Share

Research Report

Le devir scripteur: l’enfant parmi les convertions discours-système et parole-écrite dans l’acquisition de l’écriture

Giovane Fernandes Oliveira

Federal University of Rio Grande do Sul image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0001-8251-8353


Keywords

Convertion
Acquisition de l’écriture
Émile Benveniste

Abstract

Cet article a trois objectifs. Le premier est de problématiser l’idée de Silva (2009) selon laquelle l’enfant, dans sa constitution comme parlant, convertit le discours en système et le système en discours. Le deuxième objectif est d’examiner la notion de « convertion » dans la théorie du langage d´Émile Benveniste. Le troisième objectif est de produire une réflexion à propos de l’acquisition de l’écriture, sur la base de données de deux enfants accompagnés pendant deux ans et six mois. Les résultats indiquent que : (1) si le parlant/scripteur constitué opère la convertion du système en discours, le parlant/scripteur en train de se constituer a besoin d’opérer, auparavant, la convertion du discours en système ; (2) l’enfant opère ces convertions dans l’énonciation en tant que structure que l’inclut comme locuteur (« je »), l’autre comme allocutaire (« tu »), la langue (« il ») comme système et discours situés dans la culture et la culture (« IL ») comme ensemble de valeurs, de prescriptions et d’interdictions qui déterminent les modes d’énonciation ; (3) dans cette structure, l’enfant convertit le discours – parlé et écrit – de l’autre en système propre jusqu’au moment où il devient capable de convertir ce système en discours propre ; (4) c’est donc le discours de l’autre, du parlant/scripteur constitué, qui promeut l’enfant à la condition loquens/scripteur, en étant pour lui un pont qui lui pousse au système.

Introdução

Os especialistas na obra de Émile Benveniste são unânimes acerca das dificuldades de se lerem os textos do autor, os quais se singularizam por particularidades tanto contextuais quanto textuais. Contextuais, pois o linguista elaborou sua teoria da linguagem no decorrer de mais de três décadas, em publicações sobre temáticas as mais variadas, dispersas por periódicos e públicos da linguística e de exteriores disciplinares. Textuais, pois são notórios os desafios que os escritos benvenistianos impõem aos leitores, em termos tanto de oscilações terminológicas, nocionais e conceituais quanto de relações inter- e intratextuais nem sempre compatíveis com o ideal de objetividade do modus scripturalis da ciência galileana.

Feito esse preâmbulo, esclareço que, sem ignorar a diversidade da obra benvenistiana e todos os desafios implicados em sua leitura, o Benveniste que escolho para orientar este trabalho é o “Benveniste enunciativista” e o “Benveniste semiólogo”1. Essa escolha justifica-se pelos objetivos da presente investigação, que a inserem em um dos três eixos temáticos de estudos benvenistianos desenvolvidos no Brasil na atualidade (cf. FLORES, 2017, p. 77)2

Quanto aos objetivos, trata-se de três. O primeiro, de caráter teórico, consiste em problematizar a ideia de Silva (2009) de que a criança, em sua constituição como falante, converte o discurso em sistema e o sistema em discurso. O segundo objetivo, de caráter intrateórico, consiste em investigar a noção de “conversão” na teoria da linguagem de Émile Benveniste, mais especificamente em sua teorização enunciativa e em sua teorização semiológica. O terceiro objetivo, de caráter teórico-analítico, consiste em produzir, a partir das ideias de Benveniste e de Silva sobre a noção de “conversão”, uma reflexão acerca da aquisição da escrita.

Quanto aos eixos temáticos, esta pesquisa situa-se na intersecção do segundo e do terceiro eixos da recepção contemporânea de Benveniste no país. Com o segundo objetivo, o estudo localiza-se no terceiro eixo, buscando discernir intrateoricamente os contornos da noção benvenistiana de “conversão”. Com o primeiro e o terceiro objetivos, o trabalho enquadra-se no segundo eixo, debruçando-se sobre um fenômeno – a aquisição da escrita – que requer a abertura do pensamento do linguista ao diálogo com o campo aquisicional.

Por isso, os seus textos teóricos são aqui lidos como partes de uma mesma teoria da linguagem – a benvenistiana –, circunscrita a duas teorizações – a enunciativa e a semiológica –, às quais são transversais: (a) o pressuposto antropológico do “homem na linguagem/na língua”; (b) o princípio de que a significação é o fundamento da linguagem como faculdade simbólica e da língua tanto como sistema significante quanto como atividade discursiva.

Em termos de estrutura, organizo este artigo em três seções, em cada uma das quais busco cumprir um dos três objetivos apresentados anteriormente.

1. Os estudos aquisicionas de orientação benvenistiana

Deve-se a Carmem Luci da Costa Silva (2009) a abertura de uma perspectiva de aquisição da língua orientada pelo pensamento benvenistiano. Levando em conta os objetivos deste artigo, limito-me a recapitular algumas noções fundantes dessa perspectiva: as noções de “língua”, “aquisição”, “enunciação”, “sujeito” e “alteridade”.

Segundo tal abordagem, a língua é duplamente concebida como sistema de unidades significantes que realiza materialmente a faculdade humana de simbolizar (linguagem) e como discurso mediador das relações homem/homem (intersubjetividade) e homem/mundo (referência), discurso que realiza o sistema linguístico vocalmente3. Já a aquisição da língua é entendida como ato de enunciação em que a criança converte o discurso em sistema e o sistema em discurso, atualizando e renovando em cada “aqui-agora” (sincronia enunciativa) a sua “história de enunciações” (diacronia enunciativa). A enunciação, por sua vez, é assumida como estrutura de aquisição da língua que comporta a criança (“eu”), o outro (“tu”), a língua (“ele”) e a cultura (“ELE”), sendo esse “ELE” um elemento teórico original proposto por Silva (2009) para representar os elementos sociais e culturais.

Conforme essa proposta, o sujeito da aquisição é concebido como sendo, simultaneamente, “cultural” (a criança nasce e cresce numa sociedade particular, com uma cultura e uma língua também particulares), “dialógico” (a criança é constituída e constitui o outro em situações de diálogo) e “linguístico-enunciativo” (a criança produz sentidos e referências marcados formalmente no discurso). Para Silva (2009), o sujeito da aquisição (“eu”) instaura-se na língua em uma dupla alteridade, com o outro da alocução (“tu”) e com o outro da cultura (“ELE”). Enquanto “eu” e “tu” designam, respectivamente, as figuras do locutor (criança) e do alocutário (outro), o “ele” representa a língua enquanto sistema e discurso situados na cultura e o “ELE” simboliza a própria cultura enquanto conjunto de valores, de prescrições e de interdições que determinam os modos de enunciação.

Nessa dupla alteridade, “a criança opera a conversão do discurso em língua e da língua em discurso” (SILVA, 2009, p. 223, negritos meus), produzindo “uma história de enunciações, por meio da qual constitui sua língua materna e o sistema de representações de sua cultura, estabelecendo-se, desse modo, como sujeito de linguagem” (SILVA, 2009, p. 286).

Gostaria de chamar a atenção para a citação com negritos no parágrafo anterior. Nela, Silva (2009) retoma e, ao mesmo tempo, ressignifica a seguinte asserção de Benveniste: “A enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso” (BENVENISTE, 2006 [1970], p. 83)4. Na próxima seção, resgatarei essa formulação benvenistiana, a fim de examiná-la mais de perto. Por ora, atento para a maneira como Silva (2009) a reformula. Tal reformulação consiste em uma reiteração (conversão língua-discurso), antecedida de uma inversão (conversão discurso-língua).

O que está em jogo nessa reformulação? Nela, Silva (2009) articula o postulado benvenistiano à aquisição da língua em sua realização vocal. Se, para Benveniste, o locutor (falante constituído) opera a conversão da língua em discurso, para Silva (2009), a criança (falante em constituição) opera tanto a conversão da língua em discurso quanto uma conversão anterior a esta: a do discurso em língua. Mais do que meras inversão e anterioridade, penso que está em jogo, nessa reformulação, uma ideia que merece ser explorada.

Entendo que, se o locutor (um já falante) opera sem dificuldades a conversão da língua (sistema já estabelecido) em discurso, essa conversão não é pacífica para a criança (um falante em devir), a qual não tem ainda um sistema consolidado para discursivizar. Assim, antes de converter uma língua que ainda não existe em discurso, a criança precisa converter o discurso em língua. Mas, se uma das definições benvenistianas de “discurso” é a de enunciado resultante do ato enunciativo e cujo material necessário é o sistema linguístico, que discurso é esse que figura, para a criança, como a ponte que a alça ao sistema? Uma resposta a essa pergunta encontramos em germe em Benveniste e, teorizada em termos aquisicionais, em Silva.

