Share

Literature Review

Socio-cognitive aspects of racist representations in metaphorical language

Rafahel Jean Parintins Lima

Federal University of Rio Grande do Norte image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0003-0128-3068


Keywords

Cognition
Racism
Metaphor

Abstract

This paper aims at discussing the interactions between conceptual and historical-cultural aspects of racist representations about Black people. This exploration have been developed by means of socio-cognitive studies of language (SALOMÃO, 1999; KOCH; CUNHA-LIMA, 2004; MARCUSCHI, 2002; among others) and socio-historical studies of racism (MUNANGA, 1999; 2003; COSTA, 2006; REGINALDO, 2018; among others). In this paper, we present and discuss arguments, linguistic examples and results of recent cognitive-linguistic research by Vereza and Puente (2017) about the conceptualization of evil as darkness and by Mendes (2016) about the representation of Black people as monkeys in language use. The study by Vereza and Puente (2017) uses a methodology based on the quantification of racist (non) metaphoric expressions in biblic texts. The study by Mendes (2016) analyzes racist comments in Facebook social network and texts from 19th and 20th century in the Portuguese Corpus (Corpus do Português). Results from those studies indicate that the negative representation of darkness and black colour has a strong embodied and experiential basis, while the representation of Black people as monkeys has a more historical-cultural basis. Considering those research, we conclude that conceptual and historical-cultural aspects intertwine in different ways in racist representation of Black people.

Introdução

O presente artigo discute fenômenos linguísticos e sociocognitivos concernentes às relações entre linguagem e racismo, por meio da discussão dos resultados das pesquisas, no campo da Linguística Cognitiva, de Mendes (2016) e Vereza e Puente (2017) sobre metáforas racistas. Pressupomos aqui uma mútua constituição entre linguagem em uso, cognição e aspectos histórico-culturais (MORATO, 2001; MARCUSCHI, 2002; KOCH, 2004) e argumentamos que essa mútua constituição se dá com diferenças na relevância desses aspectos a depender do fenômeno em questão.

Em termos teóricos, a articulação teórica e empírica aqui explorada entre conhecimentos de base experiencial e histórico-cultural na linguagem em uso fundamenta-se em concepções dialéticas e construtivistas relativamente consistentes entre si de linguagem, cognição e racismo (contra pessoas negras). Essa articulação é de vocação interdisciplinar (cf. COSTA, 2006) e é realizada a partir da concepção de linguagem e de cognição defendida por teorizações sociocognitivas (SALOMÃO, 1999; KOCH; CUNHA-LIMA, 2004; KOCH, 2004; MARCUSCHI, 2007, 2008; MORATO, 2005; entre outros), e de abordagens sócio-histórico-culturais do racismo (ALIM et al., 2016; ALIM; REYES; KROSKRITY, 2020; MUNANGA, 1999, 2003; BETHENCOURT, 2018 [2016]; REGINALDO, 2018; entre outros).

Procuramos enfatizar aqui, por meio da apresentação de estudos empíricos no campo da relação entre linguagem e cognição, o empreendimento sociocognitivista como fundamental para a exploração teórica e empírica das interações entre linguagem e racismo (VAN DIJK, 2014). Esse empreendimento é entendido como uma explicitação teórico-analítica sistemática dos processos sociocognitivos organizadores das e organizados pelas práticas sociais, como as linguísticas (MORATO, 2019).

O racismo pode ser atualizado por usos linguísticos, entendidos aqui não apenas como itens lexicalizados ou construções linguísticas racistas cristalizadas, mas também práticas linguísticas que nem sempre se apresentam de forma explicitamente racistas (PARINTINS LIMA; MORATO, 2020). Entende-se que o racismo não apenas se mantém em itens ou construções que podem funcionar como “fósseis” linguísticos do passado no racismo do presente, como também pode ser atualizado ou contestado por práticas linguístico-textuais não necessariamente explícitas (PARINTINS LIMA; MORATO, 2020). Assim, a própria compreensão das construções linguísticas como racistas, não racistas, antirracistas ou irrelevantes para o contexto do racismo não deixam elas mesmas de ser ou de se amparar em construtos sociocognitivos e histórico-culturais.

Conforme a definição aqui adotada de racismo a ser explicitada na seção 2, as representações e as metáforas discutidas no presente artigo são consideradas como racistas por consistirem em práticas simbólicas de atualização sociocognitiva (ao serem mobilizadas por meio da linguagem ou de outras semioses) da violência física, psicológica ou sociopolítica contra as pessoas negras. Assim, como veremos, a representação do negro como macaco, por exemplo, é racista por estar ancorada no processo histórico de escravização de africanos e no racismo científico, atualizando sociocognitivamente a suposta condição de primitividade e/ou de não humanidade/animalização do negro (GOULD, 1991 [1981]; FANON, 2008 [1952]; MBEMBE, 2016 [2013]).

De modo a reconhecer o papel fundamental dos processos e modelos sociocognitivos na (re)construção de representações racistas na linguagem em uso, discutimos aqui os resultados dos trabalhos de Mendes (2016) e Vereza e Puente (2017) sobre diferentes representações racistas, com base no fenômeno da metáfora, segundo compreensões teóricas e empíricas da Linguística Cognitiva.

