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Research Report

Journalist's degrees of commitment in reported discourse headlines

Caroline Soares

Federal University of Rio de Janeiro image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0001-6994-7997

Lilian Ferrari

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https://orcid.org/0000-0001-7808-4425


Keywords

News headlines
Speech act
Reported speech
Conceptual blending
Degree of commitment

Abstract

The purpose of this project is to investigate online headlines from Brazilian newspapers in which the occurrence of reported discourse is observed, based on the theoretical and methodological apparatus of Cognitive Linguistics. The mail goal is to map the speech acts performed in these headlines and strategies of viewpoint compression that are reflected in linguistic structure. The act of reporting is approached from the articulation of two theoretical perspectives, Speech Acts Theory (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969) and Conceptual Blending Theory (FAUCONNIER & TURNER, 2002). The contribution of the research project is to promote new discussions regarding the study of reported speech and speech acts and their application to real contexts of use. It is argued that headlines involving reported speech can constitute the material anchor of a process of conceptual blending, involving the assertive speech act performed by the journalist, on the one hand, and the speech act performed by the reported speaker, on the other. The results indicate that the different syntactic structures are, in fact, at the service of the degree of commitment that the journalist wants to maintain with the reported speech.

Introdução

Este artigo analisa manchetes de discurso reportado no contexto do jornalismo on-line, em que se observa a incorporação dos discursos direto e indireto, em diferentes níveis, para reportar a fala de terceiros. De modo específico, observamos que as manchetes de discurso reportado apresentam recursos linguísticos que podem sinalizar diferentes graus de alinhamento entre os pontos de vista do jornalista e do falante reportado e, consequentemente, evidenciar o grau de comprometimento do jornalista com o conteúdo apresentado.

Dentro dessa perspectiva, o ato de fala de “noticiar” está intimamente associado a outros atos de fala realizados pelas fontes. No caso do ato de noticiar, o que se verifica é que a constatação de um fato ocorrido está a serviço da informação. Assim, não se trata apenas de dizer algo sobre fatos que ocorreram no mundo, mas sim de fazer algo ao dizer; nesse caso, ao noticiar um evento, o jornalista se compromete com a verdade de um determinado estado de coisas, realizando o que Searle (1969) classifica como ato de fala assertivo, como ilustra o exemplo (1):

(1) Manifestantes protestam após discurso da rainha Elizabeth. (O Globo, 28/05/2015).

A manchete, em (1), pode ser parafraseada por “(Noticiamos que) Manifestantes protestam após discurso da rainha Elizabeth”. Nesse caso, o jornalista assevera a ocorrência de um determinado fato, comprometendo-se com sua veracidade. Entretanto, não são raras as manchetes em que o jornalista recorre a outras ‘vozes’, de modo que a notícia consiste em reportar a fala de outros indivíduos, como em (2):

(2) EUA dizem que vão ‘erradicar’ corrupção do futebol. (Jornal do Brasil, 27/05/2015).

Por sua estrutura formal, observa-se que a manchete em (2) reporta o ato de fala realizado por representantes dos EUA que, no caso, é um ato de fala compromissivo. Assim, pode-se dizer que a manchete comprime dois atos de fala distintos: o ato assertivo de noticiar do jornalista e o ato de fala compromissivo realizado pelo falante reportado. Sendo assim, poderia ser parafraseada por “(Noticio que) EUA (prometem que) vão ‘erradicar’ corrupção do futebol”.

Tendo em vista que a análise da compressão de atos de fala ainda não foi aplicada a manchetes jornalísticas do português brasileiro, o objetivo do presente trabalho é preencher essa lacuna, propondo uma abordagem do ato de “noticiar” em manchetes de discurso reportado em textos jornalísticos brasileiros. Partindo da Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969) e da Teoria dos Protótipos associada à categorização radial (ROSCH, 1975, 1978; LAKOFF, 1987), o trabalho adota a perspectiva teórica da Linguística Cognitiva, recorrendo à visão cognitivista dos atos de fala (MARMARIDOU, 2000; LANGACKER, 2008) e à Teoria da Mesclagem Conceptual (FAUCONNIER & TURNER, 2002).

O trabalho está organizado em quatro seções principais. Na seção 2, retomamos a visão tradicional de ato de fala (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969) e apresentamos uma proposta cognitivista para o fenômeno, enfocando a contribuição de Marmaridou (2000). A seção 3 discute o conceito da mesclagem conceptual e o ato de “noticiar” o discurso reportado com base na mesclagem de pontos de vista. A seção 4 enfoca a metodologia do trabalho, explicitando o objeto de estudo, a origem dos dados, os objetivos e hipóteses da pesquisa. Por fim, a seção 5 propõe uma análise cognitivista para o ato de “noticiar”, argumentando que as manchetes que envolvem discurso reportado refletem um processo de mesclagem conceptual, envolvendo o ato de fala assertivo realizado pelo jornalista, de um lado, e o ato de fala realizado pelo falante reportado na notícia, de outro. Os resultados evidenciam que as diferentes estruturas formais que ocorrem nas manchetes refletem graus distintos de comprometimento do jornalista com a fala reportada.

1. Atos de fala: da visão tradicional à proposta cognitivista

No livro “How to do things with words”, publicado em 1962, o filósofo da linguagem, John Austin, lança as bases para o desenvolvimento da “Teoria dos Atos de Fala”, que parte do insight de que há um vínculo estreito entre fala e ação. Desse modo, ao dizer algo, o falante está necessariamente realizando um determinado tipo de ação. Em contextos institucionais, por exemplo, sentenças como “Declaro o réu culpado” ou “Eu vos declaro marido e mulher” constituem atos declarativos que não apenas constatam eventos no mundo, mas constituem ações que alteram aspectos do mundo de forma significativa. Assim, após o proferimento das sentenças mencionadas anteriormente, o réu será preso e o estado civil dos noivos será alterado, respectivamente.