Diz Benveniste no texto “Os níveis da análise linguística”: “É no discurso atualizado em frases que a língua se forma e se configura. Aí começa a linguagem [o sistema]” (BENVENISTE, 2005 [1962/1964], p. 140, acréscimo meu). Para o linguista, a dupla propriedade da frase (a de conter sentido e referência) é “a condição que a torna analisável para o próprio locutor, a começar pela aprendizagem que ele faz do discurso quando aprende a falar”. Nesse exercício, a criança reconhece o “signo sob a espécie da ‘palavra’” (BENVENISTE, 2005 [1962/1964], p. 140, aspas do original), palavra que integra como constituinte a frase5.

Deslocando essa reflexão benvenistiana para a aquisição, Silva (2009) defende que “É pela língua em uso através do discurso, percebido, inicialmente, em segmentos analisáveis – frases – que o locutor instancia o sentido e a referência – o ele, constituindo-se como sujeito na estrutura da enunciação e instaurando-se na estrutura de sua língua” (SILVA, 2009, p. 150, negritos do original). Por isso, segundo a autora, é importante “observarmos, no processo de aquisição da linguagem, a apropriação da palavra pela criança a partir da escuta da frase do ‘outro’, o que aponta a necessidade de considerarmos a análise dos dados, numa perspectiva enunciativa, a partir do diálogo (SILVA, 2009, p. 150-151, itálicos e aspas do original).

É, pois, o discurso do outro, do falante constituído – representante, a um só tempo, da língua e da cultura –, que, no diálogo enunciativo, promove a criança à condição loquens6. Nesse discurso, o sistema linguístico encontra-se convertido em uma materialidade na qual as unidades sistêmicas (signos) são atualizadas em unidades discursivas (palavras integradas em segmentos frasais, portadores de sentido e de referência). Reconhecendo o signo sob a espécie da palavra, a criança apropria-se dessa unidade linguística produzida pelo outro, uma apropriação que se dá primeiramente via escuta7 e, posteriormente, também via fala. Em função disso, a enunciação não é, em nossa perspectiva aquisicional enunciativa, concebida somente como um ato individual de utilização da língua, mas principalmente como uma estrutura dialógica de aquisição desta, em que a criança (“eu”), na alteridade com o outro da alocução (“tu”) e com o outro da cultura (“ELE”), vai convertendo o discurso do outro/outro em sistema próprio, até se tornar capaz de converter esse sistema em discurso próprio.

Antes de passarmos à seção seguinte, um esclarecimento. Os usos dos termos “língua” e “discurso” por Benveniste e por Silva, em seus textos até aqui citados, situam-se no contexto da teorização enunciativa benvenistiana, na qual a enunciação é teorizada como a passagem da língua enquanto sistema ao discurso enquanto uso do sistema. Contudo, em textos de sua teorização semiológica, o linguista não fala em língua e em discurso como se duas entidades diferentes fossem; ele fala numa língua bidimensionalmente concebida, pois “combina dois modos distintos de significância, que denominamos modo SEMIÓTICO por um lado, e modo SEMÂNTICO, por outro” (BENVENISTE, 2006 [1969], p. 63, maiúsculas do original).

Se, para o Benveniste enunciativista, o discurso contém a língua enquanto sistema, para o Benveniste semiólogo, a língua contém tanto o sistema (dimensão semiótica) quanto o discurso (dimensão semântica). Como este estudo se funda tanto sobre a teorização enunciativa benvenistiana quanto sobre a sua teorização semiológica, eu falarei, aqui, em conversão não do discurso em língua e da língua em discurso, mas do discurso em sistema e do sistema em discurso, entendendo sistema e discurso como duas maneiras de ser língua: ou, em termos aristotélicos, como a língua em potência (sistema) e como a língua em ato (discurso8).

2. A noção de "conversão" na teoria da linguagem de Émile Benveniste

Nesta seção, realizo uma breve leitura da noção de “conversão” em Benveniste, retomando alguns achados de investigação anterior (cf. OLIVEIRA, 2021) e acrescentando outras ideias. Para tanto, divido esta seção em duas subseções, em cada uma das quais discuto uma perspectiva de entendimento da noção de “conversão” no pensamento benvenistiano.

2.1. A conversão sistema-discurso

A primeira perspectiva de entendimento da noção de “conversão” em Benveniste situa-se no âmbito de sua teorização enunciativa e focaliza a conversão sistema-discurso. Tal perspectiva é explicitada nos artigos “A natureza dos pronomes” (1956) e “O aparelho formal da enunciação” (1970), dos Problemas de linguística geral I e II (doravante, PLG I e II), respectivamente.

No texto de 1956, Benveniste sustenta que as formas pronominais pertencem umas à categoria de pessoa (as instâncias do discurso) e outras, à categoria de não pessoa (a sintaxe da língua), categorias que organizam, também, os demais signos linguísticos.

Na primeira categoria, estão os signos associados ao paradigma das pessoas “eu” e “tu” (pronomes de primeira e de segunda pessoas, verbos, advérbios, locuções adverbiais). Trata-se de signos vazios (auto- ou sui-referenciais), pois adquirem referência apenas na enunciação que os contém e na qual se tornam indicadores de pessoa, de espaço e de tempo cada vez únicos. Segundo Benveniste, esses signos vazios fornecem “o instrumento de uma conversão, a que se pode chamar a conversão da linguagem [língua] em discurso” (BENVENISTE, 2005 [1956], p. 280-281, negritos e acréscimo meus). Desse modo, a categoria de pessoa (“eu-tu”) viabiliza a comunicação intersubjetiva, ao prever, no interior mesmo do sistema linguístico, as formas que asseguram sua atualização discursiva.

Na segunda categoria, estão os signos associados ao paradigma da não pessoa “ele” (todas as demais formas da língua, dentre as quais Benveniste destaca os nomes e os chamados pronomes de terceira pessoa). Trata-se de signos plenos (referenciais), cuja referência é sempre uma noção “constante” e “objetiva”. Conforme Benveniste, tais signos plenos correspondem ao “único modo de enunciação possível para as instâncias de discurso que não devam remeter a elas mesmas, mas que predicam o processo de não importa quem ou não importa o que” (BENVENISTE, 2005 [1956], p. 280-281, itálicos do original). Dessa maneira, a categoria de não pessoa (“ele”) é a matriz geradora do processo de predicação linguística, não sendo, pois, menos essencial à comunicação humana do que a categoria de pessoa.

A diferença radical entre essas duas classes de signos remete à diferença, mais geral e mais profunda, entre “a língua como repertório de signos e sistema das suas combinações e [...] a língua como atividade manifestada nas instâncias de discurso caracterizadas como tais por índices próprios” (BENVENISTE, 2005 [1956], p. 283). E onde se situa a noção de “conversão” nessa discussão? Na transformação da língua como sistema à língua como atividade, transformação garantida pelos signos vazios, que proveem o meio dessa transformação.

Isso porque o pronome “eu” – o signo vazio por excelência – não submete ao seu jugo somente os demais signos vazios (pessoais), mas igualmente os signos plenos (não pessoais): “Um enunciado pessoal finito se constitui, pois, sobre um plano duplo: emprega a função denominativa da linguagem [língua] para as referências de objeto que esta estabelece como signos lexicais distintivos, e organiza essas referências de objeto com a ajuda de indicadores auto-referenciais” (BENVENISTE, 2005 [1956], p. 282, acréscimo e negritos meus).

E o que viabiliza essa dupla organização do enunciado é a conversão enquanto processo enunciativo que envolve, a um só tempo, a apropriação do sistema e sua atualização em discurso (com a mobilização dos signos tanto vazios quanto plenos), a enunciação do locutor, a implantação do alocutário e o estabelecimento da referência à realidade do discurso (um sistema de referências internas, mas que também organiza a referência ao “mundo objetivo”, ao articular as categorias de pessoa e de não pessoa na estruturação do enunciado).

Em “O aparelho formal da enunciação” (1970), Benveniste volta a abordar a noção de “conversão”, postulando que “A enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso” (BENVENISTE, 2006 [1970], p. 83, negritos meus). Tal postulado recebe as seguintes glosas: (1) “Aqui a questão [...] é ver como o ‘sentido’ se forma em ‘palavras’, em que medida se pode distinguir entre as duas noções e em que termos descrever sua interação” (BENVENISTE, 2006 [1970], p. 83, aspas do original); (2) “É a semantização da língua que está no centro deste aspecto da enunciação, e ela conduz à teoria do signo e à análise da significância” (BENVENISTE, 2006 [1970], p. 83); (3) “Sob a mesma consideração disporemos os procedimentos pelos quais as formas lingüísticas da enunciação se diversificam e se engendram” (BENVENISTE, 2006 [1970], p. 83).

