Introdução
Não é ruim a ideia de que Hoeningswald (2020) irrompeu em 1964 com um tipo de truísmo em linguística quando se manifestou favoravelmente à Linguística Popular. No investimento que fez em considerar “a confusão dos fatos da fala com os comentários sobre a fala” (Hoeningswald, [1966] 2020, p. 14) tratou de chamar a atenção para a oposição entre os saberes científicos e saberes populares em linguística, e como os comentários sobre a linguagem realizados por pessoas comuns foram desde sempre negligenciados nas formulações de teorias científicas em Linguística.
Hoeningswald (2020, p.13) percebeu que, diferentemente de outras áreas de investigação e conhecimento, como a etnozoologia e a etnomedicina, nas ciências da linguagem pouco havia se trabalhado com as crenças populares dos falantes sobre as suas próprias línguas numa comunidade de fala, em parte por que:
[...] existe uma parte exasperante de crença popular segundo a qual a linguística está "à frente" – em precisão, elaboração (ou simplicidade?) de conceitos, concretude de resultados – e até, segundo alguns, no grau de unanimidade com que os praticantes alegadamente aceitam as descrições uns dos outros, análises e inferências. (HOENIGSWALD, [1966] 2020, p. 13)
Trabalhos mais recentes em linguística, como os de Niedzielski; Preston (2003) em dialetologia perceptual, de Antos (1996) e Doury (2008) no contexto da retórica e da argumentação populares, de Paveau (2019 e 2020), de Baronas; Conti (2019) e Baronas (2021) num contexto discursivo evidenciam que a área de estudos em Linguística Popular tem permitido análises das mais variadas e abordagens pertinentes às muitas formulações de teorias espontâneas e ordinárias sobre a linguagem.
Neste artigo pretendemos discutir algumas questões que podem estar relacionadas ao próprio estado da arte da Linguística Popular mais recentemente. Partimos de uma questão em especial para a área de estudos, qual seja “quem são os não linguistas?” (PAVEAU, 2020, p.28), para observar os falantes comuns na produção de conhecimento sobre a língua neste confronto entre o científico e o popular. Interessa-nos saber “quais (e como) são as práticas destes não linguistas no trabalho com a linguagem?” e “quando estas práticas são colocadas em uso pelos falantes comuns em ambientes reais de interação?”.
Parte das respostas a estes tipos de questões também esbarra no escopo de análise da própria Linguística, ou seja, nos permitem discutir como a Linguística tem olhado para estas práticas populares, espontâneas e profanas, ou, nos termos de Swiggers (ver DE OLIVEIRA BATISTA, 2019), ecolinguísticas. Neste artigo vamos apresentar inicialmente um breve panorama dos estudos em Linguística Popular, sua metodologia e diferentes abordagens para o estudo dos comentários sobre a linguagem feitos por não especialistas. As práticas linguísticas realizadas por estes não linguistas podem revelar estratégias bastante diversificadas quanto à construção de teorias espontâneas sobre língua e linguagem, alinhadas ou não às teorias científicas já consagradas num ambiente científico e acadêmico.
Para discussão e análise destas práticas linguísticas (como elas podem ser categorizadas, como elas podem ser utilizadas,...) utilizamos aqui o texto A Gramatiquinha da Fala Brasileira de Mario da Andrade (Ver PINTO, 1990). Nossa investigação pretende verificar como estas práticas linguísticas espontâneas são realizadas por Mario de Andrade e como elas podem ser observadas, a partir dos comentários do autor, enquanto comentários sobre a linguagem que poderiam caracteriza-lo eventualmente como um linguista popular.
1. Hoenigswald e a sabatina linguística
Henry Max Hoenigswald (1915-2003) foi professor emérito na Universidade da Pennsylvania, nos Estados Unidos. Há uma boa e dedicada memória biográfica ao autor feita por Cardona (2006), mas curiosamente também silente quanto ao investimento de Hoenigswald no popular/folk para os estudos linguísticos.