Sistematizando a classificação inicialmente proposta por Austin (1962), Searle (1969, p.16) sugere que o ato de fala é a unidade mínima da comunicação, podendo ser subdividido em diferentes classes:

1. Assertivos: atos que comprometem o falante com a verdade da proposição expressa. Exemplos: concluir, reclamar etc.

2. Diretivos: atos que são tentativas do falante de levar o ouvinte a fazer algo. Exemplos: ordenar, pedir, mandar etc.

3. Compromissivos: atos que comprometem o falante com uma ação futura. Exemplos: promessa, ameaça etc.

4. Expressivos: atos que refletem um estado psicológico sobre um estado de coisas expresso no conteúdo proposicional, por exemplo, dar boas vindas, pedir desculpas etc.

5. Declarações: atos que mudam o status ou condição do objeto referido, a partir de um poder institucional. Exemplo: declarar guerra, proferir uma sentença judicial etc.

Em estudo recente sobre manchetes de discurso reportado em inglês, Al-Hindawi & Ali (2018) apontam que essas manchetes jornalísticas realizam predominantemente atos assertivos, embora possam realizar todos os atos de fala identificados por Searle (1969). Vejamos alguns exemplos apresentados pelos autores:

(3) U.N. turns to crowdfunding app to feed Syrian refugees. (assertivo)

“U.N. recorre a aplicativo de crowdfunding para alimentar refugiados sírios”

(4) Canada: We’ll resettle 25,000 Syrian refugees. (compromissivo)

“Canada: Nós reassentaremos 25.000 refugiados sírios”

(5) Obama announces extra 250 troops to Syria. (declarativo)

“Obama anuncia 250 tropas extras para a Síria”

(6) Cruz: U.S. should stay out of Syrian civil war. (diretivo)

Cruz: Os Estados Unidos deveriam ficar fora da guerra civil da Síria

O exemplo (3) ilustra o caso mais frequente em que a manchete realiza um ato de fala assertivo, afirmando a ocorrência de um determinado evento (no caso, o fato de que a Organização das Nações Unidas (UN) recorreu a uma determinada estratégia de arrecadação de fundos). Os exemplos (4) a (6) exibem atos de fala compromissivo, declarativo e diretivo, respectivamente.

Na esteira dessa proposta, argumentamos que embora os exemplos (4) a (6) apresentem os atos de fala apontados pelos autores, há, na verdade, uma compressão de dois atos de fala nesses exemplos, já que envolvem discurso reportado. A proposta do presente artigo, portanto, é demonstrar que todos os atos listados, mesmo os assertivos, estão encaixados no ato assertivo implícito “noticiamos que”, que é inerente ao ato de noticiar. Vejamos como os exemplos (3) a (6) poderiam ser parafraseados:

(3) (Noticiamos que) U.N. recorre a aplicativo de crowdfunding para alimentar refugiados sírios. (assertivo).

(4) (Noticiamos que) Canada (promete): Nós assentaremos 25000 refugiados sírios. (assertivo-compromissivo).

(5) (Noticiamos que) Obama anuncia 250 tropas extras para a Síria. (assertivo-declarativo).

(6) (Noticiamos que) Cruz (recomenda que): Os Estados Unidos devem ficar fora da guerra civil da Síria. (assertivo-diretivo).

Com exceção do exemplo (3), que realiza apenas o ato de fala assertivo de noticiar, nos demais exemplos, pode-se observar a realização concomitante do assertivo implícito “noticiamos que” e outros atos de fala realizados pelos falantes reportados. A estrutura linguística das manchetes (4) a (6), por sua vez, apresenta marcas da compressão dos atos de fala. Em (4) e (6), a utilização de “dois pontos” sugere discurso direto, e embora os verbos dicendi “prometer” e “recomendar”, respectivamente, não sejam explicitados, o significado pode ser recuperado em função dos frames ativados. Já o exemplo (5) se caracteriza como caso de discurso indireto, em que se reporta um ato declarativo (“anunciar”).

As propostas cognitivistas concebem os atos de fala em termos de um modelo cognitivo idealizado que é socioculturalmente determinado. Com base na noção de categorização radial (ROSCH, 1975, 1978; LAKOFF, 1987), a abordagem experiencialista de Sophia Marmaridou (2000) propõe que o modelo cognitivo idealizado dos atos de fala gera efeitos prototípicos dentro de uma escala de prototipicidade e convencionalidade, na qual o ato de fala é identificado como um fenômeno sociocultural em termos de convenção social e linguística. O enunciado “Eu te sentencio a dez anos de trabalho duro” permite ilustrar essa definição, uma vez que socialmente o ato de sentenciar é altamente convencionalizado. Nesse caso, fica claro que somente as intenções do falante como estados mentais internos não explicam o significado do ato de fala, pois estamos lidando com um procedimento institucional socioculturalmente determinado, cujo contexto pode ser prescrito. Essa é uma instância prototípica de um ato de fala, em que seu desempenho tem a força de causar a mudança de um estado de coisas do destinatário.

Já o enunciado “Você consegue alcançar o sal?” é considerado um ato de fala indireto, e por isso representa menos o modelo cognitivo idealizado. Embora a expressão de pedido não esteja explícita em sua estrutura proposicional, o significado de desejo é identificado por fatores de convenção sociocultural. O contexto social é a fonte de sua convencionalidade. Esses são atos de fala menos prototípicos, dependentes do aspecto interativo para especificar a sua força ilocucionária.

Assim, o ato de fala é organizado como uma categoria radial em termos dos atos mais prototípicos aos menos prototípicos, evidenciando aspectos linguísticos e não linguísticos que atuam nos enunciados.

Dentro dessa perspectiva, o presente artigo analisa manchetes on-line de jornais brasileiros em que se verifica a ocorrência de discurso reportado. Nesse caso, a radialidade envolve, principalmente, o grau com que o jornalista incorpora a fala de terceiros à manchete. Como ficará claro na análise, a fala reportada pode ser totalmente incorporada ao ponto de vista do jornalista, em discurso indireto, ou não – caso em que se verifica o discurso direto. Além disso, observam-se diferentes tipos de mesclagem conceptual entre essas duas possibilidades, relacionadas a diferentes estratégias de compressão que se refletem na estrutura linguística.

