de nomenclatura: trabalhador rural, não mais serviçal ou contratado. Apesar de outro nome, na prática, as condições de trabalho pouco mudaram mesmo porque até 1960 não havia leis que regimentassem as cláusulas do contrato ou o regime de trabalho nas roças.
Chegando a STP, o regime de trabalho escravista ficava ainda mais patente, sendo profusos nos relatos dos entrevistados por Semedo (2016) aspectos como a ida para o trabalho mesmo sob fortes chuvas e sem vestuário adequado, o regime intenso de trabalho, a alocação dos caboverdianos em espaços pequenos e sem nenhuma privacidade, as regras rígidas das senzalas (com a vigência do toque de recolher), os castigos físicos e as punições caso as regras não fossem cumpridas, a limitação do direito de ir e vir livremente (sendo necessárias guias de circulação autorizando a saída das roças com horário demarcado), a impossibilidade de rescisão de contrato. A partir das experiências dos entrevistados por Semedo (2016), fica evidente que os contratados vivenciavam um cenário de opressão e privação da liberdade, o que demonstra que o rótulo do contrato encobria a prática de um regime escravista mesmo após sua abolição oficial.
Os relatos colhidos em trabalho de campo reiteram as difíceis condições de vida dos trabalhadores contratados, com trabalho pesado e salários baixos, como se vê nos trechos a seguir: “O salário não era muito elevado, quer dizer conta de... de um pão de cada dia. Mas não era uma vida muito fácil, vida dura... muito dura mesmo.” (informante 3)
Depois nós chegamos aqui, tinha muita... muita chuva, chuva demais, as pessoas tinham que secar a roupa no secador7, sabe? Tinha outro até que vestia saco, furava saco e colocava porque a roupa não aguentava. Era chuva demais. E também trabalho era muito pesado. Basta de 6... 6... 5 hora, 6 hora já começa até... até tarde, trabalhava só. E depois, quando terminava de trabalhar, ainda tinha que tirar um feixe de capina, cada trabalhador ainda tinha que tirar um feixe de capim pra... porque ele tem... tinha coisa... hum... tinha... Então cada pessoa tinha que tirar um feixe de capim e pôr lá na cocheira... depois do trabalho ainda. Era duro, muito duro. (Informante 1)
Meu pai quando vinha contando que ele veio na base... na... na 47, ele veio massacrado, no tempo de colono. Ele rachou muito coco, cacau, carregando na... ele trabalhava no meio da chuva, na costa. Não tinha jardim, não tinha nada, não tinha creche, não tinha nada. Cacau, coco, molhava... a gente molhava nas costa, era algo que meu pai disse muito.... porque ele trabalhava no mato naquele tempo. (Informante 4)
A informante 2 afirma que muitos caboverdianos foram para o Príncipe enganados pela ideia de que as condições de vida no Príncipe seriam melhores do que as até então vivenciadas. Ela aponta que, chegando ao Príncipe, a realidade de fato foi apresentada: os caboverdianos sofreram maus tratos e tinham que trabalhar arduamente, começando o turno nas plantações de cacau às 6h e só terminando à noite. Quando inquirida se também trabalhou duro nas roças, a informante afirmou que sim, que o trabalho pesado só teve fim quando ela ficou mais velha.
Mesmo aqueles que chegaram a STP ainda crianças logo se engajaram no trabalho. O informante 1 afirma que mesmo criança, trabalhava o dia todo e estudava à noite. Já o informante 3 menciona que “Quando tive idade, fui para o trabalho, trabalhava no campo, atividades diversas, fazia limpeza no quintal, junto com colegas no trabalho”.
Por fim, o informante 1 narrou em detalhes a ida para STP: ele e a mãe foram para o Príncipe no barco Quanza e a viagem não foi fácil, durando 8 dias. Segundo o informante, o barco levava contratados, mas também tropas para Angola. O barco saiu de Praia, em Cabo Verde, e, no meio do caminho foi parado por um submarino para conferir o que o navio estava levando (o submarino procurava as tropas):
Não... não foi fácil [a ida para o Príncipe], nós... a vir no barco Quanza... no barco Quanza... depois... o barco Quanza... ê... o submarino tinha que pa... que parar aquele barco porque sabiam que o barco trazia contratados, mas também embaixo havia tropas que iam pa Angola. Tivemos dificuldades.
