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Theoretical Essay

The acquisition of conversational rules: language in interaction

Marlete Sandra Diedrich

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https://orcid.org/0000-0002-9177-089X

Júlia Iaione Roque

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https://orcid.org/0000-0002-5459-5973


Keywords

Enunciation
Interaction
Negotiation meaning

Abstract

This study explores the conversational rules acquisition by the child in his interactional experience with others. We believe the conversational rules acquisition by the child starts with symbolic values that affect the way he relates to language and others. Therefore, the language is viewed here as a social practice, and in which the production conditions initially relate to linguistic matters. This paper turns to the following matters: How does the child, from a very young age (3 years and 5 months), stablishes an interactional dynamic with others from his conviviality? What is the role of the other person in this relation? How does the word appropriation happen in this dynamic? To search for the answers to these questions, data from Gustavo is analyzed, a child  3 years and 5 months old. The analyzed  indicate that the child activates knowledges previously shared in interactions to occupy his role in the saying in the new stablished interactions. Such evidence reveals the importance of the interactional relations stablished via linguistic speech elements, which are updated in each new interaction by the child in a collaborative work in the construction of the conversation where the negotiations in the establishment of meaning stand out.  

Introdução

Voltamo-nos, neste artigo, à aquisição das regras conversacionais pela criança, fenômeno que constitui sua experiência na linguagem desde o início de suas interações no mundo. É importante esclarecer, de início, que esta discussão faz parte do projeto de pesquisa que desenvolvemos na Universidade de Passo Fundo, intitulado A experiência da criança na linguagem: as regras de conversação. Neste projeto, considera-se que a conversação é a “matriz para a aquisição da linguagem” (LEVINSON, 2007, p. 284) e, com base em pesquisas advindas, principalmente, da área da Análise da Conversação, concebe-se a aquisição das regras da conversação pela criança a partir de valores simbólicos que afetam o modo como ela se relaciona com a língua e com o outro. Dessa forma, trabalha-se com a concepção de língua como prática social, inserida em relações culturalmente marcadas e nas quais as condições de produção se relacionam intimamente com as questões linguísticas, formando com elas uma só realidade a ser estudada. A pesquisa desenvolvida se volta para a compreensão de como a criança, desde muito cedo, estabelece uma dinâmica interacional com os demais sujeitos de seu convívio social e como, por meio dessa dinâmica, há a aquisição das regras conversacionais. Neste artigo, trabalhamos com um dado representativo da linguagem de uma criança de 3 anos e 5 meses e focalizamos as seguintes questões derivadas do projeto: Como a criança, desde muito cedo, estabelece uma dinâmica interacional com os demais sujeitos de seu convívio social? Qual o papel do outro nessa relação? Como se dá a apropriação dos elementos linguísticos mobilizados no discurso produzido nessa dinâmica interacional?

O interesse por tais questões encontra justificativa no fato de que a criança nasce e se desenvolve via linguagem num mundo já constituído, no qual ela precisa se deslocar via apropriação de elementos da língua em funcionamento em situações interacionais sempre particulares, o que aponta para um certo grau de dependência do dizer do outro. Além disso, a vivência interacional só é possível em função do outro ou dos outros do seu convívio, logo, não basta olharmos para o dizer da criança, é necessário nos voltarmos para o trabalho colaborativo que constitui toda a interação no intuito de descrever como se dá essa relação interacional da criança, nos seus primeiros anos de vida, a partir das escolhas discursivas do outro. Segundo Maldonade (2018), os estudos da linguagem, e com os estudos da aquisição não é diferente, têm experimentado atualmente uma renovada ênfase teórica em direção à investigação da língua em interação, relacionada às capacidades humanas de adaptação e seleção de expressões linguísticas e gestuais. A autora lembra que os trabalhos de De Lemos, desde 1982, assumem uma perspectiva interacionista que privilegia a relação estrutural entre a fala da criança e a de seu interlocutor, de forma que o diálogo é tomado como unidade de análise. Assumindo ponto de vista semelhante ao da autora, embora com base teórica diferente, acreditamos que no centro dessa discussão se encontra a noção de flexibilidade pragmática, segundo a qual a dinâmica interacional é responsável por uma série de elementos que afetam a formulação do discurso, o que exige da criança, e de todo e qualquer interactante, a capacidade de adaptação constante do seu dizer aos novos elementos discursivos que se presentificam na interação.

