Abre alas da pesquisa1: primeiras palavras
O fazer do pesquisador envolve escolhas baseadas em objetivos e que marcam sua pesquisa, desta forma, caracterizando-a. Assim, podemos dizer que uma pesquisa é qualitativa ou quantitativa, bibliográfica ou documental etc. Porém, além de fazer escolhas, o pesquisador deve pensar porque as faz, qual impacto terá no seu estudo, entre outros aspectos. Nas pesquisas em Aquisição da Linguagem, essas escolhas têm a especificidade de envolver diretamente outros sujeitos, como crianças, que não são capazes de opinar ou compreender o que é uma pesquisa científica. Por isso, há uma preocupação especial do pesquisador da Aquisição com seus sujeitos de pesquisa considerando a sua singularidade e dependência de outros (adultos, como os pais) para tomar decisões.
Pensando na relação pesquisador e sujeito, este artigo aborda a temática da ética em pesquisa no campo da Aquisição da Linguagem, de forma que buscamos aqui pensar em duas questões concernentes a pesquisa com crianças, a inserção de campo do pesquisador com o sujeito e o tratamento dos registros da pesquisa de campo através da atividade de transcrição. Nosso objetivo é refletir sobre a constituição do pesquisador na área aquisicional levando em conta a singularidade do trabalho com a criança e, ainda, discutir as escolhas que permeiam o processo de transcrição de registros em áudio e/ou vídeo produzidos em pesquisas de campo. Para dar conta de tal reflexão, mobilizamos os conceitos bakhtinianos de ato responsável, pensamento participativo, centro de valores, não-álibi e assinatura, os quais pensamos fazem parte de qualquer ato humano, inclusive o ato de pesquisar como um todo. A obra principal que fundamenta estes conceitos, “Para uma filosofia do ato responsável”, de Bakhtin (2020), propõe um novo modo de se pensar a pesquisa em Ciências Humanas partindo da realidade do ato enquanto evento. Acredita-se que o texto foi escrito por Bakhtin no início dos anos 1920 e guardado em um abrigo, quando encontrado estava em péssimas condições e muito se perdeu, somente sua primeira parte pode ser recuperada e publicada depois de 1980. Além do texto fundante, também nos apoiamos teoricamente nas reflexões de Sobral (2019) e Del Ré, Paula e Mendonça (2014). Pensamos, com esses autores, que a ética em pesquisa é um assumir a responsabilidade que o pesquisador tem para com todos os aspectos de sua pesquisa, tanto com os sujeitos envolvido quanto na teorização, produção, tratamento e análise dos registros. Isto é, trata-se de reconhecer que quando se pesquisa um outro sujeito e seus discursos, se estabelece um diálogo entre duas consciências e que o lugar de cada uma é irreversível, por isso cada escolha é também uma compreensão avaliativa sobre o excedente de visão sobre o outro.
Este artigo se configura, então, como um estudo teórico reflexivo sobre a constituição do pesquisador e a transcrição no campo da Aquisição da Linguagem e é dividido em duas partes. A primeira parte apresenta um aprofundamento teórico dos conceitos mencionados, pensado sob o viés da aquisição, considerando a especificidade do sujeito criança. Já, em um segundo momento, exploramos as escolhas que regem o processo de transcrição dos registros de campo, escolhas que pressupõem a subjetividade do pesquisador e atravessam as delimitações específicas de cada pesquisa. Por fim, sintetizamos as principais considerações acerca da reflexão teórica na parte final deste artigo, ponderando de que forma tal estudo pode contribuir com pesquisas na área da Aquisição, independente do aporte teórico e metodológico escolhido.