O texto inaugural em Linguística Popular com o qual trabalhamos é, na verdade, a apresentação de Hoenigswald (2020) à Conferência de Sociolinguística na University of California (UCLA), em 1964, incluindo os questionamentos, sugestões e discussões de outros colegas linguistas contemporâneos como Dell Hymes, Einar Haugen, Charles Ferguson, Willian Samarin e Labov, dentre outros. A proposta parte basicamente da seguinte constatação:
Existe o hábito, em si mesmo honroso, indispensável e profundamente arraigado, de desconsiderar os pronunciamentos dos informantes em sua língua. Em questões extralinguísticas, é suficiente compreender que deve haver uma distinção entre a cultura ideal e a real, então o pesquisador é livre para estudar cada uma separadamente ou mesmo em conjunto. No caso da linguagem, uma história infeliz do passado impediu isso; a necessidade de advertir contra a confusão dos fatos da fala com os comentários sobre a fala tem sido real demais para permitir um interesse muito sério nessa última (HOENIGSWALD, [1966] 2020, p.12).
Na discussão, a primeira intervenção é de Dell Hymes que considera as contribuições da exposição de Hoegniswald profícuas à Sociolinguística então nascitura nos EUA. Para Hymes (1962), que se notabilizou pelo estudo etnográfico do uso da linguagem,
[...] o Dr. Hoenigswald trouxe alguns aspectos do lugar da linguagem na sociedade que poderiam ser negligenciados. Ele está abrindo aqui toda a questão dos valores de uma cultura e das crenças e conhecimentos de uma cultura, no que diz respeito à linguagem e à maneira como elas afetam o lugar da linguagem na sociedade (HOENIGSWALD, [1966] 2020, p. 20).
Haugen, de outra parte, sugere a assunção do termo etnolinguística ao invés de linguística popular, mas reconhece que chegara a incluir nos questionários de pesquisa de campo que fez para o estudo de dialetos noruegueses na América, pedidos às pessoas “que [...] dissessem o que pensavam sobre seu próprio dialeto, sobre outros dialetos e sobre o idioma padrão” e descobriu “que as pessoas que falam dialetos populares não são unânimes em suas atitudes em relação a esses dialetos. Alguns dialetos são considerados bonitos e desejáveis, outros indesejáveis e feios, mesmo os que a própria pessoa fala” (HOENIGSWALD, [1966] 2020, p. 20).
Fergunson, por sua vez, circunscreve os trabalhos da Linguística Popular à linguística aplicada, especialmente aos trabalhos de alfabetização e de desenvolvimento educacional em países em desenvolvimento, bem como aos trabalhos na área de ensino de línguas estrangeiras. Talvez tenha contribuído com uma das mais sucintas e precisas definições de Linguística Popular à época: “o estudo das atitudes que as pessoas têm em relação à linguagem” (HOENIGSWALD, [1966] 2020, p.21).
Hodiernamente, Niedzielski; Preston (2003, p.2) reconhecem a importância dos estudos inaugurais de Hoenigswald, sobretudo pelo amplo plano apresentado para os estudos dos comentários sobre a linguagem. No Folk Linguistics (NIEDZIELSKI; PRESTON, 2003), por exemplo, podemos ver uma boa discussão sobre a suposta pobreza e inacessabilidade dos dados populares, algumas das objeções que foram feitas por Labov ao trabalho de Hoegniswald à época de sua apresentação.
Na próxima seção, vamos apresentar o diagrama triangular proposto por Niedzielski; Preston (2009) a partir das mudanças que apresentaram para a revisão do lugar da Linguística Popular numa teoria geral de estudos de linguagem.
