O manual de gramática entre as duas (ou mais) grammaticae
No âmbito dos estudos da língua, tanto grega quanto latina, a Antiguidade reconheceu a (co)existência de ao menos duas "gramáticas": a do grammatistés, mestre das primeiras letras (grámmata), e a do grammatikós, cuja função central seria operar com especificidades linguísticas, ou mesmo filológicas, que lhe permitissem, por exemplo, fixar textos usualmente literários, de autores de sua tradição.
É emblemático, por exemplo, o empenho de Sexto Empírico (cf. PREZOTTO, 2015) em dissociar ambas as figuras. No seu Contra os gramáticos, defende que o professor das letras seria útil, benfazejo às sociedades. Já o gramático com pendores analítico-filológicos, ao contrário, uma espécie de difusor de pedantismos e frivolidades. No contexto latino, Quintiliano, bem menos radical, é também um dos responsáveis por revelar à posteridade a clareza com que a distinção entre as duas funções do gramático operava no mundo antigo. Sua Institutio oratoria (I.4, 23-24, 27; I.5, 6; I.7, 1) mais de uma vez investe na diferenciação entre os serviços daquele que ensinava os rudimentos técnicos da linguagem aos iniciantes (crianças) e daquele que se aprofundava em questões da língua.
Curiosamente, o manual de gramática parece participar de ambos os cenários. Trata-se de um modelo textual de organização de conhecimentos a respeito da língua conhecido como tékhne grammatiké pelos gregos e como ars grammatica pelos latinos. Em linhas gerais, é possível observar tal modelo de exposição teórico-didática atravessar a Antiguidade e grande parte do medievo sem contar com alterações consideráveis em sua estrutura. Nesse percurso, as tékhnai grammatikaí se fazem presentes sobretudo nos contextos de ensino objetivo de línguas (grego e latim, notadamente), tanto para crianças nativas, como para adultos estrangeiros1. Porém, a reprodução do modelo, ou mesmo a alusão a elementos por ele e nele consolidados, são igualmente constantes na esfera dos estudos linguísticos menos voltados à aplicação direta. Donato, no século IV, por exemplo, investe numa Ars Minor e noutra Major. Com isso, promove reflexões gramaticais elevadas sobre a língua latina. Mas não deixa de produzir sua própria tékhne, ou ars, um manual seguindo modelos anteriores - à altura, já tradicionais. Sobre a notável permanência desse modelo, é válido ainda dizer mais: talvez o "manual de gramática" difundido pelas escolas e centros filológicos da Antiguidade Ocidental seja mesmo marcante a ponto de ecoar com vigor ainda na tradição gramatical escolar e nos estudos linguísticos de hoje. Basta que se abram aleatoriamente gramáticas normativas diversas da contemporaneidade para se constatar a recorrência do esquema "fones/fonemas, morfossintaxe (classes de palavras) e estilística da língua", não raro exatamente nessa mesma sequência, para apresentar/explicar os compósitos da língua. Ora, as tékhnai da Antiguidade ou artes, no caso latino, se caracterizavam estruturalmente por adotar estrutura muito semelhante, observável já no manual reconhecido como "inaugurador do gênero", a Tékhne grammatiké atribuída a Dionísio Trácio. Lá se vê precisamente a disposição stoikheîa/elementa, merei logou/ partes orationis como linha condutora da apresentação gramatical. Posteriormente, os manuais de gramática cristalizam sua forma acrescentando a essa estrutura os "vícios e virtudes da língua".
Ainda no sentido de constatar a força com que elementos típicos da tékhnai permanecem em nosso pensamento metalinguístico, vale tentar recorrer a teorias linguísticas que abdiquem com pleno sucesso do recurso a termos como "substantivo" e "verbo" - cunhados na tradição antiga, transmitidos ao longo da história mormente pelos manuais de gramática.
De fato, para ensinar as línguas reconhecidas como "de cultura" (no caso, o grego e o latim), na Antiguidade e ao longo da Idade Média, em contextos de ensino mono ou bilíngues, utilizavam-se gramáticas que seguiam o paradigma da ars, consolidado pela Tekhné grammatiké atribuída a Dionísio Trácio. O mais provável é, inclusive, que tal modelo tenha povoado as rotinas escolares de modo muito mais abrangente do que o flagrável pelos textos canônicos de que hoje temos notícia. Reproduzidas por alunos e professores, sem pretensões além do aprendizado pontual, tékhnai ou seus excertos teriam sido abundantes. De fato, a julgar pelos abundantes indícios verificáveis em papiros escolares da época e sobretudo pelo número de referências, muitos teriam sido os escritores de ars grammaticae para fins educacionais, no contexto latino, nos terceiro e quarto séculos da nossa era (cf. VISSER, 2011, p. 375). Trata-se de um modelo de manual em que a descrição das partes da frase (partes orationis) era o núcleo do estudo. Um paradigma herdado da tradição gramatical acessível a esses gramáticos - de vertente grega, sem dúvida, mas já consolidada, então, em língua latina. Nomes como Charisius e Diomedes, nas primeiras décadas do quarto século, teriam compilado um considerável número de artes grammaticae do período. E o trabalho de Donato, ao fim desse mesmo século, corresponderia, pois, em grande medida, a um sumário da teoria gramatical vigente. Longe de soar, para a época, como uma demonstração de incapacidade criativa, ou algo que o valesse, o diálogo claro com as obras reconhecidas era necessário ao estudioso. Repetir e emular era o desejável nessa tradição cultural. Vissler (2011, p. 377) destaca que, no contexto da Antiguidade Tardia e mesmo da Alta Idade Média, era, inclusive, comum comentar obras magnas antes de produzir outras que, por posição ou finalidade, as emulassem. Portanto, sem dúvidas, a tradição que manteve a estrutura das artes grammmaticae (tékhnai grammatikai) deve-se à uma tradição, ou, mais especificamente, a um modelo tradicional de (re)produção de conhecimentos.