1. Primeira ala: o ato responsável de pesquisar
A obra “Para uma filosofia do ato responsável”, de Bakhtin (2020), considerado o primeiro texto de fôlego do autor, apresenta o projeto de uma reformulação da pesquisa em ciências humanas que, segundo a crítica do filósofo, estava naquele momento histórico perdido em um teoricismo que eliminava o caráter real das Ciências Humanas. Assim, Bakhtin (2020) propõe que não se observe somente o aspecto teórico do acontecimento da vida, mas que se parta do evento do ato considerado em um todo. Nesse ato, o teórico é apenas um dos momentos implicados. Temos assim a principal tese do autor, a vida vivida como ato. E é a partir do ato que encontramos um caminho para os conceitos que cercam o evento, tal como os de responsabilidade e não-álibi, entre outros. Por isso, partimos aqui do ato explorando os conceitos que o ramificam até chegar ao conceito de pensamento participativo e sua importância na pesquisa da Aquisição da Linguagem.
A vida é uma série de atos que o sujeito realiza, de modo que a própria vida como um todo pode ser vista como um grande ato. Esta é uma das principais considerações de Bakhtin (2020) e na qual já podemos encontrar uma pista de como seria o fazer científico para esse autor. Ao observarmos tal afirmação, podemos entender que pesquisar, independente da área de atuação, é um ato que pressupõe um sujeito, um pesquisador. Mas, para entendermos o ato de pesquisar, precisamos compreender a constituição do todo dos atos humanos. Conforme Bakhtin (2020):
O ato da atividade de cada um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas direções opostas: para a unidade objetiva de um domínio da cultura e para a singularidade irrepetível da vida que se vive, mas não há um plano unitário e único em que as duas faces se determinem reciprocamente em relação a uma unidade única. (BAKHTIN, 2020, p. 43).
O ato, por esse ponto de vista, está voltado tanto para o geral da cultura, passível de universalização e repetível, como também para o singular da vida de cada sujeito único, ou seja, para o irrepetível. Nem uma das faces anula a outra ou se equivale de qualquer forma, mas todas habitam o interior do ato. Sobral (2019, p. 39) esclarece que o “ato em Bakhtin se compõe de um elemento generalizável, estático, e de um elemento não generalizável, dinâmico”. Pensar no ato desta forma implica considerar que ele não surge de um plano teórico abstrato, mas ocorre na historicidade singular da vida dos sujeitos. O teórico e/ou estético, dessa forma, são observados como um momento do ser-evento singular do ato. O ser-evento ou evento do ser singular é compreendido por Bakhtin (2020) como um ser “que pensa, e que pode por isso transcrever teoricamente sua vida, mas a partir de sua unidade e não da teoria” (SOBRAL, 2019, p. 43). O sujeito, nesta concepção, é um centro de valores que assume uma posição a partir da qual realiza seu ato e expressa seu tom emotivo-volitivo.
É um ser humano este centro, e tudo neste mundo adquire significado, sentido e valor somente em correlação com um ser humano, somente enquanto tornado desse modo um mundo humano. Toda a existência possível e todo o sentido possível se dispõem ao redor de um ser humano como centro e valor único. (BAKHTIN, 2020, p. 124).
O centro de valores é o lugar que o sujeito assume ao agir no mundo. É a partir deste lugar único que cada um atribui sentido e valor ao vivido. Dessa forma, o sujeito em Bakhtin (2020) é um sujeito relacional e situado. Como explica Sobral (2020, p. 22), a proposta bakhtiniana é “conceber um sujeito que, sendo um eu-para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu-para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo, que lhe dá sentido”. Ou seja, cada centro de valores existe em relação a um outro centro de valores, essa relação é constitutiva do sujeito. O “eu” enquanto sujeito singular só consegue afirmar sua existência em relação a um “tu”.
Assumir essa posição única implica um outro princípio bakhtiniano, o de responsabilidade. O centro de valores tem uma responsabilidade irrevogável de se constituir e agir a partir de sua posição. Dessa forma, chegamos à consideração de que o ato é responsável, é o resultado de uma conclusão que tem abertura para o plano do conteúdo-sentido e da singularidade do evento. Se a responsabilidade é do ato, cada ato de cada sujeito encontra sua própria verdade responsável, o que “encontramos em cada caso é uma constante <?> singularidade na responsabilidade” (BAKHTIN, 2020, p. 94). Cada gesto do sujeito que ocupa seu centro de valores é um ato responsável e singular. Único porque recebe a assinatura daquele que age, uma vez que é “a minha assinatura colocada no final, o fato de eu ter, uma vez, reconhecido e subscrito tal obrigação” (BAKHTIN, 2020, p. 94) que torna cada ato “meu”, situado e relativo a um centro de valores.
