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Research Report

The dispute between health and economy in the pandemic: an analysis of the discursive functioning of the polemic

Raquel Duarte Hadler

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https://orcid.org/0000-0001-9389-7731


Keywords

Polemic discourses
Health
Economy
Pandemic
Media

Abstract

This article analyzes a polemic that follows the development of the Coronavirus pandemic in the different Brazilian media: the struggle between saving lives and saving the economy. To develop this analysis, some textual excerpts from the discourses involving the polemic in question are presented, which circulated in the digital media, more specifically on nationally relevant vehicle websites. Based on the French Discourse Analysis, an attempt was made to present perspectives that contribute to the identification of the discursive mechanisms that characterize the polemic. In the process of analyzing such discourses, aspects that characterize the polemic were discussed, based on authors who have already studied this phenomenon, as well as some concepts that help to understand its discursive functioning were also mobilized. Thus, it was possible to identify discursive memories, disputed positions and production conditions, aspects intertwined with the present historical and sociocultural context and whiches help to deconstruct a supposed language transparency.

Introdução

O ano de 2020 marcou o primeiro surto epidemiológico que abalou o planeta no século XXI. O impacto da Covid-19 não se restringiu à área da saúde, mas também afetou a dinâmica das relações econômicas, políticas e socioculturais ao redor do globo, tanto na esfera pública quanto na privada.

Muitas indagações começaram a surgir na medida em que o mundo assistia ao avanço da doença, como: qual o seu grau de letalidade? Como conter o seu avanço? É possível preparar os sistemas de saúde? Qual a melhor forma de amparar os mais necessitados? Como adaptar a vida ao “novo normal”? E a vacina, quando chega?

Com respostas muito incertas a tais questões, observamos um aumento da quantidade e da frequência que informações a respeito da pandemia passaram a circular nos meios de comunicação. Diversos veículos se reestruturaram para conseguir atender a alta demanda por informação, com o intuito de reportar dados sobre o avanço da Covid-19 e para noticiar suas consequências.

Começou a fazer parte dos noticiários diários a divulgação dos números de contágio e óbitos, a preocupação com os índices econômicos, assim como relatos sobre a dor da perda, o medo em relação ao que poderia vir a acontecer e a ânsia por encontrar formas de proteção. Esses discursos passaram a ser predominantes nos meios de comunicação brasileiros a partir do mês de março de 2020, mês em que a doença começou a se alastrar pelo país.

Neste cenário, observamos o surgimento de inúmeras polêmicas, reveladoras de conflitos. Na conjuntura brasileira, uma recorrente polêmica foi se a prioridade deveria ser a saúde e, consequentemente, a vida das pessoas, ou se deveria ser a economia, haja visto as consequências que uma piora econômica pode gerar.

Deste modo, podemos dizer que se instaurou uma polêmica entre salvar vidas e salvar a economia, tema deste trabalho. Para desenvolver essa análise, retomo alguns discursos que circularam na mídia digital, mais especificamente em sites de veículos com relevância nacional. Justifico a escolha deste recorte pelo grande potencial de circulação desses discursos, visto que é muito comum que o mesmo texto do site seja publicado na versão impressa do veículo, como também seja usado como fonte de conteúdo para blogs, veículos regionais, etc.

Ao apresentar exemplos de discursos que retratam a polêmica em questão, discorro sobre sua conceituação a partir de autores que já estudaram esse fenômeno. Neste processo, também mobilizo alguns conceitos que auxiliam na compreensão do seu funcionamento discursivo.

Sem a intenção de defender uma das posições da polêmica, o objetivo deste artigo foi analisar um fenômeno discursivo que ficou em evidência com o avanço da pandemia no ano de 2020 e 2021. A partir da Análise do Discurso de linha francesa, foi possível identificar aspectos que extrapolam o período destacado, como memórias, posições e condições de produção entrelaçadas com o contexto histórico e sociocultural em que estamos inseridos. Assim, busquei apresentar perspectivas que, ao contribuírem para a identificação dos mecanismos discursivos que caracterizam a polêmica, ajudem a desconstruir uma suposta transparência da linguagem.

1. O conceito de polêmica e o seu funcionamento discursivo

Como já dito na introdução, a eclosão de uma polêmica está ancorada em conflitos existentes em determinado contexto. Tais conflitos não surgem “de repente”, são frutos dos percursos de outros discursos - alguns recordados, outros esquecidos ou até não ditos - que reverberam nos discursos que circulam em uma dada conjuntura histórica.

Esses percursos discursivos estão ancorados em diferentes tipos de acontecimentos, como os visibilizados por uma determinada ideologia, os difusos e também os imperceptíveis, camuflados pela suposta transparência da linguagem. Para Foucault (1972), são esses diversos acontecimentos, com temporalidades próprias, descontínuas, mas inter-relacionadas, que constituem a história. Nesta perspectiva, a Pandemia da Covid-19 pode ser considerada como um acontecimento que se desdobra em diversas frentes, sendo uma delas a polêmica entre salvar vidas ou a economia.

