Introdução
Excesso de informações, facilidade de acesso a elas e divergência de discursos: a compreensão da história pode ser tão vaga quanto a quantidade de versões a respeito de um fato. Isso revela como há uma disputa de poder pela e na linguagem, uma vez que ela é capaz de produzir discursos que podem se afastar do “real" e ressignificar os acontecimentos, gerando, como resultado, pontos de vista discrepantes e uma imprecisão ao tentar definir o que de fato ocorreu.
O presente trabalho encarrega-se da tentativa de perceber como os discursos à sombra do poder (ou do não-poder) modelam narrativas diferentes acerca de um referente em comum, que, aqui, será aquele que ficou conhecido como “o caso dos 80 tiros”. No acontecimento em questão, dois homens foram vítimas de uma ação de militares no Rio de Janeiro. Imediatamente constatou-se o erro e, desse ponto em diante, diversas foram as informações veiculadas a fim de esclarecer o caso, entretanto muitas notícias divergiam na forma de comunicar, de modo que o fato tornou-se incerto: contexto, número de disparos, até mesmo o que cada indivíduo na cena do crime estava fazendo, tudo isso recebeu mais de uma versão.
A fim de iniciar a discussão, vamos elencar como principal base teórica alguns conceitos desenvolvidos por Roland Barthes em O rumor da língua (2004)1. Nessa obra, o autor fala sobre o significado do discurso histórico e o divide em dois níveis: I) um nível imanente à matéria enunciada, que “detém todos os sentidos que o historiador dá voluntariamente aos fatos que relata" (p. 175); e II) "um significado que transcende a todo o discurso histórico, transmitido pela temática do historiador, que se tem direito de identificar à forma do significado” (p. 176). Trata-se, em geral, de uma significação que pretende preencher o sentido do fato histórico. Barthes pontuava que o fato possui uma existência linguística, e o discurso histórico que o fundamenta tem, em sua essência, uma elaboração ideológica, isso significa que a história e os fatos que a compõem devem ser entendidos também a partir dos falantes e das ideologias que eles – consciente ou inconscientemente – manifestam.
1. O Referente e o Discurso
A partir do momento em que houve um acontecimento, tal episódio passa a pertencer ao passado, que é nebuloso, porquanto não se pode voltar a um episódio pertencente ao que já foi. Para que este volte à clareza da luz, por qualquer razão, é preciso que seja narrado, que ele receba uma existência linguística.
Os discursos que surgem acerca do fato agem como uma espécie de dispersor da neblina, iluminando alguns pontos, tornando visíveis caminhos de informação por onde os leitores seguirão e conhecerão a narrativa do autor, mas não o fato em si, visto ser isso impossível. Assim, alguns desses caminhos acabam por se mostrar armadilhas enganosas de conhecimento. Afinal, conforme estamos mostrando, essa existência enquanto linguagem depende de pessoas que contem seus relatos, os quais não conseguem alcançar a objetividade pura – e nem poderiam. Surge, pois, uma disputa entre discursos em que, ao fim, se elenca o “vencedor” como a narrativa oficial, o caminho a ser seguido, “A História”.
O entendimento do discurso histórico, então, passa pela divisão necessária de alguns pontos. O referente tratado aqui é o fato como se deu, efêmero, um marco no tempo de que só se pode falar e lembrar, mas nunca reviver. Sobre isso há a noção de efeito do real, de Barthes (2004, p. 178), sobre a qual ele elabora que “O ‘real' nunca é mais do que um significado não formulado, abrigado atrás da onipotência aparente do referente”. Ele explica que o discurso histórico está encarregado de repetir o que aconteceu por meio dos signos sem acompanhar o real, apenas o significando. Desse modo voltamos à sua ideia de significado, que consiste no olhar linguístico e ideológico que se lança sobre o referente. Para tal, Barthes conceitua a ilusão referencial:
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Como todo discurso de pretensão “realista”, o da história acredita conhecer apenas um esquema semântico de dois termos, o referente e o significante; a confusão (ilusória) do referente com o significado define, como se sabe, os discursos sui referenciais, como o discurso performativo; pode-se dizer que o discurso histórico é um discurso performativo com trucagem em que o constatado (o descritivo) aparente não é de fato mais do que o significante do ato de palavra como ato de autoridade. (BARTHES, 2004, p. 177)
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Ora, se temos o referente para além da linguagem, e se a linguagem, nesse caso, não ganha forma senão pelo sujeito, o resultado final da enunciação será uma performance do fato. Será a linguagem – ideológica – que permitirá ao fato a continuidade de sua existência no mundo, tornando-o uma espécie de “cópia”, portanto uma referência cuja correspondência íntegra à realidade beira a ilusão. Então, por mais “objetivo” que se tente ser, o sujeito não se desvinculará de sua enunciação.