O ato responsável é, precisamente, o ato baseado no reconhecimento desta obrigatória singularidade. É essa afirmação do meu não-álibi no existir que constitui a base da existência sendo tanto dada como sendo também real e forçosamente projetada como algo ainda por ser alcançado. É apenas o não-álibi no existir que transforma a possibilidade vazia em ato responsável real (através da referência emotivo-volitiva a mim como aquele que é ativo). (BAKHTIN, 2020, p. 99, grifo do autor)
É impossível escapar a sua posição no mundo como sujeito. Mesmo se abster de falar sobre algo é um ato, uma decisão tomada baseada em sua posição. O princípio de não-álibi do ser postula a impossibilidade de abstrair-se do seu lugar único, uma vez que ser no mundo é assumir compulsoriamente uma posição. Mas o que todos estes conceitos e reflexões nos dizem sobre a pesquisa? A pesquisa pressupõe também um sujeito, o pesquisador, que assume sua posição única do mundo. Irrevogável e marcada explicitamente pela sua assinatura na materialidade escrita da pesquisa. Ou seja, pesquisar é assumir uma responsabilidade a partir da singularidade de um pesquisador, tal responsabilidade no caso das pesquisas na área de Aquisição se volta para a criança sujeito da pesquisa e para os demais participantes, na escolha do grau de inserção na realidade estudada. É importante lembrar que em pesquisas que envolvem seres humanos, a responsabilidade do pesquisador perpassa a aprovação da pesquisa por um Comitê de Ética, o qual assegura o bem-estar dos participantes na recolha dos dados. Não aprofundaremos neste artigo a discussão acerca da concepção de ética nos referidos Comitês, o que pretendemos fazer em trabalhos futuros. Por ora, reconhecemos a submissão do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética2, conforme prevista pela legislação, como passo importante e atrelado ao que estamos entendendo aqui como pensamento participativo. Em Bakhtin (2020), o conteúdo-sentido da abstração teórica, como vimos, é apenas um dos momentos do ato responsável. O que não permite que um pesquisador parta da teoria para descrever o mundo sem cair em um teoricismo abstrato. É somente a partir do ato que se encontra uma “abertura voltada para seu conteúdo-sentido, que é inteiramente admitido e incluído desde o interior de tal ato, já que o ato se desenvolve realmente no existir” (BAKHTIN, 2020, p. 58). Assim, nesta concepção, o olhar do pesquisador deve originar-se no ser-evento singular, o que só é possível através de um pensamento participativo (não-indiferente em outras traduções), uma vez que, de acordo com Bakhtin (2020, p. 58), a “singularidade única não pode ser pensada, mas somente vivida de modo participativo”. Deste modo, o pensamento participativo é definido pelo autor como:
Um pensamento participativo é precisamente a compreensão emotivo-volitiva do existir como evento na sua singularidade concreta, sob a base do não-álibi no existir. Isto é, é um pensamento que age e se refere a si mesmo como único ator responsável. (BAKHTIN, 2020, p. 102).