Quanto à glosa (1), creio que o termo “palavras” tem a acepção de “formas” na citação em questão. Se minha leitura estiver correta, então essa primeira glosa explica a ideia de conversão do sistema em discurso colocando em cena: (a) a relação entre sentidos e formas; (b) a possibilidade de distinguir as duas noções; (c) os termos de sua interação.

Quanto à glosa (2), embora os termos “semiótico” e “semântico”, presentes em “Semiologia da língua” (1969) – texto contemporâneo de “O aparelho formal da enunciação” (1970) –, não constem nesse artigo de 1970, as noções certamente aqui estão, sendo o semiótico retomado como “língua” e o “semântico”, como “enunciação”. Nesse caso, a segunda glosa explica a ideia de conversão do sistema em discurso como “semantização da língua9”, como transformação do semiótico em semântico. Ao fim e ao cabo, na língua em ato, trata-se sempre de uma atualização da língua em potência, de uma discursivização do sistema ou, em outras palavras, de uma conversão do sistema em discurso.

Quanto à glosa (3), quais seriam os procedimentos de diversificação e de engendramento das formas linguísticas da enunciação? Benveniste mesmo responde a tal pergunta ao mencionar, na mesma página, “os caracteres formais da enunciação” e “os instrumentos de sua realização” (BENVENISTE, 2006 [1970], p. 83). Trata-se dos índices de pessoa, de espaço e de tempo, das funções de interrogação, de intimação e de asserção, dos modalizadores verbais e fraseológicos, bem como dos demais mecanismos linguísticos. Aqui, é todo o aparato linguístico que é convocado para explicar a ideia de conversão do sistema em discurso.

Tanto em “A natureza dos pronomes” (1956) quanto em “O aparelho formal da enunciação” (1970), a abordagem da noção de “conversão” comparece em reflexões enunciativas e acentua a relação sistema-discurso. O que muda é o foco de cada texto: se, em 1956, a possibilidade de conversão do sistema em discurso é acompanhada de uma forte distinção entre a categoria de pessoa (índices pessoais, espaciais e temporais) e a categoria de não pessoa (demais formas linguísticas e suas combinações), em 1970, a possibilidade de conversão é acompanhada de uma subordinação do sistema ao discurso.

2.2. A conversão fala-escrita

A segunda perspectiva de entendimento da noção de “conversão” na teoria da linguagem de Benveniste localiza-se no quadro de sua teorização semiológica e enfoca a conversão fala-escrita. Essa perspectiva é elaborada nas “Últimas aulas”10, mais pontualmente na “Aula 5” e na “Aula 7”, do capítulo 1, e na “Aula 8”, do capítulo 2.

Na “Aula 5”, Benveniste argumenta que os sistemas semiológicos distintos da língua não se bastam a eles mesmos, necessitando todos serem verbalizados pela língua, também designada “fala” nessa lição. A noção de “conversão” surge, aqui, acompanhada do lugar privilegiado concedido à escrita em face da fala, em detrimento dos demais sistemas:

Pode-se “dizer a mesma coisa” pela fala e pela escrita, que são dois sistemas conversíveis um no outro, porque são do mesmo tipo. Não se pode “dizer a mesma coisa” pela fala e pela música, que são dois sistemas de tipo diferente. Não se dispõe de vários sistemas distintos para a mesma relação de significação. (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 110-111, aspas e itálicos do original, negritos meus).

Como se vê, nessa passagem, a noção de “conversão” desliza entre dois polos. O primeiro polo refere-se à relação entre a fala e a escrita, dois sistemas que, por terem um fundamento significante comum (a materialidade linguística), admitem ser convertidos um no outro, o que faculta ao locutor “dizer a mesma coisa” em um e em outro. O segundo polo concerne à relação da fala com sistemas que, diferentemente da escrita, não são mutuamente conversíveis com ela (a fala): é o caso da música, que, por ser um sistema de base semiológica distinta, interdita toda e qualquer conversão com a fala.

Na “Aula 7”, as notas de Benveniste reforçam a radical diferença entre a língua e os demais sistemas semiológicos, incapazes de se voltarem sobre si próprios e de se autodescreverem, enquanto a língua pode tomar-se a si mesma como “objeto” e descrever-se em seus próprios “termos”. A noção de “conversão” retorna na nota de ouvinte que encerra essa lição:

Se uma conversão relativa é possível tanto da língua [fala] para a escrita quanto o inverso, isso é impossível entre a composição verbal e a composição musical. [...] Em resumo, as conversões somente são possíveis no interior de um determinado sistema. (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 121, nota de ouvinte, negritos e acréscimo meus).

Logo, se a significância de todos os sistemas semiológicos está na dependência da significância linguística – “[...] apenas é significante o que é denominado pela linguagem [língua]” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 109, acréscimo meu) –, não é de igual modo que a escrita, de um lado, e os demais sistemas, de outro, dependem da fala. A razão desse traço distintivo da escrita reside no fato de que, contrariamente aos outros sistemas de signos, a escrita pode se converter em fala, tal como a fala pode se converter em escrita.

Entretanto, se, na “Aula 5”, a fala e a escrita são apresentadas como sistemas distintos que, por serem de mesmo tipo, podem ser convertidos um no outro, na “Aula 7”, a possibilidade de relativa conversão entre a fala e a escrita deve-se ao fato não de serem sistemas distintos de mesmo tipo, mas de serem partes de um único sistema: o sistema linguístico.

Na “Aula 8”, Benveniste aborda as abstrações que a aquisição da escrita impõe à criança, as quais podem ser sintetizadas em duas grandes “tomadas de consciência”11.

A primeira “tomada de consciência” envolve o fato de que, na relação inicial da criança com a escrita, “A língua é convertida, de repente, em uma imagem da língua” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 129, negrito meu). A noção de “conversão” é glosada, na sequência dessa citação, como a substituição, por “signos” manualmente traçados, de todos os elementos (gestuais, fonoacústicos, situacionais) que caracterizam o exercício do falar. Trata-se do “desprendimento” do contexto de fala, o que exige, por parte da criança, a apreensão da língua como uma “realidade distinta”: “A criança deve se abstrair da necessidade que a faz falar, ir brincar com um amigo ou comer uma maçã, para ‘objetivar’ o dado linguístico /brincar/ ou /maçã/” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 131, aspas do original).

A segunda “tomada de consciência” implica não o desprendimento do contexto de fala, mas a apreensão da materialidade da escrita: “Outro nível de abstração é imposto a quem tem acesso à escrita, a saber: não somente a consciência – ainda que fraca – do falar transferido à língua, isto é, ao pensamento”, o que caracteriza a primeira tomada de consciência, como também “a consciência da língua ou do pensamento – na verdade das palavras – representada em imagens materiais”, o que caracteriza a segunda tomada de consciência: “Da palavra ao desenho da palavra realiza-se um salto imenso, do falar à imagem simbólica do falar” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 131, itálico do original, negritos meus). Os grifos em negrito, nesses trechos, pedem alguns comentários:

(1) A ressalva “ainda que fraca” é pertinente, pois, ao mencionar “tomadas de consciência” e expressões correlatas, Benveniste não está atribuindo, ao locutor na aquisição da escrita, uma intencionalidade psicológica que faria dele um indivíduo plenamente consciente e controlador do seu comportamento linguístico. Como adverte o linguista no texto “Categorias de pensamento e categorias de língua”, dos PLG I, “a realidade da língua permanece, via de regra, inconsciente; [...] não temos senão uma consciência fraca e fugidia das operações que efetuamos para falar” (BENVENISTE, 2005 [1958], p. 68) e, acrescentaria eu, também das operações que efetuamos para escrever.

(2) As expressões “isto é”, “ou” e “na verdade” instituem uma equivalência entre “língua”, “pensamento” e “palavras”, distinguidos do “falar”. É a transferência do falar para a língua/o pensamento/as palavras que o locutor deve realizar (primeira “tomada de consciência”) para, assim, “saltar” da “palavra” ao “desenho da palavra”, do “falar” à “imagem simbólica do falar” e, então, acessar a escrita como representação material da língua/do pensamento/das palavras (segunda “tomada de consciência”).

