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Research Report

Discursive neurolinguistics analysis on the phonic method

Isabella de Cássia Netto Moutinho

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https://orcid.org/0000-0001-7890-9941


Keywords

Literacy
Discursive Neurolinguistics
Pathology
National guidelines
Phonic method

Abstract

The objective of this paper is to present the Discursive Neurolinguistics analysis on the presidential decree that imposes the cognitive perspective for teaching reading and writing, which means the adoption of the phonic method. Based on a heuristic data analysis methodology that seeks children's writing hypotheses and discursively oriented conceptions of brain, subject and language, we analyze representative exercises of the phonic method and present the DN counterdiscourse, problematizing the method and highlighting alternatives to its use. The analysis of the exercises proposed by the phonic method and the mouths method shows that there is no theoretical linguistic or pedagogical basis to support their application, as they can be inductive to error. In this paper, we alert to the fact that its wide application can generate several difficulties for many children and that its supposed scientific shielding makes us not question the method’s effectiveness, but the innate aptitudes and capacities of children, opening space, thus, for the pathologization of normal learning difficulties.

Introdução

Dificuldades escolares que envolvem a leitura e a escrita são um dos eixos de pesquisa abarcados pela Neurolinguística de orientação Discursiva (abreviada como ND) desde a década de 80. A área foi introduzida no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas com as pesquisas da professora Maria Irma Hadler Coudry sobre a linguagem na afasia, sobretudo com foco nos instrumentos de avaliação de linguagem. Posteriormente, a área expandiu sua análise sobre os instrumentos de intervenção e avaliação da linguagem de modo a compreender também a aquisição da linguagem escrita. Nesta expansão, identificou-se que há um excesso de laudos que sugerem ou confirmam diagnósticos de patologias relacionadas ao aprendizado de leitura e escrita, como a Dislexia, o TDAH, o Transtorno Específico da Aprendizagem, o Déficit do Processamento Auditivo, dentre outras. Este excesso de diagnósticos pode ser ilustrado com a estimativa da ocorrência dos Transtornos de Aprendizagem apresentada pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Segundo o Manual, a prevalência desses transtornos varia de 2% a 10% entre as crianças em idade escolar. Tais estimativas são recorrentemente problematizadas e questionadas ainda no interior das pesquisas em medicina. São diversos os médicos e profissionais da área clínica (MOYSÉS, 2001; SIGNOR e SANTANA, 2016) que apontam diversas outras razões para o fracasso escolar que não uma patologia que acomete o aprendizado. Problematiza-se, inclusive, que se trate desses índices de maneira quantitativa, com porcentagem, o que só é indicado quando o objeto de estudo é uma doença infecciosa, epidêmica, e não supostos transtornos neurofuncionais. Com o propósito de não somente investigar com mais profundidade o processo que resulta na patologização das dificuldades normais relacionadas à leitura e à escrita, mas de também intervir na aprendizagem de crianças que são rotuladas e estigmatizadas pela patologia, a professora Maria Irma Hadler Coudry fundou, em 2004, o Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho).

No CCazinho, pesquisadores de várias áreas (Letras, Linguística, Pedagogia, Fonoaudiologia, Física, Geografia, História etc.) acompanham longitudinalmente crianças que apresentam dificuldades escolares com a leitura e com a escrita. Muitas delas já foram diagnosticadas com alguma patologia do aprendizado e outras não têm laudo algum. No decorrer do acompanhamento, voltado a ajudar a criança a superar suas dificuldades, os pesquisadores verificam que a patologia não se confirma: todas as crianças que passaram pelo CCazinho se alfabetizaram. Os laudos que apresentavam serviam como justificativa para outras questões que de fato interferiam ou deixaram a criança barrada no aprendizado, como fatores de ordem afetiva, social, cultural, política e, sobretudo, pedagógica.

Esse processo de encobrir dificuldades provenientes de outras ordens com o rótulo da patologia é denominado, no interior da ND, de patologização de dificuldades normais do aprendizado e é também chamado de medicalização por diversos outros autores que se debruçam sobre a questão, como Moysés e Collares (2011), Conrad (1992) e Signor e Santana (2016). Este processo não é restrito apenas à figura do médico, mas abrange também outros profissionais da área clínica que atendem as crianças que enfrentam dificuldades na escola, como psicopedagogos e fonoaudiólogos - que tomam como ponto de partida a racionalidade médica para a análise das questões escolares. Neste contexto, os pesquisadores da ND investigam quais são os dispositivos históricos e os da contemporaneidade que geram tal processo de patologização e, ao desvendá-los, se dedicam, através das pesquisas (de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado), a estruturar um contradiscurso que responda diretamente a este processo de maneira a denunciá-lo e não permitir que tantas crianças sejam estigmatizadas com uma patologia que não têm (BORDIN, 2010; MÜLLER, 2018; RIGHI-GOMES, 2014).

Neste trabalho, apresento a análise da ND sobre a perspectiva cognitiva para a alfabetização e a defesa que faz do método fônico, presente nas políticas públicas de alfabetização adotadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2019. O que se determinou neste decreto é de extrema relevância para a ND porque envolve a adoção de um método de alfabetização que já há algum tempo é duramente criticado por linguistas renomados que se dedicam a compreender o que está envolvido na aprendizagem da leitura e da escrita (AQUINO, 2018; ANDRADE, 2010; COUDRY, 2018, SMOLKA, 2012). Apresentar uma análise desta nova política pública, que recomenda a adoção do método fônico, à luz da ND também é relevante porque escancara o desconhecimento de pressupostos teóricos básicos da linguística, o desconhecimento de profissionais da área clínica sobre as dificuldades normais do processo de aprendizado de leitura e escrita, sobre as hipóteses de escrita elaboradas pelas crianças e o desconhecimento dos professores sobre a patologização/medicalização. Este trabalho mostrará a maneira pela qual este desconhecimento se materializa nas recentes escolhas governamentais que deslegitimam, desmoralizam e descreditam a teorização e prática de pesquisadores brasileiros que destacam a centralidade do letramento, do sentido e entendem a alfabetização como um processo discursivo para instituir, em seu lugar, o método fônico.

1. Pressupostos teórico-metodológicos

A ND evidencia as hipóteses (ABAURRE, 1997) que a criança constrói nas diversas fases do aprendizado da escrita a partir de uma metodologia heurística de análise de dados. Buscamos explicitar, através das análises de dados, o trabalho linguístico-cognitivo das crianças na representação gráfica e ortográfica das palavras, os conhecimentos (sobre a própria fala, sobre a fala dos outros, sobre a escrita, sobre os textos) que fundamentam suas hipóteses e compreender os contextos históricos, sociais, culturais e pedagógicos em que surgem. Entendemos que a pré-história da escrita (LURIA, 2001), as práticas de letramento escolares e cotidianas nas quais as crianças estão inseridas são determinantes do aprendizado da leitura e da escrita.

[A] criança, em seus primeiros anos de vida e anteriormente ao aprendizado do alfabeto, deve vivenciar todo um conjunto de experiências simbólico-cognitivas materializadas principalmente nos jogos e brinquedos infantis e nos rabiscos e desenhos. (...). As experiências simbólico-cognitivas do desenho e do brinquedo e o contato com a língua escrita mediado pelos adultos são fatores constitutivos do processo de letramento da criança e a preparam para o trabalho escolar sistemático com o alfabeto e com a linguagem verbal escrita. A eventual falta destas experiências da pré-história da escrita nos anos anteriores à escolarização – o que é comum na vida das crianças pertencentes a segmentos sociais pouco letrados (com pais analfabetos ou precariamente alfabetizados e escolarizados) – afeta negativamente o processo de alfabetização (FARACO, 2012, p. 63).

Rejeitamos, assim, as perspectivas que entendem que aprender é resultado somente da presença de aptidões biológicas que, por sua vez, justificam e explicam as dificuldades escolares com uma patologia (COUDRY, 2007, 2009). Estas perspectivas, fundamentadas pela racionalidade médica, tais perspectivas não compreendem a alfabetização como atividade social e cultural complexa, desconsideram sua relação com a fala, desconhecem os fatores sociais, culturais, pedagógicos, políticos e econômicos que particularizam a entrada das crianças no mundo das letras. A ND abarca três conceitos fundamentais para compreender o processo singular do aprendizado de leitura e escrita: cérebro, sujeito e linguagem.