O fazer científico e teórico em Bakhtin perpassa a noção de pensamento participativo e de uma posição de pesquisador ativa dentro da realidade do ato como objeto de estudo. O pensamento participativo é descrito por Sobral (2019) como:
(1) em primeiro lugar, a compreensão não desencarnada, de cunho emotivo-volitivo, que supõe a iniciativa de agir, uma iniciativa valorativa, situada, de um sujeito concreto (em vez de abstrata, do sujeito genérico);
(2) essa iniciativa valorativa supõe o ser-evento concreto;
(3) o ser evento-concreto supõe o não-álibi; e
(4) a compreensão participativa requer um pensamento ativo, não teórico, mas prático-teórico, referente ao ser singular de quem o pensa. (SOBRAL, 2019, p. 91)
Isto significa que o pensamento participativo pressupõe um sujeito concreto dentro da realidade do ato, sujeito marcado por um não-álibi no ser-evento. Isso porque o ser-evento em Bakhtin é real, constituído pela relação de determinado centro de valores com outro centro de valores, como vimos anteriormente. A transcrição/descrição da unidade da vida vivida é realizada pelo pesquisador que pensa participativamente a partir da vida do sujeito. Um tal fazer científico perpassa uma compreensão participativa e responsiva e uma interpretação valorativa do evento da existência. Desse modo, o pesquisador parte da palavra do outro, sujeito da pesquisa, como conteúdo de interpretação e análise para a sua palavra que constitui um novo enunciado a partir de um ato singular de pesquisa.
A relação “eu/outro” está na base da produção discursiva, o que significa considerar que também é constitutiva da construção teórica. No acontecimento do discurso teórico, as posições de “eu/outro” são ocupadas respectivamente pelo pesquisador e pelo sujeito pesquisado. Há uma tensão constitutiva da relação entre os discursos do pesquisador e do pesquisado, como explica Amorim (2007, p. 12): entre “o discurso do sujeito a ser analisado e conhecido e o discurso do próprio pesquisador que pretende analisar e conhecer, uma vasta gama de significados conflituais e mesmo paradoxais vai emergir”. Ou seja, nenhum discurso é transparente, tanto o discurso do sujeito da pesquisa como o do pesquisador é atravessado pela orientação valorativa deste e daquele como centros de valores únicos. A posição do pesquisador é irreversível bem como a do sujeito estudado. Aquele sempre terá uma vantagem em relação ao sujeito, pois o vê de fora e, através de sua posição exotópica, consegue determinar uma forma, uma interpretação e um valor ao seu objeto de estudo. Além disso, deve-se considerar outras posições que por vezes fazem parte do contexto de pesquisa em Aquisição; é o caso, por exemplo, de transcritores que nem sempre assumem a função de pesquisador principal da pesquisa, ou mesmo de analistas auxiliares. Assim, precisamos considerar o lugar singular que o transcritor ocupa, uma vez que este pode não ter contato diretamente com a realidade registrada, mas somente com o pesquisador principal e com os registros já colhidos. A transcrição seria composta, desse modo, na compreensão daquilo que pode ser recuperado do registro em vídeo/áudio. Na reflexão aqui trazida, focalizamos principalmente pesquisas que são desenvolvidas integralmente por um pesquisador que atua na produção dos registros, como transcritor e analista, porém pretendemos ampliar tal pensamento de forma a considerar as posições exotópicas de sujeitos em diferentes tipos de pesquisa na área da Aquisição.
Porém, deve-se partir do ato enquanto evento e considerar a própria posição do sujeito como um segundo centro de valores com interpretações próprias. Devemos assumir a atividade de pesquisa como um ato responsável:
A teoria e a estética somente se tornam éticas quando viram ato: quando alguém singular, numa posição singular e concreta, assume a obra ou o pensamento em questão. Assumir um pensamento, assiná-lo, ser responsável por ele em face dos outros num contexto real e concreto, tornar o pensamento um ato, eis o que torna possível um pensamento ético ou, como diz Bakhtin, um pensamento não-indiferente. (AMORIM, 2007, p. 16)
Pensamos, com Bakhtin (2020), que toda pesquisa deve partir da realidade concreta e viva e só assim pode encontrar uma unidade, de forma que o sujeito pesquisado deve se constituir como voz principal da pesquisa. A tensão entre pesquisador e pesquisado garante que a voz desse último tenha espaço. Tal intepretação dos atos dos sujeitos e do ser-evento singular requer a inteira plenitude da palavra como corpo que possibilita constituir um sentido à vida e um encontro entre o ético e o epistemológico da criação teórica.