O trabalho de Vereza e Puente (2017) investiga a emergência da metáfora MAL É ESCURIDÃO1 em textos bíblicos, procurando mostrar que a conceptualização negativa da cor preta e da cor da pele negra nem sempre se ancora em ideologias racistas, porque pode estar amparada na corporificação de experiências sensório-motoras com a escuridão, a partir das quais esta é concebida como um domínio de incertezas e desconfortos (VEREZA; PUENTE, 2017; WINTER, 2014; FORCEVILLE; RENCKENS, 2013). O trabalho de Mendes (2016), por sua vez, investiga conceptualizações racistas e não racistas de MACACO em diferentes corpora, apontando, dentre outros resultados, que a metáfora racista PESSOA AFRODESCENDENTE É MACACO está ancorada mais no conhecimento sobre o processo sócio-histórico-cultural da escravização, do evolucionismo e de animalização dos africanos do que na experiência corpórea ou perceptual com as características físicas destes (os africanos) e/ou dos macacos.

Ao discutirmos os resultados desses estudos, corroboramos os seus achados para argumentar que processos conceptuais e histórico-culturais estão envolvidos em diferentes representações racistas das pessoas negras, com diferentes ênfases, a depender da construção representacional em questão. Os resultados de Mendes (2016) e Vereza e Puente (2017) levantam questões importantes para o campo sociocognitivo. Estudos como esses, no campo das relações entre linguagem, cognição e racismo, devem explicitar as concepções teóricas adotadas sobre esses domínios, como o caráter ao mesmo tempo biológico e histórico-cultural da cognição e sociocognitivo e histórico-cultural do racismo. Por isso, para discutir essas questões, procuramos explicitar, nas duas seções a seguir, as concepções de linguagem, cognição e racismo por nós adotadas.

1. Linguagem, cognição e história

Este trabalho se insere na abordagem sociocognitiva da linguagem (SALOMÃO, 1999; KOCH; CUNHA-LIMA, 2004; KOCH, 2004; MARCUSCHI, 2007, 2008). A afiliação deste estudo a essa abordagem se justifica, em termos breves, pela importância, seguindo Koch e Cunha-Lima (2004), do pressuposto dialético e sócio-histórico de que a linguagem é uma prática social que depende e interage com o corpo, o cérebro e outros processos sociocognitivos, como as práticas sócio-histórico-culturais (MARCUSCHI, 2007, 2008; KOCH; CUNHA-LIMA, 2004; KOCH, 2004; MORATO, 1996).

Assim, há o entendimento, na abordagem sociocognitivo-interacional, de que os fenômenos da linguagem só podem ser mais adequadamente explicados por meio de análises que não ignorem os processos sócio-históricos (do ponto de vista micro e macrossociais) e que não ignorem também os processos sensório-perceptuais, neurocognitivos e individuais/microssociais (SALOMÃO, 199; KOCH; CUNHA-LIMA, 2004). Esses pressupostos têm sido bastante explorados (com diferentes ênfases teóricas e empíricas) nessa área, entendendo, por exemplo, a linguagem como conjunto de práticas sociais não “descarnadas”. Trata-se de uma concepção dialética da experiência e das atividades linguísticas. Nessa concepção, a cognição não é apenas representação mental, mas também um conjunto de processos socioculturais (MARCUSCHI, 2002). Para Marcuschi (2008), por exemplo, “[...] a língua é vista como uma atividade, isto é, uma prática sociointerativa de base cognitiva e histórica. Podemos dizer, resumidamente, que a língua é um conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente situadas” (MARCUSCHI, 2008, p. 61).

Nessa perspectiva, a cognição pode ser definida da seguinte forma, segundo Morato (2017):

.

Em uma perspectiva sociogênica, a cognição é compreendida como um conjunto de processos por meio dos quais somos capazes de organizar o mundo em termos simbólicos e nele atuar de forma semioticamente variada, adquirindo, armazenando, construindo e modificando conhecimentos em meio a práticas sociais situadas e compartilhadas no decurso de nossas mais variadas inter-ações. Essa concepção ressalta a natureza sociocultural de nossa vida mental.

Para essa abordagem, explorada por autores como Vygotsky (1934/1987, 1930/1978) e Tomasello (2009, 2014), a cognição não deriva apenas de processos associados a um domínio neurobiológico altamente específico e pré-programado, fortemente estruturado em termos de regras, parâmetros e hierarquias internas associadas diretamente aos sistemas linguísticos e cognitivos, que apenas se deixariam ver nas situações de uso, não sendo nestas e por estas construída. Para essa abordagem, o que explicaria a cognição não é a existência de uma faculdade mental individual e inata alocada ou circunscrita a regiões muito precisas do nosso cérebro, mas um ‘oceano de motivações’ (Salomão, 2010, p. 201): um conjunto de processos e fatores biológicos, culturais cognitivos (incluindo-se aí a cognição linguística), sociais, corporais, psicoafetivos, dentre outros, com os quais compreendemos e atuamos no mundo. (MORATO, 2017, p. 400)

.

Koch (2004) e Koch e Cunha-Lima (2004) também chamam a atenção para esse “conjunto de processos e fatores biológicos, culturais, cognitivos”:

.