Na... na navio... nós viemos... nós saímos de Praia, capital, nós viemos, no meio da estrada nós encontramos o submarino, então submarino... parou o barco mesmo porque senão eles mandariam bomba mesmo. Então, o comandante tinha que mandar todas as crianças que estavam lá... todos aqueles contratados para cima para eles verem a quantidade de pessoas que eles poderiam ter matado. Então lá no fundo também tinha tropa que ia para Angola. Tinha tropa lá, é por isso que o submarino estava sempre... acabou no barco Quanza. Depois de Cabo Verde pa... para o Príncipe, ficou 8 dias para chegar aqui. Para o Príncipe, 8 dias no barco.
Pronto, logo que nós entrávamos no... no barco Quanza, minha mãe... cabeça já ficou assim... já ficou com a cabeça mareada, né? Então ela foi deitar, então durante oito dias, eu que tomei a comida e fui levar na cama. Por causa da cabeça, ela não podia levantar. Minha mãe veio com 40 anos. Ela não aguentou aquele balanço do barco. O barco andava... para mim estava normal, mas para ela... não aguentou, então ela ficou lá no fundo do barco e eu que buscava o café da manhã, almoço, jantar. De noite ainda ia e acompanhava ela assim.
Tendo discutido o tempo de branco, o recorte temporal seguinte, o tempo do estado, remete ao período pós-independência, quando caboverdianos se tornaram trabalhadores agrícolas do Estado (BERTHET, 2011). Por volta do final da década de 1980, tem início a nacionalização e distribuição das terras. Acerca desse período, Berthet (2012) aponta que no pós-independência, com a apropriação das roças por parte do Estado, pouca coisa mudou no regime de trabalho, com a classe assalariada permanecendo alijada de privilégios. Segundo a autora, em 1993, iniciou-se oficialmente uma distribuição de terras para os antigos trabalhadores, contudo somente aquelas de pequena extensão seriam destinadas a esses trabalhadores, com as maiores (e melhores) terras ficando sob supervisão de empresas estrangeiras. Sobre a redistribuição das terras, Feio (2016) menciona que, ao final da década de 1980, o Estado santomense deu início a um programa para isso. Muitos caboverdianos, contudo, não receberam terras com justificativas diversas, como as de que eles eram muito idosos para o trabalho no campo ou muito jovens (no caso de descendentes de antigos trabalhadores) ou de que eles eram reformados, recebendo uma espécie de aposentadoria, paga em parceria pelos governos de São Tomé e de Cabo Verde. Afirmação semelhante é trazida por Semedo (2016); a autora afirma que na distribuição de terras ocorrida em 1993 e 1996, os trabalhadores contratados (não só caboverdianos, mas também angolanos e moçambicanos) não receberam lotes com a justificativa de que já estavam próximos de se aposentar e terminariam não trabalhando nas terras. Apenas os descendentes dos contratados teriam o direito de receber as propriedades, contudo, com base em entrevistas com antigos contratados, muitos jovens não tiveram acesso às terras (SEMEDO, 2016).
A ausência de terras foi um fator que impulsionou o intenso êxodo rural de caboverdianos. Ao chegar à cidade, muitos caboverdianos e seus descendentes foram trabalhar no mercado como vendedores. De acordo com Berthet (2011), o tempo de estado recebe muitas críticas por parte dos idosos, que, apesar de receberem salários maiores depois da independência, relatam uma sensação de abandono por parte do Estado, que estava muito aquém do ideal quanto ao fornecimento de serviços básicos, como transporte, habitação, segurança e saúde.