Assim, para desenvolver uma análise discursiva deste acontecimento, não podemos deixar de mencionar a interdiscursividade como constitutiva das relações discursivas. Isso implica considerar que um novo discurso sempre surge a partir de relações entre discursos e que é na relação com o outro que a identidade discursiva se constrói (MAINGUENAU, 1997).

A percepção de uma identidade discursiva geralmente ocorre pelo modo como discursos circulam e se articulam entre si em determinado contexto. Tal identidade indica a especificidade da Formação Discursiva (FD) à qual pertence, conceito que pode ser compreendido como aquilo que determina “o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura dada” (HAROCHE, C; PÊCHEUX, M; HENRY, P., 2007, p. 06).

Desta forma, a especificidade de uma FD em uma dada conjuntura histórica é indissociável de "certos trajetos interdiscursivos e não a outros" (MAINGUENAU, 1997, p. 118). Consequentemente, cada FD delimita o seu universo de sentido, aberto e instável dada a sua interdiscursividade constitutiva, mas que revela uma identidade discursiva própria, assim como um modo de coexistir com outros discursos.

A polêmica mostra uma face das relações explícitas estabelecidas entre FDs e, desta forma, deve ser compreendida como um fenômeno amplo, não restrito a violentas controvérsias como geralmente é designada (MAINGUENAU, 2008). A polêmica também revela a heterogeneidade discursiva, pois o seu desenrolar muitas vezes mostra que "tudo o que é feito por palavras pode ser desfeito por elas" (FIORIN, 2015, p. 22). Portanto, além de modalidade discursiva, é considerada uma modalidade argumentativa. Não é por acaso que Amossy (2017a) considera a polêmica como “uma arte da refutação” (p. 98).

Para Mainguenau (1997), o exercício da polêmica ocorre quando, em um mesmo espaço discursivo, FDs estabelecem uma relação de oposição entre si. Neste sentido, o autor explica que "as eternas polêmicas em que as formações discursivas estão envolvidas não surgem de forma contingente do exterior, mas são a atualização de um processo de delimitação recíproca, localizado na própria raiz dos discursos considerados" (MAINGUENAU, 1997, p. 120). A delimitação recíproca, que marca a relação polêmica entre dois discursos, pode ser compreendida como uma rejeição mútua, de modo a preservar a própria identidade discursiva.

A busca pela preservação da identidade discursiva em uma relação polêmica incentiva a aceitação de seus pressupostos. A heterogeneidade dos sujeitos e os possíveis outros sentidos que as palavras podem suscitar são apagados em prol de uma identidade partilhada, que muitas vezes se caracteriza como um dogma, nomenclatura usada por Mainguenau (2008).

Outro aspecto interessante é que a polêmica implica um acordo partilhado entre os lados sobre o que divergir, o que mostra uma convergência sobre a divergência, contrariando o senso comum. Essa concordância em algumas bases discursivas gerais faz parte das características dos discursos polêmicos, segundo Kerbrat-Orecchioni (1980). Mainguenau explica essa espécie de concordância pelo fato de a polêmica sustentar-se “com base na convicção de que existe um código que transcende os discursos antagônicos, reconhecidos por eles, que permitiria decidir sobre o justo e o injusto” (2008, p.111).

Nesta perspectiva, quando em uma FD circula um discurso antagônico a ela, este discurso circula traduzido e interpretado de acordo com as regras desta FD. Assim, ocorre a interincompreensão, pois "obedece a regras e estas regras são as mesmas que definem a identidade das formações discursivas consideradas. Dito de outra forma, o sentido aqui é um mal-entendido sistemático e constitutivo do espaço discursivo" (MAINGUENAU, 1997, p. 120).

Esta tradução de um discurso outro, interpretado a partir de categorias próprias, é um processo que resulta um simulacro deste outro. De acordo com este mecanismo de funcionamento da polêmica a partir de Mainguenau, "o discurso só pode relacionar-se com o outro do espaço discursivo através do simulacro que dele constrói" (1997, p. 122), preservando, deste modo, a sua identidade.

Para Baronas e Costa (2019), compreender a polêmica como fruto de um processo de tradução a partir da interincompreensão regrada, como propõe Mainguenau, ajuda a entender como, discursivamente, a polêmica funciona em uma sociedade. Na discussão que desenvolvem sobre a polêmica, os autores também explicam sua função social e o seu funcionamento sociodiscursivo no espaço público, aspectos enfatizados a partir das contribuições de Ruth Amossy.

Assim como Mainguenau, Amossy defende que a polêmica é caracterizada pela oposição entre discursos, ou seja, pela dicotomização. Para a autora, “uma polêmica é o conjunto das intervenções antagônicas sobre uma dada questão em dado momento” (AMOSSY, 2017a, p. 72). A diferença conceitual que Amossy propõe começa a ser delineada na medida em que a autora aprofunda sua análise em relação ao efeito sociodiscursivo produzido pela dicotomização.