Outra questão a se pensar é sobre a pesquisa com a criança, que é o sujeito principal nos estudos da Aquisição da Linguagem. Como o ato responsável de pesquisar se constitui na pesquisa com crianças? Ao pensar sobre isso, primeiro temos que refletir sobre a especificidade da criança como um sujeito único e diferente do adulto. Assim, conforme Del Ré, Paula e Mendonça (2014, p. 17), “falar da linguagem da criança é falar, na verdade, da linguagem do ser humano e, consequentemente, do adulto, que já foi criança”. Não se trata, no entanto, de considerar a criança como um “pequeno adulto”, mas como explica Dellamote-Legrand (2009, p. 22), “a criança deve ser considerada como outra pessoa e separadamente” do adulto. A criança como sujeito está, deste modo, em permanente tensão com os adultos com os quais convive, e é essa tensão dialógica que lhe possibilita a entrada em uma cultura e na linguagem. Outra diferença que caracteriza o universo de grande parte das crianças como sujeito é a limitação de seu horizonte social aos ambientes familiares e escolar, diferentemente do adulto que percorre vários horizontes sociais. A criança transita por esses espaços e, em consequência, produz discursos a partir dessas experiências, é assim, por exemplo, que em sua fala são referenciados com frequência os pais, professores e colegas de escola. É pela relação de alteridade com o adulto que a criança vai determinar a si mesma desde os seus primeiros dias, e é nessa relação que vai apreendendo as práticas sociais e de linguagem da cultura em que se insere.
Podemos observar a criança, nas pesquisas do campo da Aquisição da Linguagem, como o segundo centro de valores. O primeiro, que é o pesquisador, através do seu pensamento participativo, vai entrar em uma tensão com o espaço ocupado pela criança como segundo sujeito. A pesquisa só se constitui, assim, nessa tensão, a qual possibilita que diferentes orientações valorativas sejam interpretadas e pensadas em termos epistemológicos. No caso de a transcrição ser realizada por uma terceira pessoa, um transcritor que não seja o pesquisador principal, essa relação se expande e se torna triádica, porém a posição do transcritor que não teve contato com a realidade estudada estabelecerá uma posição de tensão com os registros e com o discurso gravado da criança, mas não diretamente com o sujeito estudado em si. Diferentemente, a relação entre transcritor e pesquisador se desenvolve em uma tensão dialógica marcada pelo estudo conjunto dos registros, o que permite que se complemente uma transcrição e se amplie a compreensão do fenômeno estudado. O transcritor é então um outro para o pesquisador, mas não se configura como um outro para a criança, uma vez que não aparece em seu contexto imediato. O fenômeno da aquisição da linguagem, nesta perspectiva, é observado enquanto ato no qual a criança é confrontada com situações de uso da língua e produz enunciados de forma singular. E, como tal, o ato contempla duas faces, uma voltada ao conteúdo-sentido repetível das convenções sociais que chegam a ela a partir dos adultos, a outra voltada para o aspecto singular e único da criança enquanto construtora de orientações valorativas refratadas das experiências vividas. Estudar a linguagem da criança é, nesse sentido, estudá-la a partir da realidade dos eventos de fala em que a criança transita e através do pensamento participativo interpretar seu discurso.
Dois cuidados são necessários quando se observa a inserção do pesquisador em pesquisas de campo com crianças. O primeiro é reconhecer que o pesquisador sempre estará em uma posição privilegiada em relação ao outro, pois o contempla de fora e vê sua forma no todo. O que pressupõe também reconhecer que há uma diferença de idade entre pesquisador/criança que é insolúvel, o que torna o espaço discursivo de cada um assimétrico. Neste sentido, o pesquisador precisa observar sua própria posição dentro do espaço de pesquisa e ao interagir com a criança o fazer sem julgamentos ou imposições, um cuidado para que seu discurso não se torne autoritário. Um segundo cuidado é o da inserção na realidade da criança, uma vez que o encontro total do pesquisador com a realidade é impossível, trata-se de fazer sua presença mais natural no contexto, prezando assim pela produção de registros naturalísticos. É importante lembrarmos que a interpretação e “compreensão dos enunciados integrais e das relações dialógicas é de índole dialógica (inclusive a compreensão do pesquisador de ciências humanas); o entendedor (e também o pesquisador) se torna participante do diálogo” (BAKHTIN, 2016, p. 103-104).