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De modo geral, ao colocar o sujeito (no sentido filosófico do termo) no centro das grandes categorias da linguagem, ao mostrar que o sujeito jamais pode distinguir-se de uma “instância do discurso”, diferente da instância da realidade, Benveniste fundamenta linguisticamente, quer dizer, cientificamente, a identidade do sujeito e da linguagem, posição que está no cerne de muitas pesquisas atuais e que interessa tanto à filosofia quanto à literatura (Ibidem, p. 209)
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A partir disso, entende-se, com apoio em Barthes (p. 187) que uma representação pura ou um relato nu do “real" estabeleceria uma resistência ao sentido em oposição daquilo que foi vivido ao inteligível (o que se conhece sobre o que se viveu), entretanto, essa representação não passaria de performance, por ser fruto de um sujeito indissociável do discurso, o qual deixa resíduos na forma de pequenos gestos no que Barthes aponta como o “real concreto”. O relato apenas conseguiria ser tão nu quanto permitisse a percepção desse sujeito da enunciação, que Benveniste fundamenta, assegurando que “o discurso histórico é essencialmente elaboração ideológica” (p. 176).
Com todos esses pontos considerados, sugerimos a compreensão dos discursos acerca de um fato como sentidos ideológicos, que em alguma medida transformam o referente. Tal reformulação apenas pode gerar a ilusão de ser algo o que naturalmente foi. O ponto agora é perceber como se manifesta essa relação entre sujeito, poder e discurso.
2. OS DISCURSOS E OS PODERES
Para desenvolver a análise do caso aqui proposto, vamos recorrer aos conceitos de discurso encrático e acrático estipulados por Barthes (2004). O autor (p. 127) evoca o conceito da dóxa aristotélica para embasar essas ideias. Entendendo dóxa como a opinião corrente – independentemente de ser verdadeira –, é a partir das noções compreendidas por ela que ocorre a separação entre os dois discursos mencionados aqui: “o discurso encrático é um discurso conforme a dóxa, submisso aos seus códigos, que são, eles próprios, as linhas estruturantes da sua ideologia; e o discurso acrático enuncia-se sempre, em graus diversos, contra a dóxa" (BARTHES, 2004, p. 127-8). Em razão de termos serem passíveis de críticas e problematizações mais aprofundadas, devido à conceituação ampla à qual foi submetidos, delimitaremos um pouco mais as ideias que nos servirão de base para nossa investigação.
Ao discorrer sobre as linguagens acrática e encrática, Barthes diz que esses socioletos –linguagens sociais, não individuais – se encontram em uma disputa de poder, na qual há uma busca mútua por impedir que o outro fale. Os meios para isso, no entanto, são questionáveis. Entendemos ocorrer uma simplificação por parte de Barthes ao dizer que o discurso encrático age por opressão, e o acrático, por sujeição, este constrangendo aquele com figuras ofensivas de discurso (p. 130). Se formos entender um encargo da língua de ser arma de discurso em função de grupos de poder ou não-poder, teremos, sim, uma postura de certa forma ofensiva uma diante da outra, mas o termo que mais faria jus à relação do socioleto acrático com o encrático talvez fosse o de “resistência”. O constrangimento surge como um recurso de exposição e denúncia das problemáticas que permeiam os fazeres do discurso encrático, mas não há submissão, considerando que a linguagem acrática detém a característica do discurso que se rebela, que não aceita passivamente a dominação e busca superar o discurso oponente, desafiando-o, por assim dizer.
Outro ponto problemático da definição que Barthes apresenta é o de que o discurso acrático pertence aos intelectuais e pesquisadores (p. 129) enquanto o discurso encrático é aquele sustentado pelo Estado (p. 128). É controverso pensar assim quando se observam sistemas políticos de países nos quais o Estado pode ser encabeçado por polos opostos alternadamente em um curto período, não dando tempo para o processo de mutação de poder acontecer; logo, não dando tempo para que se definam quem são os sujeitos de discursos acráticos em relação ao então atual Estado. Vejamos o que diz Barthes (p. 128) a esse respeito:
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[...] a linguagem revolucionária provém da linguagem acrática precedente; ao passar para o poder, conserva o caráter acrático enquanto há luta ativa no seio da Revolução; mas, logo que essa se consolida, que o Estado se instala, a antiga linguagem revolucionária torna-se por sua vez dóxa, discurso encrático.
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Não é simples, portanto, definir a quem pertence cada discurso. Se tivermos um intelectual no poder do Estado, não necessariamente haverá a passagem de linguagem acrática à encrática; afinal, tampouco podemos afirmar que o intelectual produz discurso acrático.
