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Research Report

Culture, poésie, Paris, glamour: une analyse dialogique des voix sociales qui constituent les discours des étudiants du Cours de Lettres-Français sur la langue et la culture françaises

Otávia Pinheiro Pedrosa Fernandes

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https://orcid.org/0000-0003-4392-0002

Siane Gois Cavalcanti Rodrigues

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Keywords

French language and culture
Ideology
Teaching Programs
Students
Bakhtin

Abstract

O tema desta pesquisa foi escolhido a partir de inquietações da Pesquisadora acerca da grande evasão existente no curso em Licenciatura em Letras-Língua Francesa da Universidade Federal de Pernambuco e da falta de visibilidade desse curso na sociedade, mesmo que a França seja o segundo país que mais faz troca científica com o Brasil. Partindo de uma perspectiva sócio-histórica e discursiva da linguagem, esta pesquisa teve como objetivo descortinar, através da teoria de Análise Dialógica do Discurso de Bakhtin, vozes sociais no discurso de discentes desse curso acerca da maneira como eles enxergam a língua e cultura francesas. Adotamos a pesquisa de campo com uma abordagem metodológica qualitativa, visando interpretar e descrever os dados do estudo em foco. Escolhemos a entrevista semiestruturada para a coleta dos dados e os procedimentos de análise emergiram a partir da observação deles, dando-lhe um caráter indutivo. Os resultados obtidos nos mostram a importância de envidar esforços na disseminação da importância científica de países francófonos para nossa sociedade, pois não há, entre os discursos analisados, o conhecimento da intensa troca que fomenta a internacionalização de nossas IES. Acreditamos que o investimento na carreira do professor de francês no Ensino Básico brasileiro, aliado a um projeto de internacionalização de nossas instituições e integrado ao movimento Ciência Aberta, seria bastante relevante para a sociedade. Entendemos também que a Língua estrangeira pode contribuir na construção do sujeito, transformando sua compreensão de mundo.

Introdução

O curso de Licenciatura em Língua Francesa, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi criado na década de 50, juntamente com o Departamento de Letras. Até 2010, tratava-se de um curso com dupla habilitação, no entanto, houve, após esse ano, uma separação da Licenciatura em Língua Portuguesa dos cursos de língua estrangeira. Foi também em 2010 que foi definida pelo Colegiado do Departamento de Letras dessa Universidade a entrada de apenas 15 alunos por ano. A Pró-Reitoria de Planejamento, Orçamento e Finanças – PROPLAN (UFPE) encomendou diversas pesquisas, a fim de avaliar a evasão de seus cursos presenciais entre os períodos de 2000 a 2018. O curso de Licenciatura em Letras-Língua Francesa foi analisado, primeiramente, nos anos de 2012 e 2013, obtendo sua primeira avaliação em 2014 (UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO, 2015). Na época, foi detectada uma evasão de 61,3%, percentagem alta quando comparada com outros cursos presenciais da UFPE (UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO, 2019). Desde então, nosso curso tem sempre uma evasão significativa, como pode ser visto no gráfico abaixo:

Figure 1. Gráfico 1 - Taxa de evasão Semestral (Método Lobo), 2015-2018. Fonte: FERNANDES, 2021

A alta evasão e a ausência da Língua Francesa no Ensino Básico brasileiro vão de encontro às fortes relações científicas e tecnológicas existentes entre a França e o Brasil. Segundo Fernandes (2021), no site do CenDoTeC (Centro Franco-Brasileiro de Documentação Técnica e Científica), é possível ver que a cooperação bilateral entre a França e o Brasil no âmbito científico e técnico vem de longa data. Segundo essa fonte, o acordo de 16 de janeiro de 1967 de cooperação técnica e científica e os acordos complementares assinados a partir de 1976 consolidam e organizam essa cooperação. Além disso, segundo a Organisation for Economic Co-operation and Development (2017), o número de estudantes matriculados em instituições universitárias fora de seus países cresceu de 800 mil no final da década de 1970 para 4,6 milhões em 2015. Essa internacionalização do ensino superior foi tratada em um relatório elaborado pela Diretoria de Relações Internacionais (DRI) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (2017, p.4),

[…] a internacionalização das Instituições de Ensino Superior (doravante IES) tem o potencial de transformar as vidas de estudantes e tem um papel cada vez maior para ciência através da intensa troca de conhecimento acadêmico, permitindo assim a construção de capacidades sociais e econômicas.