O ato responsável de pesquisar, como podemos perceber, é complexo, envolve a tensão entre centros de valores distintos, mas também compreende a tomada de decisões pelo pesquisador para que a interpretação do discurso da criança seja possível. Uma das escolhas mais importantes da pesquisa e que deve estar alinhada com os objetivos propostos é o processo de transcrição. Como passar da produção oral para a materialidade escrita? Como esta é uma decisão que envolve também o lugar único que ocupa o pesquisador, refletimos um pouco mais sobre a etapa de transcrição na próxima seção.
2. Segunda ala: a transcrição responsável
Na seção anterior, vimos que a palavra em toda sua plenitude é a matéria, o corpo do ato responsável humano. O ato responsável de pesquisar também se volta para a palavra, no caso da aquisição da linguagem tanto a palavra do outro (criança) como a do próprio pesquisador que produzirá seu próprio discurso a partir da interpretação da linguagem da criança. Pensar sobre a linguagem da criança requer uma atenção do pesquisador sobre como se dá o movimento das produções orais do sujeito para o escrito do texto de pesquisa. Tal movimento se dá na atividade de transcrição, à qual o pesquisador vai se voltar para conseguir realizar uma interpretação. No caso deste artigo, quando se fala em transcrição, pensamos na passagem para o escrito dos registros em áudio/vídeo produzidos em campo. Diferentemente da denominação “dados”, acreditamos que aquilo que o pesquisador produz em campo são registros dos eventos ocorridos em diferentes momentos da vida vivida da criança. Mas como pensar a transcrição dos registros da criança?
Ao refletir sobre as diferentes formas de transcrever um evento de linguagem, percebemos que cada modelo transcritivo se liga diretamente a uma linha de pesquisa ou fundamentação teórica. Ou seja, a transcrição não se constitui arbitrariamente, mas é derivada do tema da pesquisa, objetivos propostos, fundamentação teórica e metodologia adotada. De modo que não podemos pensar na “melhor” transcrição, já que, de acordo com Marcuschi (1998, p. 9), não existe “a melhor transcrição. Todas elas são mais ou menos boas. O essencial é que o analista saiba quais os seus objetivos e não deixe de assinalar o que lhe convém”. Neste momento, é necessário refletir sobre esse lugar que o pesquisador ocupa como centro de valores único. A partir desta posição, ele irá determinar o que é pertinente ou não para sua pesquisa através de critério de valor, considerando aquilo que pretende atingir. Ou seja, trata-se da tomada de uma posição discursiva que irá refletir e refratar outros discursos teóricos a fim de constituir uma forma de interpretar o discurso da criança.
No entanto, a problemática mais significativa quando pensamos na tarefa do pesquisador transcritor é: De que forma garantir que o máximo do contexto do evento de fala seja trazido para a materialidade escrita? É impossível reproduzir o contexto como um todo, porque algo sempre se perde no caráter singular do evento. Como afirma Rey-Debove (1996, p. 75), na transcrição “insiste-se em assinalar o que não pôde passar diretamente de um sistema para outro como um ‘resto’ que necessita de adaptação em nível de conteúdo”. Isto porque é neste “resto” mencionado pelo autor que reside a principal diferença entre o oral e o escrito, ou seja, a singularidade e unicidade do evento. O ato enquanto ser-evento é irrepetível e, por isso, muitos fenômenos que aconteceram não são possíveis de serem retomados mesmo através da palavra. O ato acontece em um tempo/espaço único, e mesmo que o sujeito retorne exatamente ao mesmo lugar é impossível retornar o tempo. O que o transcritor faz é recuperar parte do contexto de ocorrência a partir dos seus registros em áudio/vídeo e de sua experiência em campo. Dessa forma, a atenção do transcritor ao evento de fala “merece reflexão, uma vez que ele envolve [...] a passagem do oral para o escrito, movimento que exige do transcritor a tomada de decisões acerca de como lidar com esse registro” (DIEDRICH, 2017, p. 714).