Amossy (2017a; 2017b) argumenta que a dicotomização mobiliza um público heterogêneo que, como forma de apoio a determinados valores mutuamente excludentes, se divide em dois grupos. Isso faz com que esses dois grupos ocupem lugares enunciativos opostos e formem uma espécie de ‘nós' contra 'eles', o que constitui uma polarização, segundo a autora. Apesar dos grupos não serem homogêneos, "quanto mais a adesão a uma determinada tese é constitutiva de uma identidade compartilhada, mais o indivíduo tenderá a apegar-se a ela" (AMOSSY, 2017b, p. 233).

Consequentemente, a polarização gera um senso de pertencimento e de identificação, o que leva ao "combate pelo triunfo dos valores e opções de seu grupo" (AMOSSY, 2017b, p. 233). Isso pode resultar no processo de desqualificação do outro, uma estratégia de grupo que também caracteriza a construção da polêmica, a partir da qual cada um dos lados busca conquistar mais adeptos e, assim, fortalecer sua posição.

Esses traços – a dicotomização, a polarização e a desqualificação do outro - foram percebidos por Amossy (2017a; 2017b) a partir da análise da circulação de discursos polêmicos em espaços públicos, principalmente por meio dos dispositivos midiáticos. Esse aspecto revela outra diferença entre Amossy e Mainguenau, pois Mainguenau desenvolve sua noção de polêmica a partir da análise da constituição do enunciado ancorado no interdiscurso e os efeitos desta constituição sobre a formulação, ou seja, os efeitos desta constituição sobre a forma que um enunciado vai tomar em uma enunciação, enquanto Amossy enfatiza a análise da circulação dos enunciados polêmicos em uma formação social e seus efeitos sociais.

Amossy (2017a; 2017b) explica que em espaços públicos o dissenso tende a ser visto com ressalvas, pois pela defesa da ação comum, o debate entre opiniões divergentes tende a ser amenizado para se chegar ao consenso. No entanto, a polêmica pode contribuir para a construção de espaços públicos plurais, o que compreende “funções importantes que vão da possibilidade do confronto público no seio das tensões e de conflitos insolúveis à formação de comunidades de protesto e de ação pública” (AMOSSY, 2017a, p. 13).

Assim, como modalidade argumentativa ancorada no embate de posições antagônicas, Amossy (2017a; 2017b) explica que a polêmica permite a livre expressão de valores comuns a um grupo, o que fortalece sua identidade e possibilita a adesão de novos membros, sem o uso da violência física. Para a autora, se a polêmica "subsiste ao longo dos anos apesar das inúmeras críticas que desperta, é porque preenche determinadas funções, nem sempre visíveis, mas não menos necessárias" (AMOSSY, 2017b, p. 228). Portanto, a autora destaca a importância da polêmica para a existência de espaços democráticos plurais, onde o divergente e o contraditório conseguem coexistir.

A partir dos aspectos teórico-metodológicos aqui expostos, é possível apreender a complexidade da polêmica como um fenômeno discursivo. Tanto Mainguenau quanto Amossy salientam a polêmica como reveladora de um contexto socio-histórico, pois sua análise extrapola os conflitos em disputa, o que podemos analisar por meio do percurso discursivo que mostra o embate entre salvar vidas e salvar a economia.

2. A polêmica entre salvar vidas e salvar a economia

Ao voltarmos a atenção para o contexto histórico e sociocultural brasileiro, destaco a recorrente polêmica entre salvar vidas e salvar a economia, que acompanha o desenrolar da pandemia do Coronavírus no Brasil. Os trechos textuais apresentados neste artigo foram escolhidos por exemplificarem o funcionamento discursivo que caracteriza o embate em questão e por terem circulado na mídia digital em veículos de relevância nacional, os quais dialogam com as pautas de veículos impressos e influenciam o conteúdo editorial de veículos menores, aspectos que ampliam o alcance dos discursos divulgados. O período de circulação desses trechos foi de março de 2020 até julho de 2021.

Desde o final do ano de 2019 já se ouvia falar da Covid-19 por meio da imprensa internacional, mas foi no dia 26 de fevereiro de 2020 que foi confirmado o primeiro caso no Brasil, na cidade de São Paulo. A apreensão foi geral, retratada por meio de muitas indagações, como a presente no título da matéria da revista Saúde – “Coronavírus: primeiro caso é confirmado no Brasil. O que fazer agora?” (SAÚDE, 2020).

A partir deste momento, os registros sobre o avanço da doença no Brasil começaram a ser diários, o que pode ser observado em alguns trechos abaixo:

06 de março - Chega a 13 o número de casos confirmados no Brasil, que monitora 768 suspeitos. Outros 480 casos foram descartados. Ministério da Saúde anunciou a ampliação de medidas para reforçar a assistência hospitalar no enfrentamento ao coronavírus no Brasil.