Ainda segundo a CAPES, a internacionalização deve ser encorajada de uma maneira ampla, não apenas através da mobilidade de discentes e docentes, mas também na troca de ideias, na integração da dimensão internacional ao ensino, pesquisa e extensão que são funções das instituições de ensino superior.

Nesse relatório, também foram anunciados os nomes dos países com a maior porcentagem de cooperação ao longo dos anos (Estados Unidos, seguidos por França, Alemanha, Reino Unido e Canadá), sendo eles os melhores parceiros institucionais, seja na qualidade das relações com a Capes, seja nos resultados das ações conjuntas com pesquisadores e IES brasileiras, bem como no entendimento de cooperação internacional como uma parceria simétrica e com contrapartidas não financeiras.

Sabemos que a UFPE mantém hoje cerca de 180 acordos de cooperação válidos com universidades e instituições estrangeiras de países da América do Norte, América do Sul e Caribe, África, Ásia e Europa, os quais permitem a viabilização institucional do Programa de Mobilidade Institucional e das demais ações de colaboração. Segundo dados apurados por essa Diretoria, a França é o terceiro país que mais recebe alunos e professores dessa instituição para trocas acadêmicas, sendo 627 desde 1999.

Diante desses dados, vieram-nos questões sobre o que leva o sujeito a escolher o curso de Licenciatura em Letras-Língua Francesa, mesmo que esse curso não tenha reconhecimento no mercado de trabalho, e sobre o que ele pensa do futuro profissional que terá a partir dessa escolha. Nesse contexto, o trabalho teve como objetivo central descortinar, através da teoria de Análise Dialógica do Discurso (doravante ADD), vozes sociais no discurso de discentes do curso de Licenciatura em Letras - Língua Francesa acerca da maneira como eles enxergam a língua e cultura francesas. Entendemos que, ao propormos analisar esse discurso, estamos, na verdade, desvelando a sociedade e a cultura das quais esse discente é constituinte e constitutivo e, assim, entendemos que a simples ação de escolher uma língua estrangeira nos torna suscetíveis as nossas representações e às representações sociais acerca do idioma em questão e dos aspectos culturais nos quais este se insere.

Investigamos, portanto, as diversas vozes sociais, a partir das quais o discurso de outrem se faz presente no discurso desses discentes, pois, como mostramos mais adiante, a representação reservada à França, através da divulgação de sua língua e cultura, é peça fundamental à análise de como certas vozes emergem na materialidade linguística dos enunciados desses discentes.

Embora o Círculo não fale em “categorias de análise”, nem tenha uma proposta clara ou um procedimento fechado de análise do discurso (BRAIT, 2006), os estudos discursivos no Brasil encontraram nas obras dos autores russos um terreno fértil para trabalhar a relação entre sujeito, história, linguagem e ideologia, em torno de um eixo principal: o diálogo. É com base nessa proposta, a qual vem sendo chamada de Análise Dialógica do Discurso, que fundamentamos nossas reflexões.

Participaram da pesquisa cinco voluntários, discentes do curso em pauta, os quais foram indagados, através de entrevistas semi-estruturadas, acerca de questões como: “Que ideias você fazia da cultura e Língua Francesa antes de ingressar no curso?”, “Como você se vê como profissional desta área?”. Nossa hipótese é a de que a escolha do curso se deve ao ideal imaginário sobre a Língua Francesa (doravante LF) “chique” e “culta”, difundido pela França.

1. A construção da memória coletiva sobre a língua francesa

Falar de cultura éalgo tão complexo como o sentido de sua palavra. Para nós, ela é o resultado do trabalho e do desenvolvimento histórico-social de uma sociedade em um dado momento, e a linguagem não pode ser dissociada dela, pois serve para constituir, organizar e intermediar as relações sociais. Nesse sentido, cultura e vida se unem por intermédio da palavra viva. Não nos interessa, nesta pesquisa, a palavra enquanto signo linguístico, mas sim como signo ideológico proposto pelo Círculo de Bakhtin (VOLÓCHINOV, 2017). Entendemos que “[...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 181). Bakhtin, no texto escrito nos anos 1920 denominado “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, afirma que a cultura é um evento “concreto e sistemático” (BAKHTIN, 2010b, p. 31), isto é, ela pertence à história e está diretamente ligada aos seus fatos sociais de forma sistemática. Para ele, a cultura dialoga com a “realidade preexistente de outras atitudes culturais” (BAKHTIN, 2010b, p. 31). Portanto, apenas compreendemos nossa cultura através da linguagem e, para isso, precisamos conhecer nossa história, a qual nos é revelada na linguagem.