(3) A expressão “salto imenso” não significa que o processo de aquisição da escrita seja instantâneo, uma vez que “A passagem à escrita é uma reviravolta total, muito demorada para se realizar” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 130, nota de ouvinte, negritos meus). Essas duas expressões – “salto imenso” e “reviravolta total” – sublinham a complexidade da constituição da criança como escrevente, cuja segunda “tomada de consciência” coloca em cena um outro nível de abstração e de simbolização, mais profundo do que o primeiro nível (a primeira “tomada de consciência”).

Isso porque “o ato de escrever não procede da fala pronunciada, da linguagem em ação, mas da linguagem interior, memorizada” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 132, aspas do original). Por “fala pronunciada” e “linguagem em ação”, considero que Benveniste entende o ato de falar, aquilo que, em “O aparelho formal da enunciação” (1970), ele chamará de língua em sua realização vocal. Para o linguista, o ato de escrever não procede do ato de falar não porque não tem relação alguma com esse ato (essa relação existe e será abordada, nas aulas seguintes, em termos de correspondência fonia-grafia). Na perspectiva benvenistiana, a relação entre o escrever e o falar não é direta nem transparente, na medida em que “A escrita é uma transposição da linguagem interior, e é preciso primeiramente aceder a essa consciência da linguagem interior ou da ‘língua’ para assimilar o mecanismo da conversão em escrito” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 132, aspas do original, negritos meus). As expressões grifadas, nesse excerto, igualmente solicitam alguns esclarecimentos:

(1) O advérbio “primeiramente” não é gratuito: considerando-se a argumentação benvenistiana, parece haver uma espécie de anterioridade lógica da relação linguagem interior-escrita quanto à relação fala-escrita. Antes de relacionar-se com a fala, a escrita relaciona-se com a linguagem interior, da qual é uma transposição. No entanto, também a fala – e, aqui, insiro uma leitura mais pessoal – parece ser uma transposição da linguagem interior, como sugerem as seguintes notas: “Com a escrita, o locutor deve se desprender da representação que tem instintivamente do falar enquanto atividade, enquanto exteriorização de seus pensamentos, enquanto comunicação viva” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 129, negritos meus); “Tornar inteligível a linguagem interior é uma operação de conversão que acompanha a elaboração da fala e a aquisição da escrita” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 132, negritos meus). Se procede minha interpretação, tanto a escrita quanto a fala seriam transposições/elaborações/exteriorizações da linguagem interior, de maneira que haveria tanto um “mecanismo de conversão em (discurso) escrito” quanto um “mecanismo de conversão em (discurso) falado”. Conversão do quê? Da linguagem interior. Mas o que seria essa linguagem interior? Isso nos conduz ao esclarecimento seguinte.

(1) A questão da linguagem interior é demasiado espinhosa para ser aqui enfrentada com a atenção que lhe é devida. Outros autores12 dela se ocupam, buscando compreender as ideias de Benveniste – muito embrionárias, é preciso que se diga – acerca dessa noção. Por razões de escopo e de espaço, neste artigo, somente introduzo uma tese sobre isso, sem no momento reunir argumentos para sustentá-la: não há, em Benveniste, diferença teórico-nocional – ao menos não uma diferença significativa – entre, de um lado, o termo “linguagem interior” e, de outro lado, o termo “pensamento”. Ambos os termos são postos em relação de equivalência com o termo “língua”: “[...] consciência – ainda que fraca – do falar transferido à língua, isto é, ao pensamento [...]” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 131, negritos meus); “[...] consciência da linguagem interior ou da ‘língua’[...]” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 132, aspas do original, negritos meus). Neste trabalho, entendo os termos “língua”, “pensamento” e “linguagem interior” como equivalentes. Dessa maneira, levando em conta que, anteriormente, defini “língua” enquanto sistema e discurso (cf. seção 2), “pensamento” e “linguagem interior” igualmente devem ser compreendidos enquanto sistema e discurso. Como sistema, trata-se de tomar língua, pensamento e linguagem interior em termos de potência significante, não atualizada e com uma anterioridade lógica em relação à sua atualização. Como discurso, trata-se de tomá-los em termos de realização igualmente significante que atualiza (transpõe/elabora/exterioriza) tal potência vocal e graficamente (ou, no caso da língua de sinais, visoespacialmente).

Em síntese, tanto na “Aula 5” e na “Aula 7” quanto na “Aula 8”, a abordagem da noção de “conversão” figura em discussões semiológicas e ressalta a relação fala-escrita. Se, na “Aula 5” e na “Aula 7”, enfatiza-se a conversão entre fala e escrita ora como sistemas distintos (“Aula 5”), ora como partes de um único sistema (“Aula 7”), na “Aula 8”, destaca-se a conversão enquanto mecanismo/operação em que os atos de falar e de escrever transpõem/elaboram/exteriorizam a língua/o pensamento/a linguagem interior, transposição/elaboração/exteriorização que pode ser entendida em termos de realização/atualização de uma potência significante logicamente anterior a tais atos.

3. As conversões linguísticas na aquisição da escrita

Quer se trate de relações sistema-discurso ou fala-escrita, quando estão em jogo conversões em e a partir de Benveniste, é sempre de conversões linguísticas que se trata. Numa abordagem da aquisição da escrita a partir da teoria da linguagem benvenistiana, não poderia ser diferente. Em minha tese de doutorado, em desenvolvimento, busco lançar as bases de uma tal abordagem. É dessa pesquisa que colho os dados analisados na sequência.

São recortes enunciativos de dois corpora: um oriundo de Helena (HEL) e outro, de Emanuel (EMA)13. Ambas as crianças – de classe média e falantes monolíngues do português brasileiro – foram acompanhadas longitudinalmente, em coletas naturalísticas, realizadas em ambiente doméstico, de uma a duas vezes por mês, ao longo de dois anos e seis meses, em sessões filmadas, com duração entre meia e uma hora. HEL foi acompanhada dos três anos e três meses aos cinco anos e nove meses, antes de alfabetizar-se. EMA foi acompanhado dos seis anos e três meses aos oito anos e nove meses, durante o ciclo de alfabetização14.

No que diz respeito à análise – de cunho enunciativo e, por conseguinte, qualitativo – esta será, aqui, operacionalizada a partir do dispositivo teórico-metodológico ­­“(eu-tu/ele)-ELE” (cf. SILVA, 2009), o qual delimita tanto a unidade quanto o procedimento de análise. Quanto à unidade, trata-se do recorte enunciativo enquanto materialidade linguística que atualiza o referido dispositivo, incluindo, numa estrutura trinitária, os parceiros da alocução (“eu-tu”), a língua (“ele”) e a cultura (“ELE”). Quanto ao procedimento, trata-se do exame de como, em cada recorte, configura-se tal estrutura trinitária, em termos de produção e de compreensão de formas, de sentidos e de referências que criam uma situação enunciativa cada vez singular, mas sempre mergulhada em práticas sociais que supõem uma certa regularidade de usos da língua e a produção de uma inteligibilidade partilhada pelos participantes do diálogo (cf. OLIVEIRA, 2020). Mais especificamente, a análise focalizará, nos recortes enunciativos aqui selecionados, a questão das conversões linguísticas na aquisição da escrita. Na transcrição dos recortes, são adotadas as seguintes convenções: Sublinhado

CONVENÇÕES PROCEDIMENTOS
[= ] Ação não verbal simultânea a verbalizações
Com Comentário descritivo da situação, como de dizeres e de gestos da criança e de seu alocutário não simultâneos a verbalizações
Negrito Segmento relevante para a análise
Sublinhado Tom descendente
MAIÚSCULAS Tom ascendente (em transcrição de alocução falada) Letra bastão (em transcrição de enunciado escrito)
Repetição Alongamento vocálico e consonântico
@ Pausa curta, com duração de até 3 segundos
@@@ Pausa longa, com duração de mais de 3 segundos
[...] Segmento não relevante suprimido na transcrição
{?} Dúvida de transcrição
XX Palavra ou frase não compreendida pelo transcritor
/ Interrupção brusca de alguma palavra ou frase
] Sobreposição de vozes
? Entonação de interrogação
! Entonação de exclamação
, Organização de enunciações extensas ou enumerações
- Soletração ou silabação (grafemas* e sílabas separados por hífen)
= Combinação de grafemas em sílabas e de sílabas em palavras
*. Quadro 1. Convenções de transcrição. Fonte: Elaborado pelo autor com base em Silva (2009) e em Diedrich (2015).

Feitas as considerações metodológicas, passemos à análise.

Recorte enunciativo 1 – Alocução falada

Idade da criança: 3;04.20.

Participantes: HEL (criança); GIO (investigador); MÃE; AVÓ; TIA; VIC (primo, de 6 meses).