11 de março - Organização Mundial da Saúde declarou pandemia de coronavírus. Estimativa da entidade considera que números de pessoas infectadas, mortes e países atingidos deve aumentar nos dias e semanas seguintes. Ministério da Saúde atualiza para 52 o número de casos confirmados de infecção por coronavírus. Do total, 6 casos são por transmissão local e 46 são importados. O ministério monitora ainda 907 casos suspeitos, e descartou 935 casos. Oito estados confirmaram o caso: Alagoas (1), Bahia (2), Minas Gerais (1), Espírito Santo (1), Rio de Janeiro (13), São Paulo (30), Rio Grande do Sul (2) e Distrito Federal (2).

13 de março - Ministério da Saúde regulamenta critérios de isolamento e quarentena que deverão ser aplicados pelas autoridades sanitárias em pacientes com suspeita ou confirmação de infecção por coronavírus.

20 de março - Ministério da Saúde declara reconhecimento de transmissão comunitária do novo coronavírus em todo o território nacional, apesar de nem todas as regiões apresentarem esse tipo de transmissão. A declaração dá ao Ministério da Saúde autoridade diante de todos os gestores nacionais, que devem adotar medidas que promovam distanciamento social e evitem aglomerações. Sobe para 904 o número de casos confirmados de covid-19 no Brasil. Também foram registradas 11 mortes, sendo 9 no estado de São Paulo e 2 no Rio de Janeiro (SANAR, 2020).

Com a necessidade de adotar medidas que promovessem o distanciamento social, governadores começaram a se mobilizar a partir dos direcionamentos do Ministro da Saúde. No entanto, receberam críticas do Presidente da República, como mostra a reportagem:

Mais uma vez na contramão de todos os chefes de governo que conseguiram bons resultados até agora no enfrentamento ao coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) criticou as medidas preventivas adotadas por governadores nesta terça-feira (17). Diante de indicadores desanimadores da economia, Bolsonaro se antecipou e jogou a responsabilidade pelos números pífios aos chefes dos Executivos estaduais. Segundo ele, as ações implantadas em vários estados, como a suspensão de determinadas atividades, vão se traduzir nos índices da economia e prejudicar os trabalhadores informais, que não terão dinheiro para se alimentar corretamente e ficarão ainda mais expostos à covid-19. "A economia estava indo bem, fizemos algumas reformas, os números bem demonstravam a taxa de juros lá embaixo, a confiança no Brasil, a questão de risco Brasil também, então estava indo bem. Esse vírus trouxe uma certa histeria e alguns governadores, no meu entender, eu posso até estar errado, estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa economia", disse o presidente em entrevista à rádio Tupi [...] “Essa histeria leva a um baque na economia. Alguns comerciantes acabam tendo problemas. Você pode ver quando você vai a um jogo de futebol, o cara que vende o chá mate ali na arquibancada, o cara que guarda o carro lá fora (flanelinha), ele vai perder o emprego. Ele já vive na informalidade, ele vai ter que se virar, mas vai ter mais dificuldades e tendo mais dificuldades ele comerá pior. Comendo pior, já não comia tão bem, acaba não comendo adequadamente, ele fica mais debilitado, e o coronavírus chegando nele, ele tem uma tendência maior de ocupar um leito hospitalar”, afirmou o presidente. (SARDINHA, 2020).

Na reportagem acima é relatada a preocupação do Presidente da República com a maior exposição dos trabalhadores informais à Covid-19, um dos aspectos que justificaram sua crítica às medidas preventivas adotadas pelos governadores. A partir desses trechos já é possível perceber a formação de oposição entre os discursos relatados, o que caracteriza a polêmica para Mainguenau e Amossy.

Além disso, é possível observar que há uma preocupação do Presidente com a vida dos mais vulneráveis, o que também preocupa os governadores e o então Ministro da Saúde. Conforme já exposto na seção anterior a partir de Kerbrat-Orecchioni (1980) e de Mainguenau (2008), essa concordância em alguns aspectos faz parte das características dos discursos polêmicos, pois existe um código comum que transcende tais discursos.

Mesmo com preocupações em comum, o Estado com a maior participação na economia brasileira contrariou Bolsonaro e entrou em quarentena no dia 24 de março, demonstrando alinhamento com a declaração do Ministério da Saúde no dia 20 de março:

​Começa a valer, nesta terça-feira (24), o decreto do governador João Doria (PSDB), que determina quarentena de 15 dias em todo o estado de São Paulo. A medida tem validade até 7 de abril e impõe o fechamento de estabelecimentos comerciais que não estejam entre os serviços essenciais de alimentação, saúde, abastecimento, limpeza urbana, segurança pública e bancos. O decreto recomenda que a circulação de pessoas no estado se limite às necessidades imediatas de alimentação, cuidados de saúde e exercício de atividades essenciais (SOARES, 2020).

A partir desse decreto do governador do Estado de São Paulo no dia 24 de março de 2020, outros governadores também começaram a determinar quarentena. Com isso, começamos a observar a ocupação de lugares enunciativos opostos por dois grupos, o que segundo Amossy (2017a; 2017b) constitui uma polarização.