Vamos recordar o que Barthes (p. 127) diz sobre poder, dóxa e senso comum: há os discursos do poder – a linguagem encrática –, aos quais pertencem as opiniões que se alinham aos grupos dominantes e que visam a manutenção da pirâmide social, mantendo-se na posição de autoridade para determinar as coisas que recebem prestígio e as que são estigmatizadas; e há os discursos acráticos, os que estão fora do poder, aqueles que buscam denunciar a medição cultural vigente, dando luz ao que se encontra marginalizado pelos grupos produtores de linguagem encrática. Sendo assim, pouco importa que grupo ocupa a cadeira do Estado ou qual a ocupação dos falantes, pois não são esses fatores os que definem a qual dos socioletos um indivíduo se filiaria, mas qual papel eles exercem diante do poder, ou seja, se buscam uma manutenção ou uma reforma. O efeito provocado pelo discurso define a própria linguagem como encrática ou acrática em um certo contexto socio-histórico.
Com apoio nesse entendimento dos socioletos, vamos fazer um estudo sobre as manifestações da linguagem em torno do caso que ficou conhecido como 80 tiros, observando como veículos de informação podem adotar tanto um discurso que proteja os grupos detentores de poder quanto uma linguagem de denúncia, no caso em questão: quais discursos protegem o estado e quais discursos o enfrentam.
3. AS NARRATIVAS
Em abril de 2019, no bairro de Guadalupe, na Zona Norte do Rio de Janeiro, um músico e um catador de material para reciclagem foram mortos por agentes do Exército. Evaldo, o músico, estava com sua família, em seu carro, a caminho de um chá de bebê, quando foi atingido por vários disparos; Luciano, o catador, tentou ajudar e também foi atingido. O crime ganhou repercussão nacional, sendo comentado por várias autoridades do país, incluindo o presidente. Não demorou muito até que várias versões sobre a situação surgissem, inclusive pondo em xeque a índole das vítimas.
Reconhecendo esse cenário de verdades difusas, questionamos o que é a História e como ela se estabelece na sociedade. A pergunta pode ser assim consubstanciada: quais mecanismos – pelo menos falaremos aqui daqueles que envolvem a linguagem – são acionados para consolidar um fato como sendo verdadeiro? Como veremos, entre declarações dos envolvidos, das autoridades e da mídia, muitos signos são utilizados com a função primeira de conduzir a história e seus leitores na contramão do fato como ele se deu. Hoje, com o advento de câmeras de segurança, deveria ser possível buscar um discurso mais próximo do “real” já que as imagens e os vídeos fornecidos podem conter informações adicionais, ajudando a apurar as versões e alinhar as narrativas, porém, muitas outras entrevias se criam pela força da linguagem, seja em função de apagar, ignorar ou criar informações.
3.1. O SIGNIFICADO A PARTIR DO APAGAMENTO
3.1.1. O PACIENTE
Cançado (2008, p. 109) explica que a noção de “papéis temáticos” é introduzida nos estudos semânticos dada a insuficiência das funções gramaticais de sujeito, objeto e outras na tradução de algumas relações existentes em certas sentenças. Dos vários papéis temáticos existentes, vamos analisar alguns textos pela ótica do “paciente”, papel temático que diz respeito à “entidade que sofre o efeito de alguma ação, havendo mudança de estado” (ibidem, p. 111).
Para o assunto deste trabalho, estamos tratando da ideia geral de um agente matar um paciente: esse é o fato que queremos analisar, bem como perceber os discursos que permeiam o fato. Para isso, separamos quatro manchetes noticiando o acontecimento, seguindo dois critérios simples de escolha. O primeiro baseou-se na relevância dessas notícias de acordo com sites de busca como Google e Bing. Ao pesquisar sobre o caso, as notícias consideradas mais relevantes e mais acessadas, na época, aparecem nas primeiras páginas, em um sistema que se retroalimenta: as que aparecem primeiro são mais acessadas e, quanto mais se acessam as notícias, mais prioridade nas buscas elas recebem, sendo, por isso, entregues ao público com maior facilidade. Isso significa que as manchetes das primeiras páginas trazem as informações que o leitor geralmente recebe, e optou-se, no trabalho, por realizar a análise das formas como o caso foi lido. O segundo critério foi a variação da escrita. Não raro as manchetes se apresentam de modo semelhante; alguns sites migram todas as informações de uma plataforma a outra, entregando as mesmas notícias. Por isso, aquelas com redações similares foram descartadas, selecionando para análise as principais manchetes – ou seja, as que figuravam nas primeiras páginas – que comunicassem o fato com palavras e discursos diferentes. Embora seja o mesmo referente em todos os casos, a maneira como o título é redigido altera o sentido de uma manchete para outra. Por exemplo:
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(a) Doze militares são denunciados por fuzilamento de músico e catador no Rio2
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A rede temática do ato de fuzilar, expresso de forma substantivada na sentença, inclui um agente e um paciente. Quem sofre a ação do fuzilamento são o músico e o catador. A informação é bastante clara a respeito do que se passou: alguém fuzilou e alguém foi vítima do fuzilamento. A notícia se encarrega de informar isso de maneira objetiva e direta, posto que informa quem são agente e paciente. Queremos com isso dizer que, conforme veremos comparativamente a outras manchetes, nessa narrativa pouco importa se um carro foi atingido pelos tiros, uma vez que isso seria uma espécie de efeito colateral da intenção que se tinha ao se iniciar o fuzilamento. A história que se conta – de forma acrática, como veremos em contraste com outros casos – é que doze militares fuzilaram duas pessoas. Essa mesma história não é contada em uma outra manchete:
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(b) Justiça Militar mantém nove militares presos por fuzilamento de carro onde músico foi morto3
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Podemos perceber que o paciente agora é outro: quem sofre a ação do fuzilamento é o carro. Embora esse papel temático possa ser desempenhado por uma entidade animada ou inanimada, o que determina a coerência de um ou de outro é o sentido do verbo. Fuzilar significa matar com tiro de fuzil ou de qualquer arma de fogo. Como matar significa tirar a vida, para que o fuzilamento ocorra, é necessário que o paciente seja um ser animado; de outra forma, um paciente sem vida a ser tirada seria apenas alvejado.