2. Mesclagem conceptual e ponto de vista

A Teoria dos Espaços Mentais (FAUCONNIER, 1994, 1997) destaca, em especial, a operação cognitiva de Mesclagem Conceptual (Blending), considerada a origem da nossa habilidade de criar novas ideias. Mais especificamente, a mesclagem conceptual consiste em uma operação cognitiva em que se estabelece a projeção parcial entre dois espaços iniciais análogos (Input 1 e Input 2). A correspondência entre esses espaços é licenciada por um Espaço Genérico, que fornece as informações abstratas comuns a todos os inputs. O último espaço, que representa a reunião dos elementos projetados nos espaços iniciais, é nomeado de mescla (Blend), constituindo-se em uma estrutura emergente própria que não está contida nos inputs.

A mesclagem conceptual pode estar associada às mais variadas estruturas linguísticas, desde construções nominais, como “maçã vermelha”, até estruturas discursivas mais amplas. No caso de “maçã vermelha”, sabemos que o significado não é composicional, ou seja, não resulta simplesmente da soma dos significados de cada uma das partes, mas sim de uma mesclagem da cor vermelha com uma parte específica da maçã, no caso a casca. Com relação a trechos maiores de discurso, pode haver a criação de situações imaginárias para fins argumentativos. Fauconnier & Turner (2002, p.59-62) ilustram essa possibilidade com o exemplo denominado “Debate com Kant”, em que um professor de filosofia apresenta as ideias de Kant, contrastando-as com suas próprias ideias. Assim, as ideias de professor e de Kant são apresentadas em uma sequência de afirmações e respostas, simulando um debate.

Há casos, ainda, em que a estrutura linguística sinaliza compressões de ponto de vista no espaço-mescla. Por exemplo, como apontam Soares & Ferrari (2020), o uso convencionalizado de verbos no presente do indicativo em manchetes jornalísticas (ex. “Time carioca vence o campeonato”), a raiz verbal indica uma ação passada, mas a marcação modo-temporal indica a ação presente de noticiar. Nesse caso, o uso do verbo no presente do indicativo nas manchetes ilustra a compressão de dois pontos de vista: o ponto de vista passado, relacionado ao evento de vencer, e o ponto de vista presente, relacionado ao ato de noticiar realizado pelo jornalista.

Com relação às manchetes de discurso reportado, o jornalista busca legitimar a notícia, recorrendo à fala de uma personalidade ou instituição relevante. Ao reportar a fala de outrem, o jornalista realiza o ato de noticiar a partir do seu ponto de vista no espaço Base (“aqui-e-agora” em que a notícia é escrita), ao mesmo tempo em que cria um outro espaço mental para a incorporação do ponto de vista do falante, que, por meio do ato de fala reportado, emprega uma determinada força ilocucionária àquilo que é dito.

A mesclagem dos dois pontos de vista nas manchetes – o do jornalista e o do falante reportado – reflete uma operação cognitiva de compressão de elementos da Base e do espaço de Discurso Reportado. Essa operação envolve também uma compressão de tempo, já que há uma distância temporal entre o ato de noticiar, concomitante à produção da manchete, e a fala reportada, realizada anteriormente. O processo de mesclagem comprime essas duas relações temporais em uma única temporalidade: o tempo presente da conceptualização do evento discursivo na manchete. Em termos formais, a mesclagem de pontos de vista pode ser sinalizada através de recursos específicos, como será apresentado e discutido nas seções a seguir.

3. Metodologia

O corpus da pesquisa foi composto de manchetes dos jornais on-line O Globo, Jornal do Brasil (JB), Estadão e Folha de São Paulo, selecionadas da primeira página das principais editorias. A seleção foi realizada durante os cinco dias úteis da semana, dividida em dois períodos de tempo, entre os meses de maio a junho de 2015, e de março a julho de 2020, e a coleta de dados reuniu 102 manchetes, em que se observaram diferentes estruturas de discurso reportado.

Com relação ao recorte do objeto de estudo, foram selecionadas manchetes em que a notícia reporta a fala de outrem. As estruturas formais observadas nos dados foram as seguintes:

(i) Discurso indireto: [SN Vdicendi que S]

Exemplo: Dória diz que investigações contra tucanos são técnicas e que PSDB não irá condená-las.

(ii) Discurso direto: [SN V dicendi (X): ‘S’]

Exemplo: Bruno Covas avisa: ‘Se seguir Bolsonaro, SP vai explodir igual em Milão’.

(iii) Mesclagem de discurso indireto e discurso direto: [SN Vdicendi que ‘S’]

Exemplo: Trump diz que quarentena “não é necessária” para a área de Nova York.

(iv) Discurso reportado sem verbo dicendi: [SN: ‘S’]

Exemplo: Míriam Leitão: MP da Eletrobrás pode ser inconstitucional por atropelar direitos indígenas.

A estrutura (i) corresponde ao discurso indireto canônico, em que a fala reportada ocorre subordinada à cláusula reportadora (‘Doria diz que ...’), enquanto (ii) constitui uma estrutura de discurso direto prototípica, em que a fala reportada é reproduzida literalmente e ocorre, após dois pontos, entre aspas (“Bruno Covas avisa: “...”).1 Já a estratégia (iii) envolve mesclagem entre discurso indireto e direto, na medida em que a cláusula principal sinaliza discurso indireto (‘Trump diz que ...’), mas o uso de aspas na fala reportada sinaliza discurso direto (“não é necessária”). A estratégia (iv) permite a inferência de discurso reportado, mas não se caracteriza claramente como uma estrutura concisa de discurso indireto, correspondente a “Míriam Leitão informa que MP da Eletrobrás pode ser inconstitucional por atropelar direitos indígenas”, ou discurso direto com ou sem uso de aspas na fala reportada (“Míriam Leitão informa: MP da Eletrobrás pode ser inconstitucional por atropelar direitos indígenas”).2

A partir da seleção de casos de discurso reportado descritos em (i) a (iv), os objetivos do trabalho são observar os processos cognitivos subjacentes a manchetes de discurso reportado e relacionar os recursos linguísticos utilizados para incorporar a fala de outrem ao grau de comprometimento do jornalista com o conteúdo apresentado. As hipóteses relacionadas a esses objetivos são:

(a) Manchetes de discurso reportado exibem mesclagem de atos de fala, comprimindo os pontos de vista do jornalista e do falante reportado.