A concepção de mente desvinculada do corpo, característica do cognitivismo clássico, que predominou por muito tempo nas ciências cognitivas e, por decorrência, na lingüística, começa a cair como um todo quando várias áreas das ciências, como a neurobiologia, a antropologia e também a própria lingüística dedicam-se a investigar com mais vigor esta relação e constatam que muitos dos nossos processos cognitivos têm por base mesma a percepção e capacidade de atuação física no mundo. Uma visão que incorpore aspectos sociais, culturais e interacionais à compreensão do processamento cognitivo baseia-se no fato de que existem muitos processos cognitivos que acontecem na sociedade, e não exclusivamente nos indivíduos. Essa visão, efetivamente, tem-se mostrado necessária para explicar tanto fenômenos cognitivos quanto culturais. (KOCH, 2004, p. 30)

.

Por um lado, segundo Koch e Cunha-Lima (2004), os cognitivistas clássicos, como os gerativistas, tom(av)am como dadas a relações entre língua e sociedade ou submetiam esta àquela, pressupondo a língua como mero sistema de etiquetagem do mundo, incluindo aí o mundo social (KOCH; CUNHA-LIMA, 2004). De outro lado, abordagens estritamente externalistas toma(ra)m como dadas e, por vezes, rejeita(ra)m explicitamente o estudo dos aspectos corpóreos e neurocognitivos das relações entre linguagem e interação social (KOCH; CUNHA-LIMA, 2004).

No campo dos estudos estritamente cognitivistas da linguagem, a tendência inicial também foi encarar a cognição a partir do indivíduo (MORATO, 2015). No entanto, no sociocognitivismo, com diferentes ênfases teóricas e empíricas, a cognição passa a ser vista como não restrita ao indivíduo, mas de domínio coletivo (KOCH, 2004; KOCH; CUNHA-LIMA, 2004; HUTCHINS, 1995; SHARIFIAN, 2011). Porém, nem sempre o caráter sócio-histórico desse domínio coletivo é tomado como tendo papel fortemente explicativo de processos linguísticos ou sociocognitivos.

A Linguística Cognitiva tem em estudos como o de Geeraertz e Grondelaers (1995) exemplos da ênfase sócio-histórica como possibilidade explicativa de fenômenos de conceptualização e de mudança semântica. Geeraertz e Grodenlaers (1995) mostram que itens lexicais que, segundo alguns autores (KÖVECSES, 1986; 1989; LAKOFF, 1987; LAKOFF; KÖVECSES, 1987), projetariam a metáfora generalizada RAIVA É CALOR DE UM FLUIDO EM UM CONTÊINER ou RAIVA É FOGO a partir da corporificação da experiência com a raiva, os líquidos quentes e o fogo seriam, na verdade, uma herança linguístico-histórica da teoria antiga e medieval dos “humores” ou fluidos corporais, segundo a qual o sentimento de raiva estaria relacionado com uma alteração no humor correspondente ao sangue2.

Recentemente, no campo dos estudos sociocognitivos do discurso, van Dijk (2021), por sua vez, ao estudar o discurso antirracista, percorre dados de documentos históricos que possuem arrazoados que podem ser considerados raízes históricas do antirracismo no Brasil. Assim, podemos dizer que, no campo dos estudos sociocognitivos, geralmente se postula que aspectos corpóreos/biológicos e sócio-históricos estão altamente imbricados. No entanto, podemos perguntar: como interagem os processos linguístico-textuais, sociocognitivos e histórico-culturais na produção do sentido e na explicação de representações racistas atualizadas na linguagem em uso, objeto focalizado neste texto? Procuramos responder a essa pergunta baseados em uma discussão das pesquisas de Vereza e Puente (2017) e Mendes (2016).

2. Racismo, história e cognição

Em relação à definição de raça e de racismo aqui assumida, adotamos aquela geralmente desenvolvida por abordagens sócio-históricas construcionistas, hoje predominantes, segundo as quais raça e racismo são concebidos como categorias historicamente estáveis, mas flexíveis e situadas (BETHENCOURT, 2018 [2016]; WHITEHEAD, 2018). Guardadas as diferenças teóricas, raça é geralmente entendida como uma construção sócio-histórico-cultural (por exemplo, em Stepan (2005 [1991]); Munanga (1999; 2003) e Bonilla-Silva (2020 [2018]), o que significa dizer que ela não é um atributo biológico e que suas formas de emergência nas práticas sociais em que é apresentada como relevante estão inseridas em contextos textuais-discursivos e histórico-culturais particulares e inter-relacionados (BETHENCOURT, 2018 [2016]; PARRON, 2020).

Baseado em Stepan (2005 [1991]), Reginaldo (2018) e outros autores, no campo histórico, e em Mondada e Dubois (2003 [1995]), Koch (2004) e Morato e Bentes (2017), no campo textual-discursivo, Parintins Lima (2019), por exemplo, destaca o caráter contingente dos enquadres de raça, levantando alguns desses aspectos históricos, textuais-discursivos e sociocognitivos imbricados:

.