2. O diagrama triangular da linguagem
Os diagramas costumam ser uma boa alternativa para representar certos fatos, certos fenômenos. O próprio Saussure (2008) recorreu aos diagramas em inúmeras passagens do Curso1, como no caso das cabecinhas falantes/ouvintes no circuito da fala (FIGURA 1) ou mesmo na representação do signo linguístico (SAUSSURE, 2008, p. 80):
No prefácio do Folk Linguistics (NIEDZIELSKI; PRESTON, 2003, pg. x e xi), os autores também se utilizam de um diagrama para apresentar o lugar da Linguística Popular numa teoria geral de estudos da linguagem. O ponto de partida para a elaboração da primeira versão triangular do diagrama foi o conjunto de três afirmações lá trás formuladas por Hoenigswald: “[...] we should be interested not only in (a) what goes on (language), but also in (b) how people react to what goes on (they are persuaded, they are put off, etc.) and in (c) what people say goes on (talk concerning language)”2 (HOENIGSWALD, 1966, p. 20).
Na versão da FIGURA 2, os itens a, bn e b1 são reescritos como a, b e c, e representavam respectivamente na versão original “What people say”, “What people say about” e “How people react to what is said”[3 (NIEDZIELSKI; PRESTON, 2003, pg.x).
Na FIGURA 2 compartilhamos a versão revisada do diagrama triangular da Linguística Popular:
Na versão original os autores pretendiam distinguir de um lado os tipos de reações inconscientes utilizados em estudos tradicionais de atitude linguística (vértice b) e do outro lado os tipos conscientes de expressões que caracterizariam efetivamente o escopo da Linguística Popular (vértice c). A mudança proposta, que se realiza na concepção de um continuum na base deste triângulo (de c para b à b1 para bn), reflete melhor a passagem de reações conscientes e comentários sobre a linguagem à reações totalmente inconscientes sobre a linguagem. Nestes termos, a Linguística Popular (por ventura as crenças, atitudes e estratégias dos falantes) estaria plenamente localizada no vértice b1.
Preston (2011, p.15) formula então uma das definições do que é “popular” nos estudos linguísticos:
I also most emphatically use the term folk in folk linguistics to refer to all persons except aca- demic linguists, just as linguists would be folk in a study of folk botany, folk chemistry, etc…. I defi- nitely do not use the term to refer to rural, marginalized, less educated, or romanticized (‘quaint’) groups. We’re all folk when we step into the world of traditional knowledge and ways of behaving outside our own technical training. Even then, folk knowledge may be at work when more subcon- scious modes prevail, although, as in the language attitudes of linguists, for example, they may be suppressed from overt comment or behavior by professional knowledge[5. (PRESTON, 2011, p.15)
Enfim, a título de uma pequena síntese, colacionamos a seguir uma definição de Linguística Popular, nos termos de Babcock (s.d. p. 58): “Folk linguistics attempts to study people’s beliefs and attitudes about language through their metalinguistic statements, usually collected in a naturalistic setting[6”.
Do ponto de vista das técnicas de coleta e interpretação de dados em Linguística Popular, ainda que suas fronteiras não possam ser categoricamente estabelecidas, Preston (2011, p. 15) apontou para diferentes tipos de abordagem, caracterizadas como tradicionais, operacionais, experimentais e discursivas. Na próxima seção vamos apresentar algumas características destas diferentes abordagens em Linguística Popular com especial atenção à do tipo discursiva.
3. Metodologias da Linguística Popular
O panorama de pesquisas apresentado até o momento parece dar conta pelo menos do ambiente norte-americano de estudos em Linguística Popular. Com razão, os trabalhos em Linguística Popular nos EUA indicam para a uma diferença metodológica significativa de tratamento dos dados linguísticos populares, especialmente se confrontados os trabalhos em dialetologia perceptual aos estudos sobre as atitudes linguísticas dos falantes. Com base nesta diferença é que Preston (2011) propõe a distinção entre abordagens do tipo operacionais e experimentais.