(b) Diferentes tipos de esquema sintático sinalizam o grau de comprometimento do jornalista com os atos de fala reportados.

Na seção a seguir, apresentamos a análise dos dados, relacionando os atos de fala efetivamente mesclados nas manchetes à tipologia relacionada aos aspectos formais observados.

4. Análise

Como destacado anteriormente, as manchetes que apresentam discurso reportado resultam de um processo de mesclagem conceptual que consiste na compressão de dois pontos de vista, o do jornalista, que realiza o ato assertivo de noticiar e que se compromete com a verdade do conteúdo anunciado, e o do falante, que realiza o ato de fala reportado na manchete, que pode ser assertivo, compromissivo, diretivo, expressivo ou declarativo. Nesse sentido, as seguintes combinações são possíveis: assertivo-assertivo, assertivo-compromissivo, assertivo-diretivo, assertivo-expressivo e assertivo-declarativo.

Apresentamos, a seguir, a tabela com as mesclagens dos atos de fala de todas as categorias com totais e frequências de ocorrência:

Assertivo-  assertivo Assertivo-compromissivo Assertivo- expressivo Assertivo- diretivo Assertivo- declarativo
67/102 65,7% 8/102 7,8% 12/102 11,8% 12/102 11,8% 3/102 2,9%
Table 1. Tabela 1. Mesclagem dos Atos de Fala. Fonte: autoria própria.

O levantamento das ocorrências de cada categoria demonstrou que a mescla assertivo-assertivo predomina sobre os demais tipos de mesclagem, correspondendo a mais metade dos casos (65,7%). As mesclas assertivo-expressivo e assertivo-diretivo são as segundas mais frequentes, representando 11,8% dos casos cada, enquanto a mescla que envolve atos de fala compromissivos correspondeu a 7,8%. Por último, a mescla assertivo-declarativo foi a menos encontrada na seleção dos dados; apenas 2,9% das manchetes apresentam a declaração incorporada ao ato de noticiar.

Com relação à distribuição dos esquemas sintáticos das manchetes em relação aos atos de fala, foram observadas quatro tipos de estruturas. A Tabela, a seguir, apresenta a distribuição de manchetes em relação aos atos de fala realizados:

Esquema sintático Assertivo- assertivo Assertivo- compromissivo Assertivo- expressivo Assertivo- diretivo Assertivo- declarativo
DISCURSO INDIRETO
[SN Vdicendi que S] 18/18 100% 0/18 0% 0/18 0% 0/18 0% 0/18 0%
DISCURSO DIRETO
[SN Vdicendi (X): ‘S’] 27/45 60% 5/45 11,1% 5/45 11,1% 7/45 15,5% 1/45 2,3%
MESCLAGEM DE DISCURSO INDIRETO E DIRETO
[SN Vdicendi que ‘S’] 11/17 64,7% 2/17 11,8% 3/17 17,6% 0/17 0% 1/17 5,9%
DISCURSO REPORTADO SEM VERBO DICENDI
[SN: 'S'] 11/22 50% 1/22 4,5% 4/22 18,2% 5/22 22,7% 1/22 4,5%
Table 2. Tabela 2. Aspectos sintáticos das mesclagens dos Atos de Fala. Fonte: autoria própria.

Nas seções a seguir, os diferentes tipos de esquemas sintáticos apresentados na Tabela 2 serão discutidos com base no alinhamento do ponto de vista do jornalista com a fala reportada.

4.1. Grau máximo de comprometimento do jornalista

Como evidenciado na Tabela 2, identificamos que o esquema sintático de discurso indireto [SN Vdicendi que S] ocorre exclusivamente com a mescla assertivo-assertivo. Vejamos alguns exemplos desse tipo discursivo nas manchetes a seguir:

(7) Trump diz que EUA estocaram drogas sem eficácia comprovada para tratar a Covid-19 (Jornal do Brasil, 06/04/2020).

(8) Dilma diz que é impossível fazer ligação entre ela e corrupção da Petrobrás. (O Globo, 08/06/2015).

(9) Twitter diz que hackers conseguiram baixar dados de oito contas. (Estadão, 18/07/2020).

(10) Especialista diz que o Brasil levará décadas para reverter os danos do alinhamento automático com os EUA. (Jornal do Brasil, 09/03/2020).

Em todos os casos acima, as sentenças exibem o esquema sintático [SN Vdicendi que S], em que o jornalista noticia, na cláusula subordinada S, uma afirmação, previsão ou um posicionamento diante de uma situação real. No primeiro exemplo, o presidente dos Estados Unidos admite que o país tenha estocado medicamentos sem comprovação científica contra a Covid-19. Na segunda manchete, a presidenta Dilma Roussef posiciona-se diante de uma acusação de corrupção no caso da investigação de fraudes na Petrobrás. O terceiro exemplo revela a denúncia dos funcionários do Twitter a respeito da invasão por hackers nas contas da empresa. Na última manchete, um especialista antecipa os possíveis problemas que o Brasil enfrentará por tomar decisões seguindo a orientação da política americana.

Em todos os casos acima, há uma estratégia de representar afirmações feitas por especialistas, autoridades, representantes governamentais etc. As elocuções da categoria assertiva têm, como parte de seu propósito ilocucionário, fazer as palavras corresponderem ao mundo, ou seja, as palavras devem se ajustar ao mundo. Ao utilizar o discurso indireto para reportar essas afirmações, o jornalista as incorpora ao seu próprio ponto de vista, evidenciando um certo grau de alinhamento com a factualidade do que é reportado.

Em termos do grau de comprometimento com a veracidade das proposições expressas, o esquema sintático do Discurso Indireto é o que representa maior alinhamento do ponto de vista do jornalista ao ponto de vista do falante reportado. De modo específico, o jornalista apresenta o ato de fala reportado sob o seu ponto de vista e, por isso, há o encaixamento da fala reportada através da subordinação gramatical com alterações do tempo verbal original.