A reflexão, neste sentido, se dá a partir da posição de cada pesquisador e algumas perguntas podem auxiliar nessas escolhas: Quais modelos de transcrição são adotados nas pesquisas no campo de Aquisição da Linguagem sob a mesma perspectiva teórica que a minha? Quais elementos devo focalizar na minha transcrição para atender os objetivos a que me propus? Qual a metodologia que utilizo e qual o modelo de transcrição proposto por ela? Como fazer referência a fenômenos como gestos, movimentos corporais, alterações no contexto, entre outros, na minha transcrição? Para qual aspecto dos registros produzidos vou voltar minha atenção e o que é importante evidenciar na transcrição? Estas questões evidenciam aquilo que relaciona a transcrição à pesquisa como um todo. A transcrição é perpassada pela orientação valorativa do pesquisador que através de sua posição única se constitui como sujeito escrevente do texto da pesquisa. Mas este não é o único sujeito.
Os registros também determinam quais aspectos serão focalizados, isto porque o sujeito da pesquisa não produz seu discurso com vistas a atender um objetivo do pesquisador, mas simplesmente interage com outros em um ser-evento único. De acordo com Del Ré, Paula e Mendonça (2014, p. 25), as crianças entram na linguagem de modo diferente e cada uma delas “vai voltar sua atenção para diferentes aspectos dessa linguagem: a repetição, a brincadeira, os modelos entoativos, as palavras (para retomá-las ou reinventá-las), as maneiras de significar”, isto é, vai produzir discurso a partir de sua singularidade. Assim, os registros vão apresentar os mais variados fenômenos, alguns dos quais se sobressairão e, por isso, muito possivelmente aparecerão na transcrição, uma vez que ocorrem com maior ou menor regularidade e intensidade. Por isso, muitas vezes o pesquisador sente sua pesquisa muito abstrata antes da entrada ao campo, de forma que são os registros e as experiências em campo que vão, por vezes, dar forma para o discurso do pesquisador. Algumas vezes até mesmo os objetivos da pesquisa mudam, pois o que foi observado em campo pode se tornar mais relevante aos olhos do pesquisador do que aquilo que ele propunha inicialmente.
Dessa forma, a transcrição é um processo que exige uma atenção constante do pesquisador, voltada tanto para as escolhas teórico-metodológicas e ainda mais para os registros e a experiência de campo. A responsabilidade aqui é a categoria central. Trata-se de saber que o lugar do pesquisador é responsável, o que significa que cada escolha voltará para sua centralidade enquanto sujeito que assina responsavelmente a pesquisa. Tal qual pressupõe o não-álibi de Bakhtin (2020) que presume o dever inalienável de que o sujeito aja a partir de sua posição única, uma vez que “é suficiente para nós encarnar plenamente e de maneira responsável o próprio ato do nosso pensamento, subscrevendo-o, para nos tornarmos realmente participantes do ser-evento a partir do nosso lugar único” (BAKHTIN, 2020, p. 111). O pensar participativo da transcrição é não se perder da realidade do ato, do acontecimento que se registra e se participa enquanto em campo, mas contemplar o evento em cada escolha pensada e tomada. A vida vivida, na perspectiva bakhtiniana, é a base para toda a construção discursiva científica, de modo que na transcrição precisa-se “deixar os registros falarem por si”. Assim, a transcrição, na perspectiva da reflexão realizada neste artigo considerando o pesquisador como responsável por todas as etapas da pesquisa, é parte da interpretação avaliativa do pesquisador e faz parte do todo da pesquisa com a linguagem da criança. Ao observar outras pesquisas, desenvolvidas, por exemplo, com registros disponíveis em bancos de dados3, a relação que o pesquisador desenvolve com a transcrição é diferente, uma vez que este a encontrará pronta, neste caso ele irá desenvolver uma compreensão ativa e responsiva sobre a própria materialidade transcrita observando seus objetivos de estudo4. Além disso, como foi observado anteriormente, a relação de um transcritor que não é diretamente o pesquisador de campo é uma relação de um sujeito com o dado, o que também pressupõe uma orientação valorativa do transcritor, não segundo objetivos de uma pesquisa, mas a partir da própria posição singular que este ocupa no mundo. Independente das especificidades, compreende-se a transcrição como um ato de compreensão avaliativa e responsável, realizada por um sujeito situado e singular, seja este pesquisador e transcritor ou somente transcritor.