Na abordagem de tipo operacional destacamos a confecção dos mapas dialetais a partir das percepções dos próprios falantes. Há nesse caso preocupação real com a distribuição geográfica dos dialetos de uma dada língua com base nas formulações dos próprios falantes, ao passo que na de tipo experimental são analisadas as atitudes de linguagem mediante aplicação de técnicas experimentais de tratamento dos dados linguísticos.
Conforme Preston (2011, p.28): “In much of the work carried on in this tradition, the attempt has been to see how different varieties are evaluated for status and solidarity and how different respondents (and subgroups of respondents) differ in their evaluations[7”. A seguir apresentamos (FIGURA 3), apenas por ilustração de uma abordagem do tipo operacional, um mapa anotado à mão por um falante de Chicago nos EUA:
Quanto às abordagens do tipo discursivas, Preston (2011, p.34) centra seus esforços sobre o conteúdo metalinguístico de uma conversa sobre a fala. Preston (1994) revisa uma série de estratégias para a análise discursiva em Linguística Popular que podem revelar atitudes subconscientes - seleção de tópico em imitação, especificidade referencial em argumento, marcadores de discurso e perspectivas de tópico, dentre outras.
Mas há uma outra geografia, além da norte americana, que pode melhor representar, quiçá algures e alhures, os estudos em Linguística Popular e que será nossa porta de entrada para discutir algumas questões pertinentes às abordagens do tipo discursivas. Referimo-nos aqui aos investimentos de Paveau (2008) inicialmente na revista francesa Pratiques8, quando estabelece três domínios para a Linguística Popular (PAVEAU, 2020, p.16-17): o domínio anglo-saxônico da Folk Linguistics, o da Volkslinguistik ou Laienlinguistik no contexto germânico e o domínio francês e francófono da Linguística Popular.
Aproveitamos a anotação da própria Paveau (2020, p.17) para uma breve exposição aqui da Linguística Popular no contexto germânico:
No contexto germânico, a Volkslinguistik, às vezes chamada de Laienlinguistik, embora os termos não cubram as mesmas práticas linguísticas, se apresenta como no domínio anglosaxônico, isto é, como um campo de estudos já consolidado, com muitas produções científicas, eventos, etc. [...] A Laienlinguistik é a linguística dos manuais de conversação ou de expressão oral, destinados a melhorar a competência linguística dos locutores na sua vida social e profissional. Os trabalhos do que se denomina enquanto Volkslinguistik se concentram, todavia, sobre a dialetologia e adotam uma perspectiva que se poderia denominar geolinguística, se debruçando, por exemplo, sobre a imagem da “bad language”/“língua ruim”, associada às variantes regionais. (PAVEAU, 2020, p. 17 – grifos da autora)
No contexto francês/francófono9, Paveau (2020, p. 19) parte de um eventual paradoxo, considerando a própria polissemia do termo popular e suas relações correlatas (ordinário, trivial, espontâneo...), que consiste em perquirir quais objetos e práticas podem ser minudenciados como pertencentes ao campo linguístico dos estudos populares. Em outros termos, “[o] paradoxo se configura se nos propomos a considerar a linguística popular como uma estrutura para unificar os objetos e abordagens mencionadas até agora, centrada em torno do conceito de prática” (PAVEAU, 2020, p. 19, grifo da autora).
A partir de diferentes lexias da definição do que se configura como popular, a metáfora inicialmente proposta por Achard-Bayle e Paveau (2008) se desdobra especialmente a partir do ambiente religioso ocidental, ambiente no qual se desenvolviam na Idade Média os conhecimentos especializados em oposição aos saberes populares. Daí decorre uma linguística realizada fora do templo, portanto profana.