4.2. Grau intermediário de comprometimento do jornalista

A mesclagem de discurso indireto e discurso direto [SN Vdicendi que ‘S’] também é utilizada mais frequentemente para reportar atos assertivos, como podemos observar nos exemplos a seguir:

(11) Trump diz que Rússia enviou suprimentos de ‘alta qualidade’ aos EUA. (Jornal do Brasil, 03/04/2020).

(12) Presidente do BC diz que pandemia terá ‘impacto forte’ na economia brasileira. (O Globo, 05/04/2020).

(13) OMS comemora, mas diz que vacina de Oxford ainda tem ‘longo caminho a percorrer’. (Jornal do Brasil, 20/07/2020).

Nas manchetes acima, identificamos a estrutura de discurso indireto com o uso do verbo dicendi e da conjunção integrante que e o uso de aspas em determinados trechos das falas reportadas, um recurso típico do discurso direto. Podemos observar que os exemplos, embora tratem de assuntos que estão na agenda política atual, apresentam uma afirmação mais particular, individual sobre a situação descrita. O esquema sintático [SN Vdicendi que ‘S’] permite que o jornalista reafirme a importância dessa agenda, ao mesmo tempo em que apresenta a fala reportada de forma direta, personalizando os argumentos com o uso das aspas, e reproduzindo precisamente o discurso original. No exemplo (11), a fala do presidente americano sobre o envio de suprimentos médicos, pelo governo russo, aos Estados Unidos destaca a subjetividade do elogio a respeito dos equipamentos de “alta qualidade”, que podem salvar muitas vidas em meio ao surto da COVID-19 no país. Na manchete seguinte, a fala do presidente do Banco Central expõe a sua previsão a respeito do cenário econômico no contexto da crise sanitária causada pelo coronavírus. As aspas sinalizam um afastamento do jornalista em relação ao reconhecimento de que a pandemia da Covid-19 terá um "impacto forte" sobre a economia brasileira, afetando o seu crescimento.

Em (13), trata-se da comemoração da OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre os resultados positivos do estudo da vacina contra o coronavírus do laboratório Astrazeneca, desenvolvido pela Universidade de Oxford. O discurso direto reforça a ponderação da organização de que ainda há etapas a serem cumpridas até a imunização chegar ao público.

Em termos de mesclagem de pontos de vista, o ato de noticiar do jornalista enfoca as partes mais impactantes do discurso, e o ato de fala reportado expressa argumentos dos falantes que podem ser mais subjetivos, passíveis de discordância, parciais e sujeitos à interpretação. Essas características, próprias do discurso direto, que preserva a expressividade linguística do falante e a integralidade do discurso original, permitem que o jornalista estabeleça uma distância epistêmica em relação aos pontos de vista apresentados pelos falantes reportados.

O segundo uso mais frequente do esquema de mesclagem de discurso indireto e direto é com atos de fala expressivos, como ilustram os exemplos abaixo:

(14) Em dia de caos nos mercados, Guedes diz que equipe econômica está ‘absolutamente tranquila’. (O Globo, 09/03/2020).

(15) Em nota, Uerj afirma que ‘não há diálogo com a barbárie’. (O Globo, 29/05/2015).

Na mescla assertivo-expressivo, nota-se que o esquema sintático [SN Vdicendi que ‘S’] ocorre em manchetes em que o discurso indireto apresenta o falante e o contexto formal da situação comunicativa, e o discurso direto exterioriza o sentimento individualizado diante do fato. O ato de noticiar associado ao ato de fala expressivo enfatiza a notícia pelo prisma das emoções, avaliações subjetivas, juízo de valor ou desejos diante de situações em que o falante sente necessidade de ser mais expressivo. Em (14), o ministro da Economia recorre a uma linguagem mais informal para demonstrar a tranquilidade da sua equipe, mesmo com um desempenho negativo do mercado. Na manchete seguinte, a nota expõe o posicionamento da Uerj de uma forma personificada, deixando claro que a universidade não aceitará atos violentos caracterizados como barbárie. Ao mesclar discurso indireto e direto, o jornalista confirma a factualidade dos discursos reportados, mas não se compromete com aquilo que foi dito pelos falantes reportados.

A mesclagem de discurso indireto e direto na estrutura formal ainda pode ser encontrada na combinação assertivo-compromissivo, como podemos observar abaixo:

(16) EUA dizem que vão ‘erradicar’ corrupção do futebol. (Jornal do Brasil, 27/05/2015).

(17) Weintraub diz que pode pedir perdão por ‘imbecilidade’ se a China fornecer respiradores. (Folha de São Paulo, 06/04/2020).

Em termos de mesclagem de pontos de vista, o ato de noticiar incorpora o ato do falante que realiza uma promessa, que assume o compromisso de praticar uma ação futura em conformidade com o conteúdo proposicional da sentença. É importante ressaltar que a compreensão de que os atos de fala correspondem a uma promessa depende de um cenário comunicativo, em que o falante efetivamente se compromete a realizar o evento. No caso dos enunciados acima, a promessa realizada pelos Estados Unidos de combater a corrupção no meio do futebol, e o compromisso assumido por Weintraub de se retratar com a China recebem uma interpretação específica, de um comprometimento maior perante a sociedade. Em ambos os casos, o que se observa é que o jornalista se alinha apenas parcialmente ao que é prometido, deixando os termos da promessa sob a responsabilidade do falante reportado.

Na combinação assertivo-declarativo, a mesclagem de discurso indireto e direto apresentou uma ocorrência:

(18) Em audiência geral, Papa diz que ‘não há casamento express’. (Jornal do Brasil, 27/05/2015).

Nesse caso, a mesclagem permite manter o ponto de vista do jornalista, no que se refere à veracidade do comunicado do Papa em audiência geral, ao mesmo tempo em que destaca a força ilocucionária declarativa das palavras proferidas.

Quanto ao grau de comprometimento do jornalista, nesse esquema sintático da mesclagem dos dois tipos de discurso, ainda há o encaixamento da fala reportada e, nesse sentido, uma validação da factualidade do discurso reproduzido, mas há um afastamento em relação às palavras utilizadas pelo falante reportado, que são mantidas na forma original.