Como uma típica reação polarizada, o Presidente fez um pronunciamento em rede nacional para pedir o fim do isolamento em massa, a reabertura do comércio, das escolas, com a tese de que a doença não passava de um ‘resfriadinho’:

“Devemos sim voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”, disse ele em pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão, nesta terça-feira (24). “Por que fechar escolas?”, questionou ele. Segundo o presidente, o grupo de risco é o das pessoas acima de 60 anos e raros são os casos fatais. Bolsonaro, que completou 65 anos no último dia 21, tornou a minimizar a possibilidade de contrair o vírus. “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão”, ironizou o presidente em referência ao médico Dráuzio Varella (SAID, 2020).

A partir do trecho acima, como também dos anteriores, podemos observar a presença de uma série de argumentos que sustentam a formação da polêmica. Portanto, além de ser uma modalidade discursiva, a polêmica mostra-se como uma modalidade argumentativa conforme defende Amossy (2017a).

Assim, como consequência da fala presidencial apresentada e expondo ainda mais a face argumentativa da polêmica, diversos políticos, autoridades sanitárias, especialistas na área de saúde e economistas rebateram essa fala, afirmando que salvar vidas deveria ser a prioridade, o que pode ser observado em um recorte de outra reportagem:

Políticos e autoridades reagiram ao pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia do coronavírus na noite desta terça-feira (24). O presidente pediu a "volta à normalidade", o fim do "confinamento em massa" e disse que os meios de comunicação espalharam "pavor". O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), divulgou uma nota na qual classificou a fala de Bolsonaro como "grave" e disse que o país precisa de uma "liderança séria". O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que o pronunciamento "foi equivocado ao atacar a imprensa, os governadores e especialistas em saúde pública" (G1, 2020).

Deste modo, os relatos vistos até aqui exemplificam a polêmica que se formava em torno do que deveria ser a prioridade do Brasil, salvar vidas ou a economia. Mesmo com preocupações comuns partilhadas pelos lados, observamos uma relação dicotômica entre os discursos apresentados. No exemplo abaixo, encontramos uma espécie de divisão dos participantes em grupos antagônicos:

Nas últimas semanas, todos os Estados brasileiros adotaram medidas restritivas de distanciamento social com o objetivo de frear a transmissão do coronavírus. Entre as ações de maior abrangência nacional está a suspensão de aulas em escolas públicas, o fechamento de cinemas e shoppings. No entanto, após o pronunciamento em que o presidente Jair Bolsonaro defendeu a retomada da normalidade no Brasil, o país se dividiu entre governadores que apoiam a ideia de isolamento vertical, aplicado somente aos idosos, e os líderes que seguem defendendo restrições rigorosas (PIFFERO, 2020).

Além da dicotomização sinalizar a existência de intervenções antagônicas, sua existência demonstra que os lados envolvidos na polêmica apoiam determinados valores mutuamente excludentes de acordo com Amossy (2017a; 2017b).

A autora também menciona como aspecto constituinte da polêmica o processo de desqualificação do outro, que pode ser observado no trecho a seguir: “Entidades de saúde coletiva e da bioética divulgaram um manifesto neste domingo (29) considerando "intolerável e irresponsável o discurso de morte" feito pelo presidente Jair Bolsonaro na noite de 24 de março, em cadeia nacional de rádio e TV” (COLLUCCI, 2020).

O lado que defende a priorização da vida também identificou esse processo de desqualificação do outro nas falas de Bolsonaro em relação aos números de mortes em decorrência da pandemia. No mês de abril de 2020, quando o Brasil havia ultrapassado duas mil e quinhentas mortes, um jornalista teve a intenção de abordar o assunto com o presidente, mas foi interrompido: ““Ô, cara, quem fala de... Eu não sou coveiro, tá certo?”, declarou o Presidente. O repórter, então, tentou fazer novamente a pergunta. “Não sou coveiro, tá?”, repetiu o presidente da República”. A mesma reportagem relata outra fala presidencial no mesmo dia: “‘Levaram o pavor para o público, histeria. E não é verdade. Estamos vendo que não é verdade. Lamentamos as mortes, e é a vida. Vai morrer”, afirmou” (GOMES, 2020).

Quando o Brasil estava perto de registrar cem mil mortes decorrentes da pandemia, em agosto de 2020, o presidente disse que “é preciso ‘tocar a vida’ e aconselhou que se busque uma maneira de ‘se safar’ da doença” (CARVALHO, 2020). Em junho de 2021 foram registradas quinhentas mil mortes no sábado dia 19 e até a noite de domingo (20) Bolsonaro não havia se pronunciado, o que causou má impressão e comparações com pronunciamentos de outros presidentes brasileiros, nos respectivos mandatos, diante de acontecimentos que resultaram em mortes, mas não com a mesma dimensão (FLORATTI, 2021).

Além desse contínuo processo de desqualificação do outro observado nos trechos acima, também podemos identificar a implementação da estratégia para a conquista de mais adeptos. Um exemplo disso foi denunciado no título da reportagem “Bolsonaro usa o futebol para forçar relaxamento da quarentena”. O subtítulo resume a intenção do Presidente: “Apesar da resistência de jogadores, Governo recorre a apelo pela volta dos jogos como estratégia para enfraquecer posição de governadores favoráveis ao isolamento social” (PIRES, 2020).