Para melhor visualização das práticas linguísticas propostas por Paveau (2020, p. 19-20) elaboramos o seguinte quadro sinóptico10:
Tipo | Prática | Ex. |
---|---|---|
Descritiva | Descrições ou (pré) teorizações linguísticas | - hierarquia entre o oral e o escrito; - conformidade com as regras da língua; |
Normativa | Prescrições comportamentais | - normativismo linguístico; - boas práticas de linguagem; - repulsa aos neologismos, empréstimos, etc. |
Intervencionista | Intervenções espontâneas sobre a língua | - práticas reais de linguagem como as etimologias populares; |
Militante | Práticas militantes | - questionamento de usos linguísticos, especialmente os de caráter racista, homofóbico, machista, etc. |
Por fim, destacamos que nesta abordagem de matiz discursiva no contexto francófono é imperativo que os saberes – especializados e não especializados – estejam dispostos numa série escalar antieliminativa:
A meu ver, é preferível adotar uma visão escalar das coisas. Seria melhor, então, mesmo se essa posição parece iconoclasta para aqueles que creem na pureza e na objetividade da ciência, postular um continuum entre aqueles que fazem da linguística uma ciência una e aqueles que não. Haveria dois polos que representariam os extremos teóricos: de um lado, o linguista “estudado”, “científico”, que manejaria os saberes “exatos”; e, de outro, o linguista espontâneo, que produziria análises do tipo daquela destacada pela vendedora de loja de antiguidades: “Ele nunca me diz o que me agrada” (aspas e grifos no original) (PAVEAU, 2018, p.9-10).
Na próxima seção, vamos tratar da Linguística Popular no Brasil.
4. Linguística Popular no Brasil
Não obstante a publicação de Paveau (2018), no Brasil, efetivamente, é mais recente a chegada do que chamamos de Linguística Popular como tema dos estudos linguísticos se comparada às outras geografias, em especial a norte americana e a francesa. Destacamos aqui, principalmente, os esforços inaugurais de Baronas em pelo menos dois momentos atuais: a publicação do dossiê Linguística Popular/Folk Linguistics, organizado em conjunto com a professora Maria Inês Pagliatini Cox (ver BARONAS; COX, 2019) e a organização do I Seminário Internacional de Estudos em Linguística Popular (SIELiPop)11 realizado em 2020.
No contexto brasileiro, contudo, como reconhece o próprio Baronas (ver PAVEAU, 2020, p.7), a linguística folk não figura ainda como um campo de investigação oficialmente institucionalizado para as associações científicas de linguística no Brasil e dentre as agências de fomento à pesquisa no país. De qualquer maneira, sobretudo pelas pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos Epistemológicos e de Discursividades Multimodais (Leedim/CNPq), podemos verificar principalmente o investimento em abordagens discursivas que analisam o dado linguístico popular em circulação, especialmente em midiuns digitais, com enfoque em práticas linguísticas militantes e identitárias.
Por fim, ainda que não autoproclamados como trabalhos realizados em Linguística Popular, destacamos aqui algumas pesquisas linguísticas em que a percepção, as atitudes e as crenças dos falantes, ou mesmo a institucionalização dos saberes cotidianos, estejam em suas próprias coberturas de investigação. Trabalhos como o de Oushiro (2015) e Freitag; Oushiro (2019) sobre avaliação, produção e percepção linguística na Sociolinguística, de Freitag; Cardoso; Pinheiro (2020) sobre atitudes e julgamentos de falantes e de Ferreira (2020) sobre os saberes linguísticos cotidianos no campo da História das Ideias Linguísticas, por exemplo, demonstram a pertinência do tema popular/folk e sua multiplicidade de abordagens para as pesquisas em linguística no Brasil atualmente.
Na próxima seção vamos tecer alguns comentários sobre as práticas linguísticas pertinentes ao investimento de Mario de Andrade na construção de sua Gramatiquinha. O texto base de nossas considerações será A Gramatiquinha de Mario de Andrade, texto reconstruído por Pinto (1990) com vistas aos originais do autor12, expressamente destinados à composição desta obra que, incompleta, não se publicara em vida. Compartilhamos com Pinto (1990, p.59) a ideia de que:
[...] a organização da Gramatiquinha da Fala Brasileira visava, não só comprovar a existência de uma variedade da língua portuguesa – a que chamava fala -, e forçar o seu reconhecimento, mas também a credenciar o seu uso para fins literários, o que, simultaneamente, ele estava a concretizar com sua estilização (grifos da autora).