Essa fidelidade à cadeia de informações produzidas anteriormente e consagradas em uma genealogia de textos, eventualmente transcende a inspiração e adere à reprodução literal de estruturas. Os pontos de intersecção entre os contextos grego e latino dão demonstrações claras disso. Vejam-se as denominações das partes da frase importadas de uma tradição à outra. São meras transposições literais do grego para o latim, como fica evidente nos exemplos: pro-thesis para prae-positio, epi-rhema para ad-verbium, ant-onymia para pro-nomen. À parte tais casos, clássicos, representados pela tradução verbatim dos nomes gregos estabelecidos na tékhne - ou nas diversas tékhnai - para o universo linguístico latino, há mesmo definições inteiras que se repetem. E o admirável aqui é que isso se dê de modo preciso, através de tantos séculos, num contexto de transmissão que não conta com a fidelidade e a difusão massiva garantidas pelo texto impresso, nem mesmo com técnicas de arquivamento sofisticadas.
Para ficar num só exemplo, note-se que Donato define o particípio exatamente como Dionísio Trácio, atribuindo-lhe um caráter dual, parte nominal, parte verbal: “particípio é a parte da oração assim chamada por tomar parte do nome e parte do verbo [...]” (Ars Major, II, 14, 644.2).
Isso, antes de nos valer simplesmente como outro indício do hibridismo constitutivo do texto que hoje conhecemos como a gramática atribuída a Dionísio, comprova que determinados conceitos viajam, praticamente intactos, ao longo dessa tradição na Antiguidade - e mesmo da Antiguidade em diante. Visser (2011), por exemplo, aponta que todos os textos da tradição gramatical basilar latina da Alta Idade Média tratam o particípio como parte da frase isolada, autônoma. Algo que, embora hoje pareça ponto suficientemente pacífico da doutrina, não o era no mundo antigo. Observe-se que a consolidação dessa classe de palavra como algo autônomo remontaria a Aristarco e seus discípulos da escola alexandrina. Seria, portanto, uma leitura dessa parte da oração propagada nas tékhnai, mas não a única vigente nos diversos contextos filosóficos de então. Essa é, portanto, uma ideia linguística (dentre outras tantas) que, a despeito da legitimidade ou não do texto dionisiano, traça seu caminho de Alexandria para a posteridade.
Diante desse tipo de manutenção de escolhas sagradas pelos (primeiros) manuais de gramática, pode-se, sem dúvida, afirmar que a tradição consolidou e preservou esse gênero, ou esse formato de apresentação de conteúdos linguísticos. Contudo, além do hábito de repetir e preservar para emular, outros elementos estariam na raiz de tão eficaz permanência na tradição ocidental. O modelo gramatical dos manuais, sua disposição e estrutura faziam sentido para seus usuários além da mera tradição. Mais que simples afã de reprodução, sua capacidade de espelhar estruturalmente seu conteúdo e função teria garantido a estabilidade considerável com que o manual de gramática se mantém na história. Seu modelo cabia perfeitamente nos hábitos acadêmicos do passado e, sobretudo, refletia (não só em conteúdo, mas em sua estrutura mesma) eixos do pensamento linguístico de seu momento histórico.
Nascido e preservado em ambientes acadêmicos, por definição - seja nas escolas de base, seja nos círculos filológicos-, o manual de gramática filia-se inelutavelmente ao ambiente escolar e, por consequência, às práticas que durante muito tempo na história o definiram. Sua estrutura guarda chaves mnemônicas, questionamentos, adota a exposição conceitual de acordo com gradações e cadeias lógicas. Tudo para adequar-se à incumbência didática, inerente à sua natureza escolar.
Ao lado da tradição de transmissão estaria, pois, a memória como responsável pela admirável permanência do "manual de gramática" e das diversas manifestações de seus compósitos no pensamento metalinguístico do Ocidente. Neste trabalho pretendemos exatamente flagrar alguns dos elementos compositivos do manual de gramática antigo vinculados à mnemotécnica, desde estratégias puras de memorização neles presentes até conexões lógico-conceituais reveladas por escolhas, à primeira vista indiferentes, como a apresentação da ordem dos elementos.
1. A forma característica dos manuais de gramática
É muito provável que o manual de gramática tenha ganhado sua forma primeira e definitiva no contexto alexandrino, por volta do século II a. C. Lá, serviria a um propósito acadêmico, mais filológico - e não destinado a iniciar jovens nas práticas letradas. Investigando detalhes da língua grega homérica, vários séculos anterior à koiné praticada nesse ambiente, os grammatikoí alexandrinos estabeleceram um gênero que seguia, já em suas bases, pressupostos educacionais da época e guardava isso em sua forma. Afinal, sua ideia, em última instância, também era ensinar, facilitar a compreensão e memorização de uma língua. Posteriormente, a tékhne grammatiké teria seguido seu intuito acadêmico original e alargado. Esse modelo de material viria a ser usado em contextos diversos de educação mono e bilíngue, e mesmo a partir do ensino básico, imediatamente posterior ao domínio das letras e da leitura.
Nosso mais antigo remanescente do tipo (ou ao menos o texto admitido como tal), a Tékhne Grammatiké atribuída a Dionísio Trácio (doravante, DT), manifesta em sua estrutura a intenção didatizante de seu autor, ou autores. Vários dos esforços professorais observáveis nessa obra serão compreensíveis mesmo como característicos do "gênero" ars/ tékhne, ao longo da história.
No capítulo 4, DT emprega a erotemata, comum nas práticas escolares da Antiguidade. Ao trazer a pergunta "Em que diferem o ponto final e o inferior?" e fornecer, em seguida a resposta, o autor dessa tékhne denota traços de artifícios e estratégias mnemônicas caras ao contexto educacional da época. Muitos são os papiros escolares antigos em que questionários surgem como método de estudo. E não seria exagero dizer que tal estratagema educacional caracteriza as práticas escolares através da história, chegando mesmo à atualidade. O uso da erotemata, inclusive, vai ser a tônica da formatação do texto de Donato, heritário direto de diversas das escolhas presentes em Dionísio, na Ars Minor. Nessa obra, perguntas e respostas apresentam os conteúdos. Veja-se o primeiro capítulo, a título de exemplo: “Quantas são as partes da oração? Oito. Quais? Nome, pronome, verbo, advérbio, particípio, conjunção, preposição, interjeição”. (Ars Minor I, 1, tradução nossa).