Os exemplos mostrados, com o intuito de ilustrar a polêmica discursiva entre salvar vidas e salvar a economia, ajudam a entender o processo de delimitação recíproca entre os discursos considerados, que pode ser entendido como rejeição mútua, como explica Mainguenau (1997). Uma forma de rejeição está explícita abaixo, com a afirmação de que a polêmica entre salvar vidas e salvar empregos é falsa:

Num recado claro a líderes de todo o mundo, Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI e o Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, publicaram nesta sexta-feira um alerta: a disputa entre salvar vidas e salvar empregos é um "falso dilema". [...] controlar o vírus é, quando muito, um pré-requisito para salvar meios de subsistência", apontaram. [...] "O nosso apelo conjunto aos responsáveis políticos, especialmente nas economias de mercado emergentes e em desenvolvimento, é que reconheçam que a proteção da saúde pública e o regresso das pessoas ao trabalho andam de mãos dadas", apelaram os dois líderes. Nos últimos dias, governos como o do Brasil foram tomados por esse debate (CHADE, 2020).

Ao considerarem que não há dilema entre salvar vidas e salvar empregos e, consequentemente, salvar a economia, os líderes do FMI e da OMS revelam que não há a possibilidade de existir uma argumentação plausível que priorize salvar a economia. De acordo com o que já foi discutido neste artigo, essa afirmação é feita em concordância com a FD em que estão inseridos, o que mostra a leitura do outro a partir de uma ótica própria, ou seja, mostra a ocorrência do processo de interincompreensão.

Esse “mal-entendido sistemático e constitutivo do espaço discursivo" (MAINGUENAU, 1997, p. 120) que caracteriza a interincompreensão também está presente no ‘outro lado’. Mesmo com o avanço da pandemia no decorrer de 2021, as viagens de Bolsonaro com aglomeração ao redor do Brasil foram intensificadas, em muitas das quais foi flagrado sem máscara. Em uma delas, discursou aos seus apoiadores: “Não reclamo das dificuldades. Sofro ataques 24 horas por dia. Mas entre esses que atacam e vocês, vocês estão muito na frente. Não me vão fazer desistir porque, afinal de contas, eu sou imbrochável” (VARGAS, 2021).

Esta fala destacada acima exemplifica uma construção de um simulacro do “Outro do espaço discursivo” (MAINGUENAU, 1997, p. 122), que pode ser compreendido de acordo com o texto pronunciado como aquele que ataca, que gera dificuldades, mas que não está acima dos apoiadores de Bolsonaro. Assim, há indícios de que essa dicotomia tende a continuar, visto que um lado não pretende “brochar” enquanto o outro aumenta sua presença nas ruas, levando cartazes com frases como “Bolsonaro assassino” (ALVES, 2021).

Desta forma, como um fenômeno discursivo, a formação de uma polêmica extrapola a ocorrência de um acontecimento isolado. A polêmica traz indícios dos discursos que a constitui, como suas condições de produção, memórias e posições em disputa, aspectos que fazem parte do contexto histórico e sociocultural em que estamos inseridos.

3. Condições de produção, memória e posições em disputa

De acordo com o que foi discutido até aqui, observamos que a ocorrência da polêmica é marcada por uma série de trocas entre as partes envolvidas no decorrer do tempo. Isso é um indício de que a polêmica se refere a conflitos sobre questões situadas além dos indivíduos que as enunciam (MAINGUENEAU, 2010).

Muitos consideram que “o discurso polêmico é sempre público – e o aspecto espetacular próprio às ‘passagens de bravura’ é um de seus traços estilísticos constantes” (CUSIN, 1980 apud MAINGUENAU, 2010). Aliado a isso, existe a tese de que a polêmica compreende “funções importantes que vão da possibilidade do confronto público no seio das tensões e de conflitos insolúveis à formação de comunidades de protesto e de ação pública”, o que contribui para a pluralidade dos contextos em que circula e fortalece o funcionamento de uma democracia (AMOSSY, 2017a, p. 13).

Tais argumentos mostram a relevância da análise de discursos polêmicos divulgados em veículos com abrangência nacional. O embate entre salvar vidas e salvar a economia no desenrolar da pandemia do Coronavírus não foi exclusivo do Brasil, mas parece ter encontrado no país condições de produção propícias para sua visibilidade devido a acontecimentos recentes na história brasileira que já sinalizavam um contexto polarizado e marcado por reivindicações.

Desde as eleições presidenciais de 2018, o ambiente polêmico brasileiro chamava a atenção, como evidencia o título da reportagem “Polarização na eleição é destaque na imprensa internacional” (LABOISSIÈRE , 2018). O primeiro ano de mandato não amenizou a situação:

Antes de chegar ao Palácio do Planalto, Bolsonaro já era conhecido por frases polêmicas, que geraram inclusive processos na Justiça. Agora, como presidente, sua retórica frequentemente escatológica, sexista e preconceituosa tem impactado até o relacionamento do governo com o Congresso (AMARAL, 2019).