Para tanto, apresentamos na sequência deste artigo os principais elementos teóricos que fundamentam nosso trabalho, as hipóteses e escolhas metodológicas que caracterizam a pesquisa, para podermos melhor entender a análise apresentada da manifestação discursiva da criança e as conclusões às quais nosso estudo nos permite chegar.

1. Fundamentação Teórica

Sabemos que são diversas as pesquisas na área da linguagem e não menos diversas aquelas que focalizam a aquisição da linguagem pela criança. Situamo-nos nos estudos da Linguística Interacional e acreditamos que a contribuição desses estudos pode iluminar a discussão acerca da aquisição da linguagem pela criança. Por essa razão, mobilizamos determinados conceitos e princípios advindos das pesquisas realizadas pela Linguística Interacional e deslocamos tais concepções para podermos olhar a inserção da criança nesse universo linguístico.

Assim, trabalhamos com a definição de língua como uma prática social, inserida em relações culturalmente marcadas e nas quais as condições de produção são levadas em consideração, formando com os elementos discursivos uma só realidade a ser estudada. Logo, a língua é vista como como uma realidade constituída e constitutiva de relações culturalmente marcadas.

Também é importante esclarecermos com que conceito de interação estamos trabalhando. Em nossas pesquisas, a interação é concebida como uma realidade marcada por influência recíproca que os pares exercem uns sobre os outros em presença física imediata. Nesse sentido, trata-se de uma ação mútua: dois interactantes, ou mais, falam num determinado período de tempo e num determinado espaço compartilhado, sendo que o comportamento de um determina o comportamento do outro – reciprocamente, por meio principalmente da mobilização dos elementos linguísticos no discurso.

Segundo Kerbrat-Orecchioni (2006), para que haja troca comunicativa, não basta que dois falantes falem alternadamente, é preciso que haja um engajamento na troca. É necessário, portanto, que os falantes produzam os signos deste engajamento mútuo, recorrendo a diversos procedimentos de validação interlocutória, o que leva os interactantes a adotarem mecanismos de intersincronização que evidenciam a flexibilidade pragmática, ou seja, a busca pela atualização do que se diz e do como se diz. Acerca dessa relação, é fundamental que estabeleçamos algumas questões, a saber. Dessa atualização, derivam mecanismos de uma prática coletiva, na qual os falantes realizam um conjunto de procedimentos na gestão conjunta do discurso produzido. As influências mútuas que exercem os falantes na conversação revelam a sincronização interacional traduzida nas atividades fáticas e reguladoras, no funcionamento dos turnos da fala, nos níveis vocal e verbal, nos estados emocionais e nos juízos dos falantes, na gestão dos comportamentos corporais. Esses mecanismos manifestam-se desde o nascimento e condicionam o bom funcionamento das trocas sociais. No entanto, é importante frisar que, ao olharmos para tais mecanismos, embora os reconheçamos como caraterísticos das interações humanas em geral, entendemos que eles se definem na particularidade do discurso vivenciado na situação interacional específica, estando sujeitos às intervenções das condições situacionais que marcam a interação no aqui-agora de sua realização.

É a partir dessas concepções que assumimos a ideia de que, numa interação conversacional, o sujeito vive a necessidade de adaptar seu comportamento discursivo ao domínio situacional, e sua própria competência à competência do outro, do seu ou dos seus pares da interação. Essa necessidade é responsável por uma série de processos interacionais a serem assumidos por esse sujeito falante e que são responsáveis por definir uma dinâmica interacional específica no aqui-agora de cada interação.

Sem dúvida, para que a troca seja possível, também devem intervir, e sempre, e em todos os níveis, certos fenômenos de coordenação, harmonização, sincronização dos comportamentos dos diferentes interactantes. Em relação a isso, Levinson (2006) afirma que há uma base comum, uma espécie de conhecimento mútuo mobilizado na interação e que diz respeito ao fato de os interactantes assumirem uma previsão do que o outro sabe e, mais do que isso, de preverem também o que o outro sabe que ele próprio sabe. Em nossa pesquisa, vemos a noção de conhecimento mútuo como fundamental na organização da competência conversacional, a qual é ontogeneticamente primeira no desenvolvimento humano, uma vez que todos os aspectos da aquisição da linguagem são adquiridos num contexto interativo conversacional.