No mesmo sentido, ao longo de todo o texto dionisiano, pontuam-se os números em que determinada classe se subdivide, ou de acidentes de um determinado elemento. São comuns enunciados do tipo "São três os pontos", "Há 24 letras do alfa ao ômega."2 Esse é um clássico recurso ativador da memória. Se se sabe quantos itens é necessário lembrar, é possível ter consciência da lista a enumerar e buscar, portanto, completá-la. Note-se, inclusive que, dentre muitos outros, Donato incorrerá no uso exaustivo dessa estratégia também em sua ars. E cabe observar esse dado, uma vez que Donato seria o principal responsável pela transmissão do modelo das artes ou tékhnai para a Idade Média e depois.
Além de tais investimentos em estratégias de memória, que clara e inelutavelmente vinculam as tékhnai ao seu contexto de origem, importa sobremaneira, ainda, analisar a estrutura da Tékhne dionisiana. Ela reflete na ordem de sua apresentação uma série de concepções sobre as partes da oração. A própria ordem de exposição dos elementos diz muito aqui. Mais do que simplesmente repetir apresentações canônicas de seu tempo, o autor da Tékhne Grammatiké propõe novas leituras. Uma passagem permite vislumbrar a rigidez esperada pelos transmissores de textos gramaticais e a reação de Dionísio a ela. Logo ao definir léksis, no capítulo 11, e elencar as partes da frase, faz uma ressalva: o denominativo (prosegória) vai aparecer englobado pela classe dos nomes. Aqui pode-se ler uma advertência ao leitor cuja expectativa poderia ser a mera repetição do mainstream estoico, amplamente acatado ao se tratar do assunto. Justamente por admitir a expectativa é que DT previne o leitor sobre sua opção por rompê-la.3
Tal passagem é indício claro de que o autor da Tékhne não estaria atrelado a uma tradição a ponto de simplesmente reproduzi-la. Sua (re)organização de conteúdo é, portanto, consciente. Tem um fim didático, mnemônico e epistemológico, como se verá.
A fim de flagrar os efeitos de tal organização na obra dionisiana, será observado o caso pontual das partes da frase.
2. As partes da frase, as classes de palavras
Para entender o papel fundamental das classes de palavras, como conteúdo nuclear da tradição de manuais de gramática, é necessário remontar ao texto fundante de DT. O salto epistemológico que hoje fazemos com relativa naturalidade ao tratar de partes da frase como sinônimo de classes de palavras estabelecia-se então, de modo incipiente, sem dúvidas, mas extremamente significativo. O capítulo 11 da obra de DT pretende falar "Da palavra" (perì lékseos). Conforme se observará a seguir, léksis (palavra) se define em função de lógos (sentença), do mesmo modo que logos se define praticamente em função de léksis. A fim de compreender o contingente de inovação ou tradição encerrado nessa escolha, cabe traçar um breve panorama desses conceitos no universo helênico da Antiguidade.
2.1. Léksis e lógos: uma breve observação da história dos conceitos4
Antes mesmo de adentrar tal discussão, cabe ter em mente a polissemia dos vocábulos léksis e lógos na tradição grega. É, nesse sentido, especialmente importante averiguar a dimensão semântica que adquirem em relação mútua no período pós-clássico, em que se fundam muitas das ideias aproveitadas pelos estudos linguísticos posteriores. Em Platão (República III, 392 c) e Aristóteles (Retórica III 1403 b 15 ; Poética 1450 b 12 e 1456 b 8), léksis surge como a forma de expressão, encerrada no dizer, que serve ao lógos, conteúdo a ser expresso, ou discurso em si. Diógenes da Babilônia, estoico citado por Diógenes Laércio (Vida dos filósofos ilustres. VII, 56) define lógos como ‘voz com sentido (phonè semantiké) emitida ou conduzida pelo pensamento’, e léksis como ‘voz articulada (phonè énanthros) que pode ser expressa em letras (eggrámmatos). Para ele, a léksis pode ser dotada de sentido, como em heméra (dia), ou não como em blíturi (palavra possivelmente onomatopeica que imitaria o som de uma corda vibrando). Ou seja, léksis seria toda a massa de voz passível de ser apanhada em notação escrita, cuja dimensão não parece ser levada em conta. Tal fato impede, a princípio, tomá-la como algo nocionalmente próximo ao que se entenderia por palavra, seja em sua acepção intuitiva, fonológica, morfológica.
A julgar simplesmente pela definição, a léksis estoica é o conjunto de elementos ou sequências sonoras reconhecíveis, no caso, pelo falante do grego antigo, como produto de uma articulação da voz. Ficam de fora os gritos, urros, muxoxos – esses seriam simplesmente phóne – e, muito provavelmente, sons não pertencentes ao grupo daqueles que se podem grafar, ou seja, não identificáveis como verbalização humana. A léksis estoica é, pois, a materialidade física, sonora e, por extensão, gráfica, com que se organiza e conforma o lógos. Essa é a ideia que se abstrai da definição. Porém, contrastando-se os exemplos fornecidos para as definições de léksis e lógos – heméra (dia) e heméra esti (é dia), respectivamente –, conclui-se que a associação deles a ‘palavra’ e ‘sentença’ é, ainda, em algum sentido válida. Mesmo a citação de blíturi relativiza a informação de que a léksis prescinde de um sentido. Se se trata de uma onomatopeia corrente na língua, talvez não seja coerente admiti-la exatamente como uma palavra que não significa.