Na visão de Pinto (1990, p. 292), o que Mario de Andrade indica é que “outras gramatiquinhas concorreriam para a futura organização da gramática da variedade brasileira, conforme a cadeia”:
oralidade → ação dos escritores → gramatiquinhas → gramática |
---|
De qualquer maneira, nossa proposta não se configura como uma complementação à “história das intenções de Mario de Andrade” (PINTO, 1990, p.285) promovida pela autora e sim uma verificação das estratégias, ações, enfim, das práticas enredadas pelo autor da Gramatiquinha na formulação de teorias linguísticas espontâneas.
5. Mário de Andrade: um não linguista interessantíssimo
Nesta seção vamos fazer uma espécie de corolário à tese de De Oliveira Bonermann; Cox (2019), segundo a qual Mário de Andrade pode ser considerado um (sócio)linguista avant la lettre. Nossa complementação à asserção dar-se-á com base nas próprias práticas promovidas por Mário de Andrade na sua Gramatiquinha (PINTO, 1990): pretendemos indicar que suas mobilizações para a construção de um instrumento linguístico como uma gramática coarctariam uma atividade militante não especializada sobre a língua naquele contexto do início do século XX. Dito de outra maneira, queremos ver Mario de Andrade comentando sobre a língua, ou seja, produzindo conhecimento metalinguístico (e por que não metadiscursivo?) sobre a língua portuguesa falada no Brasil.
Conforme De Oliveira Bonermann; Cox (2019, p.4283) seria possível identificar em Mário de Andrade práticas linguísticas populares que poderiam indicar “filiações” a uma sociolinguística ainda nascitura. Destacamos aqui três destas filiações dentre as levantadas por Cox (2019, p.4283)13:
a) A ‘língua geral brasileira’, que Mario de Andrade passou a chamar de ‘fala brasileira’ para evitar mal-entendidos, precisava ser depreendida das linguagens concretas, ou seja, dos usos gerais, levando em conta as coordenadas horizontais (usos rurais e urbanos e regionalismos), as coordenadas verticais (as classes sociais) e também os registros e gêneros (o registro amoroso, da briga, da escrita de um romance, etc.). Esses fatores extralinguísticos passaram a ser designados pela sociolinguística como variáveis diatópicas, diastráticas e diafásicas, respectivamente [...].
b) Também as categorias de certo e errado ressoam, em Mário de Andrade, a compreensão que a sociolinguística viria a ter delas. O escritor distingue “erro de linguagem” de “erro de gramática”. Uma forma como “Passe-me o cigarro” pode ser considerado um acerto gramatical, mas é certamente um erro de linguagem porque é um atentado contra o uso habitual entre os brasileiros: “Me passe o cigarro” [...].
c) Gramáticas, como instrumentos linguísticos, sucedem as línguas organizadas e são, portanto, desnecessárias para a aprendizagem de uma língua [...].
Para além das filiações à sociolinguística exemplarmente colhidas pelas autoras na Gramatiquinha de Mario de Andrade, devolvemos o autor para o seu próprio tempo e percebemos seu investimento em práticas linguísticas outras, por vezes intervencionistas e militantes se contextualizadas à época de suas realizações, e suas subsequentes implicações na formulação de teorias espontâneas, profanas ou populares sobre o português no Brasil. Daí decorre nossa assunção de que Mario de Andrade teria sido um não linguista interessantíssimo, para brincar com seu prefácio à Pauliceia Desvairada de 1921: suas (propostas de) práticas populares sobre a língua literária que pretendia defender (e praticava) podem indicar simultaneamente investimentos quanto à normativização, intervenção e militância sobre as questões de língua e linguagem, em especial naquele momento sócio histórico do primeiro vintênio do século XX no Brasil.