O cérebro não pode ser tomado à parte de sua historicidade, plasticidade e funcionamento complexo e integrado, conforme os estudos de Vygotsky (2001), Luria (1979) e Freud (1973). Para Vygotsky (2001), é fundamental a noção de variação funcional: mesmo que o cérebro seja um patrimônio biológico comum a todos, não se pode negar a grande variabilidade de funcionamento e de modos de organização neurológica. Para os autores, essa variação é resultante de relações históricas, sociais e culturais que determinam os sujeitos, mediadas pela linguagem. A linguagem não pode ser, portanto, reduzida à comunicação, codificação e decodificação, mas sim construção coletiva, histórica e social, o que confere a ela um caráter de indeterminação semântica e sintática e exige o contexto para ser interpretada (FRANCHI, 1977). O sentido não está dado a priori: é construído no interior do contexto discursivo e nas práticas de linguagem, devendo ser levados em conta obrigatoriamente a história das expressões e o caráter singular da intersubjetividade estabelecida na interlocução. A linguagem é uma atividade constitutiva: tanto de sujeitos, quanto de si mesma (FRANCHI, 1977). Na mesma direção, a concepção de sujeito se distancia radicalmente da concepção de sujeito padrão e mediano, proposta pela literatura médica. O sujeito é constituído na e pela linguagem (FRANCHI, 1977) em um processo singular de determinação sócio-histórica e, uma vez singular, o sujeito da ND é indeterminado e escapa de idealizações. A linguagem assume, portanto, a função de regulação dos processos psíquicos e de especialização das funções psicológicas superiores, além da linguagem, como a atenção, a memória, corpo (práxis), raciocínio intelectual, percepção, imaginação, vontade. Em suma, para a ND, o desenvolvimento dessas funções não é de origem biológica e sim social, sendo esta uma das premissas centrais que afastam a ND da literatura médica que trata dos chamados “transtornos da aprendizagem”, em especial os que envolvem o aprendizado da leitura e da escrita.

Neste contexto, a ND constrói uma crítica sólida da avaliação – em geral, clínica – da leitura e da escrita inicial que se vale somente de testes padronizados, quase sempre formulados em outros países, e a partir dos quais são gerados scores que rotulam o processo de aprendizagem como normal ou patológico. Nestas avaliações, o resultado do teste é imperativo, de modo que se dá pouca ou nenhuma importância à relação singular que criança e família constroem com a linguagem escrita e falada, se é que tal relação é investigada.

A neurolinguística discursiva se posiciona radicalmente contra o discurso e a prática de avaliação conduzidos por profissionais que avaliam a linguagem sem conhecimentos técnicos, advindos da linguística, e de seus estudos sobre língua (falada, escrita) e discurso. Em outras palavras, avaliam a linguagem sem, de fato, avaliá-la. Esse desconhecimento banaliza a avaliação e dispensa la crème de la crème da linguagem, para ficar com uma padronização idealizada que não a representa. Os efeitos disso são crianças que passam, na escola, e depois na clínica, por tarefas como ditados de palavras e de logatomas, exercícios de completar, cópias (do livro para a lousa e desta para o caderno), segmentação de palavras, atravessados por uma metalinguagem que acompanha o ensino da gramática, cuja compreensão pressupõe um domínio de escrita que a criança ainda não tem; e nessa toada não terá. (COUDRY, 2018, p. 332)

Do mesmo modo, o acompanhamento de crianças no CCazinho tem mostrado que, a adoção de métodos rígidos, bem como a proposta de exercícios de treino ortográfico descontextualizados e desprovidos de sentido – tais quais são utilizados amplamente nas apostilas que são representativas do método fônico – não garantem a alfabetização, pelo contrário, parecem até mesmo mais confundir do que ajudar as crianças.

Os princípios metodológicos do CCazinho envolvem o acompanhamento longitudinal das crianças encaminhadas a este centro. As crianças são acompanhadas pelos cuidadores em dois momentos: nas sessões individuais e em grupo. As sessões em grupo ocorrem uma vez por semana, durante duas horas, nas quais são propostas atividades que envolvam a leitura e a escrita em suas funções sociais1. As sessões, tanto coletivas quanto individuais, são gravadas e um dos investigadores faz as anotações dos acontecimentos de cada uma delas. Os dados são contextualizados pelo adulto com data, breve descrição e depois digitalizados e armazenados no Banco de dados em Neurolinguística (BDN). Também fazem parte do BDN os cadernos escolares das crianças acompanhadas, de modo que podemos contrastar a escrita que acontece na escola, geralmente fruto de cópias e ditados, com as atividades discursivamente orientados.

Buscamos não apenas utilizar a linguagem de modo contextualizado, partindo do interesse das crianças, mas também ampliá-los: motivar as crianças a vivenciarem situações que as ajudem não somente a superar as dificuldades escolares, mas que também mostrem que eles podem atuar no mundo na e pela linguagem (BENVENISTE, 1969) de maneiras diversas. No acompanhamento individual2, são privilegiadas as dificuldades de leitura e de escrita de cada criança, através de atividades que também focam a função social que a leitura e a escrita têm, mas o investigador busca intervir também nas atividades escolares, realizando algumas tarefas junto com as crianças. Entretanto, a proposta não é uma aula particular, mas sim uma ressignificação da metalinguagem excessiva avaliada nas atividades escolares: “Quando necessário, os conteúdos escolares são ressignificados nas experiências prévias e atuais do sujeito, e os termos metalinguísticos são desdobrados em relação ao sentido e a operações mais abstratas” (COUDRY, 2018, p. 333).

Ou seja, os dados são produzidos na interação entre os sujeitos e as cenas enunciativas (MAINGUENEAU 1989; COUDRY, 2012) que vivemos nas sessões, nas quais se pode flagrar a linguagem em uso:

Para a ND, o encontro com os sujeitos se dá pela linguagem, nossa estrela guia para compreender o funcionamento patológico e o normal, e seu exercício em práticas linguageiras/discursivas com as quais os sujeitos se envolvem, afirmando sua historicidade e tendo as dimensões semântica e semiótica atuando na função simbólica. Trata-se de práticas que veiculam várias formas de atuar na linguagem: diálogo, narrativa, comentário, discurso argumentativo, de opinião, de humor, entre outras. práticas que materializam o que se fala/escreve no presente em que vivemos, veiculadas em jornais falados, escritos e na mídia eletrônica/internet/redes: comentários sobre a política regional e nacional, com destaques para alguns acontecimentos no mundo; sobre os campeonatos de futebol que estão em curso, sobre culinária; sobre pessoas e suas histórias; enfim, realizando o traço primordial que Benveniste ([1969] 1995b) apontou para diferenciar a linguagem humana da comunicação animal: falar a outros que falam – o que para nós também pressupõe escutar o outro e a si mesmo, e inevitavelmente ver (um sistema aberto nos termos de Freud, [1891] 2010), considerando o mundo visual em que vivemos. (COUDRY, 2018, p. 342)

Os dados analisados acontecem nas sessões individuais e coletivas do CCazinho e também na escola, estes, acessados através dos cadernos escolares das crianças e reproduzidos com a autorização da equipe escolar. A metodologia que orienta da ND é de base heurística e tem o processo como foco de análise. De acordo com Coudry (2018) é no processo que que podemos flagrar um conjunto representativos de dados-achados (COUDRY, 1996). Os dados-achados são dados que iluminam tanto o olhar do investigador sobre o objeto investigado, quanto a teorização que pode ser mobilizada e aprofundada a partir da reflexão dos processos recortados. Nesse processo, pode-se analisar e redirecionar a intervenção clínica, escolar e linguística. Assim como o conceito de dado singular, apresentado no programa de pesquisa sobre a aquisição da escrita conduzido Abaurre, Fiad, Mayrink-Sabinson (1997), o dado-achado exige do investigador “um olhar minucioso, algo que, sendo único naquele momento do processo, ilumina o próprio processo, por onde transitam investigador e sujeito” (COUDRY, 2018, p. 333) Portanto, é na avaliação e no acompanhamento longitudinal acontecem dados singulares (ABAURRE e COUDRY, 2008), ou seja, aqueles nos quais podemos descobrir o percurso do sujeito e sua relação com a linguagem, e movimentar a teoria para o dado e vice-versa. A análise dos dados mobiliza conceitos de ordem fonética, fonológica, semântica, sintática, morfológica e de outras áreas da linguística. Neste artigo, será apresentado um dado de escrita de uma criança que frequentou o CCazinho e esteve em acompanhamento longitudinal comigo, de modo a contrastar a escrita discursivamente orientada das propostas representativas do método fônico.