Contudo, essas considerações, apesar de admitidamente panorâmicas, permitem perceber que, enquanto a relação léksis - lógos em Platão, Aristóteles e nos estoicos é de natureza aproximável à de uma correlação do tipo significante–significado, em Dionísio Trácio, o que se vê, num primeiro momento, é a já mencionada parte-todo. O gramático parece trazer a relação para um mesmo plano: a léksis não é mero meio de realização ou manifestação material do lógos, mas constituinte dele.
Contudo, no que tange aos conceitos em si, e não à relação entre eles, o redimensionamento semântico pelo qual tais conceitos passam na gramática Alexandrina é menor do que usualmente se pensa. Note-se que o lógos, continua centrado no sentido, e no âmbito do pensamento, embora caiba observar que o lógos de DT demonstra um pensamento completo, não o é ou se faz acompanhar dele – adentra-se aqui a esfera da representação, declaradamente.
2.2. O tratamento desses conceitos na Tékhne grammatiké dionisiana
Dionísio Trácio, no capítulo 11 da sua obra, define: “Palavra (léksis) é a menor parte de uma frase bem constituída (katà súntaksin lógou). Frase (lógos) é um grupamento ordenado de palavras em prosa5 que manifesta um pensamento completo”.6
Sem dúvidas, essa definição de léksis é essencialmente difusa, ou mesmo ambígua. Primeiramente, a “menor parte do logos” poderia ser o ‘elemento’, a letra a sílaba. Desde a Antiguidade tem-se tentado emendá-la, a fim de habilitá-la a definir de fato aquilo que realmente fosse concebido como seu objeto. Era necessário dizer, como um dos comentadores de DT (LALLOT, 1989, p. 120, grifos nossos), que “era a menor parte da frase capaz de significar um pensamento (noētón)”.
Num segundo momento, pode-se ainda perceber que a definição aposta numa circularidade complementar que estabelece a codependência entre as ideias de léksis e lógos. Contudo, antes de constituírem meros defeitos compositivos da obra, tais opções construtivas denotam a complexidade da tarefa em que DT se envolve.
Emblematicamente, a seção 11 da Tékhne grammatiké (doravante, TG) dedica-se à - ainda hoje e sempre - ambiciosa missão de definir palavra. Essa noção talvez não estivesse plenamente elaborada, sequer intuitivamente, em sua tradição. É na gramática alexandrina que léksis e lógos adentram definitivamente a terminologia inerente ao estudo da língua, denominando estruturas da linguagem em si, não do pensamento. E estruturas que se fecham numa relação parte-todo. Sendo assim, é bastante razoável caracterizá-las por meio de definições consecutivas e complementares, ou, antes, interdependentes. É fato que tal disposição estrutural pode, a princípio, soar estranha, sobretudo se considerada diante da enumeração final, das oito partes da frase: um capítulo que deveria tratar da palavra (perí lékseōs) simplesmente a define e, em seguida, define frase e enumera partes dessa frase. Há aí uma aparente falta de coerência interna. E nesse sentido cabe notar que, embora locadas em um único e mesmo capítulo segundo a edição de Uhlig (1883), ambas as definições, em uma parte da tradição – manuscritos V, H, A e edição F –, surgem em seções distintas.
O texto que traz as definições de léksis e lógos numa mesma seção – verificável na edição de Uhlig em toda a vasta tradição manuscrita a que ele se filia – acaba por explicitar aspectos do caráter notavelmente estreito da relação entre léksis e lógos, e evidencia, sobretudo, algumas especificidades de sentido que o binômio adquire na gramática alexandrina.
Na TG ambas as definições são mutuamente complementares ou referenciais, dependem uma da outra a ponto de gerar uma espécie de tautologia ou, no mínimo, um enunciado circular: palavra (léksis) é uma parte da frase (lógos), e a frase, um conjunto de palavras. É fato que definições circulares não são incomuns na Tékhnē. Ao contrário, podem ser vistas como bastante características dela – basta, a exemplo, lembrar das definições de preposição, advérbio ou particípio. Nesses casos, contudo, a circularidade surge para justificar ou explicar o emprego de determinado termo gramatical, evidenciando a relação entre ele e alguma peculiaridade (função, posição) do conceito que denomina. Trata-se, no entanto, de definições com pendores etimologizantes, que não se encontram no encadeamento das definições de léksis e lógos. Nele, a circularidade, a interdependência e a referenciação mútua de ambas as definições revelam a natureza dos conceitos em questão. Assim como a parte só se define como tal em função do todo, e vice-versa, do mesmo modo léksis e lógos são concebíveis um em função do outro.
Além disso, se, pela definição, compreende-se léksis como uma parte da frase (méros lógou) – a menor –, as oito partes da frase enumeradas ao fim do capítulo podem ser vistas como lékseis, e a construção global do texto da TG se demonstra, assim, coesa. A noção de sentença, frase (lógos), subjaz à concepção não só da ideia de palavra (léksis), mas de todos os conceitos abordados nas seções subsequentes ao capítulo 11. Mas é à noção de segmento, parte da frase – ou léksis – que todos remetem mais objetiva e superficialmente. E isso não é em nada inusitado, já que a TG é uma gramática centrada essencialmente na ideia de palavra, da sentença em partes. Nela, raramente se considera a sentença completa ou mesmo o verso. Desde as glôssai do capítulo 1 até as partes da frase propriamente ditas e tomadas individualmente, do capítulo 12 ao 20, passando pelas discussões dos padrões acentuais, pelas durações silábicas, o que se vê é uma ênfase notória na observação de fenômenos ocorrentes com e na palavra isolada.