[...] A categoria “racismo”, por sua vez, surge bem depois de “raça”. Segundo Rodrigues (2012), foi usado pela primeira vez em francês (“racisme”) em 1902 na Revista Revue Blanche em um artigo assinado por A. Maybon. Carregaria, assim, já na sua origem, europeia, a indicação de um distanciamento ou desalinhamento (não afiliação) ao fenômeno sócio-histórico referido. A delimitação de um processo social negativamente valorado indica um “amadurecimento” e reflexividade parciais por parte dos agentes históricos desse processo, os brancos europeus ocidentais, até o início do século XX, acerca das relações simbólicas e políticas entre os povos europeus e não europeus. O ato de nomear o racismo de “racismo” (dentro do enquadre sócio-histórico e sociocognitivo em que essa nomeação foi realizada) permitiu também, a nosso ver, a relativa estabilidade sociocognitiva dessa categoria, não pela ocorrência da nomeação per se, mas, dentre outros processos, pelas práticas textuais/discursivas de nomeá-lo como tal e pela formação sócio-histórica de enquadres que permitiram essas práticas. A emergência do nome indica um processo linguístico e sócio-histórico de delimitação de uma realidade; por isso, trata-se de um processo de caráter construtivo/performativo no sentido sócio-histórico (STEPAN, 2005 [1991]) e no sentido textual/discursivo e sociocognitivo (MONDADA & DUBOIS, 2003 [1995]; KOCH, 2004; MORATO & BENTES, 2018). (PARINTINS LIMA, 2019, p. 59)

Ao compreender as desigualdades e hierarquias raciais como construções sócio-históricas, entendemos que elas se baseiam em categorias raciais, “distinções baseadas em complexas convenções e práticas discriminatórias” que “foram constantemente renegociadas e experimentadas de diversas formas nos distintos períodos históricos”, conformando um sistema de representações que “cria os objetos da diferença” (STEPAN, 2005 [1991], p. 19). (PARINTINS LIMA, 2019, p. 66)

.

A partir dessas e de outras leituras históricas, Parintins Lima (2019) e Parintins Lima e Morato (2020) entendem que o racismo pode assumir diferentes formas sócio-históricas por meio das quais determinados povos, considerados exógenos, ou grupos de um mesmo povo são dominados e atacados física, psicológica e simbolicamente por outro povo ou por um grupo racializado socialmente dominante. Procurando destrinchar a complexidade das relações entre racismo e violência verbal, Parintins Lima e Morato (2020) concebem o racismo como forma sócio-histórica de violência. Para Parintins Lima (2020), baseado em estudos históricos e sociológicos, como Munanga (1993, 2003), Costa (2006), Almeida (2018) e Bonilla-Silva (2020 [2018]), a violência é um sistema ou estrutura social historicamente emergente de dominação e de práticas de ataques físicos, psicológicos e simbólicos contra determinadas coletividades. No caso da violência racista, as coletividades-alvo são as pessoas negras.

No campo sociocognitivo da linguagem, o racismo pode ser tomado como um sistema de dominação baseado em um subsistema cognitivo e um subsistema social (VAN DIJK, 2015). Essa concepção é bastante importante por contemplar os aspectos sociocognitivos do racismo. Uma visão mais dinâmica e interativa desse sistema pode colaborar para compreender como o racismo é aprendido enquanto “sistema cognitivo”. Por um lado, podemos dizer que a linguagem em uso, em sua face histórica, pode participar de práticas sociopolíticas que podem colaborar com a dominação de um grupo racializado e atualizar o racismo enquanto ataque verbal, por meio, por exemplo, de construtos simbólicos explícita ou implicitamente racista. Por outro lado, a linguagem em uso também pode, ainda que de forma relativa, desestabilizar socialmente o racismo.

Uma perspectiva sócio-histórico-cultural também pode ajudar a compreender melhor a natureza desse sistema complexo e histórico que é o racismo. Um passo nessa direção tem sido dado pelos trabalhos recentes de van Dijk (2021), em que, dentre outras coisas, o autor chama a atenção para as contextualizações históricas das práticas discursivas antirracistas.

Em relação ao caráter histórico-cultural e sociocognitivo do racismo, se, segundo van Dijk (2015), a cognição medeia discurso e sociedade, os construtos, modelos e processos sociocognitivos precisam ser olhados de perto nas investigações linguísticas em que raça e racismo são contemplados. Ao mesmo tempo, os aspectos mais linguísticos, sociocognitivos e sócio-histórico-culturais formam um triângulo teórico cujos ângulos são mutuamente constitutivos: a linguagem é um processo sociocognitivo e, como a cognição, histórico-cultural; a cognição e a linguagem estão em constante interação e os outros processos interativos humanos, como os sócio-histórico-culturais, desenvolvem-se em uma interação dialética com a linguagem e com a cognição humana.

A partir desses arrazoados teóricos, podemos dizer que os estudos linguístico-cognitivos sobre temas sociais relevantes, como o racismo, não podem deixar de salientar os aspectos histórico-culturais da relação entre linguagem, cognição e, nesse caso, racismo, e que os estudos mais discursivos ou sócio-históricos do racismo também não podem desconsiderar os aspectos sociocognitivos dessa relação, observando empírica e sistematicamente a linguagem em uso, isto é, os processos, construções e ações linguísticas contextualizadas. Nesse sentido, não se trata apenas de relacionar os diferentes domínios da experiência humana, mas de buscar explicações mais adequadas para os fenômenos que dizem respeito à relação entre linguagem e racismo, como as representações racistas aqui discutidas. Essa relação só é possível entre concepções teóricas coerentes e consistentes da linguagem, da cognição e dos processos históricos, como o racismo.