O acompanhamento longitudinal de mais de 200 crianças com dificuldades de leitura e de escrita no CCazinho mostrou que, quando a criança é submetida a tal método nas escolas e não avança no aprendizado da convenção gráfica/ortográfica, em momento nenhum a eficiência e as potencialidades destes exercícios são questionadas, dada sua suposta comprovação científica. A lógica construída no interior dos estudos cognitivos acaba por blindar o método fônico com uma suposta comprovação científica: que se a criança não aprende com um método supostamente comprovado, o problema não está no método, mas sim na criança, que passa a ser, então, encaminhada a uma grande diversidade de profissionais clínicos e submetida a várias avaliações a fim de que se descubra qual é o transtorno de aprendizagem que impede o progresso escolar. Inicia-se, assim, o processo de patologização de dificuldades normais de aprendizagem.

Não negamos que existam patologias que podem comprometer a aprendizagem (COUDRY, 2010), mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de apontar, com análises de dados, que o que a clínica interpreta como sintoma de Dislexia, são dificuldades e hipóteses normais e esperadas no processo de aprendizagem. Desse modo, alertamos para o número crescente de crianças diagnosticadas com Dislexia que de fato não tem a patologia.

2. A nova política de alfabetização e a imposição do método fônico

Após eleito e empossado, o presidente Jair Bolsonaro e os funcionários convocados a gerir o Ministério da Educação, no primeiro semestre de 2019, proferiram uma série de ataques sem fundamentos sobre a educação pública - desde o ensino básico ao superior – incluindo desinformações sobre os professores em geral. As declarações abrangem uma suposta preferência por temas como a ideologia de gênero na educação infantil, a chamada doutrinação política e ideológica no Ensino Fundamental e Médio e uma presumida recorrência de pesquisas com teor comunista no Ensino Superior. Para o presidente e seus aliados, isso foi suficiente para justificar um corte de verbas das Universidades Federais anunciado em maio de 2019, uma vez que, do ponto de vista do governo, o que os alunos fazem é “balbúrdia” e promovem eventos políticos utilizando dinheiro público, segundo o então ministro Abraham Weintraub. Em meio a tantos ataques, são relevantes para este artigo os que tiveram um papel na criação de uma nova Política Nacional de Alfabetização.

No dia 2 de janeiro de 2019, Carlos Francisco de Paula Nadalim foi nomeado pelo presidente para gerir a Secretaria Nacional de Alfabetização. Carlos Nadalim, antes de fazer parte do governo, atuou como coordenador pedagógico em um colégio em Londrina e mantinha um blog chamado "Como Educar seus Filhos". A formação acadêmica de Carlos Nada é concentrada mais em outras áreas, como a música, sendo poucas suas experiências acadêmicas na área da Educação. Nadalim não declara ter feito nenhum curso de credibilidade sobre alfabetização, leitura e escrita, o que já torna sua indicação para o cargo que ocupa no mínimo questionável. Nadalim foi indicado pelo então ministro Ricardo Vélez Rodriguez, aconselhado para tal por de Olavo de Carvalho, um dos principais mentores e aconselhadores das decisões de Jair Bolsonaro em diversas questões da esfera pública. Em 2016, Olavo de Carvalho postou em redes sociais vários elogios e recomendações sobre o blog e o canal no Youtube de Nadalim justamente por se afastar radicalmente das perspectivas teóricas predominantes nas diretrizes oficiais dos governos do Partido dos Trabalhadores. Tal justificativa nos revela que as motivações da escolha de Nadalim para a Secretaria de Alfabetização marca apenas uma posição ideológica oposta à dos governos precedentes e não necessariamente foi feita pela legitimidade ou validade de suas propostas.

Segundo Nadalim, a causa dos altos marcadores de analfabetismo funcional no Brasil (definido por ele como o que acontece quando alguém reconhece as letras, mas não interpreta textos simples) é a predominância, nas diretrizes do Ministério da Educação, o que ele chama de ideologia construtivista. A teorização proposta por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, difundida no Brasil como construtivismo e frequentemente confundida com um método de alfabetização, foram divulgadas no Brasil com pouca profundida e reflexão (MOUTINHO, 2019), o que gerou diversos questionamentos a respeito do papel do professor no ensino de leitura e escrita: a criança passou a ser entendida como a única construtora do conhecimento, de modo que o aprendizado aconteceria naturalmente, de maneira integrada ao uso social da leitura e da escrita. Assim, passou-se a divulgar que o professor não precisaria intervir tanto na aprendizagem, que aconteceria naturalmente, apesar do adulto. A questão do método ficou em segundo plano durante os anos em que se divulgou o trabalho de Ferreiro e Teberosky não porque não eram relevantes para as autoras, mas porque assim a obra foi lida. O que veremos, neste artigo, é o resultado desta má utilização dos pressupostos teóricos e metodológicos da obra de Ferreiro e Teberosky: se, primeiramente, acreditava-se que intervenções dos professores não seriam necessárias, agora, com o que se chama de ensino explícito e com os exercícios do método fônico, não há espaço para a escrita criativa, espontânea, e para que a criança elabore hipóteses (ABAURRE, 1997) sobre a representação gráfica/ortográfica.

Nadalim alimenta um canal no Youtube no qual posta diversos vídeos de si mesmo com suas opiniões sobre diversos temas, mas sobretudo com suas críticas das diretrizes nacionais para a alfabetização propostas nos governos anteriores ao de Jair Bolsonaro. O canal tem por volta de 5.510.000 inscritos. Em um dos vídeos, Nadalim declara que o chamado método construtivista "demonstra uma preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista, em formar leitores críticos, engajados e conscientes" (NADALIM, 2015a).

Em outro vídeo, Nadalim se mostra muito preocupado com o fato de que as diretrizes do Ministério da Educação (MEC) não contariam com orientações claras baseadas em evidências científicas comprovadas e atualizadas sobre o passo a passo para alfabetizar: "Há tanta preocupação em fomentar a socialização e em promover uma visão crítica na criança que resta pouco tempo e pouco investimento para ensinar o básico, o fundamental" (NADALIM, 2015b).

Além da crítica da perspectiva ferrereana, Nadalim aborda também o conceito de letramento e toma como alvo a autora Magda Soares, uma das pioneiras na compreensão e divulgação do conceito de letramento no Brasil. O vídeo mais assistido do canal de Nadalim trata especificamente deste conceito: “Letramento: o grande vilão da alfabetização no Brasil”. Além de Emília Ferreiro e Magda Soares, Nadalim e o presidente Jair Bolsonaro também criticam duramente Paulo Freire e sua obra. A campanha eleitoral do presidente tinha como um dos motes principais a desqualificação do autor e sua responsabilização pelo fracasso escolar no Brasil. No documento que apresentou como plano de governo, bem como nas entrevistas enquanto presidenciável, Jair Bolsonaro deu grande relevo ao objetivo de “expurgar Paulo Freire das escolas”. Não são claras as justificativas, mas é possível inferir que são as mesmas apresentadas por Olavo de Carvalho e Carlos Nadalim em seus vídeos na internet: a preocupação exagerada com a formação de um cidadão crítico, que leia o mundo (FREIRE, 1989), que seja questionador, que entenda a função social da leitura e da escrita e que possa transformar sua realidade pela compreensão e ação política que pode protagonizar, e a despreocupação com os métodos. Contudo, não se pode esquecer que a questão que gera aversão do governo com Paulo Freire é, principalmente, ideológica, já que o autor é sempre caracterizado como comunista pelo presidente e por Olavo de Carvalho. A hipótese se comprova com o discurso de Jair Bolsonaro na cerimônia de posse do então ministro Vélez Rodrigues “Queremos uma garotada que comece a não se interessar por política, como é atualmente dentro das escolas, mas comece a aprender coisas que possam levá-las ao espaço no futuro (...) Ninguém quer saber de jovem com senso crítico. Eles precisam saber fazer regra de três” (LINDNER, 2019).

A solução para estes problemas, segundo Nadalim, é a adoção do método fônico, definido por ele como aquele que “apresenta as crianças às letras e aos sons da fala antes de iniciá-las em atividades com textos” (NADALIM, 2016). Em um de seus vídeos, Nadalim afirma que a criança deve primeiro ser submetida a atividades que focalizem a relação entre as letras e os seus sons, porque assim irão aprender o que é mais relevante segundo ele: “a decodificação e a codificação da linguagem escrita, para depois evoluir aos textos” (NADALIM, 2016). Nos vídeos, o secretário aponta que há uma série de pesquisas internacionais que atestariam a superioridade deste método e que criticam duramente os chamados métodos globais e o conceito de letramento. Para ilustrar o que é o método fônico, Nadalim lê, em um vídeo, o livro "O Batalhão das Letras", de Mario Quintana, cujas ilustrações mostram as letras do alfabeto. Ao abrir a página do "F", ele fala os nomes correspondentes a desenhos enfatizando o início das palavras: "Ffffrades, ffffformigas, ffffiga, fffflor".