Apesar disso, admitir, como Lallot (1989, p. 119), que ‘palavra’ (léksis) e ‘parte da frase’ (méros lógou) “funcionam como sinônimos em variação livre” na TG talvez seja simplificar a relação entre esses conceitos além do aconselhável. É fato que todas as ‘partes da frase’ são ‘palavras’ e vice-versa. Mas não se trata de uma relação de sinonímia. Cada parte da frase se define por um conjunto de características específicas quaisquer, de que as diversas lékseis são a realização, por assim dizer, física, formal. Do mesmo modo, cada léksis, ao menos em tese, deve ser identificável, por suas peculiaridades, com uma das oito partes da frase. Se forem elencados três nomes de coisas consecutivamente, diante dessa lista será possível afirmar que se trata de três palavras (lékseis), que cada uma é uma parte da frase, mas não que haja nesse conjunto três partes da frase. A relação aí seria aproximável daquela que, contemporaneamente, se observa na gramática tradicional entre a ideia mais intuitiva ou corrente de ‘palavra’ e a de ‘classes de palavras’.
3. As designações das classes de palavras numa perspectiva histórica
Compreender o contexto formante da concepção de partes da frase como apresentado em DT e incorporado pela tradição gramatical ulterior como núcleo dos manuais é tarefa complexa. E não apenas pela natureza epistemológica do fenômeno em si, mas, sobretudo, pela aparente flutuação conceitual que assinala a gênese desse processo de "categorização". Denominações como ónoma (nome) e rhêma (verbo) atravessam toda a história da filosofia helênica. E o fazem aplicando-se ora sobre um fenômeno, ora sobre outro, muitas vezes, inclusive, dentro da obra de um mesmo autor, como se verá adiante.
Observar, pois, a aplicação desses sintagmas diacronicamente é acompanhar não exatamente a história de um mesmo conceito, por eles denominado, mas a de uma verdadeira série de conceitos. Não é sequer possível dizer que as "partes da frase", como ónoma e rhêma teriam sempre operado sobre a frase em si, ou, mais abrangentemente, sobre a linguagem. Em seu nascimento, representavam, antes, seções do pensamento.
Isso se dá porque longe de serem itens de uma terminologia, cristalizados como tal, esses designativos eram, então itens lexicais, de que se apropriavam as diversas correntes do pensamento para designar fenômenos vinculados a seus interesses imediatos. Até o advento da gramática alexandrina, tais formas lexicais não habitavam o jargão específico de uma área. Consolidá-las como itens do vocabulário "técnico" de uma área do saber - a gramática – é, portanto, um dos mais fortes indícios da constituição fatual de um pensamento propriamente metalinguístico na Alexandria de Aristarco. Ao instaurar uma terminologia, a Gramática do período especifica um objeto de estudo - a língua - e um instrumental para sua análise. Pode-se ler aí uma espécie de inauguração dos estudos linguísticos propriamente ditos, no Ocidente.
Para acompanhar a "evolução" diacrônica dos conceitos que culminarão nas classes de palavras, será tecido aqui um breve panorama evolutivo dos conceitos em questão.7
Platão teria dividido o pensamento ónoma e rhêma8. Aristóteles acrescentaria a essa díade os conectores, súndesmoi. Esse mesmo autor chega a aplicar a ideia de seccionamento em partes à léksis (e não ao lógos, como depois a tradição consagrará). A primeira geração estoica somaria o árthron (artigo) a tal contexto, ao passo que a segunda "dividiria" a classe dos ónoma em ónomai (nomes) propriamente ditos e prosegóriai (designativos). Tal divisão, é importante observar aqui, estará radicalmente consolidada à época de DT e mesmo posteriormente. É apenas na terceira geração estoica que se verá solidamente o surgimento de uma primeira concepção de advérbio, o mesotés. Concebido, então, como uma espécie de forma média do designativo, não demonstra ainda a ligação com o verbo que posteriormente assumirá.
Num retraçar dessa categorização, a gramática alexandrina, aqui representada por Dionísio, acoplará a classe dos prosegória à dos ónoma. Fornecerá a leitura do mesotés como epirrhéma, aceita e preservada pela tradição posterior; alocará o particípio como forma híbrida do nome e do verbo, dentre as partes da frase, e dividirá as classes do súndesmos e do árthron, até então, unificadas. Da primeira, DT derivará as preposições e as conjunções, da segunda, os pronomes e os artigos. E é sobre essa nova plataforma, dionisiana, por assim dizer, que a tradição gramatical vai basicamente operar, no decorrer de seu desenvolvimento histórico.
4. A metalinguagem da ordem: lógica compositiva e mnemotécnica
É usual que as alusões à mnemotécnica antiga e ao valor da memorização remontem à retórica, mais especificamente, ao contexto latino, inclusive9.
Seriam virtudes consagradas e indispensáveis do orador a inventio, a dispositio, a elocutio, a memoria e a actio, como relembra Ax (2006, p. 332). E exatamente esse quarto labor necessário ao rétor colocaria, por exemplo, Cícero entre os mais citados mestres da mnemotécnica antiga.
Porém, é imprescindível observar que num contexto em que a transmissão dos conhecimentos se dava ainda predominantemente na esteira da oralidade, a memorização fosse ponto-chave das práticas educacionais. A escrita, obviamente, era difundida nos meios intelectuais e escolares. Os materiais para praticá-las, no entanto, eram caros, a manutenção de papiros e pergaminhos delicada, o transporte complicado. Um cenário que, sem dúvida, contribui para a supremacia da palavra falada em vários contextos e, especificamente, nos diversos âmbitos e níveis da erudição, da preservação da memória.
Além disso, até bem pouco tempo saber era saber de cor, memorizar. Estratégias mnemônicas de vária ordem eram, portanto, tidas em alta conta por professores e alunos nos mais diversos níveis de estudo. Na Antiguidade, isso era notório.
Não seria, pois, temerário defender que boa parte dos conteúdos - escolares por essência - das tékhnai tenham atravessado o tempo sem depender cabalmente da tradição escrita. Eles provavelmente foram memorizados e assim repassados muitas vezes. É nesse sentido, por exemplo, que este trabalho não encontra desconfortos maiores ao aludir a "uma tékhne dionisiana", apesar das discussões pertinentes sobre a autoria desse documento e da comprovação de sua montagem híbrida, ocorrida ao longo de séculos. Importa pouco se uma figura histórica Dionísio da Trácia escrevera exatamente com esta ou aquela palavra tal ou qual definição. Justamente porque o que se apresenta na(s) tékhne (ai) alexandrinas e posteriores é um círculo de ideias inicialmente conformado, não por um homem, mas por um momento histórico e sua visão, coletiva, do estado da arte numa disciplina do saber. As tékhnai, como a atribuída a Dionísio, seriam, portanto, consolidadoras, cristalizadoras de um conhecimento que já povoava a memória de eruditos e estudantes e já se transmitia de um para outro mesmo a despeito delas, tékhnai escritas.