A escolha de enunciar um ser inanimado ocupando o papel temático de paciente promove uma narrativa que pode ser interpretada como uma tentativa de apagar a intenção – no caso, mesmo a culpa – do agente. Como tem-se em (b) o carro como paciente, ele é a vítima da ação. A morte do músico – e do catador – surge como consequência segunda, efeito colateral da ação de se ter um carro como alvo. Apaga-se o fato de que se atirou no carro porque um motorista estava dentro dele, o que configuraria o músico como o verdadeiro alvo e paciente da ação de fuzilar.
As escolhas lexicais em (b) narram uma história diferente daquela contada pelas escolhas de (a), ainda que utilizando como base o mesmo verbo. Ao optar por um paciente em detrimento de outro, temos uma nova narrativa que abre margem para pelo menos duas compreensões diferentes de um mesmo fato histórico: uma em que os agentes miram num músico para fuzilá-lo, tirar sua vida; outra em que os agentes miram em um carro que não pode ser morto mas, em decorrência disso, um músico morre. Essa narrativa dos militares atirando contra o carro aparece em outras duas notícias coletadas para análise:
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(c) Exército dispara 80 tiros em carro de família no Rio e mata músico4
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Agora com outro verbo, um que admite sem controvérsias um paciente inanimado, o discurso da sentença apresenta o carro como sendo vítima dos disparos. A ideia de "disparar em carro de família” pode gerar várias cenas, inclusive a de soldados atirando em um carro vazio, o qual pertencia a uma família. A construção não explicita a relação entre os disparos ao carro e a morte do músico. Da mesma forma que o catador não estava dentro do carro e foi atingido, a morte do músico, separada em outra oração, também pode ser vista como acidental, como advinda de uma bala perdida, como um efeito desconectado da ação inicial. Para culpabilizar os agentes seria necessário se dizer quem era o alvo: o condutor e os passageiros do carro, não o carro. O veículo, por estar no caminho fazendo as vezes de um escudo, precisava ser atingido para que o alvo também o fosse.
Além disso, a mudança de agente percebida nessa manchete também revela um posicionamento. Pelo viés semântico, podemos novamente evocar os conceitos de papéis temáticos para conduzir a discussão. Márcia Cançado (2005), em seu artigo “Posições Argumentais e Propriedades Semânticas”, diz que “O controle é uma propriedade que sempre aparece, na literatura, associada à noção de agente” (p. 32), e define controle como “capacidade de se interromper uma ação, um processo ou um estado; consequentemente, podemos associar o controle à propriedade de ser animado” (p. 32). Em (a) e (b), os agentes de fuzilamento são militares, termo que indica profissão e cargo ocupado por seres humanos, capazes de irromper uma ação; em (c), o sujeito dos disparos é "o exército”, que é uma instituição e não um ser animado, portanto incapaz de praticar os disparos. As implicações desse processo de despersonificação serão melhor desenvolvidas mais à frente.
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(d) 12 militares viram réus no caso de carro alvejado por tiros em Guadalupe5
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A última manchete analisada cumpre o apagamento total do paciente do fato histórico. Finalmente, não há menção alguma ao músico ou ao catador; ela reduz a ação ao carro que é alvejado. Leva-se o leitor a questionar qual é o crime, por que tanta comoção com um objeto que foi danificado: por que 12 militares estão em apuros por isso? A narrativa aqui desenvolvida não conta a história de um músico e um catador mortos pela ação violenta dos militares; conta, com efeito, a história de um carro que talvez tenha sido alvejado por soldados que viraram réus – quem sabe injustamente.