Desta maneira, o discurso oficial dá legitimidade ao método fônico, juntamente com o que chamam de consciência fonológica. Há também a tentativa de demonização das teorias vigentes e frequentemente difundidas nas universidades, como a obra de autores como Emília Ferreiro, Magda Soares e Paulo Freire. Nesta perspectiva, o governo emitiu, no dia 2 de janeiro de 2019, um decreto que trata das novas políticas de alfabetização e considera o método fônico como o mais adequado para ser adotado em sala de aula. Além disso, o governo passou a adotar o termo literacia para explicitar sua posição contrária ao termo letramento, e define o que entende como alfabetização, analfabetismo absoluto e funcional e outros conceitos:

I - alfabetização - ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético, a fim de que o alfabetizando se torne capaz de ler e escrever palavras e textos com autonomia e compreensão;

II - analfabetismo absoluto - condição daquele que não sabe ler nem escrever;

III - analfabetismo funcional - condição daquele que possui habilidades limitadas de leitura e de compreensão de texto;

IV - consciência fonêmica - conhecimento consciente das menores unidades fonológicas da fala e a habilidade de manipulá-las intencionalmente;

V - instrução fônica sistemática - ensino explicito e organizado das relações entre os grafemas da linguagem escrita e os fonemas da linguagem falada;

VI - fluência em leitura oral - capacidade de ler com precisão, velocidade e prosódia;

VII - literacia - conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas com a leitura e a escrita e sua prática produtiva;

VIII - literacia familiar - conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem, a leitura e a escrita, as quais a criança vivencia com seus pais ou cuidadores;

IX - literacia emergente - conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas com a leitura e a escrita, desenvolvidos antes da alfabetização. (BRASIL, 2019)

Os princípios e objetivos da nova Política Nacional de Alfabetização deste decreto consideram o método fônico eficiente e determinam que os programas de alfabetização a serem formulados dali adiante devem se basear na instrução fônica, na consciência fonêmica (que, aparentemente, é o mesmo que consciência fonológica) e nas ciências cognitivas – o que hoje é entendido frequentemente como neurociência aplicada à educação:

I - integração e cooperação entre os entes federativos, respeitado o disposto no § 1o do art. 211 da Constituição;

II - adesão voluntária dos entes federativos, por meio das redes públicas de ensino, a programas e ações do Ministério da Educação;

III - fundamentação de programas e ações em evidências provenientes das ciências cognitivas;

IV - ênfase no ensino de seis componentes essenciais para a alfabetização:

a) consciência fonêmica;

b) instrução fônica sistemática;

c) fluência em leitura oral;

d) desenvolvimento de vocabulário;

e) compreensão de textos; e

f) produção de escrita;

V - adoção de referenciais de políticas públicas exitosas, nacionais e estrangeiras, baseadas em evidências científicas. (BRASIL, 2019 p. 2)

Antes de apresentar a discussão da Neurolinguística Discursiva a respeito da perspectiva fônica, é preciso considerar alguns pontos colocados por Andrade (2010) que vão além da didática decorrente do método fônico. Em 2010, no artigo O professor alfabetizador imantado entre propostas teóricas: o letramento e a metodologia do fônico, Andrade já alertava sobre interesses mercadológicos envolvidos nas propagandas do método fônico, sobretudo nas instituições privadas de ensino. Na ocasião, diversas Secretarias de Educação de estados e municípios começavam a adotar o método fônico como fundamentação teórica influenciados por instituições privadas. Andrade (2010, p. 9) aponta os desdobramentos deste movimento:

O primeiro aspecto que chama a atenção é de caráter político, pois a adoção de tais métodos por secretarias de educação tem curto-circuitado políticas de seleção e avaliação do livro didático, programas do Ministério da Educação. Há duplicação de gastos e o funcionamento de políticas públicas começa a ser orientado por modos estrangeiros à política traçada pelo ministério, guiados pelo privado. Diferentemente do que preveem os programas de distribuição dos livros didáticos pelo MEC, nesta adoção de materiais produzidos por grupos privados (que não constam nas opções oferecidas pelo ministério), não há escolha docente de materiais. Assim, vê̂-se que alguns métodos de ensino da língua escrita parecem passar ao largo das políticas e com este status privilegiado vão demarcando seu território, são amplamente propagandeados, sem ter, entretanto, obtido a chancela do governo federal. A querela do público e do privado ganha realidade nesta cena povoada de interesses agregados as questões de alfabetização.

Não se pode esquecer que quando um método ou teoria é eleito pelas diretrizes oficiais, há forte impacto nos cursos de formação inicial e continuada, bem como grande procura dos professores por teorias que se mostram uma promessa de inovação e de efetividade, especialmente quando acompanhadas de respaldo internacional.

É importante ressaltar também que o método fônico é uma questão controversa no interior do debate da Linguística e da Educação, de modo que há muitos pesquisadores que argumentam que a metodologia fônica ou a explícita, como veremos mais adiante, é a maneira pela qual as crianças desenvolvem a consciência fonológica, o que não ocorre com outros métodos, como os chamados globais, por exemplo. Mas o que é, especificamente, o método fônico?

O método é fundamentado em uma concepção de língua escrita definida como sinais gráficos associados aos sons da língua. A alfabetização envolve o ensino da relação sistemática entre grafemas e fonemas. As atividades solicitam da criança a memorização de pares biunívocos de letras e fonemas a partir dos valores sonoros que constam no quadro fonológico do português brasileiro e privilegiam textos escritos para este fim ou frases e palavras descontextualizadas.

A atividades podem ser definidas, como bem ilustrado na fala do ministro, como segmentação das palavras e ênfase do fonema que se quer abordar, de modo a prolongá-lo ou mesmo na tentativa de pronunciá-lo isoladamente da palavra. Por exemplo: antes de falar a palavra flor, o professor isola a fricativa, pronunciando algo como ffff - lor.

Segundo o método fônico, devem ser ensinadas primeiro as vogais e depois as consoantes, com base na premissa de que as vogais são mais fáceis. É desta maneira que o som das letras na palavra é tomado de maneira abstrata, incompatível com a língua em funcionamento, sem correlação com os sentidos que circulam nas diversas práticas discursivas.

Um dos argumentos utilizados para sustentar a imposição do método fônico é o de que a ênfase no desenvolvimento da consciência fonológica das crianças permitirá a compreensão do princípio alfabético e tornará possível segmentar sequências fonológicas e ortográficas. Isso levaria à identificação das palavras e à compreensão o sentido dos enunciados. De acordo com Bortoni-Ricardo (2006), são essas as premissas que estão na base dos métodos de alfabetização denominados phonics em inglês, ou os chamados modelos fônicos, em português. Citando Clark (1999), Bortoni-Ricardo (2006) contextualiza a adoção do método fônico no cenário internacional:

Em alguns países, como os Estados Unidos, Inglaterra e França, a ênfase na consciência fonológica tornou-se elemento fulcral nos processos de alfabetização. Nos dois primeiros, esse movimento denominou-se Back to Phonics e representou uma reação aos modelos do Whole Language, muito difundidos na segunda metade do século passado, que, por sua vez, já constituíam uma reação aos métodos comportamentalistas vigentes até então. Vejamos o que diz a educadora britânica Lesley Clark a respeito da fônica: “Ensinar a relação entre sons e letras é fundamental para desenvolver a alfabetização. Antes que uma criança possa decodificar ou codificar, usando um léxico de sons, ela tem de ser capaz de dis tinguir padrões sonoros e de saber o que significam conceitos como som, letra e palavra. Na Inglaterra, os parâmetros da política de alfabetização, reunidos na National Literacy Strategy (NLS), foram desenvolvidos, ainda segundo Lesley Clark, com o objetivo precípuo de superar deficiências identificadas nos métodos anteriores, atribuídas à falta do tratamen- to fônico, explícito, contextualizado e progressivo. (BORTONI-RICARDO, 2006, p. 205)

Segundo a autora, as reflexões internacionais que acompanhavam a defesa da adoção de uma metodologia mais explícita de ensino, que tivesse o objetivo o desenvolvimento da consciência fonológica, apontavam sempre para os perigos de se enfatizar demasiadamente a decifração da palavra. Advoga-se que o ensino da leitura e da escrita que parte de procedimentos fônicos deve estar “firmemente enraizado numa experiência significativa de aprendizagem da leitura, em que as palavras estejam contextualizadas em textos que reflitam o universo cultural dos aprendizes, despertando, assim, o seu interesse pela leitura”. (BORTONI-RICARDO, 2006, p. 206)

3. Exercícios representativos do método fônico

Para uma análise mais aprofundada dos procedimentos do método fônico e de como ele tem sido aplicado no Brasil, trataremos do livro para professores com atividades copiáveis para alunos escrito por Capovilla e Seabra em 2000 chamado Problemas de Leitura e escrita: como identificar, prevenir e remediar numa abordagem fônica. É importante ressaltar que esses exercícios não são o método em si, mas são representativos dos seus princípios e procedimentos, bem como uma referência de alfabetização fônica no Brasil. Capovilla é um dos principais partidários do método fônico no Brasil, autor de várias apostilas e materiais, bem como é frequentemente apontado por Carlos Nadalim como autoridade no assunto. Juntamente com o método fônico, Capovilla e Seabra apresentam atividades do método das boquinhas, que consiste na imagem de bocas que estariam representando a fala de cada som de letra que a criança deve escrever.