Para que isso se desse, porém, cada uma dessas cristalizações, cada modelo didático precisava contar com uma estrutura favorável a sua memorização. O design compositivo devia ser lógico o suficiente a ponto de apoiar a plena captação dos conceitos apresentados na obra.
E é bastante provável que a tékhne dionisiana e suas sucessoras tenham investido esforços nisso, como se verá.
4.1. Apresentação de conteúdos na Tékhne: padrão com base na palavra
Já na sua definição de gramática, DT faz alusão às glôssai, palavras pouco usuais e menciona os padrões analógicos - a princípio, observáveis na análise dos itens lexicais isolados, não de frases. Marca-se assim, desde o primeiro capítulo, o centramento na palavra, que definirá o pensamento gramatical dionisiano e, em grande medida, o posterior. A exposição dos elementos da língua verificável na TG entende a palavra como núcleo linguístico: aborda os constituintes da palavra e, na sequência, os "tipos" de palavras. Não há discussões que envolvam a composição frasal, textual. Observe-se como a estrutura dos capítulos empenha-se em reproduzir a necessidade de se chegar a constituir a palavra e, a partir dela, as categorias em que se divide.
Na primeira parte da TG, veem-se, nessa sequência, os formantes da palavra, do menor para o maior, agrupando-se recursivamente:
a) Do elemento sequenciado (fones?, letras?)
b) Da sílaba
c) Da sílaba longa
d) Da sílaba breve
e) Da sílaba comum
No capítulo 11, chega-se à definição "Da palavra". Em algumas lições do texto, surge, logo depois desse capítulo, o subtítulo elucidativo "Princípio das oito partes da frase", que anuncia os conteúdos subsequentes:
1. Do nome
2. Do verbo
Da conjugação10
3. Do particípio
4. Do artigo
5. Do pronome
6. Da preposição
7. Do advérbio
8. Das conjunções
A metalinguagem da ordem, nada mais é do que uma maneira de expor os conteúdos gramaticais que deixa ver o que se pensa sobre eles e suas interrelações. Explique-se: o manual de gramática, enquanto um gênero da produção intelectual, optou por mimetizar a ordem de formação do lógos na exposição de seus componentes. No âmbito dos níveis infralexicais, isso resulta no começo, típico nesses manuais ao longo da história, pela observação dos sons da língua – os elementos sequenciados e as sílabas, ou a fonologia. Quanto aos níveis lexicais, vale lembrar que as partes da frase resultam na abordagem morfológica (ou morfossintática) dos itens da língua, também canônica nas gramáticas escolares. Além disso, na gramática de DT, e na tradição antiga verificada após o século I a. C., de modo geral, a ordem de exposição das partes da frase diz muito sobre sua relação e importância. Veja-se que o nome é a primeira parte justamente porque é, na cultura linguística helênica, a de maior importância. Do mesmo modo, as partes áklitas,11 não declináveis, e incapazes de se referir a elementos do mundo seriam as partes com menos capacidade explícita de significar. Serviriam para arranjar as demais entre si, não teriam vida própria, e ficariam, pois, nas últimas posições.
Isso é a um só tempo um expediente organizacional, lógico, um recurso didático e um truque mnemônico.
Exatamente nesse mesmo sentido é que se podem entender as definições circulares da Tékhne, bastante criticadas, inclusive, por comentadores da atualidade. As mais clássicas supostas tautologias do Trácio estariam exatamente nas definições de advérbio, pronome, preposição e conjunção. Não à toa, como visto na seção 4, a gramática alexandrina teria praticamente instaurado tais conceitos. No caso do advérbio, da preposição e do pronome, teria mesmo começado o desenho de novas categorias a partir do nome. A partir disso, se revela a chave de compreensão do seu modelo de definição. Ao nomear, por exemplo, o advérbio de epirrhéma, Dionísio e seus correligionários lançam uma interpretação bastante renovada sobre esse fenômeno linguístico: ele passa a ter como uma de suas principais peculiaridades o fato de acercar-se do verbo (ser, literalmente, um epi-rhêma). O esforço denominativo aqui não é pequeno. Demanda a perscrutação e a seleção de características necessárias e suficientes, por assim dizer, para fechar uma categoria. Uma vez determinadas, essas serão precisamente as características empregadas na conformação de um nome para a parte da frase em questão. E, por serem, os atributos de fato compreendidos como definidores dessa parte, ocuparão também lugar na definição dela.
A empreitada dos gramáticos nesta fase, e ainda por muito tempo depois, é a de estabelecer um aparato terminológico, sem muitos arrimos teóricos prévios nesse sentido específico. Assim, a estratégia de definir etimologicamente (em específico as classes novas, criadas por eles) é antes uma tentativa de revelar o processo reflexivo, algo inédito, que os conduziu a nominar certas partes da frase.