Na nossa perspectiva também é bastante produtivo mobilizar o conceito de “língua geral brasileira” (fala brasileira nos termos do próprio autor), as categorias de “certo” e “errado” e a própria discussão sobre a utilização dos instrumentos linguísticos (as gramáticas em especial) na formulação de teorias populares sobre linguagem, como fez De Oliveira Bonermann; Cox (2019, p. 4283) ao reconhecer Mario de Andrade como um linguista folk, um (socio)linguista antes do tempo. Nosso atavio à tese de que Mario de Andrade foi um linguista popular é responder a pergunta inicial, reformulando-a nos seguintes termos: quais (e como) são as práticas de Mario de Andrade no trabalho com a linguagem?
Na próxima seção vamos discutir algumas das práticas linguísticas realizadas por Mario de Andrade na Gramatiquinha e em que medida elas podem indicar, como ações de um não linguista (os comentários sobre...), tipos linguísticos descritivistas, normativistas, intervencionistas e militantes (PAVEAU, 2020, p.19-20).
6. As práticas linguísticas de Mario de Andrade
A escolha de Mario de Andrade por uma gramática como instrumento linguístico do seu projeto pode indicar, com certa segurança, um investimento do autor em práticas descritivas e normativas, consideradas aí também as próprias características do próprio instrumento enquanto um gênero do discurso, ou nas palavras de Maingueneau (2010, p.131), um hipergênero.
A Gramatiquinha era uma proposta de gramática da fala brasileira, “o conjunto de normas com que torna consciente a organização duma ou mais falas.” (PINTO, 1990, p. 334). Nesta proposta “será total a diferenciação entre o brasileiro e o português (língua). Talvez não pode ter [sic] sendo falas do mesmo berço comum. Quando muito talvez daqui a século como entre português e espanhol. Não é a razão para que não principiemos.” (PINTO, 1990, p. 335)
Era de se esperar que fossem realizadas práticas do tipo descritivista e normativista na ação linguística de Mario de Andrade ao construir um instrumento linguístico como é o caso de uma gramática, e isso realmente acontece. Destacamos ilustrativamente o que pode ser lido no excerto Fonética, no qual se pretendia “dar uma descrição e exemplificação geral, o mais completas possível, da pronúncia da região” (PINTO, 1990, p.343). Por exemplo a “pronúncia do lh (“recolher” e “recoiê”)” e a “pronúncia do s (“mochca” por “mosca”; “ujpretoj” por “os pretos”); inexistência dele para a pluralização” (PINTO, 1990, p. 344 e 345), e muitos outros ao longo de todo o texto.
Vale ressaltar aqui que é na mesma Gramatiquinha também que vemos os esforços de Mario de Andrade na elaboração de um “inquérito geral etnográfico, um formulário das pesquisas folclóricas” (PINTO, 1990, p.429). Tratava-se ao mesmo tempo de uma proposta de coleta de dados e de criação de um vocabulário, práticas comumente associadas aos trabalhos de descrição em linguística.
Quanto às práticas do tipo normativista, citamos apenas como exemplo a seção Ortografia, na qual são listadas regras para a escrita de palavras com ou sem “traços-de-união” (PINTO, 1990, P. 351). Nesse caso, a prática linguística de Mario de Andrade é a mais simples formulação de uma regra, uma norma: “Tem traço-de-união: [...] III) As palavras triplas: traço-de-união.” (PINTO, 1990, p.351).
Mas o que dizer das práticas intervencionistas e militantes em Mario de Andrade? Como destaca Paveau (2020, p.20), estas práticas linguísticas são aquelas que apresentam alto grau de performatividade, sobretudo porque podem ensejar prescrições sobre a própria constituição de identidade de um indivíduo, um grupo de falantes, ou mesmo de toda uma comunidade de fala e questionar certos usos linguísticos preconceituosos.