Figure 1. Figura 1. Método fônico de alfabetização Fonte: CAPOVILLA; SEABRA apud RIBEIRO (2017 p. 26)

Do ponto de vista da ND, a fala, a leitura e a escrita funcionam como um tripé para a entrada da criança no mundo das letras (COUDRY; BORDIN, 2012) e, sobretudo no início da alfabetização, as crianças se apoiam na própria fala para fundamentar suas hipóteses de escrita. Se a criança fizer a atividade proposta por este livro partindo de sua fala, se verá diante de uma série de dificuldades: primeiramente, a da boca não expressa o fenômeno de alteamento de vogais que ocorre em final de palavra na maioria das variedades do português brasileiro, como é possível observar em abelha, ovo e elefante. Não raro, as crianças escrevem “ovu” por ovo ou “elefanti” por elefante, reproduzindo a fala na escrita. Se a criança utilizar a imagem da boca, reproduzirá uma fala artificial (se conseguir seguir as instruções, que não são claras), que não corresponde nem a sua, nem a de seus pares. É bastante inconsistente também a segunda atividade: o que se espera que a criança escreva na tabela? Como ela conseguirá diferenciar, apenas com a foto da boca, a letra i e a letra e, que, a depender da posição, estão sujeitas ao alteamento?

Os exercícios a seguir também nos permitem uma série de problematizações:

Figure 2. Figura 2. Método fônico de alfabetização Fonte: CAPOVILLA; SEABRA apud RIBEIRO (2017 p. 27)

Qual é a relação entre a ficha de leitura e as palavras que devem ser escritas? Por qual motivo levar a criança a ler esses segmentos isolados, que, em conjunto, nada significam? Há, também, ao final da página, outra instrução confusa e mal escrita: a criança deve ligar um dos desenhos à fotografia da boca que supostamente mostra o som da palavra representada pelo desenho, mas a instrução é simplesmente ligar o desenho ao som. Por fim, podemos afirmar que a criança não nem ao menos precisa saber ler para fazer estes exercícios, já que o enunciado pouco ajuda a entender o que cada atividade requer. Isso acontece também no exercício a seguir, já que se solicita que a criança pinte as vogais na em um quadro dentre as outras letras do alfabeto e que pinte as vogais que fazem parte de algumas palavras dispostas em uma espécie de tabela. Por fim, há um texto que a criança nem precisa ler, já que ela deve novamente pintar, mas agora os espaços em branco entre as palavras e depois circular as vogais. O texto não vem acompanhado de nenhuma atividade de compreensão.

Figure 3. Figura 3. Método fônico de alfabetização Fonte: CAPOVILLA; SEABRA apud RIBEIRO (2017 p. 28)

Diante de atividades como essa a ND propõe uma série de questionamentos que nos fazem pensar sobre a qualidade do trabalho linguístico-cognitivo que esses exercícios exigem. Primeiramente, qual é o sentido de pintar os espaços entre as palavras? Em que outras situações da vida cotidiana isso é exigido da criança e com qual finalidade? De que modo esses exercícios podem fomentar o interesse de uma criança que está sendo alfabetizada para a leitura e para a escrita e que apresenta dificuldades nesta aprendizagem? Por não darem relevo recuperar em nenhum exercício para a função social da leitura e da escrita ou mesmo pela óbvia despreocupação em motivar as crianças a lerem e a compreenderem o sentido dos textos, tais atividades desconsideram o uso real da leitura e da escrita: a leitura de propagandas, placas, jornais, textos em redes sociais, a escrita de comentários na internet, recados, respostas em avaliações, listas de supermercado etc.

Veja-se, ainda, atividade a seguir:

Figure 4. Figura 4. Método fônico de alfabetização Fonte: CAPOVILLA; SEABRA apud RIBEIRO (2017 p. 32)

Neste exercício, a criança precisa analisar a posição da boca e escrever a palavra que está, em tese, sendo dita. Que elementos a criança utilizará para diferenciar as imagens que representam a letra e a letra i? Como estabelecer diferenças entre a imagem que representa a letra f e a que representa a letra v se são ambas labiodentais e se diferenciam apenas pelo traço de sonoridade? Isso pode representar uma nova dificuldade para a criança que já está às voltas com esta representação na escrita espontânea e gerar mais frustrações e sentimento de incapacidade. Vemos, na atividade a seguir, que a imagem para a representação de v é a mesma:

Figure 5. Figura 5- Método fônico de alfabetização Fonte: CAPOVILLA; SEABRA apud RIBEIRO (2017 p. 34)

Isso também acontece com a representação dos outros pares sonoros no material de Capovilla e Seabra (2000) e em outros materiais que propõem o método das boquinhas. Este método desconsidera questões cruciais e básicas da teorização linguística, como, por exemplo, o ponto e o modo de articulação e produção da fala que envolvem língua, palato, lábios e o traço de sonoridade. Isso é muito grave, sobretudo porque é justamente essa uma das dificuldades normais envolvidas na alfabetização e que, recentemente, se a criança apresenta dificuldades em lidar com ela, é considerada uma criança de risco para dislexia.

Entretanto, as imagens do método das boquinhas praticamente induzem a criança ao erro, tornando ainda mais tortuosa a compreensão da diferença que o traço de sonoridade impõe. Do ponto de vista da ND, o método fônico e o método das boquinhas se revelam um dos possíveis dispositivos (AGAMBEM, 2009) do processo de patologização de dificuldades normais. Esse processo acontece fundamentado na seguinte lógica: se a criança não consegue avançar, o problema não é o método – que se tornou inquestionável, dado seu suposto sucesso internacional e validação científica – mas sim a criança que tem um distúrbio ou transtorno de aprendizagem. É assim que a utilização desses métodos pode gerar o déficit e colaborar para a patologização de crianças sem patologia.

A problematização do método das boquinhas, no interior da ND, foi feita por Patrícia Aquino no artigo “Onde está o déficit? Polêmica em torno da Dislexia”. Neste artigo, a autora apresenta uma série de questionamentos sobre os exercícios do método e aponta suas limitações, ancorada sobretudo na impossibilidade de diferenciação de surdas e sonoras a partir das imagens. Conforme Aquino, para fazer uma boa escolha, é necessário que a criança perceba o traço que distingue os pares e que não pode ser expresso na imagem, que é o vozeamento no caso das consoantes sonoras e o ensurdecimento, no caso das consoantes surdas. Para isso, é preciso colocar a mão no pescoço, e produzir a consoante. Nesse processo de identificar vozeamento, a orientação do professor é fundamental:

A análise minuciosa destes métodos escancara a falta um saber técnico sobre linguística e total desconhecimento das dificuldades comuns do processo de alfabetização. Nos parece difícil acreditar que os e defensores deste tipo de método elaboraram esses materiais sem conhecer questões tão básicas para todo linguista ou estudante de Letras, como o modo e o ponto de articulação, vozeamento e ensurdecimento das consoantes. É como se a produção da fala não tivesse sido levada em consideração no momento de confecção deste material e como se os idealizadores não tivessem previsto as possíveis dificuldades que as imagens podem impor às crianças. Assim, esta análise corrobora as considerações de Coudry sobre o enfrentamento da patologização:

Enfrentar a patologização significa ter contato com um desconhecimento técnico sobre a linguagem, em várias de suas dimensões, funções e registros que tem impregnado os diagnósticos que temos recebido. Confunde-se som com letra; o falado é tomado como erro na escrita de iniciantes (RIBEIRO, 2001; ALKMIN, 2009) e em processos intermediários (COUDRY, SCARPA, 1985; ABAURRE e COUDRY, 2008) que ocorrem antes do registro estável da escrita; desconhece–se a hierarquia dos constituintes silábicos, de como a sílaba se estrutura (ABAURRE, 2001), o que leva a aparecer na avaliação pérolas como: “a criança troca letras na fala” para se referir a um sintoma de patologia quando, entretanto, trata-se de dados de momentos variados do processo. (COUDRY, 2018, p. 343)

Partindo da experiência do CCazinho, é difícil crer que as crianças não tenham ainda mais dificuldades para escrever utilizando imagens de bocas posicionadas como se estivessem reproduzindo a fala ou mesmo para preencher uma tabela de associações que é de difícil compreensão até mesmo para um adulto alfabetizado. Do mesmo modo, é difícil projetar uma criança que já desanimada por conta de dificuldades escolares, seja submetida a tais atividades que dificultam a reflexão sobre a representação gráfica das palavras e se sinta motivada a aprender a ler e a escrever. Em suma, a análise dos exercícios que compõem o método fônico e o método das boquinhas evoca a palavra inautêntica, explicitada por Paulo Freire (1970, p. 44):

A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamente, a reflexão também se transforma em palavreria, verbalismo, blábláblá. Por tudo isso, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois que não há denuncia verdadeira sem compromisso de transformação nem este sem ação.