Situação: HEL está sentada na cozinha da casa de sua AVÓ, onde os demais participantes da situação a provocam a “ler” em voz alta um livro da Turma da Mônica, o qual é uma paródia do conto de fadas A bela e a fera.

Figure 1.

Nesse recorte, HEL tem 3 anos, 4 meses e 20 dias, frequentando a educação infantil há um ano e meio. Ela é já falante-ouvinte em sua língua materna e consegue operar, sem dificuldades, a conversão do sistema em discurso falado. Três questões se sobressaem aqui.

A primeira questão envolve uma mudança de atitude de locutor da criança na relação intersubjetiva e referencial que, nessa situação de “leitura”, estabelece com familiares. Inicialmente, convocada pelo outro (TIA: “quê que tem aí?” / MÃE: “quê que é esse livro?”), a criança fala como se estivesse “lendo” em voz alta, produzindo alongamentos vocálicos (“com muuuitas personage [= abre o livro, fingindo ler e olhando para a MÃE e a TIA] que tooodo mundo namora XXX [= vira a página]”). Contudo, por ainda não ser, de fato, escrevente-leitora, nega-se a continuar “lendo” na sequência, enunciando tal recusa com um tom descendente, o qual parece evocar uma atitude de constrangimento (“eu num sei lêêê”).

Isso suscita do outro da alocução falada diferentes reações, seja se oferecendo para ler para ela (TIA: “tu qué que eu leia pra ti?”), seja lhe pedindo para ler para si (MÃE: “tu não vai contá pra mim a historinha?”). HEL ignora a pergunta da TIA e responde negativamente à da MÃE (“depois eu te conto @ agora não”). Então, GIO lhe pede para ler a um “terceiro”, deslocando a autorreferência dos enunciados da TIA e da MÃE (“tu”, “eu”, “ti”, “mim”) para uma referência mais “objetiva” em termos enunciativos (“conta a historinha pra mamãe”). Nesse momento, a recusa da criança vira aceitação: ela reinicia uma “leitura” em voz alta, marcando tal reinício com a atualização de uma expressão fraseológica prototípica de narrativas infantis, expressão enunciada em um tom ascendente, que parece evocar uma atitude de empolgação (“ERA UMA VEZ um buxo”).

Essa mudança de atitude de locutor da criança, na relação com o alocutário, com o referente e com a “leitura” (da aceitação à recusa e, desta, novamente à aceitação de “ler”), é a primeira questão que ganha relevo nesse recorte 1. A segunda questão diz respeito aos diferentes papéis figurativos por HEL assumidos quando, aparentemente não mais constrangida com o fato de ainda não ler alfabeticamente, ela se engaja na alocução falada.

Nesse engajamento, a criança preenche o lugar enunciativo de falante e atribui ao alocutário o lugar coenunciativo de ouvinte por meio de distintos modos enunciativos: ora numa relação culturalmente simétrica de uma colega se endereçando a seus pares (“ÔS colega! fica quieto que eu vô contá uma história”); ora numa relação culturalmente assimétrica de uma professora se dirigindo a seus alunos (HEL: “EU SÔ POFESSORAAA!” / AVÓ: “conta a historinha pra nóis” / TIA: “ai eu / eu vô contá” / HEL: “NÃÃÃO! @ a pofessora disse que não!”); ora numa relação fantasiosa de uma bruxa ameaçando seus reféns (MÃE: “o quê que a bruxa fez?” / HEL: “RÁ-RÁ-RÁÁÁ” / “eu vô botá vocês preso na gaiola”). Tais papéis, referidos no discurso da criança, são sustentados também discursivamente pelo alocutário – primeiro via correferência (escuta) e, depois, via referência (fala) que ele próprio, ao se inverter em locutor, produz (MÃE: “conta coleguinha a sua história” / “por favor professora” / GIO: “o dindo tá preso também!” / HEL: “na minhas gaiola” / “AVÓ: e aqui tá a gaiola óóó”).

As duas primeiras questões sublinhadas nesse recorte 1 mostram um quadro formal de enunciação consolidado do ponto de vista da língua em sua realização vocal. Afinal, a criança produz atos de enunciação falada via diversos instrumentos linguísticos, tanto segmentais quanto suprassegmentais. Tais instrumentos lhe ajudam a transitar bem pela situação enunciativa “real” (o diálogo falado com os familiares na cozinha da casa de sua avó) e a projetar, no interior dessa situação enunciativa “real”, situações enunciativas “imaginadas” (diálogos colega-colegas, professora-alunos, bruxa-reféns). É como se o locutor fizesse da situação “real” uma espécie de “matrioska”, boneca artesanal russa que contém dentro de si, em miniatura, outras bonecas (nesse caso, uma situação que contém dentro de si outras situações).

Dentre os instrumentos segmentais, destacam-se sintagmatizações que articulam as categorias de pessoa e de não pessoa, como em “depois eu te conto @ agora não”, em que formas pronominais (“eu” e “te”) são encadeadas com uma forma verbal (“conto”) e com formas adverbiais (“depois”, “agora”, “não”). Nesse enunciado de HEL, é interessante observar como a partícula não pessoal “não” é agenciada com dêiticos pessoais e temporais, o que ilustra a subordinação do sistema geral (categoria de não pessoa) ao discurso singular (categoria de pessoa), no estabelecimento de um “sistema de referências internas cuja chave é eu, e que define o indivíduo pela construção lingüística particular de que ele se serve quando se enuncia como locutor” (BENVENISTE, 2005 [1956], p. 281, itálico do original).

Dentre os instrumentos suprassegmentais, ressalta-se a marcação prosódica da mudança atitudinal do locutor – alongamentos vocálicos como marca de leitura em voz alta; entonação baixa como marca de aparente constrangimento ao se reconhecer como não leitora; entonação alta como marca de aparente empolgação ao voltar a “ler”. Além da prosódia, a criança faz “[...] recurso a outro sistema de comunicação que não o lingüístico, no entanto sub-lingüístico, [o] do simples gesto” (BENVENISTE, 2006 [1966/1967], p. 232), como ao assumir o papel da bruxa (“eu vô botá vocês preso na gaiola [= fala e gesticula com as mãos como uma bruxa]”). A expressões gestuais como essa, somam-se expressões faciais, que acompanham as verbalizações (como em “RÁ-RÁ-RÁÁÁ [= abre a boca e finge rir como uma bruxa]”). A língua e o corpo atuam, pois, juntos na conversão do sistema em discurso falado.

Todavia – e, aqui, emerge uma terceira questão relevante do recorte 1 –, como não há ainda, nesse momento, uma leitura alfabética, em que a criança consiga converter o discurso escrito em discurso falado (seja lendo o escrito em voz alta, seja o comentando vocalmente após lê-lo silenciosamente), há, em tal recorte, uma espécie de indexação do “ler” no improviso do falar. Este, porém, não deixa de carregar “marcas de uma história de leitura” (I. L. SOARES, 2018, p. 158), já iniciada alhures:

(1) o uso do lexema “personagens” e da expressão “era uma vez”, elementos característicos de histórias para crianças;

(2) a simulação de relações intersubjetivas e referenciais de contação de histórias (colega-colegas; professora-alunos), muito provavelmente experienciadas pela criança anteriormente, na educação infantil, simulação que produz efeitos de dramatização e de teatralização desencadeados por “arranjos vocais” como os alongamentos vocálicos ao começar a “ler” (cf. DIEDRICH, 2015, p. 119);

(3) o próprio manuseio do livro pela criança, que o fecha, abre-o, folheia-o enquanto dialoga com o outro, parecendo atualizar, no “aqui-agora” (sincronia enunciativa), uma atividade humana já realizada num “lá-antes” (diacronia enunciativa);

(4) a convocação e a sustentação pelo alocutário de um lugar de leitura para a criança (GIO: “tu tem que virá as páginas e i contando e i lendo” / TIA: “lê o que tá escrito aqui” / AVÓ: “conta pra nóis”), convocação e sustentação feitas via enunciados falados que projetam, uma sobre a outra, as categorias de pessoa e de não pessoa, encadeando formas dêiticas (como “tu”, “nóis”, “aqui”), formas verbais (como “virá”, “contando”, “lendo”, “lê”, “conta”) e palavras gramaticais (como “que”, “e”, “o”, “as”, “pra”) – enfim, enunciados simples, mas que testemunham o turbilhão de formas, de sentidos e de referências no qual o sistema chega à criança convertido em discurso falado do outro (o alocutário), discurso em que ecoa a voz do outro (a cultura).