Uma vez apresentadas as concepções de linguagem, de raça e de racismo aqui adotadas, discutimos a seguir os estudos empíricos de Mendes (2016) e Vereza e Puente (2017), que investigam o fenômeno metafórico em representações racistas de pessoas negras, a fim de apresentar achados que corroboram nossa argumentação sobre as formas de interação entre aspectos conceptuais e histórico-culturais de representações racistas.

3. Processos conceptuais e sócio-históricos em representações racistas na linguagem em uso

Nesta seção, discutimos a interação entre processos conceptuais e sócio-histórico-culturais para a explicação de fenômenos concernentes à relação entre linguagem e racismo, como as representações racistas de pessoas negras. Essa discussão é realizada por meio da apresentação das reflexões e resultados da pesquisa de Vereza e Puente (2017) e de Mendes (2016) sobre as representações de pessoas negras com base no fenômeno da metáfora, na área da Linguística Cognitiva.

Por meio da discussão a seguir dos trabalhos anteriores de Vereza e Puente (2017) e de Mendes (2016), podemos apontar uma interação entre processos considerados mais conceptuais e processos mais histórico-culturais na construção de representações metafóricas racistas (MENDES, 2016; VEREZA; PUENTE, 2017; PARINTINS LIMA, 2019). Por meio desses estudos, focalizamos aqui a representação racista do negro como macaco e a utilização racista ou não racista da representação da escuridão e da cor preta como coisas negativas.

O trabalho de Vereza e Puente (2017), baseado no trabalho de Puente (2013), investiga, na Bíblia, o principal livro sagrado judaico-cristão, as “expressões linguísticas metafóricas relacionadas a escuridão” (VEREZA; PUENTE, 2017, p. 12), as chamadas “metáforas negras” (PAIVA, 1998). As autoras analisam a conceptualização da escuridão por meio da metáfora MAL É ESCURIDÃO, já anteriormente tematizada por Forceville e Renckens (2013). A discussão levantada pelas autoras relativiza (sem rejeitar totalmente) o que elas chamam de “hipótese ideológica” da conceptualização da escuridão como algo negativo.

Segundo essa hipótese ideológica, as “metáforas negras evocariam e reproduziriam uma ideologia racista” contra as pessoas negras (VEREZA; PUENTE, 2017, p. 4), precisamente porque associariam a escuridão tanto à pele negra quanto a coisas negativas como a ignorância, a punição, a calamidade etc. No entanto, as autoras chamam a atenção para que nem todo sentido negativo atribuído ao mal pela sua associação à escuridão, em nossa cultura, é estritamente racista em decorrência de uma associação entre a escuridão e a cor preta avaliadas negativamente (PUENTE, 2013; MENDES, 2016). Segundo as autoras, as expressões linguísticas das metáforas negras “podem ter sido conceptualmente motivadas por experiências corporais concretas com a escuridão, e não somente por fatores socioculturais, como racismo” (VEREZA; PUENTE, 2017, p. 4). Assim, as metáforas negras, como as metáforas orientacionais (LAKOFF; JOHNSON, 1980), teriam uma base físico-experiencial (FORCEVILLE; RENCKENS, 2013; WINTER, 2014), além da sua base ideológica ou cultural3 (MENDES, 2016).

O excerto bíblico a seguir é um exemplo apresentado por Vereza e Puente (2017) da projeção não racista da metáfora MAL É ESCURIDÃO:

Exemplo 1

Espiritualmente, as trevas são provocadas pelo pecado. A escuridão gratifica a natureza pecaminosa, acalma a pessoa para dormir espiritualmente e fornece uma cobertura para o mal. Mas sua escuridão é tão espessa que o homem não consegue encontrar o caminho para contorná-la, através dela ou fora dela. A solução para esse dilema virá ao “amanhecer”, “pela manhã”, “quando o dia amanhecer”. Assim como nada pode impedir a chegada do amanhecer, nada pode impedir a vinda de Cristo!

Fonte: Vereza e Puente (2017, p. 8-9)4

.

Nesse excerto, atribuído, em Vereza e Puente (2017), a uma passagem bíblica da Carta de Paulo aos Romanos (capítulo 13, versículos 11 a 13)5, podemos notar que os aspectos negativos da escuridão não estão sendo atribuídos a referentes humanos negros, uma vez que as expressões nominais “as trevas” e “escuridão” são associadas outrossim ao “pecado”, à “natureza pecaminosa” e a “o mal”.

Vereza e Puente (2017) afirmam que o processo de associação da escuridão a coisas negativas pode ser explicado pela teoria da “mente corpórea” sobre a corporificação das experiências humanas sensório-motoras (LAKOFF; JOHNSON, 1999; JOHNSON, 1990). Essa conceptualização negativa da escuridão seria decorrente das experiências sensório-perceptuais e motoras com a noite e a escuridão – pelo menos para as pessoas não cegas. Essas experiências teriam efeitos subjetivos negativos como: a falta de familiaridade e de direção, o desconforto, o medo, a insegurança, a fragilidade, a surpresa, a vulnerabilidade etc. (VEREZA; PUENTE, 2017; DELUMEAU, 2009; MESTRE; PINOTTI, 2004; GUIMARÃES, 2000). Essa “negatividade mapearia, por sua vez, conceitos mais abstratos, como o mal e o pecado” (VEREZA; PUENTE, 2017, p. 8).