Ao se debruçar sobre a problemática questão da língua nacional, Mario de Andrade vai reconhecer a necessidade de percepção das classes sociais (proletários, cultos, analfabetos, rurais...) em suas diferentes falas e que a coleta de dados deveria ser feita de maneira desleixadamente espontânea e natural (PINTO, 1990, p.338). Neste sentido, somos inclinados a considerar que as práticas linguísticas de Mario de Andrade tendem ao estabelecimento de um projeto folk para a fala brasileira, uma espécie de teoria linguística espontânea e popular: “tem muita importância em verificar e apontar as regras e casos em que mesmo estas pessoas “culteranistas”, por desatenção momentânea pecam contra o português de Portugal ou das gramáticas” (PINTO, 1990, p.338).
Se, contudo, ampliamos para análise o escopo de nosso trabalho até outras produções de Mario de Andrade, veremos talvez regularmente delineado um programa popular ativo de pesquisas em linguagem e ações sobre a língua, na qual a Gramatiquinha seria então um dos seus variados projetos inerentes. As ações de Mario Andrade sobre a língua (e as artes de um modo geral) indicam um trabalho intenso e contínuo de intervenção e militância contra o establishment linguístico e literário da época, de seu tempo.
Suas contribuições na Revista Klaxon entre 1921 e 1922 e a própria organização do Congresso de Língua Nacional Cantada em 1937 (ver CABRAL, 1986, SERPA, 2001 e MONTEIRO, 2020), contribuições não isoladas de suas produções literárias como as da Paulicéia Desvairada de 1922 e da crítica A Escrava que não é Isaura de 1925 (ver ANDRADE, 2009), podem indicar ao longo dos anos tipos relativamente estáveis de práticas linguísticas em Mario de Andrade, que em alguns casos se realizam como práticas linguísticas intervencionistas e militantes.
7. Conclusão
Neste artigo apresentamos um panorama geral sobre a Linguística Popular, seus principais conceitos, sua metodologia e abordagens nas mais diferentes geografias, com especial ênfase nas abordagens do tipo discursivas e seus desdobramentos no contexto da pesquisa linguística no Brasil. Verificamos que Mario de Andrade pode ser considerado um linguista folk, posto que realizava diversos tipos de práticas linguísticas, muitas delas espontâneas, outras tantas talvez seduzidas pelo próprio instrumento que é a gramática, mas certamente práticas linguísticas espontâneas dos mais diversos tipos: descritivistas, normativistas, intervencionistas e militantes.
Do ponto de vista de uma Historiografia da Linguística, especialmente circunscrita à formulação de manifestações espontâneas sobre língua e linguagem, os estudos sobre a produção de Mário de Andrade podem melhor contribuir para uma investigação sobre o conhecimento ecolinguístico elaborado no passado em oposição (ou não) à produção acadêmica e científica em Linguística no Brasil, nos termos propostos por Swiggers (ver DE OLIVEIRA BATISTA, 2019, p.49 e 52). Vale destacar também que, conforme Swiggers (2013): “Na historiografia da linguística, como estudo do desenvolvimento das ideias e das práticas linguísticas, os objetos primários que se devem estudar são textos (publicados ou não publicados)” (SWIGGERS, 2013, p.41).
Como trabalho futuro, em especial pelo apelo às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna no Brasil em 2022, será oportuno estudar a filiação de Mario de Andrade quanto às teses da origem da língua portuguesa no Brasil no horizonte da Linguística brasileira. Por fim, a Linguística Popular mostrou-se uma riquíssima área de estudos sobre a linguagem, seja pela pertinência de seu manancial teórico e metodológico, seja pela contribuição que traz à investigação de novos dados nas ciências da linguagem.
Referências
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