Exemplo claro de palavreria, os exercícios do método fônico e os do método das boquinhas se mostram, assim, instrumentos capazes de cumprir os propósitos do governo de Jair Bolsonaro, claramente expressos nas falas do presidente e nas falas de Nadalim: desestimular a criticidade e ter uma geração pouco interessada em política. Ademais, percebe-se um distanciamento das discussões internacionais sobre a metodologia fônica, já anteriormente citada: se no exterior enfatiza-se a importância de atividades de leitura e escrita significativas para que se pratique o que se considera ensino explícito, no Brasil, explicitamente se diz que isso não é importante, porque não é de interesse do governo o desenvolvimento do pensamento crítico.

Após esta análise, é preciso retomar que a justificativa dada pelo governo para a imposição do método fônico que é que são altos os índices de fracasso em avaliações como a ANA (Avaliação Nacional de Alfabetização) e a Prova Brasil. É relevante, portanto, investigar como são estas avaliações e se os exercícios e procedimentos do método fônico podem ser de fato o que melhorará a aprendizagem e os resultados na avaliação. Não é objetivo deste artigo propor uma análise minuciosa estas provas, até porque o INEP ainda não as disponibilizou na íntegra. Entretanto, estão disponíveis para consulta algumas informações sobre que nos permitem constatar que ela é substancialmente diferente do que é proposto pelo método fônico. Veja-se a matriz da prova de Língua Portuguesa da ANA.

Figure 6. Tabela 1 - Matriz de Referência da ANA - Língua Portuguesa Fonte: INEP (2015, p. 1.)

Na ANA, avalia-se a compreensão de gêneros textuais e não apenas textos artificiais produzidos especialmente para fins pedagógicos ou avaliativos. A prova exige a leitura de tirinhas, anúncios, contos, reportagens, cartazes etc. A prova também conta com a compreensão da articulação entre linguagem verbal e não verbal, avalia se a criança já aprendeu a fazer inferências e a relacionar as partes do texto marcadas por conectores. Caso a proposta do governo de que predomine o método fônico seja viabilizada e de fato aceita por professores e pela maioria das escolas, de que modo seus exercícios e procedimentos podem ajudar a melhorar o desempenho das crianças nesta prova se em nada ela se parece com o que propõe o método fônico?

Na tabela a seguir, apresentamos a matriz de referência da ANA para a avaliação da escrita.

Figure 7. Tabela 2 - Matriz de Referência da ANA - Língua Portuguesa Fonte: INEP (2015, p. 2.)

Ainda que algumas atividades se assemelhem a certas instruções recorrentes nos manuais de consciência fonológica, (MOUTINHO, 2019) percebe-se que a criança deverá produzir um texto a partir de uma situação dada, de modo que seja possível avaliar se ela já aprendeu a utilizar recursos coesivos e pontuação, o que se difere radicalmente dos exercícios aqui analisados. Andrade (2010) fez uma análise dos resultados das avaliações nacionais de alfabetização e descobriu que as crianças chegam a aprender a ler - se a leitura for compreendida como compreender a relação entre sons e letras. Entretanto, se entendemos que a leitura envolve a compreensão do mundo, dos sentidos, das relações entre textos e inferências avaliadas nas provas, os resultados são de fato ruins3. Isso nos mostra que as crianças, em geral, não estão barradas na relação de letras em fonemas e que para elas o sistema fonético brasileiro não chega a ser um fantasma (ANDRADE, 2010). Para Andrade, é justamente por isso que, na prática pedagógica, é muito arriscado reduzir alfabetizar ao ensino de abstrações das sonorizações propostas pelo método fônico em vez de ter como norte do trabalho o sentido da leitura e da escrita. Ademais, o método fônico não dá lugar àquilo que as crianças conhecem, de fato: a própria fala. As sonorizações propostas pelo método privilegiam uma língua artificial que em quase nada se assemelha às variedades do português brasileiro e que acabam por confundir a criança. A criança, por sua vez, não sabe em que fala se apoiará para escrever: a própria fala, a afala do adulto com quem convive na família, a fala espontânea do professor ou a fala artificial que o professor elabora no momento dos ditados. Esse método, portanto, subestima a capacidade das crianças de refletirem sobre as diferenças entre a fala e a escrita, deixando-as privadas das reflexões sobre a fala e a escrita nos mais diversos contextos. Com Andrade (2010), e pela experiência no CCazinho, a ND afirma que as abordagens pedagógicas que entendem a língua como sistema – tal qual o método fônico concebe – e a aprendizagem como mera capacidade de codificação e decodificação de fonemas se revela anti-produtiva e pouco potente para ensinar crianças sem dificuldades escolares, muito menos como intervenção para crianças com dificuldades.

Na alfabetização, é preciso evocar “os sentidos sociais da língua, embeber o ensino dos modos de funcionamento da língua escrita em práticas sociais de leitura e de produção de textos. E para nossas crianças estas estão oralizadas, fala-se mais do que se escreve” (ANDRADE, 2010). Partir da fala da criança já é consenso entre linguistas que investigam o aprendizado da leitura e da escrita a efetividade dessa prática já é ressaltada desde a década de 80 (CAGLIARI, 1989, COUDRY; SCARPA, 1985, ABAURRE, 1997, ALKIMIN, 2009).

Desde a educação infantil, seguindo pelos anos finais do ensino fundamental e até pelo ensino médio, para se ensinar a letra, torna-se um equívoco pedagógico, de caráter antididático, conceber a língua superdimensionado seu lado de representação escrita pela letra, sem articulá-la à oralidade, à oralização (da escrita) aos usos mais familiares da letra, que não carregam em si valor de sua legitimidade. Estes usos, acrescidos de outros, como os regionais, são vivos, e embora estejam distantes dos usos padronizados, mais legítimos da escrita, devem ser considerados pela escola como ponto de partida fundamental, terreno em que se deve adubar a apropriação de outros usos, de peso simbólico social mais forte. (ANDRADE, 2010, p. 9)

Vimos que os exercícios desse método abarcam uma série de sonorizações precárias, apartadas de qualquer situação significativa da linguagem, o que faz da escola, segundo Andrade (2010) um laboratório sonoro, em que se pronuncia uma língua à parte, uma língua sem enunciação, sem sentido. Para a autora,

Uma das consequências é expor as crianças sistematicamente a “textos” que somente ensejam uma leitura artificial, surrealmente produzidos, prescindem de coesão, de coerência e até de uma sintaxe adequada às regras de uso contextualizado da língua, abusando de regências estranhas aos usos efetivos do nosso idioma. Por não se pautarem na cultura, dispensam-se de doses de poesia, humor e até informações conceituais. Professores e alunos que seguem o método de tal natureza exercitam-se numa suposta aprendizagem que não se conecta nem por uma faísca à vida linguística verdadeira e pulsante. Inventam- se “textos” e querem fazer crer a crianças, pais e professores que é possível se aprender a língua escrita apresentando-se nacos de discurso aos futuros escreventes, partes isoladas do corpo da língua, amputada da mágica do sentido, da poesia temática que as significações podem ganhar. Observando tais materiais destinados à aprendizagem escolar da língua escrita, produzidos por autores que alegam se basearem em princípios (neuro)linguísticos do século XXI, o Círculo de Bakhtin diria se tratar de necrófilos escarafunchando partes mortas do corpo da língua, selecionadas para estudo. Toma-se por objeto das lições de estudo descrições anatômicas do fonema, unidade que vem a ser uma partícula abstrata da língua. (ANDRADE, 2010, p. 10)

O desconhecimento sobre a língua é muito claro nesses manuais: a língua não é somente a junção de fonemas e com grafemas. Tudo que faz parte da língua ganha sentido somente no discurso/interlocução, com a prosódia, as variedades linguísticas, os sujeitos, o contexto. Quando se reduz a alfabetização a ensinar consciência fonológica, muitas dimensões da língua são ignoradas, já que a língua escrita, nas palavras de Andrade, assim como a língua inteira, é feita de muitas consciências. “As consciências sociológica, cultural, regional, literária, gramatical, morfológica, lexical e muitas tantas mais, sem que uma se sobressaia à outra, circunscrevem a nossa língua escrita a ser ensinada”. (ANDRADE, 2010, p. 12) A prática escolar e a prática clínica não podem ficar limitadas à prática de exercícios como os analisados neste artigo e serem indiferentes a estes outros tipos de consciência, elementares para a alfabetização.