3. O samba enredo final: últimas considerações
Este artigo abordou a temática da ética em pesquisa no campo da Aquisição da Linguagem principalmente a partir da reflexão do fazer científico como um ato responsável. Duas questões permearam nossas reflexões: a relação entre pesquisador/pesquisado no trabalho de campo e o tratamento dos registros produzidos na pesquisa de campo através da atividade de transcrição. Tivemos como objetivo proposto refletir sobre a constituição do pesquisador na área aquisicional levando em conta a singularidade do trabalho com a criança e, ainda, discutir as escolhas que permeiam o processo de transcrição de registros em áudio/vídeo produzidos em pesquisas de campo.
Por meio de uma reflexão teórica fundamentada principalmente em Bakhtin (2020), com apoio de outros textos da área, partimos da definição de ato responsável bakhtiniano até o pensamento participativo que, segundo o autor, deve fazer parte do fazer científico. Assim, pensamos com Bakhtin (2020) que a pesquisa deve partir do evento real da vida vivida enquanto ato para a reflexão teórica, uma vez que o conteúdo-sentido é um dos momentos do ato responsável e não pode ser visto como um todo acabado. Isto quer dizer que a teoria só pode ser pensada a partir da realidade do acontecimento. O pensamento participativo do pesquisador é a saída que se apresenta para uma reflexão teórica do evento, ou seja, a realidade como caminho para a produção epistemológica.
No caso da pesquisa com crianças, podemos pensar na constituição do pesquisador como um “eu” em relação à criança como um “outro”, e a pesquisa surge da tensão entre estes dois centros de valores. Pensar participativamente seria então adentrar a realidade desta criança como um participante do diálogo em que os registros são produzidos. Essa postura depende de certa atenção do pesquisador ao seu lugar de fala, como adulto e em posição privilegiada, e de atenção aos momentos de entrada de campo para tornar os registros naturalísticos, isto é, recolhidos em situações reais e informais de uso da linguagem.
Após a produção dos registros em pesquisa de campo, o pesquisador deve refletir sobre como procederá a transcrição dos áudios/vídeos. Podemos perceber que não há uma transcrição melhor ou pior, mas que ela deve seguir o tema da pesquisa, os objetivos, a fundamentação teórica e as escolhas metodológicas. Assim como as demais escolhas, a atividade de transcrição é perpassada pela orientação valorativa do pesquisador que vai selecionar o que é mais pertinente para seu olhar científico. Porém, muitas vezes, a entrada em campo pode alterar a relação do pesquisador com o proposto e leva-lo a alterar sua pesquisa. Dessa forma, entendemos a transcrição também como um diálogo com centro no pesquisador e que interage com os aspectos teórico-metodológicos da pesquisa e com os registros discursivos da criança.
A partir dessas reflexões, entendemos que o ato responsável de pesquisar é complexo e que envolve a tensão permanente entre um “eu” e um “outro”, pesquisador/pesquisado. O pesquisador é assim responsável pela posição assumida em sua pesquisa e, através desse diálogo constitutivo com o pesquisado, tece um discurso teórico interpretativo que parte da realidade do ato. Tal reflexão pode contribuir com projetos futuros no campo da Aquisição da Linguagem tanto no pensar sobre a relação pesquisador/pesquisado como nas ponderações sobre a atividade de transcrição.
Agradecimentos
Agradecemos ao programa de bolsas PROSUC/Capes pelo apoio financeiro através de bolsa Modalidade I.
Agradecemos também ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo pelo apoio teórico-metodológico encontrado nas disciplinas cursadas, o que possibilitou a escrita deste ensaio.
Referências
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