Tanto em (a) como em (b), (c) e (d), o referente é o mesmo, mas esse não é percebido da mesma maneira de acordo com a seleção de palavras de cada chamada. Entendemos (a) como discurso acrático, pois expõe o agente como sujeitos do poder – que, na situação em questão, é o Exército, o qual tem poder de fogo e leis que asseguram os direitos dos soldados. Nas demais construções, em níveis diferentes, por haver um apagamento do sujeito impotente, temos discursos que se aproximam dos interesses da dóxa, partindo do mais discreto – e, talvez, acidentalmente encrático, se é que isso é possível – até o último, que serve aos objetivos de manutenção do poder a partir do efeito de amenizar bastante o referente. Conforme vimos em nossas análises, o modo de designação discursiva, mencionar ou não mencionar a morte de pessoas é uma escolha ideológica diante do fato, a escolha que define como a história será contada e conhecida.
3.1.2. A IDENTIDADE NUMÉRICA
Além das disputas discursivas que envolvem o apagamento ou a explicitação dos agentes e pacientes, paira, sobre esse fato, certa vagueza no que concerne à quantidade de disparos desferidos, o que contribui com a fluidez na identificação do caso. Afinal, a forma como uma investigação é identificada estabelece também um posicionamento sobre um acontecimento. A princípio, o caso foi identificado e divulgado como “80 tiros”, marcando especificamente o número de disparos que atingiram o veículo em que Evaldo e sua família estavam. Contudo, esse discurso também contribui para apagar a natureza muito mais violenta da situação, a qual se deu com 257 disparos ao todo, de acordo com o laudo apresentado pela Polícia Judiciária Militar6. Inicialmente, apenas o número de balas que acertaram o carro foi a conhecimento do público, o que justifica o nome do caso e notícias com essa informação até certo ponto da linha do tempo. Entretanto, menos de um mês após o crime, com o laudo já tendo sido divulgado, é possível ver a escolha por retificar ou não os números presente nas reportagens como um símbolo político.
Alguns jornais passaram a apresentar a informação dos 257 tiros; muitos mantiveram, provavelmente com a desculpa de certa praticidade de identificação, os 80 tiros; outros enunciavam de maneira imprecisa que foram mais de 200 disparos. Essa última escolha pode operar finalidades distintas: um valor pode exceder o número 200 por 1 unidade ou 99, embora qualquer uma das possibilidades seja suficientemente bárbara. Assim, defendemos que manifestar o número exato, tal qual revelado pelo laudo pericial, é a única forma de se posicionar acraticamente frente à brutalidade da ação dos militares tal qual ocorreu, nem a diminuindo, nem a aumentando.
Justificamos nosso posicionamento observando os rumos que a narrativa toma a partir desse conflito da identidade numérica, analisando um trecho da entrevista do subprocurador Carlos Frederico de Oliveira Pereira à BBC News Brasil:
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(e) Entrevistador: Realmente, há complexidades nos embates entre policiais e traficantes em áreas dominadas pelo tráfico. Mas, nesse caso específico, o que chocou a população foi o fato de terem sido disparados 200 tiros, com 83 atingindo o carro, sem que estivesse havendo ali uma troca de tiros. Não são situações diferentes?
Procurador: Existe o episódio, que é gravíssimo… Mas acho que foram oitenta disparos.7
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Há algumas problemáticas nesse recorte da entrevista, mas, antes de qualquer coisa, falemos sobre a controvérsia dos números. Apesar de haver um laudo oficial informando a existência de 257 tiros, ainda se arredonda para 200 o número total, ao passo que anunciam 83 disparos ao carro, relacionando a um caso que ficou conhecido pelo número 80. Como esses arredondamentos afetam as interpretações do evento? Contribuem para tornar indefinida a verdade, como se caminhássemos em meio à névoa e não pudéssemos discernir um caminho de outro. Não há uma única narrativa também com relação aos números; há pelo menos, nesse ponto, cinco: fala-se sobre um único referente “a verdade” dos 80 tiros, a dos 83, a dos 200, a dos 257 e a indefinida (do “mais de” algum valor).
A história que se conhece nada mais é do que o discurso que vence, resultado da decisão entre os caminhos oferecidos aos leitores. Como se trata de leitores que não testemunharam o acontecimento e precisam de discursos que os esclareçam, pode-se entender como encráticos aqueles que diminuem e se afastam do “real”, e acrático aqueles que insistem no laudo pericial.