O tempo de hoje se refere à atual realidade dos caboverdianos e seus descendentes. Berthet (2011) aponta que muitos antigos contratados ainda têm dificuldades no que tange ao pagamento das pensões governamentais. De acordo com Sousa (2014-2015), o êxodo em direção a São Tomé e Príncipe induziu a um cenário de pobreza os caboverdianos e descendentes que permaneceram nas roças desativadas e destruídas, sem quaisquer garantias de salubridade e bem estar. Os jovens descendentes dos caboverdianos alegam que subsiste uma prática de exclusão estatal. Por conseguinte, esse segmento social vive em situação de pobreza, vulnerabilidade e isolamento no interior do país. A informante 2 mencionou dificuldades, como a falta de medicamentos distribuídos gratuitamente, a falta de dinheiro (já que cada aposentado recebe em média 600 dobras8, que não consegue cobrir todos os gastos com alimentação e saúde) e quando indagada quando a senzala terminou, respondeu: “Senzala não acabou. Senzala tá lá. É aqui na minha casa. Casa de minha filha, minha casa é senzala.” Em 2005, a visita do então primeiro ministro caboverdiano José Maria das Neves a STP abriu caminhos para que o governo de Cabo Verde pudesse dar auxílios para a comunidade caboverdiana da diáspora.
No que tange aos tempos atuais, Feio (2016) mostra que tem havido avanços: nos últimos anos, muitos caboverdianos têm tido maior acesso ao ensino (inclusive fora do país) e a oportunidades de viajar para Cabo Verde, podendo retornar a sua terra ou de seus antepassados, o que também foi verificado a partir dos relatos em trabalho de campo. Muitos, porém, optam por voltar para São Tomé e Príncipe ou mesmo emigrar para outros países como Angola, Gabão e Senegal, ao invés de ir morar em Cabo Verde. Assim sendo, Cabo Verde não é visto mais como um lar pelos ex-contratados e seus descendentes. A despeito desses progressos, muitos descendentes de caboverdianos ainda possuem empregos pouco reconhecidos e valorizados, recebendo baixas remunerações. Entre os que vivem no campo, muitos vivem em condições difíceis, com casas sem água encanada e luz elétrica, como é descrito por Feio (2016).
Com relação à percepção dos traços caboverdianos em STP, Feio (2016) afirma que atualmente há uma valorização da caboverdianidade (como a música, a dança, a culinária), vista por meio de referências atuais, como as informações veiculadas na mídia, as impressões daqueles que viajam para Cabo Verde, a atuação do consulado de Cabo Verde em STP e o apoio às diversas associações de descendentes. Hoje Cabo Verde é visto de forma positiva pelos santomenses, como um “país mais desenvolvido e organizado que STP” segundo os informantes da autora. Essa concepção de Cabo Verde de hoje é, contudo, diferente daquela vigente quando da chegada dos contratados. E não se pode esquecer que essa visão mais antiga ainda reverbera em STP.
A nova visão da caboverdianidade abre espaço para discussões sobre a percepção que os caboverdianos têm de si. Com relação aos descendentes, são pessoas que trazem uma bagagem cultural anterior vinda do arquipélago da Alta Guiné, mas que nasceram em STP, onde construíram suas vivências. Há, assim, uma fluidez nas identidades: ora faz mais sentido enfatizar o pertencimento ao lado caboverdiano, ora é mais relevante defender o lado santomense (mesmo que muitos descendentes não tenham a nacionalidade santomense, dado que este é um processo oneroso). Em contrapartida, Sousa (2014-2015) afirma que os caboverdianos encontram um tratamento diferenciado no Consulado em face dos fatos históricos que envolvem a sua imigração. Assim, há registros de dupla nacionalidade de caboverdianos. A despeito dessa mobilidade, ainda há muitos preconceitos e estereótipos (como mencionado na seção anterior).
Um desses estereótipos diz respeito ao fato de os caboverdianos e seus descendentes ainda serem vistos com desconfiança e considerados como “estrangeiros”, “não autóctones”, “de fora”. Ademais, ainda persiste a concepção de que as pessoas que vivem na cidade são mais cultas e melhor colocadas socialmente do que aquelas que vivem no campo, “na roça”.