Estamos trabalhando com uma concepção de aquisição da linguagem que leva em conta os aspectos sociocognitivos, o que se coaduna com a concepção de língua que apresentamos anteriormente. A aquisição da linguagem ocorre, portanto, a partir de valores simbólicos que afetam o modo como a criança se relaciona com a língua e com o outro. Sendo assim, afirmamos que, na aquisição da linguagem, a criança, ao interagir com o outro, não somente entra em contato, como se apropria de determinados saberes sociais. São esses saberes sociais construídos em interação que lhe possibilitam analisar as ações do outro na busca de interpretação do que o outro faz ou diz, ou, ainda, faz quando diz, o que consideramos uma pré-condição para o sucesso da interação. Segundo Levinson (2006), a alternância de papéis na conversação implica a obrigatoriedade de o interactante habitar, ao menos, e certamente, em parte, o mundo mental do outro. Trata-se, portanto, de uma operação de reflexividade acerca do comportamento do outro e do seu próprio comportamento, o qual se marca na língua mobilizada no discurso em interação.

Assim, o diálogo é considerado a forma primeira e básica da linguagem. Por essa razão, apoiamo-nos no dizer de Levinson (2007), segundo o qual, a conversação é a matriz para a aquisição. Ou seja, é por meio da conversação que a criança é inserida na sociedade via linguagem. É de conhecimento geral que, ao menos em grande parte das culturas que conhecemos, a mãe, desde muito cedo, investe num tipo de conversação muito curioso com seu bebê, o qual se caracteriza justamente pela representação de papéis interacionais por parte da mãe, a qual ocupa os turnos de fala do bebê, na busca de representar uma interação conversacional. A mãe faz isso, em geral, apoiada em entonações específicas para a interação com o bebê, alterando a pronúncia de determinadas palavras, como se adotasse a linguagem desse outro que ainda não ocupa o seu espaço de dizer na conversação, mas que, quando o fizer, não o fará da mesma forma que o falante adulto. Há, dessa forma, na performance da mãe, o reconhecimento da subjetividade e da singularidade constitutivas da linguagem humana. Somado a isso, é interessante lembrar que, com o passar do tempo e com o incremento desses investimentos por parte da mãe ou de outro adulto que desempenha o mesmo papel interacional, a criança, num determinado momento, passa, de fato, a ocupar, de forma plena, esse lugar a ela reservado na interação.

Pesquisas com crianças de dois a quatro anos de idade (ERVIN-TRIP; GUO; LAMPERT, 1990) já mostraram que sustentar e desenvolver episódios conversacionais topicamente coerentes requer a habilidade de selecionar turnos com contribuições que manifestam organização do discurso construído mutuamente. Assim, ocorrem os procedimentos conversacionais de responder e adicionar novas informações ao tópico em questão, muitas vezes, no intuito de facilitar o desenvolvimento do tópico e da conversa. Tal habilidade é necessária para que os interactantes de fato assumam o seu papel na interação conversacional. Nas interações com crianças pequenas, os adultos tendem a assumir a maior parte das responsabilidades conversacionais pelo desenvolvimento de tópicos, ao mesmo tempo em que há uma sensibilidade emergente nas crianças pequenas em relação aos parâmetros sociais do uso da língua, sendo os marcadores de polidez uma das habilidades pragmáticas precoces das crianças.