Essa estratégia fica muito evidente no caso do particípio. O nome que Dionísio confere a essa parte da frase provém do grego methoké, ‘participação’, ‘compartilhamento’. Nessa escolha, o gramático deixa entrever já de saída a duplicidade, o caráter misto, verbo-nominal que, a seu ver, definiria essa nova parte da oração. Essa seria mais uma definição etimologizante da TG, que reforça a forma e natureza, híbridas do nome o do verbo, dos membros dessa categoria. E aqui vale observar que tal dualidade não é transmitida apenas pelo conteúdo, mas também pela sua posição do particípio no corpo do texto. Apresentar o particípio logo após o nome e o verbo é colocá-lo como último elemento de uma tríade, como o composto, que é, dos elementos anteriores. Essa, inclusive, é uma posição canonicamente ocupada pelo particípio na citação das partes da frase. Apolônio Díscolo (Sintaxe, 24,1) vai além na compreensão dessa metalinguagem da ordem de apresentação: a tríade nome-verbo-particípio seria uma construção analógica à tríade ordenada masculino-feminino-neutro. E lembre-se aqui que o neutro é necessariamente concebido, na teoria linguística grega, a partir dos outros dois – ele literalmente, não é ‘nem um, nem outro’, mas a concentração de ambos. Nos dois casos, então, o terceiro termo não é interpretável senão em referência aos dois seguintes. Tal dependência era levada ao extremo na filosofia estoica, que não fazia do particípio uma parte da frase autônoma, tratava-o como uma manifestação do verbo. No contexto alexandrino, porém, leva a alocar o particípio na sequência de seus "formantes", o nome e o verbo.
Passando à análise dos elementos não declináveis, que finalizam a apresentação das partes da frase dionisianas, cabe observar, inicialmente, a preposição. A definição dessa categoria presente na TG traz que: "A preposição (próthesis) é uma palavra (léksis) pré posta (prothisteméne) a todas as partes da frase, em composição (synthései) ou construção (syntáksei)".
A supostamente ingênua autorrecorrência da explicação encontra aqui respaldo teórico considerável. Além do argumento anteriormente mencionado de revelar por meio da circularidade etimológica o pensamento que levou à denominação do objeto, a definição de DT aqui faz especial sentido se observado o contexto da língua grega antiga. Em maioria absoluta, exatamente as mesmas partículas que podem se antepor a palavras, compondo, prefixalmente outras tantas, pode-se fazer coligadoras de elementos lexicais nas frases. E mais: essas são realmente partículas que podem se antepor, sobretudo no primeiro caso, a qualquer outra parte da frase, inclusive às próprias preposições, compondo palavras com dupla prefixação. Uma característica destacada por DT, sem dúvida, importante nesse contexto linguístico.
Na lista canônica de partes da frase, a preposição é a primeira das partes não flexionáveis, que compõem os três últimos itens da lista de oito. Tal locação dos não flexionáveis, em sequência e ao final da lista não aparece justificada por DT, mas nem por isso deve-se considerá-la como fruto do acaso. Essa disposição parece imutável em todos os papiros gramaticais que fornecem listas de parte da frase (Lallot, 1989, p. 209), e pode guiar-se pela seguinte lógica: primeiro surgem as formas dotadas de maior mobilidade ou sentido próprio, ou, nas palavras de Apolônio Díscolo, mais animadas ‘empsykhótata’ (Sintaxe, 28,6). As formas imóveis têm uma só forma de “pronúncia”, são menos complexas, ao ver da tradição antiga, e, mais de uma vez, ao longo de sua história, são tomadas como palavras sem sentido próprio.
Dentre essas também estariam as conjunções. A despeito dos vários problemas decorrentes da fixação desse trecho do texto, e escolhida a lição ser seguida, resta analisar a definição que a conjunção no manual de DT. Quanto à primeira parte dela, tem-se que conjunção “com-junge” pensamentos. Uma típica definição circular, etimológica, como outras ao longo da obra, e com a mesma função: explicitar a razão da denominação. No caso da conjunção, esse pode ser um esforço bastante justificado.
Dionísio define esta parte da frase assim: “Conjunção (súndesmos) é uma palavra que liga (sundéousa)12 o pensamento ordenadamente (metà tákseos) e torna evidentes os dados implícitos da expressão”.
A ligação em pauta se relaciona com a ordem ‘táksis’13 dos formantes do lógos. Isso indica que a conjunção, não só deve ocupar sintaticamente um lugar específico, ou "co-ordenado" na frase, como também que ela ordena os elementos que junta, de acordo com o tipo de relação semântica – e obviamente sintática – que estabelecerão entre si. Na construção canônica “se a, então b”, não há equivalência de sentido ao se inverter a ordem dos termos: “se b, então a”. Inclusive, essa atenção para o detalhe da ordem, pertinente para algumas conjunções, é motivo de crítica, já na Antiguidade (LALLOT, 1989) à definição dionisiana. Há os que olham pontualmente para as outras conjunções, como as aditivas, diante das quais essa colocação não faz sentido, uma vez que são indicativos de soma, e, logo, não têm o resultado de sua operação semântica alterado se trocada a ordem. Ora, talvez essa segunda interpretação de ordem seja de fato secundária, suplementar. Táksis correlaciona-se a suntáksis e, então, a ordem de que fala a definição é a de encaixe entre sentenças, entre os elementos da sentença a da disposição da própria conjunção. Ela organiza o enunciado complexo.
Da definição dionisiana de conjunção, no entanto, escoliastas tiraram a imagem de um autor contraditório para a TG: primeiro DT diz que as conjunções apenas ligam, depois, que esclarecem (ILDEFONSE, 1997). Porém, uma coisa está estreitamente relacionada à outra. É possível que as conjunções esclareçam o sentido oculto das sentenças na medida em que produzem significado ao tecer relações entre elas. Se tomadas em separado, as sentenças dizem uma coisa. Seu conjunto, sem as ligações eficientes (as conjunções), continua com sentido oculto, uma vez que estão omitidos os tipos de relação lógica entre enunciados. Assim, a expressão só tem sentido às claras quando preenchidas as lacunas das conjunções. A conjunção, portanto, estabelece a natureza da relação entre uma sentença e outra, o que lhes pode alterar completamente o sentido.
De fato, uma leitura literal da definição dionisiana pode sugerir que a conjunção “revela a lacuna da expressão”. Baratin (1989, p. 37) pensa que o vazio, a lacuna aí seria exatamente a relação lógica que existe implícita ou tacitamente entre enunciados e que pode ser de implicação, contrariedade e que é demonstrada posta às claras pela conjunção. Realmente uma questão de encadeamento lógico.