Podemos acrescentar a esse arrazoado das autoras que a associação entre a escuridão/cor preta e coisas negativas como racista corre o risco de banalizar o racismo, uma vez que, com base na discussão das autoras, ele não comparece na evocação dessa analogia. Mesmo assim, essa associação, ou parte dela, pode ser usada de forma racista, como mostraremos ao apresentar o estudo de Mendes (2016). Nesse sentido, a hipótese ideológica, conforme as próprias autoras defendem, não pode ser totalmente rejeitada.

Vale dizer também que, na verdade, a relevância da (experiência com a) ausência ou presença de luz para a conceptualização decorre da própria dependência que o ser humano possui da luz para enxergar (MENDES, 2016), uma vez que a ideia, presente na antiguidade clássica, de que a visão é proveniente de raios projetados pelos olhos é evidentemente ultrapassada. A narrativa bíblica de que a luz foi uma das primeiras coisas criadas pelo deus judaico-cristão, quando este criou o mundo (livro bíblico de Gênesis, capítulo 1, versículos de 1 a 5), pode ser ela própria um dos vários exemplos não apenas da relevância simbólica da luz para a tradição judaico-cristão como também (sem precisarmos considerar o contexto religioso) seu caráter de requisito para a existência dos seres humanos e de outros seres vivos como espécie – daí sua positividade.

Assim, a conceptualização da escuridão como algo negativo não é racista em si mesma, mas pode ser reconhecida e utilizada, pelos usuários da linguagem, de forma racista, quando o escopo desse mapeamento metafórico são as pessoas negras:

.

[...] incorporando valores positivos ou negativos a cores, podemos transferir esses valores a situações particulares, informação, fatos, pessoas ou entidades (partidos políticos, negócios, esferas sociais etc.) identificadas com essas cores (GUIMARÃES, 2000 apud VEREZA; PUENTE, 2017, p. 6).

.

Assim, a partir do trabalho de Vereza e Puente (2017), podemos também reconhecer os processos cognitivo-culturais envolvidos na linguagem e na conceptualização da escuridão em nossa cultura. Podemos entender que há diferentes formas de dar relevância ora a processos mais sociocognitivos (sensório-perceptuais, conceptuais ou socioculturais) ora a processos mais “estritamente” histórico-culturais na construção das representações racistas das pessoas negras.

Vale apontar que a conceptualização negativa da cor preta, além de ser tendencial e não categórica (porque há, naturalmente, sentidos positivos dessa cor, como é o caso da expressão Black Friday, que designa um período de promoções nos preços de produtos mercadológicos), pode ter origens em outras experiências corpóreas do tipo causa-efeito: quer dizer, não estritamente sensório-motoras. O líquido que escoa do esgoto, por exemplo, tende a ter uma cor escura, o que pode indiciar a presença de vírus, fungos ou bactérias que podem levar ao adoecimento, caso haja o contato direto com o corpo. Resta-nos saber a relevância de cada um desses tipos de experiências corpóreo-visuais e conhecimentos para a conceptualização da cor preta.

No caso da conceptualização da cor da pele negra, ela deve ser histórico-culturalmente contextualizada pelo processo histórico do tráfico de africanos. Afinal, foram os colonizadores europeus que, munidos de interesses de base socioeconômica nada humanizantes (PARRON, 2020), não apenas deram relevância sociocognitiva à cor da pele deles mesmos e dos africanos como também construíram a analogia entre a cor preta/negra e cor da pele dos africanos e utilizaram as representações negativas daquela contra estes, reduzindo-os por meio de construtos simbólicos desumanizantes/animalizantes (FANON, 2008 [1952]; MBEMBE, 2016 [2013]).

A denominação “negro” e outras relacionadas foram “positivadas” pelos movimentos negros apenas na modernidade e, mesmo assim, seu uso não racista, ainda que recorrente, é, como todo uso, de caráter contextualizado, situado, sendo “autorizado” ou não por outros atores sociais antirracistas. São os elementos dessa contextualização histórica que amparam, de forma não necessariamente consciente, a “hipótese ideológica” dos usos negativos da escuridão. Além disso, embora nem todo uso simbólico negativo da escuridão seja racista, ele tende a sê-lo quando usado contra pessoas negras. Segundo Mendes (2016):

.

O estudo das metáforas negras no corpus bíblico desenvolvido por Puente (ibid. [2013]) mostra a dimensão corporificada da metáfora conceptual (ou mesmo metáfora primária) MAL É ESCURIDÃO. As expressões sombra e apagão, portanto, podem evocar, da mesma forma, a experiência sensório motora com a noite e a escuridão. No entanto, fatores sócio-históricos, como a escravidão, agregam um valor ideológico à negatividade corpórea das metáforas negras, tornando-as veículos altamente reprodutores de discriminação. (MENDES, 2016, p. 93)

.