Entendemos essas constatações das pesquisas já realizadas como manifestações do ato de apropriação do papel interacional da criança na conversação: ela ocupa o seu espaço de dizer. Acerca desse ato, em Diedrich (2017), voltamo-nos para a enunciação da criança e sua relação com o outro pelo viés do aspecto vocal, o que aponta para a inserção da criança no mundo/na cultura, pela vivência de experiências marcadas por enunciações. Trabalhamos com a noção de enunciação benvenistiana: a língua colocada em funcionamento por um ato individual de apropriação (BENVENISTE, 1989). Vemos a possibilidade de relacionar as conclusões de Diedrich (2017) ao que propomos hoje. Isso porque, para a criança constituir-se como sujeito do seu dizer e se historicizar na linguagem, ela precisa ocupar lugares na enunciação por meio de operações da realização vocal da língua. Ou seja, a criança, ao assumir ou ao ser assumida como alguém que diz, que evoca sentidos, está se historicizando, dada a maneira como assume a sua língua e se singulariza por ela. No entanto, traz, em suas enunciações, vestígios do discurso do outro, representante da cultura na qual ela está imersa. Esse movimento é afetado pelo equilíbrio entre a previsibilidade das estruturas da língua e da cultura e a imprevisibilidade do aqui-agora do discurso e da relação interacional na qual ele se realiza. Ou seja, a cada interação vivida pela criança, ela se desloca na linguagem realizando escolhas linguísticas em função da singularidade por ela vivida na enunciação, ao mesmo tempo em que, por meio de operações sociocognitivas, determina a situação social da qual faz parte e, a partir disso, tem possibilidade de enquadrar ou reenquadrar a atividade interacional, decisão que afeta a construção da conversação. A interação conversacional, assim, vai se definindo com base em cada decisão assumida pelos interactantes, num equilíbrio contínuo entre as regras assumidas pelas convenções sociais e a imprevisibilidade do aqui-agora, altamente dependente das escolhas mútuas dos interactantes, as quais se revelam nos elementos linguísticos que caracterizam o discurso. Interação e enunciação, assim, são concebidas como realidades complementares a serem estudada no âmbito da aquisição da linguagem.

Para melhor entendermos esse deslocamento da criança na aquisição da linguagem, propomos a análise de um fato de linguagem, do qual nos ocupamos na seção seguinte, com a explicitação, inclusive, de sua metodologia de produção e transcrição, bem como de análise.

2. Metodologia

O fato de linguagem que nos propomos a analisar neste artigo caracteriza um conjunto de dados pertencente ao acervo do grupo de pesquisa interinstitucional NALíngua (Núcleo de Estudos em Aquisição da Linguagem), coordenado pelas Profas. Dras. Alessandra Del Ré (UNESP) e Márcia Romero Lopes (UNIFESP). Esse grupo conta com alguns corpora de aquisição da linguagem, e é constituído de dados de crianças acompanhadas longitudinalmente, em situações naturalísticas. O dado selecionado para análise, neste trabalho, pertence ao corpus de (GUS), criança acompanhada pelo grupo NALíngua do 1º mês aos 6 anos e 11 meses de idade.

Este dado é representativo da linguagem da criança na faixa etária dos 3 anos e 5 meses. Trata-se de uma conversa espontânea com a pesquisadora, amiga da família e bastante conhecida da criança. O diálogo acontece na casa da criança, durante uma das visitas da pesquisadora.

Estamos usando neste artigo a denominação fato de linguagem, o qual encontra respaldo em Silva (2009), uma vez que, segundo a autora, no ato de transcrição, o transcritor assume um dizer e se constitui como produtor de referências, singularizando o dado e transformando-o em fato enunciativo de análise, o que, nos estudos enunciativos de base benvenistiana, é visto como um ato de enunciação.

Sendo assim, apresentamos na sequência o dado de linguagem ao qual nos detemos neste artigo, para, na sequência, focalizarmos o fato sob análise. É importante explicitar que a transcrição foi feita com o programa CLAN, baseado na plataforma CHILDES, segundo as normas CHAT, conjunto de convenções de transcrição reconhecido internacionalmente1, conforme figura a seguir:

Linhas principais (participantes das sessões):
*CRI: criança
*MÃE: mãe
*PAI: pai
*OBS: observadora
Linhas dependentes:
%com: comentário do transcritor
%ato: ação realizada pela criança durante sua fala
Símbolos utilizados nas transcrições:
+/.   Interrupção por alguém
+//. Interrupção do próprio locutor
#  pausa
##  pausa longa
### pausa muito longa
:   alongamento da sílaba
:: maior alongamento da sílaba
( ) elisão de alguma palavra
[?] referência incerta
IM: entonação ascendente
ID: entonação descendente
@i: interjeição
@0: onomatopeia
xx: palavra inteligível
xxx: enunciado inteligível
[/] retomada do enunciado sem correção
[//] retomada do enunciado com correção
[///] retomada com reformulação
[=! risos] eventos extralinguísticos (todos os que contêm colchetes e ponto de exclamação)
< > delimita a palavra a que se refere o símbolo posterior
[1] sobreposição da fala dos participantes
Table 1. Figura 1: Convenções de Transcrição Fonte: Adaptado da versão reduzida em português do manual CHAT, desenvolvida pelo grupo NALíngua.