4.3. Grau mínimo de comprometimento do jornalista

Vejamos, a seguir, as manchetes que utilizam o discurso direto [SN Vdicendi (X): ‘S’]. Esse tipo de esquema sintático ocorre com todas as combinações de atos de fala, embora seja mais frequente para reportar atos de fala assertivos:

(19) ‘O futuro do Brasil está sendo colocado em risco’, diz vencedor de Nobel de economia. (Estadão, 05/04/2020).

(20) ‘População quer se automedicar sem necessidade após coronavírus’, diz farmacêutica. (Folha de São Paulo, 05/04/2020).

(21) Bolsonaro será responsável por ‘milhares de mortes’, diz entidade ao Tribunal. (Estadão, 03/04/2020).

A estrutura formal apresentada acima nos permite identificar algumas marcas do discurso direto como o uso das aspas nas afirmações, seguidas do verbo dicendi e da fonte reportada. As manchetes (19), (20) e (21) são introduzidas pela fala das autoridades, de modo que o ato de noticiar coloca em proeminência os argumentos dos falantes reportados. Os dois primeiros exemplos indicam que os atos de fala reportados são uma crítica: em (19) à condução do governo brasileiro diante das ações do presidente contra o isolamento social e a quarentena que podem prejudicar a economia, e em (20), ao ato de tomar medicamentos por conta própria sem uma orientação médica, alertando para os riscos que o seu uso indiscriminado pode trazer à saúde. O exemplo (21) é um ato de fala assertivo-preditivo, em que o discurso direto está relacionado a um evento futuro. Nesse caso, o jornalista parece se alinhar à previsão de que Bolsonaro será responsável pela morte de brasileiros na pandemia, mas não se compromete com o termo “milhares de mortes”.

Em seguida, as combinações mais frequentes com manchetes de discurso direto envolvem as mesclas assertivo-diretivo, assertivo-compromissivo e assertivo-expressivo. Nos exemplos a seguir, o jornalista noticia atos diretivos:

(22) População deve usar máscaras simples, feitas em casa com diversos materiais, dizem especialistas. (O Globo, 02/04/2020).

(23) ‘Precisamos de esforços do Brasil’, diz embaixador da UE sobre acordo com Mercosul. (Jornal do Brasil, 24/07/2020).

Como podemos observar nas manchetes da mescla assertivo-diretivo, o seu propósito ilocucionário consiste na tentativa do falante de levar o destinatário a fazer algo, a se comportar segundo as suas orientações. No exemplo (22), a manchete orienta a população sobre a importância do uso das máscaras para diminuir os riscos de contágio, um serviço de utilidade pública considerando o ato diretivo incorporado ao evento de uso real. Em (23), o pedido do embaixador da União Europeia, Ignacio Ybáñez, tem a intenção de exigir, do governo brasileiro, um esforço maior em relação à preservação da Amazônia, de modo a garantir a aprovação do acordo comercial com o Mercosul pelos parlamentos nacionais. Nesses exemplos, a tentativa de levar o interlocutor a fazer algo é reportada pelo jornalista através do discurso direto, destacando o ponto de vista do falante reportado.

Nas mesclas assertivo-compromissivo, há uma preferência pelo uso do discurso direto para evidenciar atos de fala que comprometem o falante com uma ação futura:

(24) Governo estuda pagar conta de luz de população de baixa renda, diz ministro de Minas e Energia. (Folha de São Paulo, 02/04/2020).

(25) Não há risco de faltar gás de cozinha, diz presidente da Petrobrás. (Folha de São Paulo, 02/04/2020).

Nas manchetes acima, o ato de noticiar reporta o compromisso assumido pelo falante, diante da quarentena provocada pela pandemia do coronavírus. No primeiro exemplo, o governo promete tomar medidas econômicas para isentar consumidores de baixa renda do pagamento da conta de luz durante o período mais crítico de isolamento. No exemplo seguinte, o presidente da Petrobrás assegura que não há risco de desabastecimento de gás de cozinha no país, apesar da estocagem do produto desde o início das medidas de distanciamento social para conter a pandemia.

As mesclas assertivo-expressivo também ocorrem com discurso direto. Tendo em vista que os atos de fala expressivos têm como propósito ilocucionário expressar um estado psicológico a respeito de um estado de coisas, o ato de noticiar, nesse caso, reporta os sentimentos relacionados a desculpas, agradecimentos, congratulações, posicionamentos pessoais, como mostram os exemplos a seguir:

(26) ‘Placar, até agora, está sete a zero para os vírus contra a cloroquina’, diz microbiologista no novo blog do GLOBO ‘A hora da ciência’. (O Globo, 06/04/2020).

(27) “É uma injeção de ânimo”, diz 1ª voluntária a receber vacina contra o coronavírus em SP. (Estadão, 20/07/2020).

Diante do contexto da pandemia de Covid-19, a seleção de dados foi constituída de muitas manchetes que expõem a relação das autoridades políticas, da comunidade científica e de membros da sociedade civil com a doença. No caso das manchetes acima, em (26), temos o posicionamento da microbiologista Natalia Pasternak sobre os resultados dos primeiros testes com a cloroquina e a falta de eficácia do medicamento no combate a Covid-19; em (27), o discurso direto expressa o estado psicológico da primeira voluntária para o teste da vacina contra o coronavírus. Nesses casos, a manchete de discurso direto permite que o ponto de vista dos falantes reportados seja colocado em destaque.

Os atos de fala diretivos são atos ilocucionários que visam a fazer com que o ouvinte realize uma ação. Nas manchetes de discurso direto em que ocorre a mescla assertivo-diretivo, nota-se a compressão do ato de noticiar com uma admoestação em relação a um estado de coisas. Vejamos alguns exemplos:

(28) Bruno Covas avisa: ‘Se seguir Bolsonaro, SP vai explodir igual em Milão’. (Jornal do Brasil, 02/04/2020).

(29) ‘Vamos pagar esse preço ali na frente’, diz Mandetta sobre aumento na circulação nas cidades. (O Globo, 09/04/2020).