Os caboverdianos, por um lado, são considerados mais trabalhadores, sobretudo com relação ao trabalho braçal; por outro, são vistos como mais “rudes”, “grosseiros” por serem da zona rural. Assim, são comuns, entre os próprios caboverdianos e seus descendentes, comentários preconceituosos (feitos em tom de brincadeira) com relação àqueles que ainda moram no interior. Em lung’Ie, língua crioula falada no Príncipe, os caboverdianos são chamados de ope-vrexixi ou ope-bexibexi (cf. AGOSTINHO; ARAUJO, em preparação), que significa pés rachados, fazendo uma referência aos resultados físicos do trabalho no campo.
Ao mesmo tempo, há um grande desejo de se livrar dos estereótipos, tanto que muitas vezes, quando os caboverdianos atingem melhores condições de vida, terminam se afastando de seus familiares mais pobres, deixando o passado de lado para, assim, passarem a ser vistos de forma menos estigmatizada.
2. Considerações finais
Buscamos, ao longo do texto, reunir e discutir informações no que tange à migração caboverdiana para STP, apresentando descrições e fatos históricos (bem como alguns relatos colhidos em trabalho de campo) relativos às condições de vida e de trabalho dos contratados nas roças, seus conflitos com os roceiros e o tratamento recebido das demais parcelas populacionais de STP. No segundo momento da discussão, assumindo que não há uma única versão para qualquer evento histórico e social, abordamos as percepções sobre o movimento migratório caboverdiano para STP tanto a partir da perspectiva dos próprios imigrados e descendentes quanto a partir do ponto de vista dos forros, angolares e principenses.
De modo geral, constata-se que a inserção dos caboverdianos na comunidade santomense, em seu sentido lato, foi dificultada desde o início da sua chegada, estabelecendo-se, por conseguinte, uma sociedade bifurcada entre os “verdadeiros” santomenses, de um lado, e “os estrangeiros” que seriam os contratados e descendentes, de outro (FEIO, 2016; NASCIMENTO, 2003). Para além da segregação social alimentada pela intolerância santomense às diferenças culturais e étnicas, os caboverdianos também foram vítimas de abusos e exploração de todas as ordens pelos donos das roças onde trabalhavam de modo que se torna patente a vigência de um regime de escravidão sob uma nova roupagem. Um exemplo do cerceamento da liberdade sofrido pelos serviçais foi o próprio decreto estatal que proibia a saída dos caboverdianos das roças, exceto se os mesmos portassem um documento de autorização prévia (NASCIMENTO, 2001).
Os caboverdianos e sua descendência, mesmo nos dias atuais, formam um grupo de representação demográfica significativa em STP, contudo ainda são considerados “não nativos” ou “estrangeiros” pelas demais parcelas populacionais do país. Além disso, devido ao fato de os segmentos supramencionados residirem majoritariamente nas zonas rurais em STP, são considerados “menos cultos” pela população local que ainda guarda a percepção de que pessoas da região urbana são “socialmente superiores” àquelas que vivem no campo. Tais concepções discriminatórias colaboram para que, no panorama atual, os caboverdianos e descendentes se sintam e se declarem como integrantes de um grupo social diferente dos santomenses, o grupo dos caboverdianos conforme pontua Semedo (2016, p. 78-79). Desse modo, apesar do histórico de exploração e segregação social, os contratados conseguiram criar um espaço próprio na sociedade santomense. Cenário esse que não pode ser encarado nem como uma reprodução de Cabo Verde (ainda que haja elementos culturais da pátria ancestral) tampouco se equivale a uma adequação ou mesmo rejeição completa aos costumes e à cultura santomenses. A comunidade constituída pelos caboverdianos e descendentes reúne elementos e traços dos dois arquipélagos de maneira que se tem um novo espaço social e cultural.
Assim, ainda que a chegada de contratados oriundos de Cabo Verde ao longo do século XX tenha causado alterações profundas na ecolinguística de STP, seus impactos ainda carecem de maiores investigações. Portanto, esperamos que a discussão aqui empreendida possa não só contribuir para as pesquisas acerca da transmigração caboverdiana, como também possa despertar a atenção de mais pesquisadores.
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