Nesta seção, percorremos, brevemente, o caminho histórico que contribuiu para a construção do imaginário social sobre a língua na América Latina e mais precisamente no Brasil.

A expansão do imaginário social sobre a língua francesa pode, segundo Hagège (2006), ser dividida em três períodos distintos: a Idade Média, que se situa entre o final do século XI e o início do século XIV; o período do francês clássico, que se estende do início do reinado de Luís XIV ao final do século XVIII; e a fase que vai de meados do século XIX ao início do século XX, correspondendo ao francês moderno.

O francês medieval, chamado de francien, estabeleceu-se como a variante linguística que tinha como objetivo político centralizar o poder real, passando a ser progressivamente a língua nacional de referência, em detrimento de outros dialetos. Por ser uma variedade utilizada pela realeza e, assim, ser utilizada por um grupo de indivíduos socialmente favorecidos, foi, já nessa época, considerada como uma língua de refinamento e de elegância. Em seguida, com os avanços do poder real, o surgimento da imprensa, a conquista de terras americanas, que fez crescer a circulação e as trocas comerciais, o idioma teve uma grande expansão, servindo de língua obrigatória no meio jurídico e administrativo do século XVI (CAPDEVILLE, 2008).

A partir do século XVII, com aumento do poder da França sobre os outros países, a língua passou por modificações, com o objetivo de atender aos ideais de refinamento da aristocracia europeia. Isso fez com que, nos acordos firmados entre nações, a língua francesa se tornasse o idioma da diplomacia, no lugar do latim, o que intensificou sua expansão para além das fronteiras francesas, ainda que sempre, dentre as camadas mais privilegiadas da sociedade, como explica Hagège (2006, p. 20, tradução nossa):

[...], é importante enfatizar que agora como na Idade Média, foi nas franjas sociais privilegiadas da Europa que reinou o francês, de Paris a São Petersburgo, passando por Haia, Berlim e Estocolmo, e de Madrid. para Constantinopla em passando por Turim, Florença, Parma, Valáquia e Moldávia. Ou seja, sua imagem já era, e por muito tempo, a de uma língua das elites e das classes abastadas.1

É interessante mencionar que, diante do domínio francês, os outros países europeus adotaram o hábito, inerente à corte francesa, de maneiras e linguagem rebuscadas, que se diferenciavam dos extratos inferiores da sociedade, o que fez surgir, segundo Elias (1993), a noção de “civilidade” como forma de demarcação e de reforço de uma hierarquia social, tomando a França e a língua francesa como referência.

Conceitos como politesse ou civilité tinham, antes de formado e firmado o conceito de civilisation, praticamente a mesma função que este último: expressar a auto-imagem da classe alta europeia em comparação com outros, que seus membros consideravam mais simples ou mais primitivos, e ao mesmo tempo caracterizar o tipo de comportamento através do qual essa classe se sentia diferente de todos aqueles que julgava mais simples e mais primitivos. (ELIAS, p. 54, 1993)

Assim, por muito tempo, perdurou a ideia da universalidade do francês e dos valores que somente ele poderia veicular (CUQ; GRUCA, 2017). No século XIX, vemos a expansão colonialista dar à língua francesa uma nova face, a da dominação, e não somente seu ideal de beleza e refinamento dos períodos anteriores. Assim, vemos as grandes potências mundiais, e não somente a França, trabalharem intensamente para difundir suas culturas em países de seus interesses, principalmente na África e na América Latina, fazendo com que houvesse uma naturalidade na aceitação dessa influência.

Segundo Mota (2002), entre as regiões do mundo que têm mais interesse na cultura dos franceses, a América Latina é talvez a área onde ele é expresso mais fortemente, o que faz com que as relações diplomáticas da França se beneficiem do francófilo amplamente compartilhado pelas elites latino-americanas. Essa influência, no entanto, já era antiga, remontando à criação de Estados latino-americanos, inspirados pelos ideais franceses de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. A imagem da França, largamente divulgada, era de uma terra de liberdade, de direito e de progresso e, sob esses ideais, deu-se a formação dos novos Estados latino-americanos. As principais referências para a criação das normas jurídicas do novo continente foram a Carta dos Direitos do Homem, de 1789, e o Código Napoleônico. Em 1809, a língua francesa é adotada pelo sistema de ensino brasileiro, com o objetivo de favorecer as trocas comerciais após a abertura dos portos. Em 1837, é fundado o Colégio D. Pedro II, instituição de referência no país à época, cujo currículo se pautava no modelo de ensino francês, priorizando uma educação de cunho clássico e humanista (COLÉGIO PEDRO II, 2020). Assim, através dessa língua, as classes dominantes mantiveram seu prestígio e poder e a França também foi o país pioneiro a utilizar, como estratégia de dominação colonialista, o ensino do francês a partir da criação, em 1883, da Aliança Francesa. Assim,