Isso atesta que as relações de intersubjetividade, de referência e de forma-sentido são sempre instauradas no interior de práticas sociais e, por isso, revestidas de valores culturais. Tal laço da enunciação com a cultura de uma sociedade se deve à natureza semiológica da língua, a qual, tanto como sistema quanto como discurso, recorta e significa o real de algum modo. Natureza que “parece ser comum a todos os comportamentos que se institucionalizam na vida social” (BENVENISTE, 2006 [1966/1967], p. 228), como situações ritualísticas em que crianças e adultos “leem” em voz alta e dialogam sobre o “lido”.

Entretanto, nesse recorte, devido à presença apenas de conversões sistema-discurso falado e à ausência de conversões fala-escrita (mais especificamente, devido à ausência de conversões escrita-fala, que possibilitariam uma efetiva leitura em voz alta), o “ler” e o diálogo sobre o “ler” se ancoram não nos enunciados escritos do livro, mas somente nas gravuras deste (TIA: “quem são os personagens?” / HEL: “são os personage que mata os bichos / ÓÓÓLHA! XXX [= mostra algo na página]”). Tal ancoragem no icônico remete àquilo que Benveniste, na “Aula 6”, designa como “princípio da representação por imagens”: “Estamos aqui na dependência não tanto da língua [em sua realização gráfica] quanto de uma ‘história’, de uma ‘narração’, de uma ‘ação’ falada” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 117, itálicos e aspas do original, acrescimo meu) – uma dependência da língua em sua realização vocal, portanto.

Retomando as duas “tomadas de consciência” do locutor na aquisição da escrita, podemos concluir que HEL ainda não realizou a primeira “tomada de consciência”, a qual consiste em “se desprender dessa riqueza ‘contextual’ [a do falar], que, para o falante, é essencial” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 131, nota de ouvinte, acréscimo meu). Ou, ao menos, ela não a realizou inteiramente, visto já mostrar uma certa relação com a “leitura” e com a literatura infantil. Como não consegue abstrair o “aqui-agora” da alocução falada nem se deslocar entre este e o espaço-tempo instaurado pelo enunciado escrito, a criança terá, ainda, de percorrer um longo caminho até apreender a língua numa realidade distinta do uso que dela faz na fala.

Recorte enunciativo 2a – Alocução falada-escrita

Idade da criança: 7;01.16.

Participantes: EMA (criança); GIO (investigador); MÃE.

Situação: EMA está sentado na sala de sua casa, na companhia de GIO, que o desafia a escrever rimas sobre os presentes que ganhou em seu aniversário de sete anos, no mês anterior. A MÃE, da cozinha, também participa da situação em alguns momentos.

Figure 2.

Recorte enunciativo 2b – Enunciado escrito15

Figure 3.

Nesse segundo recorte, EMA tem 7 anos, 1 mês e 16 dias, frequentando o segundo ano do ensino fundamental. Três aspectos igualmente se destacam aqui.

O primeiro aspecto implica a convocação, por parte do alocutário, para a criança escrever rimas sobre os presentes que ganhou em seu recente aniversário, de sete anos. De início, EMA reluta em preencher o lugar enunciativo de escrevente (“que tal a gente fazê os desenho deles? [= olha para GIO]”). O outro da alocução, porém, insiste em convocá-lo à escrita, chegando a se incluir nessa convocação por meio da forma pronominal “a gente” (“não, a gente vai escrevê / a gente já fez desenho”).

Esse pronome atualiza o que, em “Estrutura das relações de pessoa no verbo”, Benveniste (2005 [1946], p. 259, itálico do original) nomeia como “pessoa amplificada”. Trata-se de um efeito de sentido produzido pela “forma inclusiva” da primeira pessoa do plural “nós” enquanto “eu + tu”. Tal forma “efetua a junção das pessoas entre as quais existe a ‘correlação de subjetividade’”, ou seja, a correlação “eu” (pessoa subjetiva) / “tu” (pessoa não subjetiva), mas que faz predominar, pelo efeito de inclusão, o “tu”, “comportando a junção da pessoa não subjetiva com o ‘eu’ implícito” (BENVENISTE, 2005 [1946], p. 257, aspas do original)16.

É como se o adulto, ao converter o sistema em discurso falado para convocar a criança a convertê-lo em discurso escrito, “amplificasse”, no interior da correlação de subjetividade da alocução falada, o traço subjetivo de que desfruta ao enunciar na alocução escrita (na condição de escrevente já constituído), estendendo tal traço à condição da criança nessa mesma alocução (a de escrevente em constituição). Condição cuja instabilidade parece justificar a relutância da criança em preencher o lugar de “eu” via escrita (“eu / eu não queria escrevê XXX [= sorri envergonhado para GIO]”).

Não estou sugerindo, aqui, que o outro (ainda que pesquisador de enunciação) tenha mobilizado a forma “a gente” intencionalmente, devido à propriedade enunciativa desta. Trata-se, isto sim, da ação – sobre os parceiros da alocução – da língua enquanto sistema convertido em discurso, ação que reforça o estatuto da intersubjetividade (relação locutor-alocutário) como condição da subjetividade (relação locutor-língua) e da referência (relação alocução-mundo). Em outras palavras: por meio da forma inclusiva “a gente”, em “a gente vai escrevê”, o outro inclui a criança no circuito da escrita, reconhecendo-a como escrevente.

Ao passo que o primeiro aspecto marcante nesse recorte é a correlação de (inter)subjetividade (“eu/tu”), matriz dialógica, o segundo aspecto é a correlação de pessoalidade (“eu-tu/ele”), matriz referencial. No início do recorte 2, retorna o princípio da representação por imagens, transversal ao recorte 1, de HEL. A despeito da insistência de GIO (“o que tu vai escrevê?”), EMA persiste na vontade de desenhar (EMA: “eu vô fazê a camisaaa [= desenha uma camiseta na folha do caderno]” / GIO: “tu vai desenhááá? @ mais a gente vai escrevê!” / EMA: “ah, mais eu vô fazê só a camisinha”).

O desenho não deixa de ser um signo que representa o real, isto é, que estabelece “uma relação de ‘significação’ entre algo e algo diferente” (BENVENISTE, 2005 [1963], p. 27, aspas do original) – logo, uma relação referencial. No entanto, o desenho não é um signo linguístico, mas um “signo icônico”, fundado no que Benveniste chama, na “Aula 8”, de “iconização do pensamento”, a qual “suporia provavelmente uma relação de outra espécie entre o pensamento e o ícone do que aquela entre o pensamento e a fala, uma relação menos literal, mais global” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 132-133).

Resgatando a reflexão, também da “Aula 8”, acerca da linguagem interior, entendo que a relação pensamento-fala (e escrita) é uma relação de transposição/elaboração/exteriorização, pelo mecanismo/operação/ato de falar (e pelo de escrever), da língua/do pensamento/da linguagem interior enquanto potência significante não atualizada e logicamente anterior à sua atualização. Assim, a relação pensamento-fala/escrita é a própria conversão sistema-discurso, um processo trabalhoso, que requer do locutor mais abstrações do que a relação pensamento-ícone.

Essa última relação é mais global e menos literal (no sentido de “menos conformada à letra”) porque o desenho não contém a língua em sua realização gráfica, isto é, não contém uma organização de formas e de sentidos discretizados em níveis e em unidades. O que o desenho representa é o ontos e não o logos, o objeto do discurso e não o discurso enquanto atualização do sistema linguístico. Convocado por GIO a escrever rimas sobre os presentes que ganhou de aniversário, EMA desenha um desses presentes, uma camiseta (cf. desenho azul grifado em laranja no recorte 2b). É preciso, então, que a MÃE, enquanto um alter ao mesmo tempo da alocução (“tu”) e da cultura (“ELE”), intervenha e enuncie uma prescrição (“escreeeve!”) que opera como que um “corte” na relação da criança com o eikon, o “ícone”, impondo-lhe a littera, a “letra” como base significante da língua em sua realização gráfica, como material necessário da enunciação escrita.

Enquanto o primeiro e o segundo aspectos pontuados no recorte 2 põem em relevo, respectivamente, a intersubjetividade (correlação “eu/tu”) e a referência (correlação “eu-tu/ele”), o terceiro aspecto coloca em cena a semantização do semiótico em termos de conversão do signo (unidade sistêmica) em palavra (unidade discursiva).