Para Andrade, esses exercícios que são sempre repetidos à exaustão fazem com que crianças e professores acabem por perder muito tempo, que poderia ser dedicado à escrita espontânea e criativa, à leitura significativa e motivadora e se limitam quase sempre somente à “musculação de partes abstratas do sistema linguístico, nublando o céu da constituição de cidadãos ativos, criativos, divertidos, inteligentes, politizados, artísticos e que se sintam participantes como produtores e consumidores de cultura popular e de cultura erudita” (ANDRADE, 2010, p. 12).

A ND problematiza, também, o fato de que a defesa deste método se fundamenta tanto na premissa de que ele é eficaz em outros países e na de que, antes da difusão das teorias do letramento, especialmente entre as décadas de 50 a 90, ele era predominante nas escolas e os resultados se mostravam satisfatórios. Entretanto, é ingênuo crer que a implementação de políticas educacionais estrangeiras bem-sucedidas no exterior terá a mesmo resultado no Brasil. A estrutura das escolas, as condições de trabalho dos profissionais da educação, a (não) valorização social e cultural da leitura, da escrita, da escola e da escolarização também têm papel determinante no sucesso e no fracasso escolar. Nenhum país apresenta as mesmas variáveis linguísticas, sociais, históricas, políticas, e culturais que outro, o que invalida totalmente o argumento que considera o sucesso do método no exterior.

Já nos anos 80, linguistas alertavam para as comparações ingênuas provenientes das importações de métodos de análise linguística de outros países, onde se fala outras línguas:

a situação linguística brasileira apresenta peculiaridades que a distinguem de outros países. As atividades científicas na área não podem se restringir, portanto, a uma simples importação. É indispensável o desenvolvimento de um aparato teórico-metodológico adequado à realidade nacional. (...) A introdução de componentes de natureza social e funcional no objeto de estudos linguísticos tornou muito temerária a simples importação de modelos teóricos, pois já não se trata apenas da transposição de uma análise de uma língua para a outra. As diferenças na estrutura social, nas normas e valores culturais, que condicionam o comportamento linguístico, têm de ser devidamente consideradas. (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 19)

Ainda que na citação a autora trate de modelos de análise linguística em geral, a mesma reflexão cabe quando se trata de considerar que o método fônico deve ser aplicado no Brasil porque é aplicado em outros países e lá gera bons resultados. As especificidades ortográficas, fonéticas e fonológicas de cada língua são geradoras de processos de aprendizagem e hipóteses de escrita a elas relacionados e que não podem ser generalizados de modo a crer que um único método é eficiente para alfabetizar crianças falantes de qualquer língua. Ademais, cabe retomar que tais estudos que comprovariam a eficiência do método fônico em outros países não são citados pelo governo para justificar a sua ampla adoção.

A respeito do sucesso do método antes da década de 80, Andrade (2010) ressalta que não há informações disponíveis sobre sucesso e fracasso escolar, já que essa investigação não fazia parte dos censos aos quais se quer os pesquisadores tinham acesso e pouco sabiam. É preciso lembrar também, que no período em que o governo alega que o método era aplicado e eficaz, grande parte da população brasileira era analfabeta.

Ao se ater a supostas pesquisas internacionais e a um saudosismo infundado, governo deliberadamente ignora a vasta pesquisa produzida no Brasil, seja no âmbito da Educação, seja nos âmbitos da Linguística e da Linguística Aplicada. Isso não é surpreendente, já que diversas vezes o presidente afirmou que o governo gasta demais com a universidade pública sem ter retorno, porque pesquisa científica é, em sua análise “coisa rara no Brasil”.

Por que a prática com as crianças do CCazinho norteada pela ND é radicalmente oposta ao que é proposto pelo método fônico? Trago aqui a citação de Coudry sobre a centralidade da linguagem e da subjetividade no encontro com as crianças e apresento, no próximo item, um exemplo de atividade feita no acompanhamento individual de uma das crianças que frequentou o CCazinho.

Para a ND, o encontro com os sujeitos se dá pela linguagem, nossa estrela guia para compreender o funcionamento patológico e o normal, e seu exercício em práticas linguageiras/discursivas com as quais os sujeitos se envolvem, afirmando sua historicidade e tendo as dimensões semântica e semiótica atuando na função simbólica. Trata-se de práticas que veiculam várias formas de atuar na linguagem: diálogo, narrativa, comentário, discurso argumentativo, de opinião, de humor, entre outras. Práticas que materializam o que se fala/escreve no presente em que vivemos, veiculadas em jornais falados, escritos e na mídia eletrônica/internet/ redes: comentários sobre a política regional e nacional, com destaques para alguns acontecimentos no mundo; sobre os campeonatos de futebol que estão em curso, sobre culinária; sobre pessoas e suas histórias; enfim, realizando o traço primordial que Benveniste ([1969] 1995b) apontou para diferenciar a linguagem humana da comunicação animal: falar a outros que falam – o que para nós também pressupõe escutar o outro e a si mesmo, e inevitavelmente ver (um sistema aberto nos termos de FREUD, [1891] 2010), considerando o mundo visual em que vivemos.” (COUDRY, 2018, p. 342)

Qual é, portanto, a proposta da Neurolinguística Discursiva para o trabalho com a leitura e com a escrita, seja com crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem ou não?

4. A proposta da Neurolinguística Discursiva

A seguir, é analisado um texto produzido por EF, uma criança que permaneceu em acompanhamento longitudinal no CCazinho entre agosto de 2018 e novembro de 2019. O dado em questão é um texto escrito pela criança em outubro de 2018. EF é uma criança atenta ao mundo em que vive, aos livros que lê e filmes que assiste, crítico das relações entre as pessoas e dos objetos da cultura com os quais convive. Observei que ele elaborava, em suas anotações pessoais, uma lista com os livros que tinha lido e com filmes que tinha assistido no ano de 2018. Disse para ele que eu faço o mesmo e mostrei minhas anotações, mas que, no caso dos livros, mantenho um diário de leituras no qual registro diversos aspectos do livro e da leitura. EF se mostrou bastante interessado nesse tipo de anotação e leu algumas páginas do meu diário. A minha sugestão foi que ele fizesse o mesmo e elaboramos juntos o que ele poderia preencher sobre o que tinha lido e assistido. EF escreveu este texto sozinho, em sua casa, no dia 13 de fevereiro de 2019, a partir da orientação de falar em voz alta para escrever e também de fazer uma revisão de seus textos após o término, para corrigir se necessário.

Figure 8. Dado 1. EF escreve em seu diário pessoal de registro de filmes Fonte: Banco de Dados em Neurolinguística

CRÍTICA DE CINEMA: Nome do filme: Zootopia318 Diretor: Bryan Howard, Rick Moore. Elenco: Ginnifer Goodwin, Jason Bateman, Iris Elba. Sinopse: Quando uma lontra desparece misteriosamente uma coelha policial sabe de uma raposa que pode saber sobre o caso. Ano: 2016 Pontos positivos: O filme é bem elaborado Pontos negativos: a coteces coisas cem simdido O que mudaria no filme/história: mais atores para vaces as música e os perssonagem (personagem)
Table 1. Quadro 1. Transcrição do dado Fonte: Banco de Dados em Neurolinguística

O que a análise deste dado nos mostra sobre as dificuldades de EF com a escrita? Ora representa o conectivo e como i – tal qual falamos -, ora como e, o que nos mostra que ainda oscila entre representação gráfica correta e a apoiada na fala. A alternância nos sugere a possibilidade de um rebaixamento da atenção, até porque, ao ler o texto junto com a cuidadora, EF apontou essa representação e corrigiu. Na leitura, EF corrigiu também, sem precisar da intervenção, a representação de tem por tei, comum na escrita inicial para a representação da nasal.