O segundo ponto da análise desse trecho busca destacar um exemplo de conflito capaz de determinar qual caminho terá a dispersão da neblina, em outras palavras, qual número de tiros se estabelecerá como informação oficial sobre o caso. O entrevistador pergunta como responder à indignação e ao medo da população quanto à quantidade de disparos. O procurador diz que isso é resultado de embates com criminosos armados fortemente e, com a finalidade de pacificar essas regiões, atingir civis é inevitável. O entrevistador admite a complexidade nos embates entre policiais e traficantes, mas ressalta que são situações diferentes: só existe reação diante de uma ação anterior. A pergunta pode ser assim parafraseada: havia troca de tiros com a família ocupante do carro que justificasse “200 tiros, com 83 atingindo o carro”? O entrevistador busca um posicionamento quanto à problemática de ter havido uma resposta desmedida em um contexto sem perguntas, uma forma de expor o despreparo, o descaso do exército, o que foi chamado muitas vezes de “equívoco”, “erro”, ao que o procurador responde que houve um episódio grave, mas que – seu principal e único posicionamento nesse turno – achava que, na verdade, foram 80 disparos.
Existem nessa resposta dois apagamentos distintos, mas que se completam um ao outro: um que diz respeito à retificação do número de disparos na tentativa de minimizar a cena e outro na correção do próprio fato. Este ocorre na medida em que o entrevistado esquiva-se do tema central, o qual é relacionado à desconexão entre o acontecimento e o contexto que o procurador usa como justificativa. Ao negar uma resposta e desviar o curso da conversa, ele nega tanto a gravidade do fato em si, como descarta o raciocínio do entrevistador que acusa a incoerência de suas palavras; para além disso, essa manobra se dá em razão de alterar o número de disparos para um valor mais brando. Como já foi dito anteriormente, 200, 83 e 80 são quantidades diferentes, com pesos diferentes. Há uma disputa entre os discursos para definir qual algarismo será informação definitiva, pois os falantes, representantes desses discursos, ocupam lados opostos em relação ao fato.
Corre em nosso imaginário que não há divergências sobre números, mas até mesmo sobre essa área tão exata pairam dúvidas. Essa “confusão” propositadamente gera névoa sobre algo que não seria passível de discussão, posicionando o leitor no centro de um embate semântico e ideológico. Aqueles que têm como objetivo a defesa dos que dispararam terão sempre preferência pelo número menor, que em algum grau dê a ilusão de menor gravidade, por isso é que se filiam ao discurso encrático, pois buscam a manutenção do poder segundo a dóxa, a garantia de que quem já está à sombra do poder ali permaneça; aqueles que buscam justiça para as vítimas terão preferência pelo número exato ou por outro que aponte para um valor maior que o menor alegado pela oposição. Este é o discurso acrático por resistir à narrativa a qual está sendo desenhada para inocentar militares que assassinaram inocentes.
3.1.3. A ESQUIVA
Daremos continuidade às análises de mesmo teor do último enunciado, definida pela esquiva – naquele caso, do procurador ao retificar o número de tiros conveniente aos seus clientes. Aqui vale pontuar que não falar nada também é um posicionamento político. O silêncio tem poder discursivo tanto quanto o signo aparente, basta perceber em que condição se insere, o que é dito para preencher a lacuna e qual prejuízo dá a ausência de uma declaração. Nos casos que analisaremos agora, vamos ver como essa esquiva pode manipular a narrativa de um fato.
A declaração do governador do Rio de Janeiro produz um desvio na narrativa. Quando questionado sobre o caso, Wilson Witzel afirmou não caber a ele fazer juízo de valor e que confiava nas instituições. Em ocasião do discurso de posse para o então novo presidente do Tribunal Regional Federal, ele aproveitou para ressaltar a importância das Forças Armadas e a opinião de que:
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(f) “a preservação da democracia certamente passa pela importância que damos aos nossos soldados”8
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No contexto histórico daquela fala, em que 12 soldados eram investigados por dois homicídios, a escolha por defender a entidade militar implica na ausência de uma fala que os responsabilizasse; ao contrário, o governador reafirma sua confiança na mesma instituição que falhou à sociedade.
Sendo Witzel uma figura pública de relevância no cenário em questão, por ser aquele que governa o estado onde o crime ocorreu, o posicionamento dele e suas escolhas discursivas ajudam a ditar o que a massa levaria em consideração. A população, diante disso, pode comportar-se de pelo menos duas maneiras: de forma encrática, tomando para si o apoio às instituições e aceitando o discurso do governador; ou de forma acrática, resistindo ao discurso que desfoca o fato de que um crime ocorreu, e de que os responsáveis compõem a instituição enaltecida por Witzel.