Apesar de ainda apegado ao desenho, EMA já ultrapassou, a essa altura, o princípio icônico, o da representação por imagens, tendo já alcançado “o princípio alfabético: uma letra, um som” (BENVENISTE, 2006 [1969], p. 53-54), ou, em termos mais precisos: um grafema, um fonema. A superação, pela criança, do princípio icônico significa que a sua escrita já “mudou de função”, como diz Benveniste na “Aula 12”: “[...] de instrumento para iconizar o real, ou seja, o referente, a partir do discurso, ela se torna, pouco a pouco, o meio de representar o próprio discurso, logo os elementos do discurso, logo os elementos desses elementos (sons/letras [fonemas/grafemas])” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 157, itálico do original, acréscimos meus).

É justamente na representação dos subelementos (fonemas) de um elemento (palavra) do discurso que EMA “tropeça” nesse recorte. Tentando escrever o nome próprio “Sandi”, ele se vê às voltas com o registro gráfico da sílaba “san”. Sua dificuldade inicial17 é com a conversão, em grafema, do fonema fricativo /s/, que, nessa estrutura silábica, ocupa a posição de ataque (início de sílaba). Em dúvida, a criança dissocia, vocalmente, a sílaba em seus constituintes internos e se volta para o outro, representante da escrita constituída (EMA: “sã @ cê ã? [= olha para GIO]” / GIO: “escreve como tu acha que é” / EMA: “ai me faaalaaa!”). O outro atende à sua convocação, reintegrando os constituintes intrassilábicos dissociados pela criança e enunciando a sílaba focal com um tom ascendente (“cê ã / a = CA? @ CANdi? [= olha provocante para EMA]”). Como permanece a indecisão da criança, a MÃE torna a intervir, dissociando ainda mais a fricativa e enfatizando a materialidade sonora desta (MÃE: “sss [= sibila]”).

EMA repete o sibilo da MÃE, mas são necessárias outras tentativas do alocutário, como novas reintegrações enfatizadas dos constituintes intrassilábicos (GIO: “como é que é SAN? @ SAN” / MÃE: “SAN @ SAN”), bem como uma aposta no saber18 da criança sobre as unidades finitas que compõem o repertório grafemático de sua língua materna (“qual é a letra parecida com cê?”). Assim, da dissociação e da integração silábica, EMA passa à substituição da unidade dissociada da sílaba (e como escutada na fala) por outra unidade (no registro gráfico dessa mesma sílaba) e, enfim, enuncia a resposta pelo outro esperada e chancelada (EMA: “ésse?” / GIO: “ésse!”).

Todavia, na sequência, a criança se desloca novamente do sistema ao discurso, buscando integrar a unidade recortada a outra unidade que parece perceber na montagem da sílaba (“só ésse?”). Diante de uma resposta do outro que não o satisfaz (“ahã”), EMA insiste na reintegração dos constituintes intrassilábicos (EMA: “ésse ãn?” / GIO: “ahã”). Ele escreve “Sandi” como “SÃOTI”, convertendo o fonema nasal /ã/ na forma gráfica “ão” (e não na forma convencional “an”), além de substituir o fonema oclusivo sonoro /d/ pelo fonema oclusivo surdo /t/ (representado pelo grafema “t”); o alocutário, porém, não o corrige.

O terceiro aspecto desse recorte implica, então, três grandes movimentos organizacionais do material linguístico: de um lado, no eixo sintagmático (que Benveniste liga ao domínio semântico da língua), a integração e a dissociação; de outro lado, no eixo associativo/paradigmático (que o linguista relaciona ao domínio semiótico da língua), a substituição.

Em “Os níveis da análise linguística” (2005 [1962/1964], p. 135), Benveniste afirma que “a dissociação leva-nos à constituição formal; a integração leva-nos às unidades significantes”. Por isso, “A forma de uma unidade lingüística define-se como a sua capacidade de dissociar-se em constituintes de nível inferior”, enquanto “O sentido de uma unidade lingüística define-se como a sua capacidade de integrar uma unidade de nível superior” (BENVENISTE, 2005 [1962/1964], p. 135-136, itálicos do original). São as capacidades de dissociar e de integrar que, nesse recorte, vemos operando na sintagmatização dos discursos falados tanto da criança quanto do outro, na busca pela unidade formal (grafema) representativa, no discurso escrito, do fonema fricativo /s/. Nessa busca, os parceiros da alocução vão dissociando e integrando o nome próprio “Sandi”, a sílaba “san” e seus constituintes intrassilábicos (os fonemas /s/ e /ã/), montando e desmontando a unidade maior em subunidades, em um ajuste de forma-sentido que acentua a “natureza articulada da linguagem [língua] e [o] caráter discreto dos seus elementos” (BENVENISTE, 2005 [1962/1964], p. 127, itálicos do original, acréscimos meus).

Também a substituição associativa/paradigmática, enquanto “relação do elemento com os outros elementos mutuamente substituíveis” (BENVENISTE, 2005 [1962/1964], p. 128), opera nesse ajuste de forma-sentido. Trata-se da permuta do grafema “c” pelo grafema “s” que a criança, provocada pelo outro, realiza na conversão gráfica do fonema /s/. Mais do que uma pretensa escolha consciente, tal substituição é efeito da relação locutor-alocutário e da ação da língua em sua realização gráfica sobre o escrevente em constituição. Este, apesar de produzir conversões fonemas-grafemas ainda instáveis no que concerne às normas e às convenções ortográficas, já descobriu a escrita como “uma grafia que [reproduz] a fonia e, portanto, uma grafia que [compõe] um número limitado de signos” (BENVENISTE, 2014 [1969/2012], p. 141). Tanto quanto o fato de as unidades linguísticas serem decomponíveis (devido à sua natureza articulada e ao seu caráter discreto), o fato de serem fixas (devido ao seu pertencimento a um repertório de elementos finitos, que, contudo, admitem infinitas combinações) é uma descoberta que a criança precisa fazer para se constituir como falante e como escrevente. Em outros termos, “a discretização de unidades é condição para [a] entrada do falante [e do escrevente] em uma língua” (SILVA, 2020, p. 2021, acréscimos meus).

No final do recorte 2a, vemos uma mudança quanto ao segundo aspecto antes sublinhado, o da referência. Nesse final, EMA continua grafando aquilo que GIO lhe dita, mas demonstra menos dificuldade para converter a fala em escrita. Embora recorra à pronúncia silabada da palavra como a uma espécie de “suporte” de seu registro gráfico (“caaa @ miii / ca-miii-zêêê [= olha para cima como que pensando] zêêê [= olha para GIO] ta”), ele consegue operar, com menos hesitações, a conversão fala-escrita, integrando uma sílaba na outra vocalmente e convertendo tal integração graficamente, o que resulta na palavra escrita “camizeta” (cf. grifo roxo no recorte 2b).

A referência, antes icônica (o desenho da camiseta), agora se literaliza: “O ‘global’ [...] torna-se ‘analítico’” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 144, nota de ouvinte, aspas do original). Essa literalização decorre da possibilidade de mútua conversão entre o falado e o escrito, possibilidade que a criança vai apreendendo ao tornar-se capaz de “‘dizer a mesma coisa’ pela fala e pela escrita”, isto é, de produzir, em uma e em outra, “a mesma relação de significação” (BENVENISTE, 2014 [2012/1969], p. 110-111, aspas e itálico do original).

Se, no recorte enunciativo 1, não há senão conversões sistema-discurso falado, no recorte enunciativo 2, há tanto conversões sistema-discurso falado quanto conversões sistema-discurso escrito e (quando a criança converte a própria fala e a do outro em escrita própria) conversões fala-escrita.

No primeiro recorte, HEL, ainda não escrevente-leitora, mas já falante-ouvinte, ancora-se na língua em sua realização vocal e no princípio da representação por imagens para – na relação com o outro da alocução falada (“tu”) e com o outro da cultura (“ELE”) – suprir aquilo que lhe falta (a língua em sua realização gráfica), falando e agindo como se leitora fosse. No segundo recorte, EMA, escrevente-leitor em constituição, já ultrapassou o princípio icônico e alcançou o princípio alfabético, produzindo conversões fonemas-grafemas que, apesar de ainda instáveis do ponto de vista ortográfico, já o mostram incluído – pelo outro da alocução e pelo outro da cultura – no circuito da escrita.

Ao passo que no recorte inicial vemos que HEL ainda não conseguiu realizar a primeira “tomada de consciência” (o desprendimento do contexto de fala, com todas as abstrações intersubjetivas e referenciais que o caracterizam), no último recorte, vemos que EMA já realizou tanto a primeira quanto a segunda “tomada de consciência” (a apreensão – não plenamente consciente e consolidada – da representação material da língua).