A AF nascia dentro de um espírito nacionalista e de reconstrução do país, de vontade de “desenvolvimento e progresso” em todas as áreas, de desejo de reconquista da perdida “hegemonia” e “prestígio” político. Era também a associação de homens profundamente marcados pelos ideais de uma França eterna e coesa, convencidos da universalidade de sua cultura e da importância da histórica nacional para o mundo. (LESSA, 1994, p. 120)

A cultura francesa era tão presente na nossa sociedade que, com o fim da monarquia no Brasil em 1889, foi a Marselhesa que tocaram para proclamar a república e a divisa "Ordem e Progresso" foi inspirada no positivismo de Auguste Comte. A ideia da França, propagandeada nas sociedades latino-americanas, era de uma terra de liberdade, de direito e de progresso

Portanto, o francês se manteve em primeiro lugar dentre as línguas estrangeiras faladas e ensinadas na América Latina. No Brasil, como vimos, ela era amplamente ensinada tanto no sistema educativo normal, quanto nas Alianças Francesas, cujo número de estabelecimentos no continente se multiplicou. Para o Brasil fazer parte de um grupo de países onde a colônia francesa não era numerosa, uma estratégia específica de política cultural foi aplicada, centrada na criação de um grupo nacional fiel, admirador, disponível para apoiar politicamente a França em caso de necessidade. Era preciso que esse grupo utilizasse como segunda língua o francês e que fosse consumidor de produtos culturais franceses. Este mercado consumidor, do qual só as elites faziam parte, tinha que ser mantido e expandido.

O Estado francês financiava discretamente, através de prêmios como bolsas de estudo, encorajamentos de publicações capazes de “[...] auxiliar e servir à obra da associação, sobretudo as de caráter pedagógicos” (LESSA, 1994, p.122). Em 1886, o encarregado de Negócios da Delegação da França no Rio de Janeiro, Conde de Viel-Castel, fundou o primeiro Comitê da Aliança Francesa e sua diretoria “[...] composta de franceses residentes no Rio de Janeiro e de brasileiros “notáveis” simpatizantes do projeto da AF” (LESSA, 1994, p. 123). Lessa, em seu artigo intitulado Aliança Francesa no Brasil: Política oficial de influência cultural (1886-1930), nos mostra as palavras do primeiro delegado do comitê da AF do Rio de Janeiro, em 1886, cuja máxima foi:

Nós não podemos dissimular toda a satisfação que sentimos ao ver que a Aliança Francesa tenta estender seu campo de ação até o Brasil. A metade da missão já está cumprida, por sinal: a AF não encontrará no mundo país que professe tão franca simpatia pela nossa França e por tudo que dela demanda. (LESSA, 1994, p. 124)

Dessa maneira, o gosto pela cultura francesa era expresso na literatura e em outras áreas. Costa (2000, p. 279) afirma que "[…] a influência francesa no Brasil esteve presente durante todo o século XIX, destacando sua importância ao longo dos anos". As habilidades de expressão e de compreensão na língua francesa remetiam a um prestígio intelectual, pois, como a instrução escolar, nessa época, destinava-se a poucos privilegiados, a língua estrangeira servia para promover uma educação essencialmente erudita (PICANÇO, 2003).

Famílias brasileiras enviaram seus filhos para estudar na França e, assim, nos séculos XVIII e XIX, registramos a entrada, nos hábitos das famílias brasileiras, dessa influência francesa. Esses filhos trouxeram de lá a maneira de se vestir, de como se comportar em sociedade, enfim, o modo de viver dos franceses. Mas essa maneira de ser foi limitada a um pequeno número de pessoas e as elites pernambucanas do Século XVIII e XIX tinham um gosto representado pelo chique francês.

Em Pernambuco, a presença francesa pode ser sentida ainda hoje no urbanismo, nas artes e na maneira de viver, que também foram importados pelos jovens da alta sociedade. O urbanismo recifense, por exemplo, foi profundamente marcado pela influência francesa no século XIX e início do século XX. A presença francesa em Pernambuco, em 1840, era, majoritariamente, de médicos, comerciantes, artesãos e havia aqui até mesmo um consulado gaulês. Recife “afrancesada”, parisiense até meados do século XX, ainda se podia perceber nos cortes de cabelos, na vestimenta e nos perfumes (MOTA, 2002). Assim, vimos a entrada da cultura francesa no nosso país, em primeiro momento, por razões políticas e, em segundo momento, com uma difusão marcadamente voltada às elites e às questões culturais e artísticas.