A próxima declaração analisada é a de Jair Bolsonaro, aquele que na época do fato ocupava o cargo de autoridade máxima do país quando da inauguração de um aeroporto em Macapá:
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(g) O Exército não matou ninguém, não. O Exército é do povo e não pode acusar o povo de ser assassino, não. Houve um incidente, uma morte. Lamentamos a morte do cidadão trabalhador honesto, e está sendo apurada a responsabilidade. No Exército sempre existe um responsável, não existe essa de jogar para debaixo do tapete. Vai aparecer o responsável.9
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Essa fala do presidente aponta para dois pontos dignos de atenção. Começa com a tentativa de retirar a figura do Exército da cena do crime. Há duas fortes intenções nessa atitude. Conforme foi desenvolvido na análise da manchete (c), a propriedade do controle costuma estar associada a um ser animado capaz de irromper uma ação. O verbo matar requer ao menos dois argumentos: o agente e o paciente. Sobre o agente, Cançado (2008, p. 111) o define como desencadeador de uma ação, o qual age com controle, ou seja, um ser animado geralmente assumirá essa função. Em moldes práticos, não é possível que uma instituição puxe o gatilho de uma arma, pois uma instituição, entidade inanimada, não possui controle – é preciso que um indivíduo o faça. A isso Jair Bolsonaro se prende em sua declaração.
Como Bolsonaro apoia grande parte de sua personalidade e sua carreira em seu passado como militar, não é interessante para sua reputação que a instituição seja descredita. Por isso, é de interesse dele que a figura do Exército esteja o máximo possível afastada do escândalo, mantendo-se à sombra do poder. Ainda que se deva atribuir o controle da ação de matar a um ser animado, a construção metonímica de que o Exército matou busca atentar para o fato de que os agentes da ação estavam em serviço, que eram membros da instituição citada. Com treinamento militar, portanto, deviam e sabiam seguir um modus operandi compatível ao padrão e aos protocolos do Exército. A escolha de colocar o Exército como agente é política; tem a finalidade acrática de denunciar o despreparo e o exercício violento da profissão e, para isso, sacrifica, em certo nível, a atribuição da ação a cidadãos: ao despersonificar o agente, dando ênfase à instituição, a responsabilidade do ser animado é compartilhado com o inanimado. A tentativa de Bolsonaro de direcionar os interlocutores para o fato de que não foi o Exército que matou busca apagar o vínculo dos agentes com a instituição, como se fosse um caso deslocado. É uma defesa da ilusão de que, por o Exército ser do povo, não poder estar envolvido em um assassinato.
O segundo ponto a ser analisado é a sequência discursiva “Lamentamos a morte do cidadão trabalhador honesto”. Há uma questão de nominalização bastante marcante na frase, e a maneira como o presidente está predicando o músico merece atenção. O lamento por uma vítima da ação criminosa dos agentes das Forças Armadas do Brasil é condicionada por três fatores: a vítima é cidadã brasileira; a vítima é trabalhadora; a vítima é honesta. Essa modalização gera reflexão acerca da postura diante de mortes cujas vítimas não se encaixam nesse perfil. É permitido balear alguém que não trabalha? Pode-se balear um desonesto, mas não um honesto? Se em algum momento fosse descoberta alguma ilegalidade no histórico da vítima, a morte seria justificada e não haveria o que lamentar?
Trata-se de uma lamentação ideológica, direcionada àqueles que cumprem o requisito de cidadão de bem imaginário para quem o presidente tanto insiste em ser referência. É um lamento que se distancia do caráter brutal da situação, reconhecendo o erro pelas características que a vítima possuía, não pelo crime em si. Destarte, a fala do presidente comunica uma esquiva da ação problemática para o infortúnio que seria a vítima errada. Lamentando ter morrido um cidadão trabalhador e honesto, o assassinato fica em segundo plano; é apagado em certo grau quando, em verdade, a questão principal deve ser independente do perfil dos envolvidos.
Desse modo, percebe-se que é possível, a partir da esquiva, do silêncio, do direcionamento do interlocutor para outra narrativa, mudar o foco das atenções e estabelecer a força de uma opinião. Como ocorreu na fala de Bolsonaro, que inocentou o Estado; como ocorreu na fala de Witzel, que deu ênfase à importância dada aos soldados e, consequentemente, deixou de criticar o despreparo da instituição, a esquiva tem poder de criar discursos e manipular narrativas.
3.2. O SIGNIFICADO A PARTIR DA INVENÇÃO
Contrariando o que Barthes (2004, p. 172-3) diz sobre o discurso histórico ser sempre declarativo, com o privilégio de dizer apenas o que aconteceu, ou seja, relatando aquilo que possui lastros na realidade, não entrando nessa seara eventos fictícios – já que a História não conta o que foi duvidoso ou o que não aconteceu –, encontramos relacionados ao caso uma série de desinformações encarregadas de contar o que não aconteceu a fim de tentar alterar o curso que o fato toma e a maneira como a população o conhece. De fato, não encontramos noticiados em jornais acontecimentos que nunca se deram, como “não houve um assalto ao banco hoje”; todavia, o que se vê, com frequência, são falsos acontecimentos mascarados como verdade.