• Corpus: Interações de Gus

• Banco de Dados do grupo NALíngua,

• Profa. Dra. Alessandra Del Ré (UNESP).

• Idade da criança 3 anos, 5 meses

CHI: pequena .

*OBS: e você +/.

*CHI: esse aqui é p(a)ra nada(r) .

*OBS: você # e você é gente grande ou gente pequena?

*CHI: gente pequena.

%act: CHI tenta colocar a bóia no braço.

*OBS: a@i sei .

*OBS: e você tem uma boia de braço assim p(a)ra i(r) lá nada(r)?

*CHI: tenho # mas queb(r)o(u) aqui.

*OBS: quebro(u)?

*OBS: deixa eu ve(r).

%act: CHI dá a bóia para OBS.

*CHI: ó@i .

*OBS: vamo(s) ve(r).

*CHI: é que eu joguei no chão e queb(r)o(u).

*OBS: ã@i # a@i ## tudo bem né?

*CHI: é.

*OBS: não tem problema.

*CHI: é # a mamãe arruma .

Para análise dos fatos de linguagem selecionados no dado em questão, partimos de duas hipóteses, cuja formulação deriva da leitura que fazemos dos princípios teóricos que orientam nosso trabalho:

Hipótese 1 – Os fatos de linguagem vivenciados pela criança derivam de uma ação mútua concretizada na conversação, logo, são resultados de um trabalho colaborativo entre a criança e o (s) outro (s) com o (s) qual (is) interage.

Esta hipótese direciona nosso olhar para o dizer de todos os interactantes envolvidos na conversação, sendo impossível compreender as escolhas linguísticas da criança a partir da investigação de seus enunciados isolados, pois o que a criança enuncia em seu turno conversacional é resultado da ação mútua com o (s) outro (s) da interação.

Hipótese 2 – As relações interacionais se marcam na língua mobilizada no discurso. Assim, a particularidade do aqui-agora de cada enunciação é derivada, em parte, da relação interacional constituída na conversação.

Esta segunda hipótese nos leva a aproximar e não, como comumente se faz, afastar os conceitos de interação e enunciação. Assim, as escolhas do falante no aqui-agora da enunciação são analisadas com a consideração das condições interacionais a partir das quais elas acontecem, o que permite pensar na aquisição da linguagem pela criança como uma realidade multifacetada para a qual contribuem diferentes elementos advindos de estudos diversos, mas complementares, como o são as condições de produção da conversação e as escolhas linguísticas particulares.

3. Análise dos Fatos

A partir dessas duas hipóteses apresentadas, voltamo-nos para os fatos de linguagem postos em destaque no dado analisado no intuito de investigar os deslocamentos realizados pela criança, em suas interações, na busca de compreender as regras de conversação. A partir da análise empreendida, é possível perceber algumas caraterísticas importantes no modo com que a criança se presentifica na interação, as quais descrevemos a seguir:

1 A criança ativa conhecimentos anteriormente partilhados, em outras interações, para ocupar seu espaço de dizer nas novas situações conversacionais estabelecidas, como ao buscar a causa para o fato narrado em relação a boia, objeto de discussão da interação: “é que eu joguei no chão e quebrou”. A criança acrescenta este fato na conversação sem nem mesmo o outro ter perguntado sobre, o que denota uma vivência de outras interações conversacionais, nas quais a relação causa e consequência se marca na conversação como mecanismo de continuidade do tópico conversacional. Com a especificação desta informação, a criança cumpre seu papel de interactante e garante a progressividade tópica, dando continuidade à conversação por meio do acréscimo de informações. Essas informações novas são mobilizadas no discurso como escolhas particulares da criança, mas não isoladas na conversação, pois estabelecem relações semânticas importantes com os enunciados produzidos pelo outro, como vemos no Segmento A.

Informação geral apresentada pelo outro e você tem uma boia de braço assim p(a)ra i(r) lá nada(r) ?
Especificação, por parte da criança, da informação geral apresentada pelo outro tenho # mas queb(r)o(u) aqui .
Continuidade da conversação pelo outro quebro(u) ?deixa eu ve(r) .vamo (s) ver.
Especificação, por parte da criança, da informação apresentada anteriormente por ela mesma, estabelecendo relação de causa e consequência é que eu joguei no chão e queb(r)o(u)
Table 2. Figura 2: Segmento A

É muito importante atentarmos para o fato de que, entre a informação de que a boia está quebrada (consequência) e a informação de que está quebrada porque a criança jogou no chão (causa), o outro ocupa o seu lugar na interação com enunciados de natureza repetitiva, os quais têm um papel mais fático do que informativo na condução da conversação. Acreditamos ser possível relacionar esse comportamento verbal do outro ao comportamento da criança, a qual se ocupa em acrescentar informações de caráter mais informativo à conversação.