Também podemos discutir as relações entre corporificação e processos histórico-culturais em representações racistas por meio do trabalho de Mendes (2016), por sua vez. A questão de interesse de Mendes (2016) para o presente estudo é a sua discussão sobre aspectos histórico-culturais da representação do negro como macaco presente em determinadas expressões linguísticas que instauram a metáfora PESSOA AFRODESCENDENTE É MACACO. Em termos empíricos, a autora analisa sentidos metafóricos no uso da expressão “macaco” no website Corpus do Português6 de textos do século XIV ao XX e sentidos metafóricos racistas em comentários de postagens da rede social Facebook entre 2015 e 2016 cujas incidências foram divulgadas na mídia.

Segundo a autora, embora as motivações histórico-culturais dessa metáfora não sejam autoevidentes nos seus usos, ela possui um forte amparo nas teorias evolucionistas do século XIX e no contexto histórico da escravização de africanos no século XVI. Segundo a autora, a representação do negro como macaco tinha historicamente a função de aceitação da escravização de africanos, afirmando a condição de primitividade e/ou de não humanidade do negro, tendo surgido a partir de um conjunto de teorias religiosas e científicas, como a teoria evolucionista lamarckiana (MENDES, 2016).

Dentre outros exemplos da representação racista do negro como macaco, a autora apresenta os comentários de internautas no Facebook em uma foto que a atriz brasileira negra Sheron Menezzes tirou com o namorado, branco, na Alemanha, na rede social Facebook, em 4 de dezembro de 2015:

Figure 1. Figura 1. Comentários em uma foto da atriz negra Sheron Menezzes na rede social Facebook. Fonte: Mendes (2016, p. 81)7

Seguindo a análise de Mendes (2016), podemos notar na figura acima que o enquadramento da atriz como pessoa negra, por meio de expressões referenciais de sentido violentamente racista (“Negona”, “Nega do cabelo ruim”, “negona pobre”, “Sheron menezes preta”), conjuga-se a elementos referenciais e predicações verbais e não verbais de sentido desumanizante, como a imagem da atriz com o rosto substituído pela face de um macaco e o uso das expressões “macaco”, “é igual a humano”, “sabem até tirar selfie”, “munição de churrasqueira”, “sombra 3D”. Esses comentários não apenas ilustram a representação do negro como macaco, como também o uso de outras associações racistas, como a do negro como pobre, da negritude da pele negra como escuridão ou ausência de luz (“sombra 3D”) e a representação dessas predicações como negativas: pobreza e escuridão, por exemplo (MENDES, 2016).

No caso da representação da escuridão como algo negativo, vale dizer que esses comentários ilustram a representação negativa da pessoa negra pelas seguintes ações sociocognitivas:

a) a relevância dada à cor da pele, particularmente a negra, com propósito racista (por exemplo, “negona”);

b) e a associação entre a cor da pele e a escuridão ou ausência de luz, também com propósito racista (por exemplo, “sombra 3D”).

É nesse sentido que podemos notar também o uso da conceptualização da escuridão como algo negativo, presente na nossa cultura e em conhecimentos e experiências sensório-perceptuais e culturais sobre a escuridão, como forma de estigmatizar uma pessoa de cor de pele negra.

Notamos também, como nos comentários sobre o exemplo 1 sobre as relações entre representação racista das pessoas negras e conceptualização da escuridão, a possibilidade de usos linguísticos racistas serem explicados por meio da explicitação de processos sociocognitivos e sócio-histórico-culturais.

A figura 1 ilustra a seguinte construção sociocognitiva de que a representação do negro como macaco seria fruto, segundo os usuários racistas da linguagem aí pressupostos: a construção da similaridade visual entre as pessoas negras e os macacos, como por meio da apresentação da referida imagem, acompanhada do comentário “Qualquer semelhança é mera coincidência”. O exemplo de racismo explícito acima, proveniente de comentários em uma rede social da Internet dirigidos a uma atriz negra, pauta-se na construção racista de que não apenas há similaridade visual entre pessoas negras e macacos, como também essa similaridade seria facial.

A similaridade visual na representação do negro como macaco, segundo o que salientam Mendes (2016) e Parintins Lima (2019), geralmente é tomada, pelos usuários da linguagem, como pautada em um suposto compartilhamento da coloração cutânea de pessoas negras e macacos. Essa similaridade visual, no entanto, ainda segundo esses autores, é uma construção sócio-histórico-cultural e sociocognitiva racista, quer dizer, não é um “dado da realidade”; é permeada por um imaginário racista. Embora geralmente apontada como pautada em similaridade visual, a representação do negro como macaco, de acordo com Mendes (2016) e Parintins Lima (2019), fundamentados em Bradley (2013) e Gould (1995 [1981]), baseia-se em processos sócio-históricos (a escravização, o tráfico, a decorrente animalização simbólica dos povos africanos e determinado evolucionismo) que seriam muito mais relevantes para a explicação do porquê de essa representação ser racista do que o propalado apontamento racista da similaridade entre negros e macacos. Em outras palavras, a hipótese da corporificação não consegue explicar sozinha esse caso da representação do negro como macaco.

Na representação do negro como macaco, considerando os estudos de Mendes (2016) e Parintins Lima (2019), diferentemente das construções negativas em torno da escuridão, cujo funcionamento de processos sociocognitivos e socioculturais foi apontado anteriormente, os processos sócio-históricos agiriam de forma mais relevante (MENDES, 2016) e não a similaridade (KÖVECSES, 2010), de base mais corpórea. Assim, o trabalho de Mendes (2016) também traz contribuições importantes para explicar (sem justificar, é claro) os usos linguísticos racistas a partir de processos mais sociocognitivos ou mais sócio-históricos.