Essa dupla “tomada de consciência” é condição necessária, mas não suficiente, para a constituição da criança como escrevente. Necessária, pois, sem ela, a criança não consegue deslocar-se do lugar já estabilizado de falante-ouvinte para o lugar inicialmente instável de escrevente-leitor, deslocamento de lugar enunciativo este que parece ser a grande mudança inaugural da aquisição da escrita. Não suficiente, pois somente essas duas “tomadas de consciência” não bastam para que a criança se instaure na escrita de sua língua materna.

Afinal, se é necessário suspender temporariamente os fatores interlocutivos e contextuais a fim de “objetivar” o dado linguístico, tais fatores devem ser acionados novamente quando, após a “objetivação” da língua via escrita estiver estabilizada e não for mais uma dificuldade para a criança, a “alocução” voltar a ser condição principal (enquanto matriz dialógica e referencial) e efeito esperado (enquanto comunicação intersubjetiva e consequência pragmática da enunciação). Tal parece ser o desafio que EMA, no recorte 2, ainda precisa enfrentar, tornando-se cada vez mais sensível à escrita não só em sua dimensão semiológica, mas também em sua dimensão enunciativa, de modo a conseguir produzir uma alocução escrita pela qual seja capaz de transitar sozinho, sem mais estar – como nesse recorte – na dependência do outro da alocução falada, ainda que sob a dependência do outro da cultura ele sempre estará.

Realizadas as análises, é tempo de concluir.

4. Conclusão

Este artigo perseguiu três objetivos. O primeiro objetivo, de caráter teórico, consistia em problematizar a ideia de Silva (2009) de que a criança, em sua constituição como falante, converte o discurso em sistema e o sistema em discurso. O segundo objetivo, de caráter intrateórico, consistia em investigar a noção de “conversão” na teoria da linguagem de Émile Benveniste, mais especificamente em sua teorização enunciativa e em sua teorização semiológica. O terceiro objetivo, de caráter teórico-analítico, consistia em produzir, a partir das ideias de Benveniste e de Silva sobre a noção de “conversão”, uma reflexão acerca da aquisição da escrita. O trajeto percorrido autoriza a conclusão de que os dois primeiros objetivos foram cumpridos integralmente e o terceiro, parcialmente. Falemos, de início, do segundo objetivo e, em seguida, do primeiro e do terceiro.

O segundo objetivo foi cumprido na seção 3, mais retrospectiva, na qual vimos que a noção de “conversão” é tratada, na teoria da linguagem de Benveniste, em duas abordagens: uma vinculada à sua teorização sobre a enunciação (cf. 3.1) e outra, à sua teorização sobre a semiologia (cf. 3.2).

Na teorização enunciativa, a noção de “conversão” é abordada com ênfase: (a) na relação sistema-discurso; (b) na conversão do sistema em discurso pela categoria de pessoa (os signos vazios/autorreferenciais de pessoa, de espaço e de tempo), a qual possibilita a comunicação intersubjetiva e a constituição do enunciado, organizando neste a categoria de não pessoa (os signos plenos/referenciais, que são as demais formas linguísticas e suas combinações); (c) na conversão do sistema em discurso pelo ato de enunciação, por meio de índices específicos (formas pessoais, espaciais e temporais) e de procedimentos acessórios (funções interrogativa, intimativa e assertiva, modalizadores verbais e fraseológicos, bem como os demais mecanismos linguísticos).

Na teorização semiológica, a noção de “conversão” é abordada com ênfase: (a) na relação fala-escrita; (b) na conversão entre fala e escrita ora como sistemas distintos, ora como partes de um único sistema; (c) na conversão enquanto mecanismo/operação em que os atos de falar e de escrever transpõem/elaboram/exteriorizam a língua/o pensamento/a linguagem interior, transposição/elaboração/exteriorização que pode ser entendida em termos de realização/atualização de uma potência significante logicamente anterior a tais atos.

O primeiro objetivo foi cumprido na seção 2, simultaneamente retrospectiva e prospectiva. Retrospectiva, pois nela retomei a ideia sugerida por Silva (2009) de que o ato enunciativo de aquisição da língua permite reformular o postulado benvenistiano de conversão do sistema em discurso. Prospectiva, pois, nessa seção, busquei tirar consequências da referida ideia da autora, argumentando que, se o falante constituído opera a conversão do sistema em discurso, o falante em constituição precisa operar, antes, a conversão do discurso do outro da alocução/do outro da cultura em sistema próprio, até se tornar capaz de converter esse sistema em discurso próprio.

O terceiro objetivo foi parcialmente cumprido na seção 4, mais prospectiva, na qual analisei recortes enunciativos de aquisição da escrita advindos de meu trabalho de doutoramento, em curso. Tais análises tiveram, como ponto de partida, tanto as ideias de Benveniste acerca da noção de “conversão” – examinadas na seção 3 – quanto a perspectiva aquisicional enunciativa de Silva (2009) – apresentada em linhas gerais na seção 2. Após a reflexão intrateórica da seção 3 e a discussão teórico-analítica das seções 2 e 4, é possível defender que as consequências teóricas da ideia de Silva (2009) – formulada com vistas à aquisição da língua em sua realização vocal – de que a criança converte o discurso em sistema e o sistema em discurso alcançam, igualmente, a aquisição da língua em sua realização gráfica. Por isso, atualizo tais consequências nesta seção final:

(1) Se o locutor (falante/escrevente constituído) opera a conversão do sistema em discurso, a criança (falante/escrevente em constituição) precisa operar, antes, a conversão do discurso em sistema.

(2) A criança opera tais conversões (primeiramente, a conversão discurso-sistema; posteriormente, tanto a conversão discurso-sistema quanto a conversão sistema-discurso) na enunciação enquanto estrutura que a inclui como locutor (“eu”), o outro como alocutário (“tu”), a língua (“ele”) como sistema e discurso situados na cultura e a cultura (“ELE”) como conjunto de valores, de prescrições e de interdições que determinam os modos de enunciação.

(3) Nessa estrutura, reconfigurada a cada “aqui-agora” da fala e da escrita em ato (sincronia enunciativa), em que a criança atualiza e renova a sua história de enunciações (diacronia enunciativa), ela vai convertendo o discurso – falado e escrito – do outro/outro em sistema próprio, até se tornar capaz de converter esse sistema em discurso próprio.

(4) É, pois, o discurso do outro, do falante/escrevente constituído – representante, a um só tempo, da língua e da cultura –, que promove a criança à condição loquens/scriptor, sendo para ela como uma ponte que a alça ao sistema.

No entanto, considero o terceiro objetivo apenas parcialmente cumprido, pois é preciso, ainda, refletir mais sobre as conversões linguísticas na aquisição da escrita. Esse “mais” envolve a necessidade tanto de mais análises empíricas quanto de mais teorizações acerca das especificidades que caracterizam tais conversões na relação inicial da criança com a escrita. Isso porque, nessa relação, o locutor é já um falante-ouvinte constituído, o que não é sem consequências para a sua constituição como escrevente-leitor. Dentre tais especificidades, vislumbro as distintas configurações da conversão fala-escrita na aquisição da escrita (fala do outro em escrita da criança, quando ela escreve o que dele escuta; fala da criança em escrita própria, quando ela vocaliza silabando enquanto escreve; escrita do outro ou da criança em leitura própria, quando ela lê em voz alta o que o outro ou ela mesma escreveu). Vislumbro, também, a necessidade de reflexões analíticas e teóricas sobre as relações entre fala e escrita à luz da teoria da linguagem benvenistiana, em geral, e de uma abordagem da aquisição da escrita a partir dessa teoria, em particular, especialmente análises e teorizações pautadas nas concepções de língua em sua realização vocal e de língua em sua realização gráfica. Trata-se de perspectivas que se abrem para trabalhos futuros que, como este, derivem de minha tese de doutoramento em curso.

De qualquer forma, os resultados já obtidos possibilitam estender, ao término do presente artigo, a fórmula latina com a qual Benveniste finaliza o texto “Os níveis da análise linguística”: “É no discurso atualizado em frases que a língua [o sistema] se forma e se configura. Aí começa a linguagem [o sistema]. Poder-se-ia dizer decalcando uma fórmula clássica: nihil est in lingua quod non prius fuerit in oratione [nada existe no sistema que antes não tenha passado pelo discurso]” (BENVENISTE, 2005 [1962/1964], p. 140, itálicos do original, acréscimos meus).

How to Cite

OLIVEIRA, G. F. Le devir scripteur: l’enfant parmi les convertions discours-système et parole-écrite dans l’acquisition de l’écriture . Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e523, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id523. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/523. Acesso em: 20 apr. 2024.

Statistics

Copyright

© All Rights Reserved to the Authors

Cadernos de Linguística supports the Opens Science movement

Collaborate with the journal.

Submit your paper