2 A inserção de novos elementos linguísticos atualizados no discurso é parcialmente dependente do dizer do outro, mas estabelecendo com este dizer uma relação de deslocamento de sentido e não de mera repetição, como ocorre no segmento B.

Inserção, pelo outro, de novas relações de sentido acerca do tópico ã@i # a@i ## tudo bem né ?
Concordância da criança com o dizer do outro É
Reiteração, pelo outro, por meio de uma autoparáfrase, da relação já estabelecida não tem problema
Concordância da criança com o dizer do outro e especificação da informação construída mutuamente na conversação é # a mamãe arruma
Table 3. Figura 3: Segmento B

A noção de trabalho colaborativo de construção da conversação fica bastante evidente neste segmento, uma vez que o outro e a criança entram num consenso quanto ao fato de não ser um problema a circunstância de a boia estar quebrada. Este consenso se estabelece a partir de elementos linguísticos mobilizados enunciativamente na conversação, como é o caso do verbo “é”, o qual ora se revela uma escolha da criança como forma de construir uma resposta afirmativa ao que o outro pergunta, ora como mera confirmação do dizer do outro. O mesmo elemento linguístico, no entanto, estabelece relações na condução da conversação bastante distintas. No primeiro caso, a criança cumpre a regra de conversação em relação ao par pergunta-resposta, segundo a qual, uma pergunta na conversação deve ser respondida, para o que parece suficiente a mobilização do verbo “é”. No segundo caso, no entanto, não se trata mais de compor a configuração do par pergunta-resposta, uma vez que nada foi perguntado para a criança, assim, ela se vê, mais uma vez, na responsabilidade de dar continuidade à conversação e, para tanto, acrescenta uma nova informação por meio de uma paráfrase de natureza especificadora, tal qual já havia feito anteriormente. Esta nova paráfrase, “a mamãe arruma”, não só especifica a informação apresentada pelo outro, “não tem problema”, como também especifica o dizer da própria criança, “é”. A criança, assim, vivencia a negociação com o outro do que dizer na conversação, a partir da atualização de sentidos dos elementos linguísticos no discurso, ocupando seu espaço de dizer por meio da ativação de um conhecimento mútuo que vai além do conhecimento das formas linguísticas, pois trata-se de um conhecimento das regras de conversação.

4. Considerações Finais

Por fim, lembramos que as considerações que aqui apresentamos são possíveis em função de um trabalho de investigação com outros fatos e dados de linguagem, sendo que o dado aqui exposto apenas ilustra a pesquisa como um todo. Sendo assim, afirmamos que a vivência da dinâmica interacional da criança se dá desde muito cedo, pois percebemos que, no dado analisado, a criança de 3 anos e 5 meses já é capaz de fazer escolhas adequadas para a boa condução desta dinâmica. Tais escolhas, envolvendo elementos linguísticos atualizados no discurso, estabelecem, com o outro da interação, deslocamentos de sentido, mesmo quando os mesmos elementos são repetidos, uma vez que a função interacional desses elementos se particulariza.

Por essa razão, entendemos o papel do outro na conversação com a criança muito importante, já que é o outro que reconhece a criança como interactante e a convoca para contribuir neste trabalho colaborativo da interação conversacional. Esta contribuição se dá, por parte da criança, na dependência, em parte, do dizer do outro, mas também da vivência de outras interações conversacionais, as quais se apresentam como modos específicos de organizar o comportamento verbal.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – Fapergs, pelo subsídio em forma de bolsa de iniciação científica concedida à Júlia Iaione Roque, para fins de atuação no projeto de pesquisa da Universidade de Passo Fundo, A experiência da criança na linguagem, de 2019 a 2020.

How to Cite

DIEDRICH, M. S.; ROQUE, J. I. The acquisition of conversational rules: language in interaction. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 01–13, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n2.id55. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/55. Acesso em: 21 nov. 2024.

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