No entanto, a presença de uma discursividade polêmica na mídia brasileira não está relacionada apenas à presença de Bolsonaro no cenário político, pois a polêmica tem sido uma forma de discurso recorrente, principalmente a partir da segunda década deste século XXI. Um exemplo disso foi quando Dilma Roussef deixou a Presidência da República em 2016, o que ocorreu por meio de um processo de impeachment de acordo com quem apoiava sua saída, mas que foi denominado de “golpe” por quem defendia a sua permanência no cargo. Diversas reportagens da época trataram da polêmica em questão e discutiram temáticas como “O impeachment de Dilma foi "golpe" ou não? A opinião de cada um dos lados” (UOL, 2016). O próprio processo de reeleição de Dilma, em 2014, já revelava sinais de forte polarização – “Na disputa mais acirrada da história, Dilma é reeleita presidente do Brasil” (FOLHA DE S.PAULO, 2014).

Não podemos esquecer que no ano anterior, em 2013, o Brasil foi palco de diversas manifestações de rua, que começaram com a reivindicação contra o aumento da passagem de ônibus, mas que também trouxeram à tona diversas outras insatisfações dos brasileiros. Cinco anos após, em meio ao contexto conturbado de eleições e greve dos caminhoneiros que marcou o ano de 2018, a socióloga Ângela Alonso relembra 2013 e comenta que “A crise desencadeada ali não acabou. Ainda temos consequências de médio e longo prazo do que aconteceu” (BBC, 2014).

A retomada desses fatos mostra que os discursos são atravessados por acontecimentos históricos, tanto os visíveis a todos, muitas vezes legitimados, quanto os difusos ou imperceptíveis, mas também determinantes para o rumo da história, como já dizia Foucault (2000). Esse processo é constitutivo dos discursos, cuja identidade é tecida na relação com outros discursos, mesmo que isso não seja explícito na materialidade do texto.

Por isso, podemos dizer que os sentidos dos enunciados proferidos extrapolam o funcionamento sintático e semântico do que é dito. Retomam a história a partir de uma memória, de um já dito, mesmo que reconfigurado. Isso tem relação com o “fato de que a memória suposta pelo discurso é sempre reconstruída na enunciação” (ACHARD, 1999, p. 17).

Quando voltamos a atenção para a preocupação com a saúde e consequentemente com a vida, e a preocupação com a economia, observamos que tais preocupações fazem parte da vida dos brasileiros. Um exemplo é o fato de serem temas importantes em campanhas políticas desde o fim da ditadura. Além disso, pesquisas revelam que nos últimos anos saúde e desemprego estão entre as principais preocupações dos brasileiros (GOEKING, 2018; CHENG, 2019).

Neste contexto, não podemos desconsiderar que o sistema capitalista no qual vivemos afeta essa conjuntura. Há anos observamos um movimento mundial, no qual o Brasil está incluído, pela busca do desenvolvimento econômico alinhado às vertentes liberais, o que, em linhas gerais, resultou na diminuição do papel do Estado, aumento da terceirização do trabalho, expansão da globalização e intensificação da competitividade. Ao relacionar o impacto desta conjuntura nos dois eixos temáticos analisados neste artigo, identificamos a valorização do lucro, o que reverbera na adequação da vida a ele. Exemplos disso podem ser observados em modos de vida vinculados a uma busca frenética pelo desempenho, em que os sujeitos são impelidos a serem “empresários de si mesmos” (HAN, 2017, p. 23), como também em denuncias sobre escândalos relativos ao trabalho escravo no século XXI (LEPINSKI, 2016).

Nesta mesma conjuntura, é perceptível que há uma preocupação crescente com a saúde, em seus mais diversos aspectos. As pessoas estão vivendo mais, a obesidade, ansiedade e depressão estão aumentando, os gastos com saúde são altos, a expansão do acesso à internet propicia a ampliação do acesso à informação – tais aspectos impulsionam a busca por viver com mais qualidade de vida, o desenvolvimento de programas e atividades de conscientização em relação ao que se come, como se vive, etc. Pesquisas (EBC, 2019; JORNAL DO COMÉRCIO, 2018) mostram que o aumento pela procura por produtos saudáveis e pela prática de atividades que estimulem o bem-estar é anterior à pandemia da Covid-19, o que ela ocasionou foi a intensificação deste processo (JARDIM, 2020).

A preocupação com o bem-estar e com a saúde de forma geral também pode ser analisada como parte de um projeto neoliberal, que delega ao sujeito contemporâneo a responsabilidade de cuidar de si mesmo. Cada vez mais o sujeito passa a ser interpelado por convocações biopolíticas no processo de construção de um self autêntico, pleno e feliz, sendo a atenção à saúde parte essencial deste processo (PRADO, 2013). Nesta perspectiva, os discursos em torno da saúde são vistos como aliados às práticas econômicas. No entanto, quando há conflito de interesses e instaura-se uma polêmica como observamos no decorrer da pandemia, as diferenças ideológicas não conseguem ser camufladas.