Podemos notar, a partir dos estudos acima discutidos, a já relativamente conhecida dependência ou interação mútua entre linguagem em uso e os aspectos sociocognitivos e sócio-históricos costurada pelo compartilhamento ou não de conhecimentos contextuais e sócio-históricos sobre racismo (MORATO; BENTES, 2017), sobre representações racistas, sobre evolucionismo e sobre outros construtos simbólicos da nossa e de outras culturas etc.

TRABALHO Vereza; Puente (2017) Mendes (2016)
REPRESENTAÇÃO: Escuridão e cor preta como coisas negativas Negro como macaco
MODELO SOCIOCOGNITIVO Metáfora
PROCESSOS MAIS CONCERNENTES À LINGUAGEM EM USO: Emergência linguística da representação da escuridão e da cor preta como coisas negativas Emergência linguística da representação do negro como macaco
PROCESSOS SOCIOCOGNITIVOS E HISTÓRICO-CULTURAIS: Corporificação da noite e da escuridão como experiências negativas Conhecimento sobre o evolucionismo e sobre a escravização de africanos
Table 1. Quadro 1. Sinopse dos estudos discutidos. Fonte: elaborado pelo autor.

Nos estudos aqui discutidos, podemos observar uma interação entre processos mais conceptuais e processos mais histórico-culturais. Embora se costume entender que esses processos sejam mutuamente constitutivos, observamos que há ênfases diferentes entre eles, a depender do fenômeno linguístico-sociocognitivo discutido. Procuramos esquematizar essas diferentes ênfases no quadro 1. No caso dos estudos discutidos, observamos que, segundo Vereza e Puente (2017), a representação da escuridão e da cor preta como coisas negativas enfatiza mais os processos corpóreos/experienciais (como a corporificação da noite e da escuridão como experiências desconfortáveis e potencialmente perigosas). Segundo o estudo de Mendes (2016), por sua vez, no caso da representação do negro como macaco, são os processos eminentemente histórico-culturais que a engendraram e que a mantêm na atualidade.

4. Considerações finais

A hipótese de que as relações entre linguagem em uso, processos, práticas e ações histórico-culturais e ações, construções ou modelos sociocognitivos se constituem mutuamente (cf. VAN DIJK, 2015) dificilmente pode ser totalmente ignorada nos empreendimentos de investigação empírica sobre as representações racistas na linguagem em uso. Por seu caráter mediado, situado e intersubjetivo, a noção de metáfora, por exemplo, consiste em um construto cognitivo cuja investigação pode lançar luz sobre o estudo dessas representações, como nos trabalhos linguístico-cognitivos aqui discutidos.

Neste texto, procuramos discutir as interações entre aspectos experienciais/corpóreos/conceptuais e histórico-culturais em representações racistas sobre pessoas negras. Assim, apresentamos e discutimos as contribuições dos estudos linguístico-cognitivos de Mendes (2016) e de Vereza e Puente (2017). A complexidade sociocognitiva (linguística, corpórea, conceptual, histórico-cultural) das representações racistas pode ser uma das fontes das dificuldades enfrentadas em percebê-las como racistas ou como não necessariamente racistas. Esperamos que o conhecimento sobre elas possa ajudar a enfrentá-las (MENDES, 2016; VEREZA; PUENTE, 2017; PARINTINS LIMA; MORATO, 2020).

A partir desses estudos, podemos entender que abordagens linguísticas que concebem a natureza dialética da linguagem em relação a processos sociocognitivos e histórico-culturais, como os concernentes ao racismo, podem colaborar para a compreensão dialética desse objeto de estudo. Assim, os trabalhos apresentados, no campo sociocognitivo, salientam o caráter experiencial, conceptual e sócio-histórico-cultural motivado e contextualizado do sentido que, quando perspectivado pelo imaginário racista, como o relacionado à cor da pele, pode ser tomado como um campo de atuação linguística do racismo. Nesse sentido, linguagem, cognição, história e cultura interagem de forma particular na produção e na compreensão de usos linguísticos em que o racismo é atualizado.

A partir da discussão dos trabalhos de Mendes (2016) e Vereza e Puente (2017), vale destacar a relevância dos processos sócio-histórico-culturais para os estudos linguísticos (socio)cognitivos. De forma semelhante, destacamos também a relevância dos processos sociocognitivos para os estudos de linguagem e racismo, reforçando, assim, a problemática apresentada por Koch e Cunha-Lima (2004) e Marcuschi (2007), dentre outros, sobre o sociocognitivismo: o de que não podemos deixar de considerar nem a natureza sociocognitiva da linguagem e das interações sociais nem a natureza histórico-cultural da cognição.

How to Cite

LIMA, R. J. P. Socio-cognitive aspects of racist representations in metaphorical language. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e515, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id515. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/515. Acesso em: 25 apr. 2024.

Statistics

Copyright

© All Rights Reserved to the Authors

Cadernos de Linguística supports the Opens Science movement

Collaborate with the journal.

Submit your paper