Obviamente, a definição da conjunção como mero ‘juntador’ não a define suficientemente ou não estabelece suficientemente o conjunto das conjunções. O artigo pospositivo por exemplo, une duas frases. O elemento consignificação, que aparece em Apolônio Díscolo (Sintaxe, 59) como um elemento semântico inerente ao comportamento linguístico da conjunção, do artigo, e da preposição não surge na TG. Trata-se de partes da frase que não podem ser empregadas sozinhas, que só têm significado se em ligação ou em participação com as demais. Seu valor se define em função do contexto.
Um escólio de DT (9 283,20 apud LALLOT, 1989, p. 232) argumenta que, em verdade o nome conjunção é adequado, como não seria simplesmente o uso de desmos ‘junção’. Isso porque é necessário co-ligar frases, pensamentos. Não se trata, pois, de mera junção: ninguém considera um enunciado válido, coerente, algo como eu corro e. Desse modo a palavra que é a conjunção não simplesmente (se) liga à sentença, mas conjunta duas delas.
4.2. A conjunção como última parte da frase em DT
A função da conjunção é co-ligar. Isso explica sua posição canônica enquanto oitava parte da frase: ela estabelece relações entre as demais, quaisquer que sejam, liga os lógoi distintos. E para que se possa pensar em ligar é necessário antes apresentar os elementos ligáveis entre si. A idéia de ‘ligação’, assim como todos os elementos capazes de realizá-la não é em si considerada um elemento, uma parte da frase. Um escólio de DT (Sl 515, 19 apud Lallot 1989, p. 227) traz que “os peripatéticos afirmavam que havia duas partes da frase o nome ónoma e o verbo rhéma; as outras eles diziam não serem partes da frase, mas apenas nela empregadas para juntar e colar”.
Realmente, já em Aristóteles se tem a divisão tripartida da frase: nome/sujeito, verbo/ predicado, conjunção. E convém notar que, de fato, assim como na distribuição que se vê aqui em DT, as partes não flexionáveis ficam nas últimas posições da exposição. Na TG, resta ainda à conjunção a derradeira posição entre todas. A conjunção é, pois, percebida como uma posição limite: num limite da exterioridade. Em verdade, na história dos antigos estudos linguísticos, a conjunção ocupa uma posição indecisa. Peripateticamente pode-se dizer que algo que ligue as frases não é necessária ou propriamente parte delas14, mas se coloca entre uma e outra. Na visão gramatical, em que léksis pode ser entendida simplesmente como palavra, a concepção da língua elaborada a partir da classificação das palavras em classes força a conjunção, palavra, a se enquadrar dentre as partes da frase, e, ocupar, um lugar dentro dessa. Sendo assim, a conjunção, que não pode se por fora da frase, é locada em seu limiar. A possibilidade da equivalência méros lógou - léksis é decisiva aí.
Cabe ainda observar aqui que o posicionamento da conjunção em último lugar sugere a abertura para uma última sequência dos manuais de gramáticas dedicada às sentenças, em última instância, à sintaxe. De fato, a gramática dionisiana não opera com o conceito de sentenças em conexão. Mas parece abrir-se para a possibilidade aqui. Talvez por admitir que, na tradição acadêmica e mesmo gramatical, esse seria um esperado próximo passo após a análise das partes da frase.
Mais uma vez a metalinguagem da ordem se revela portadora de concepções sobre a relação e a características dos itens da língua e mesmo de seu estudo.
Tal estratégia mantém-se na tradição grega de estudos gramaticais e, em grande parte, na latina. Nesta, obviamente, alteram-se as questões dos artigos, ausentes no latim, por exemplo. Parte das relações entre os elementos linguísticos também surge entendida de modo levemente distinto. E a estrutura das artes latinas segue demonstrando isso. Donato estabeleceria uma relação de proporcionalidade lógica em que o nome está para o pronome, assim como o verbo está para o advérbio, coisa que se refletiria na ordem com que apresentaria suas partes da frase.
Note-se, contudo, que, na tradição latina ulterior à helênica, a tríade nome-verbo-particípio continua como eixo das partes da frase dotadas de "alma". Donato estabelece uma correlação entre pronome e nome, advérbio e verbo. Mas é provável que se trate menos de uma radical revisão conceitual do que uma adaptação, necessária, sem dúvida, dos conceitos à definição de cada um deles. Ao lado do nome, o pro-nome, e do verbo, o ad-vérbio. Tanto e assim que, ao final da apresentação, ainda se concentram os itens que hoje poderíamos denominar funcionais: a preposição, a conjunção e a interjeição. Permanece, pois, a sequência "núcleo semântico - elementos funcionais, em considerável medida." Do mesmo modo os artifícios mnemônicos e estruturais que, nas tékhnai e artes, ao longo da história, consolidaram-se - por tradição como por reflexão de concepções teóricas inerentes ao pensamento gramatical do Ocidente.
5. Considerações Finais
Com o intuito de refletir acerca da questão da ordem e da mnemotécnica dos manuais de gramática, trouxemos um percurso histórico em relação a esses aspectos nas gramáticas, iniciando com a gramática atribuída a Dionísio Trácio, focando em aspectos como o que é conhecido como classe de palavras.
O que se verificou é que a questão da mnemotécnica se constituía pela memória, sendo que essa memória estava vinculada aos estudos da retórica. Portanto, essa tradição pertence à Retórica, deixando de lado a tradição propriamente científica que viria se instaurar mais tarde com o advento da linguística.
Assim, a questão da retórica, da mnemotécnica, se preservou muito mais porque essa questão está mais apoiada nessa mnemotécnica do que em uma tradição propriamente analítica que nós veremos na ciência.
Há, então, uma necessidade de se formatar também uma tradição propriamente científica e não apenas retórico-mnemotécnica e gramatical dentro dos estudos linguísticos. Para tanto, é fundamental que haja medidas de ampla difusão do conhecimento científico de maneira democrática na área da linguística.
Referências
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