Assim, esses comentários sobre alguns dos acontecimentos que compõem a conjuntura brasileira na contemporaneidade ajudam a compreender que as preocupações em torno da vida e da economia não são circunstanciais, relativas apenas ao período pandêmico. Os discursos relativos à saúde, vida e à economia estão vinculados aos funcionamentos institucionais, às práticas culturais e aos estilos de vida, ou seja, “mesmo neles, funcionam condições históricas de produção” (POSSENTI, 2011, p. 369).

Além do contexto político brasileiro apresentar um histórico conturbado por recorrentes polêmicas, a relação entre saúde e economia não está estabilizada. Percebemos que há um jogo de forças que extrapola a atuação de quem participa da polêmica. Como Courtine já dizia, “o enunciável é exterior ao sujeito enunciador” (1999, p. 18). Nesta perspectiva, Pêcheux (1988) declara:

[...] a noção de “ato de linguagem” traduz, de fato, o desconhecimento da determinação do sujeito no discurso. Permite, ainda, dizer que, na verdade, a tomada de posição não é, de modo algum, concebível como um “ato originário” do sujeito-falante: ela deve, ao contrário, ser compreendida como o efeito, na forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como discurso-transverso, isto é, o efeito da “exterioridade” do real ideológico-discursivo, na medida em que ela “se volta sobre si mesma” para se atravessar (p. 159-160).

Essa tese de Pêcheux mostra que as partes envolvidas em uma polêmica não mobilizam ideais que representam apenas os membros que as compõem. Consequentemente, podemos entender que os participantes de uma polêmica atuam como sujeitos que ocupam posições previamente determinadas pelo interdiscurso e são essas “posições de sujeito que regulam o próprio ato de enunciação” (COURTINE, 1999, p. 20).

Esses argumentos contribuem para mostrar que a linguagem não é transparente. A opacidade da linguagem é mascarada em uma suposta transparência do sentido no intradiscurso, mas constituída pelas relações interdiscursivas que determinam uma formação discursiva. O intradiscurso pode ser compreendido como “um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma ‘interioridade’ inteiramente determinada com tal ‘do exterior’” (PÊCHEUX, 1988, p. 154). Como Possenti (2011) explica:

O que confere ou garante o sentido ao que um enunciador diz não é o contexto imediato em que está situado e ao qual se ligariam certos elementos da língua (embreadores) ou certas características do enunciado (implícitos), mas as posições ideológicas a que está submetido e as relações entre o que diz e o que já foi dito da mesma posição, considerando, eventualmente, ou em geral, que ela se opõe a uma que lhe seja contrária (p. 367).

Portanto, o embate entre salvar vidas e salvar a economia põe em evidência posições sujeito em disputa. São posições constituídas pela história, pela memória e relações de poder, que atravessam indivíduos que, ao exercerem o ato de fala, tornam-se sujeitos. De acordo com a citação de Possenti acima, podemos dizer que se tornam sujeitos de uma posição ideológica que, ao mesmo tempo que o legitima, o assujeita às suas regras.

4. Considerações finais

A partir dos poucos exemplos citados frente à avalanche de textos que circularam na mídia sobre esse embate, foi possível verificar processos de dicotomização nos discursos analisados. Tais análises ajudaram na compreensão de como a polêmica é estruturada e na elucidação de aspectos que constituem nossas práticas discursivas.

Como já dito, a polêmica começa a desenvolver-se a partir de processos de construção de identidades discursivas, ancoradas em memórias, valores e práticas já existentes em um espaço discursivo, apesar disso muitas vezes não ser explícito para o “outro” antes da necessidade de defender o seu lado. Assim, é na relação com o outro, a partir da necessidade de defender uma posição, que o discurso polêmico começa a circular.

A polêmica aqui analisada gira em torno de um acontecimento que marca a história de nossa época. A pandemia é um acontecimento histórico mundial, visível a todos, enquanto que a polêmica que se instaurou no Brasil entre salvar vidas e salvar a economia pode ser percebida como um acontecimento discursivo ‘menor’, mas também importante para o rumo da nossa história.

Portanto, a polêmica enquanto acontecimento sinaliza, além da dicotomização característica, processos em construção, que não estão estabilizados e que revelam a existência de um jogo de forças. Para Foucault (2000), são os diversos acontecimentos, com temporalidades próprias, descontínuas, mas inter-relacionadas, que provocam micro mudanças e, de forma lenta, transformam as sociedades e constituem a história. Assim, mesmo incômoda, a polêmica revela sua função por permitir a existência de diferentes vozes e posições em disputa. O seu curso, a história contará.

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HADLER, R. D. The dispute between health and economy in the pandemic: an analysis of the discursive functioning of the polemic. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e517, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id517. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/517. Acesso em: 25 apr. 2024.

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