Nos exemplos acima, identificamos que a estrutura formal apresenta marcas de incorporação da fala de outrem que servem para configurar o espaço reportado, como o uso do verbo dicendi, dos dois pontos e das aspas. Na mescla, temos os dois espaços iniciais: o ato assertivo do jornalista que afirma a veracidade da informação, e o ato de fala diretivo do falante reportado. Nos dois casos, embora a estrutura verbal não seja imperativa, como em atos diretivos prototípicos, por se tratarem de autoridades, suas admoestações têm o objetivo de levar os interlocutores a realizar uma ação; no caso, cumprir o isolamento social.

No primeiro exemplo, ao alertar os moradores de São Paulo sobre o perigo de seguir o comportamento do presidente no contexto da pandemia, o prefeito determina a necessidade de isolamento social. No segundo exemplo, a estrutura formal explicita a apreensão do ministro da Saúde a respeito da ausência do isolamento social. Nos dois casos, é possível inferir que o ato de noticiar está a serviço de alertar a população, incorporando os discursos originais das duas autoridades. O resultado é uma estrutura emergente própria, cuja mescla confere status de notícia ao ato de fala diretivo.

Por fim, o discurso direto pode ser usado para reportar atos declarativos, como ilustra o exemplo a seguir:

(30) Não haverá Réveillon na Avenida Paulista neste ano por causa da pandemia, diz Bruno Covas. (Jornal do Brasil, 20/07/2020).

No exemplo (30), o pronunciamento do prefeito de São Paulo sobre o cancelamento do réveillon por conta da pandemia modifica o calendário de festas na cidade. A mesclagem do ato de noticiar e do ato declarativo nos apresenta a mudança ocorrida a partir da declaração, a realidade já transformada pelo ato de fala reportado na manchete. Nesse caso, a manutenção do ponto de vista do prefeito, através do discurso direto, contribui para destacar a força ilocucionária do ato declarativo.

Com relação ao grau de comprometimento, no caso da incorporação do discurso direto, observamos que o ponto de vista do jornalista é mantido através do uso do verbo dicendi (dizer, afirmar etc.) no presente do indicativo, indicando que este é o tempo do espaço Base, ponto de partida para acessarmos o ato de fala reportado. Nessas manchetes, não há o encaixamento sintático e o discurso original do falante reportado é mantido integralmente.

A estrutura de discurso reportado sem verbo dicendi, que representa o grau mínimo em posição final na escala de comprometimento do jornalista, ocorre com marca de discurso direto – dois pontos, mas pode apresentar a fala reportada com ou sem aspas. A combinação assertivo-assertivo foi a mais frequente para esse esquema (50%), apresentando exemplos como (31) e (32):

(31) Átila Iamarino: ‘Em duas semanas, sistema de saúde chegará ao limite’. (O Globo, 05/04/2020).

(32) Ex-economista-chefe do FMI: ‘Queda da economia global será a maior já vista’. (O Globo, 05/04/2020).

No exemplo (31), Átila Iamarino aparece no início da manchete, seguido de dois pontos e do discurso direto. Embora um verbo dicendi (afirmar, dizer etc.) não ocorra na manchete, o que se depreende é algo como Átila Iamarino diz: ‘Em duas semanas, sistema de saúde chegará ao limite’. O exemplo (32), por sua vez, reporta uma previsão da Ex-economista-chefe do FMI. Os dados sugerem que o esquema sintático de discurso reportado sem verbo dicendi tem o propósito de colocar em proeminência o discurso de uma autoridade, sem que o jornalista se comprometa com o que é dito.

A mescla assertivo-diretivo foi a segunda mais frequente, correspondendo a 22,7% dos casos. Os exemplos a seguir ilustram o fenômeno:

(33) Dias Toffoli: ‘restrições à circulação de pessoas devem seguir critérios técnicos’. (Jornal do Brasil, 09/04/2020).

(34) Presidente do Itaú: Para sairmos da crise, devemos sobreviver a ela. (Estadão, 02/04/2020).

Nas manchetes (33) e (34), o ato diretivo incorporado ao ato de noticiar expressa conteúdo semântico referente a um protocolo a ser seguido para o enfretamento da crise provocada pela pandemia. A estrutura [SN: ‘S’] permite colocar o ato diretivo sob o ponto de vista das respectivas autoridades nas áreas jurídica e econômica, codificadas pelos SNs Dias Toffoli e Presidente do Itaú.

Com relação à mescla assertivo-expressivo, correspondente a 18,2% dos casos, a estrutura sem verbo dicendi está a serviço da expressão dos sentimentos do falante reportado:

(35) Mandetta: ‘Não existe superar sem dor. Não estamos aqui para tapar o sol com a peneira não’. (O Globo, 03/04/2020).

Em (35), os sentimentos expressos por uma autoridade da área da saúde, Mandetta, são destacados, priorizando-se o ponto de vista apresentado.

Por fim, as mesclas assertivo-compromissivo, como em (36), e assertivo-declarativo, ilustrada em (37), apresentam a mesma frequência (4,5%). Nos dois casos, a estrutura [SN: ‘S’] também coloca em proeminência a fala de uma autoridade:

(36) Bolsonaro: ‘não existe a possibilidade’ de aumentar o imposto Cide para manter preço de combustíveis. (O Globo, 09/03/2020).

(37) ONU: Israel e palestinos cometeram crimes de guerra. (O Globo, 24/05/2015).

Em (36), temos o compromisso assumido pelo presidente de que o governo não vai aumentar impostos sobre combustíveis em meio à queda global do preço do petróleo. O exemplo (37) reproduz um comunicado da ONU, que altera a realidade anterior, uma vez que Israel e palestinos passam a ser considerados criminosos de guerra a partir do discurso oficial.

Como vimos, esse é o último nível de afastamento, que representa o grau mínimo de comprometimento do jornalista. A estrutura dessas manchetes é a de um discurso direto mais compacto, apresentando a fonte reportada, seguida de dois pontos, e a fala original do falante, sem marcas explícitas do ponto de vista do jornalista.