Em depoimento noticiado pelo jornal online Exame10, o Tenente que comandava a patrulha no dia dos assassinatos afirmou que os soldados estavam assustados e abalados com uma troca de tiros anterior ao ataque que culminou na morte de dois homens alheios àquela ação. Ele afirmou ainda que estava reagindo a um assalto e negou ter atirado contra o músico. De acordo com sua versão, o catador teria assaltado um carro à mão armada e fugido; em seguida foi visto novamente atirando em direção à viatura. Os militares, então, teriam reagido ao que foi chamado de “injusta agressão” pelo Exército em entrevista veiculada pela Veja11.
Em verdade, o discurso é capaz de moldar narrativas e apresentar um fato com aparência diferente do original. Colocando o catador como portador de uma arma, todo significado do referente muda, e os tiros ganham um predicado diferente: inicialmente, são tiros ofensivos e, pelo acréscimo dessas informações, passa a haver tiros defensivos, já que essa narrativa põe os soldados em posição de reação e defesa. O discurso acrático, por sua vez, estando fora do poder e desafiando-o, atua questionando essas narrativas com ressalvas de que nenhuma arma foi apreendida pelos militares naquele dia.
Há de se refletir qual das narrativas vence: qual discurso receberá maior adesão entre os leitores? Fato é que há versões informando diferentes acontecimentos – mesmo sem “prova material”, figuram na história como tendo acontecido –, diferentes existências, criando diferentes referentes. A disseminação das informações bem como o número de veículos que se prestarão a propagar uma ou outra narrativa determinarão como o fato histórico será conhecido, independentemente de como realmente se deu o referente. Trata-se, sobretudo, de escolhas.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante desse recorte a respeito das declarações relacionadas ao caso da morte de Evaldo e Luciano, vimos que não há uma única forma de conhecer um evento da História. Pelos olhos de uns, pode-se tratar de um episódio no qual 80 tiros foram disparados contra um carro, por outra ótica, o mesmo episódio pode ter ocorrido mediante 257 disparos contra pessoas; algumas narrativas informam sobre um assaltante que é apresentado ao público como catador, outras relatam um catador que é igualmente vítima. Como o referente não pode narrar a si mesmo, é necessário um discurso que lhe atribua sentido e significado para que ele exista na linguagem e no imaginário cultural.
O fato é definido a partir do momento em que a linguagem intervém (BARTHES, 2004, p. 176) significando-o, modelando-o. Os moldes linguísticos, por sua vez, não podem ganhar existência senão pela ideologia a qual se materializa, na língua, pela escolha lexical, pela escolha do que falar. Outrossim, tampouco há a percepção complexa da ideologia sem a percepção primeira do poder e da posição do historiador com relação a ele. A ideologia está atrelada aos discursos encrático e acrático porque esses indivíduos que falam e fazem a História não estão separados de uma sociedade – eles falam em socioletos porque são a sociedade.
É apenas com a percepção dos papéis pela língua, de acordo ou contra a dóxa, que podemos observar a fundo como as escolhas discursivas podem se realizar em função de manter a cultura seguindo por um caminho guiado por quem detém o poder ou de apresentar bifurcações geralmente ocultadas. No caso estudado, manter a grande massa em apoio ao Estado e às Forças Armadas é uma questão de controle de poder. Se a população descobrir que quem deveria protegê-la também pode feri-la, se souberem que aqueles que detêm o poder tentam a todo custo fazer as pessoas crerem que estão sendo protegidas e não feridas – malgrado essa crença contrarie o cotidiano dessas pessoas –, aqueles que ocupam as cadeiras mais altas da hierarquia estatal podem ser cobrados ou mesmo depostos. A fim de não perder privilégios, narram-se os fatos como se houvesse explicações palpavelmente válidas. Como mostramos, os discursos de apagamento, de invenção e de evasão são encráticos, pois promovem a manutenção e a proteção do poder de quem lá está.
Havendo tantos objetivos e intenções no ato de discurso que constitui e significa o referente, não podemos entender o fato histórico como único, singular, como intocável, mas como massa moldável, a qual pode assumir múltiplas faces. Nas palavras de Barthes: “[...] foi a palavra que, de algum modo, trabalhou a história, fez com que ela existisse como uma rede de marcas, como escrita operante, deslocante” (BARTHES, 2004, p. 193). Devemos, então, olhar a língua como a arma12 que é e estar preparados para utilizá-la como instrumento de revolução.
5. RECONHECIMENTOS
O artigo foi desenvolvido durante os estudos da disciplina “Tópicos em Linguagem e Humanidades – Linguagem, Filosofia e Sociedade II”, do Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Universidade Federal de Juiz de Fora, com apoio financeiro da Bolsa UFJF de pesquisa.