Vemos, ainda, algumas questões de sonoridade, como o vozeamento de semdido (sentido) e vaces (fazer), que EF também percebeu por si só ao ler junto com a cuidadora e fez a correção imediatamente. Vemos poucas questões que envolvem a representação ortográfica em cem (sem) e perssonagem (personagem).

O que esse dado nos revela sobre a relação de EF com a leitura e a escrita para além da representação gráfica? Podemos identificar algumas as funções sociais da escrita e da leitura atravessando essa atividade: o registro pessoal para memória e o registro das apreciações pessoais. Vemos, também, que EF domina o gênero específicos que foi evocado na escrita de suas anotações: a contracapa do livro. Na escrita da contracapa, EF projeta um interlocutor e se dirige a ele de maneira a despertar sua curiosidade sobre a história: apresenta as personagens, seu contexto, menciona um roubo – o conflito do livro -, diz que o eventual leitor irá se divertir e ainda o convida a descobrir mais sobre a história. É evidente, portanto, que EF é um leitor atento, que consegue abstrair e generalizar as características dos textos com os quais convive e lê e que, principalmente, consegue articulá-las para produzir um texto.

Esse tipo de atividade, além de partir do interesse da criança, dá a ela a oportunidade de produzir textos espontâneos (e planejados), de refletir não apenas a respeito da representação gráfica/ortográfica, mas também dos gêneros que circulam pela sua vida, a função social que têm, e, sobretudo, propiciam a interlocução entre cuidadora e criança, a negociação de sentidos, a ratificação das experiências vividas (FRANCHI, 1977) com a língua escrita e a expressão da subjetividade.

Deixar as crianças escreverem textos espontâneos é de fundamental importância para que façam corretamente a passagem da fala para a escrita e da escrita para a ortografia. Dessa forma eles verão como a fala e a escrita funcionam, como os dialetos vivem, como uma classe pode ter falantes de diferentes dialetos, quando se usa um dialeto e quando se usa outro. Mas para isso é preciso que a professora saiba o que está acontecendo e o que ela está fazendo. Às vezes é preciso até mesmo que explique detalhadamente ao aluno o que ele próprio fez, como fez e por que fez, além, é claro, de como deveria ter feio e por quê. (CAGLIARI, 1989, p. 71)

Ademais, a escrita espontânea permite que o investigador analise as hipóteses das crianças sobre a representação gráfica e ortográfica das palavras. Como vimos, nos exercícios das apostilas do método fônico, não há lugar para a hipótese: as palavras já estão dadas de modo que a criança preenche com algumas letras, diminuindo assim o esforço envolvido no trabalho linguístico-cognitivo para ler e escrever. Somente com as hipóteses que emergem da e na escrita espontânea, o adulto pode descobrir o que está barrando a criança na entrada no mundo das letras e planejar uma intervenção eficiente.

Por fim, é preciso ressaltar que a ND reconhece que o método fônico é utilizado para alfabetizar muitas crianças e nem todas elas encontram dificuldades nas atividades representativas da perspectiva fônica. Além disso, não nos posicionamos de maneira contrária ao ensino explícito e sistemático dos sons das letras, dos sons que assumem nas palavras. O alerta que fazemos se localiza, sobretudo, na escolha textual que prevalece na aplicação da metodologia fônica, predominantemente cartilhesca e descontextualizada:

O ensino tradicional fonocêntrico, o construtivismo (muitas vezes interpretado parcialmente) e, mais recentemente, o trabalho a partir da perspectiva do letramento têm sido alternativas abraçadas por professores em todo o país. As três perspectivas experimentam sucessos e fracassos. Sendo assim, todas podem desencadear aspectos de exclusão se não atentarmos para o fato de que as práticas de leitura, escrita e oralidade de textos verbais (e não verbais) estão relacionadas ao desenvolvimento das crianças como pessoas participantes de suas famílias, de seus grupos, e da sua comunidade. (...) Os professores, buscando compreender como se dá a alfabetização, muitas vezes trabalham a partir de uma posição tradicionalista, reeditando, no processo da alfabetização, a leitura de cartilhas, de textos que são a simples adição de frases e um trabalho que utiliza o nome das letras e operações de soma de habilidades cujo ensino depende de pré-requisitos relacionados à aprendizagem das partes menores da palavra em direção às maiores. Nessa perspectiva, os aspectos comunicativos da oralidade, leitura e escrita não são priorizados e as atividades comunicativas são postergadas para serem trabalhadas após a aprendizagem de pré-requisitos. O ensino, assim, baseia-se em uma dinâmica de repetição com a soma de novos constituintes. (BARBATO, 2008, p. 78)

A analise aqui apresentada dos exercícios representativos da metodologia fônica são um exemplo do que foi descrito na citação acima como um ensino de repetição com a soma de novos constituintes. O risco para a formação do leitor autônomo e crítico e do escritor criativo também está dado.

Ademais, nosso alerta também se concentra na maneira como o governo blinda a perspectiva cognitiva e a metodologia fônica com uma suposta comprovação científica. O risco desta blindagem, como alertado, é que o fracasso do uso do método com algumas crianças se torne um sinal de que o problema está na criança, supostamente na suspeita de uma patologia, e não no método já atestado e recomendado por cientistas. O gatilho para o início de processo de patologização de crianças que não tem patologia foi, portanto, apertado.

5. Conclusões

Este artigo argumentou que a imposição do método fônico via decreto presidencial pode acarretar em diversos problemas para a alfabetização. Tal imposição parece atender mais aos desejos de um eleitorado que votou em Jair Bolsonaro apenas para que ele destruísse e mudasse “tudo isso aí”, ou para desmoralizar destituir tudo quanto fosse obra dos governos que o antecederam. Assistimos a teorias e pesquisadores sobre alfabetização e letramento – como Emília Ferreiro e Magda Soares – serem criticadas de modo infundado e serem acusadas de propor teorias e práticas responsáveis pelo fracasso escolar no Brasil.

Isso não passa de mais uma estratégia de despolitização das discussões sobre a educação, que, ao procurar culpados pelos índices escolares, acoberta a responsabilidade do Estado pelo investimento em infraestrutura escolar, melhores condições de trabalho e salário para os professores, pela construção de novas escolas e outras ações políticas que têm efeitos diretos na educação. As vítimas dessa cruzada ideológica irresponsável – que mais se assemelha à infantilidade do que implementação de políticas públicas legítimas – são as crianças que são submetidas aos procedimentos do método fônico, com exercícios que são em sua maioria, indutivos ao erro. É nesse contexto, com exercícios que podem gerar o déficit, que a criança se encontra diante de um possível processo de avaliação clínica e patologização. Pagam, também, os educadores, que observam a teorização sobre ensino de leitura e escrita serem descredibilizadas e Paulo Freire, uma das maiores referências sobre educação no Brasil e no mundo, ser criminalizado com os mesmos argumentos infundados e antiquados utilizados para criminalizá-lo na época do golpe militar. Ademais, os professores ficam sem amparo mais uma vez diante de um decreto autoritário, emitido sem consulta pública, que quer ditar a prática cotidiana explicitar como implementará o que se acredita ser necessário para tal, deixando professores e gestores de cursos de formação à deriva em meio a um contexto em que, por um lado, as novas determinações exigem recursos para que sejam implementadas, e, por outro, cortes drásticos de investimento são anunciados para todos os seguimentos da educação.

A prática da Neurolinguística Discursiva sempre foi inspirada em Paulo Freire. O relevo à função social da escrita e da leitura pela prática da escrita espontânea e pela leitura de textos significativos para as crianças são procedimentos que se diferenciam radicalmente das atividades metalinguísticas e de repetição da escola e, paradoxalmente, ajudam as crianças a entenderem e a cumprirem o que a escola espera dela – o que permite sair da esfera da anormalidade. Depois que as crianças compreendem a relação entre a fala e a escrita e o funcionamento da língua e da linguagem na sociedade, depois que os cuidadores do CCazinho ampliam os interesses das crianças e elas entram no mundo das letras, as atividades escolares não são nada mais que simples tarefas que elas precisam cumprir para obter a aprovação ao final do ano escolar. É nesse sentido que a prática do CCazinho é, para as crianças, libertadora (FREIRE, 1967): ao mesmo tempo que possibilita que as crianças superem suas dificuldades e de fato se alfabetizem, tornando-se leitoras e escritoras, possibilita também que a criança tenha condições de jogar o jogo da escola e ser bem-sucedida nas atividades e avaliações.

Por fim, este trabalho aponta para a necessidade de se problematizar, no seio da Linguística, o cientificismo que é atribuído ao método fônico e que parece ter sido uma das várias motivações para sua imposição via decreto pelo governo do presidente Jair Bolsonaro.

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How to Cite

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