4.4. Discussão

Observamos que o discurso indireto [SN Vdicendi que S] ocorre somente na mescla assertivo-assertivo, o que indica que esse estilo de transmitir o pensamento do falante, e não a reprodução exata da forma linguística produzida, só ocorre nos contextos em que o jornalista se alinha com a verdade da proposição. O ato de noticiar encaixa as palavras do falante, seguido do verbo dicendi e da oração introduzida por um elo subordinativo, através da conjunção integrante que.

O discurso direto [SN Vdicendi (X): ‘S’] ocorre, preferencialmente, na combinação assertivo-assertivo (60%) e nos atos diretivos (15,5%), mas também é utilizado em grande parte dos atos compromissivos e expressivos (11,1%). Essa escolha indica que o ato de noticiar, algumas vezes, busca reproduzir integralmente os discursos originais, embora ainda faça referência à Base, através do verbo dicendi, que remete inequivocamente ao jornalista.

O esquema sintático [SN: ‘S’] que parece funcionar como uma forma reduzida de discurso direto, já que não apresenta o verbo dicendi, predomina nos atos assertivos (50%) e, de forma significativa, nos atos diretivos (22,7%) e expressivos (18,2%). Este esquema destaca a fonte reportada, em geral personalidades ou instituições socialmente relevantes, seguida dos dois pontos, constituindo-se em uma forma mais compacta e direta de informar o leitor. Como vimos, muitas manchetes foram selecionadas no contexto da pandemia, portanto, nesse esquema sintático em que as fontes reportadas estão em proeminência, as informações relacionadas à ordem ou expressão de sentimentos assumem uma dimensão social relevante.

A mesclagem de discurso indireto e direto [SN Vdicendi que ‘S’] aparece com mais frequência nos atos assertivos (64,7%), expressivos (17,6%) e compromissivos (11,8%). Com atos declarativos e diretivos, essa combinação é despreferida, não apresentando, inclusive, nenhuma ocorrência com atos diretivos. Esse uso pode estar relacionado a um alinhamento do jornalista com a autoridade da fonte reportada, mas não com aquilo que foi dito. O jornalista prefere manter o discurso original do falante em avaliações subjetivas, promessas, ameaças e expressão de estados psicológicos em relação aos fatos noticiados.

Em resumo, quando se trata da mescla assertivo-assertivo todas as combinações sintáticas podem ocorrer nas manchetes de jornais on-line, e a escolha entre uma ou outra vai estar relacionada ao grau de comprometimento que o jornalista deseja manter com a verdade da proposição expressa. Nas combinações assertivo-compromissivo, assertivo-expressivo e assertivo-declarativo, ocorrem discurso direto e mesclagem de discurso indireto e direto, evidenciando que o jornalista pode escolher apresentar um grau mínimo de comprometimento com o ato de fala realizado pelo falante reportado (discurso direto), ou um grau intermediário de comprometimento, em que se alinha à factualidade do ato de fala reportado, mas não ao conteúdo do discurso reportado propriamente dito. Por fim, na combinação assertivo-diretivo, há o uso de discurso direto e discurso reportado sem verbo dicendi. Essa tendência parece evidenciar que o jornalista coloca em proeminência o ato diretivo realizado pelo falante reportado, mantendo um grau mínimo de comprometimento com o mesmo.

Com relação ao alinhamento do ponto de vista do jornalista aos atos de fala reportados, os dados nos permitiram estabelecer a seguinte escala:

DI > MDIDD > DD > DR (s/dicendi)

Assim, o Discurso Indireto (DI) é o que indica maior alinhamento do PV do jornalista ao PV do falante reportado, seguido da mesclagem de Discurso Indireto e Direto (MDIDD). O terceiro ponto da escala, indicando um menor alinhamento do jornalista é o uso do Discurso Direto (DD); nesse caso, o PV do jornalista é mantido através do uso do verbo dicendi (dizer, afirmar etc.) no presente do indicativo (PV na Base), mas não há o encaixamento sintático e a fala reportada é mantida integralmente. O quarto nível de afastamento é do Discurso Reportado sem verbo dicendi, seguido de dois pontos e (algumas vezes) aspas. Nesse caso, a única referência ao fato de que se trata de discurso reportado são justamente essas marcas formais, de modo que o ponto de vista do jornalista é minimamente marcado.

5. Considerações finais

Este artigo analisou manchetes on-line de jornais brasileiros, em que se verifica a ocorrência de discurso reportado, a fim de mapear os atos de fala realizados e as estratégias de compressão que se refletem na estrutura linguística.

A abordagem cognitivista para o ato de “noticiar”, a partir da articulação entre a Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969) e a Teoria da Mesclagem Conceptual (FAUCONNIER & TURNER, 2002), fundamentou a análise das manchetes que envolvem discurso reportado como o resultado da mesclagem dos dois pontos de vista – o do jornalista e o do falante reportado.

A partir dos recursos linguísticos observados na estrutura formal das manchetes de discurso reportado, investigamos os processos cognitivos subjacentes, a partir da relação entre os aspectos formais e o tipo de ato de fala reportado. Como vimos na análise, as diferentes estruturas sintáticas estão, na verdade, a serviço do grau de comprometimento que o jornalista quer manter com a fala reportada, correspondendo a uma escala de grau máximo de comprometimento (discurso indireto), grau mínimo (discurso direto e discurso reportado sem verbo dicendi) e grau intermediário (mesclagem de discurso indireto e direto).

A proposta aqui apresentada permitiu a descrição das manchetes de discurso reportado em termos das relações entre estrutura formal e motivações conceptuais e pragmáticas, enfocando um contexto que ainda não havia merecido análise detalhada. Nesse sentido, o presente trabalho contribui para ampliar os estudos que investigam pareamentos forma-significado na perspectiva da Linguística Cognitiva, relacionando discurso reportado, atos de fala e mesclagem de pontos de vista em textos jornalísticos.

Referências

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How to Cite

SOARES, C.; FERRARI, L. Journalist’s degrees of commitment in reported discourse headlines. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e509, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id509. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/509. Acesso em: 26 apr. 2024.

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