Porém, o início do declínio da diplomacia francesa, da França como potência mundial, começa no final da Segunda Guerra Mundial e se confirma após essa Grande Guerra. O mundo que a partir de então foi desenhado anunciou uma nova ordem na qual os grandes já não são os europeus, mas sim os Estados Unidos e o bloco soviético. Após a queda do Muro de Berlim, ficamos fortemente marcados pelo sistema capitalista liberal e pelo complexo fenômeno da globalização. A França, então, consciente da previsível expansão da língua inglesa e da influência americana no mundo, cria, em 1945, uma “Direção geral das relações culturais e das obras francesas no estrangeiro” (CUQ; GRUCA, 2017, p. 24). A política cultural mais uma vez é pensada em termos quase exclusivamente de propaganda, em termos de “influência cultural”, a qual deve fomentar a admiração pela cultura francesa e incentivar o consumo dos produtos culturais franceses. O lema que orientava as ações dessa política cultural era: “[...] todo cliente da língua francesa é um cliente natural dos produtos franceses” (LESSA, 2000, p. 120).

Isto posto, para não perder terreno nesse contexto, a França começa uma corrida para valorizar seus pontos fortes, incluindo o seu peso histórico cultural, ou seja, a pátria "do Homem e dos Direitos do Iluminismo", as obras de arte de renome mundial, a gastronomia e o “savoir-vivre” francês. Todas estas imagens se materializam em "clichés". O prestígio da língua encontra, sobretudo na América Latina, suporte nos conceitos cultivados e transmitidos através de gerações que atribuíam um grande valor a tudo que viesse da Europa, o chamado “eurocentrismo”. Tudo isso, é importante salientar, ainda se faz presente no inconsciente coletivo, que tende a considerar a língua dos franceses como a mais “pura” e sua cultura como sinônimo de elegância e superioridade.

Nos anos 1980, a política externa francesa transforma os “Escritórios pedagógicos” das embaixadas em “Escritórios de ação linguística” (BAL) (CUQ; GRUCA, 2017, p. 25). Assim, essa época é caracterizada, sob o plano econômico, por um vasto período de investimento no pessoal docente responsável por ações pedagógicas e por uma abundante oferta de bolsas para estudantes e professores latino-americanos em missões francesas. Sobre a política de língua, as atividades eram centradas na formação de professores de francês de escolas normais, com a ajuda e incentivo da criação de associações de professores de francês. Nas universidades, a presença francesa é marcada por uma rede considerável de leitorados com seus respectivos leitores francófonos.

Entrementes, a globalização ganhou força em referência às aplicações financeiras e à circulação de capital em escala planetária, sendo primeiramente sinônimo de globalização econômica, de mercado mundial. O contexto histórico internacional marcava a desestruturação da União Soviética e o fim da Guerra Fria. A reorganização política mundial, acelerada após o final da Guerra Fria, proporcionou o surgimento de blocos econômicos em diferentes regiões do planeta, como a União Europeia, o Nafta, o Mercosul. Surge, na Europa, no início dos anos 90, com a assinatura do Tratado de Maastricht, a União Europeia (doravante EU), formada inicialmente por seis países (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Holanda e Luxemburgo) que faziam parte do Mercado Comum Europeu, acordo de livre comércio assinado nos anos 50 e conhecido como “Tratado de Roma”. A fim de melhorar a relação entre esses países e outros que, mais tarde, iriam compor a EU e estabelecer políticas de acolhimento de imigrantes do Leste Europeu e da África, novos caminhos foram traçados pelas políticas linguísticas francesas.

Esse novo panorama europeu abriu um vão nos investimentos voltados à divulgação da língua francesa na América Latina e, consequentemente, no Brasil, onde ocorreu uma diminuição do interesse por esse idioma, devido a diversos fatores, como a importante onda de imigração proveniente de outros países e o crescimento de um ideal nacionalista, que fez com que se intensificasse um desejo de preservação da língua portuguesa enquanto símbolo da identidade nacional (CAMPOS, 2006). No entanto, o ensino da língua francesa foi mantido ainda, por algum tempo, na grade curricular das escolas, ficando até 1961, ano em que as Línguas Estrangeiras deixaram de ser obrigatórias no Brasil, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n. 4.024.

O francês, entretanto, permanece nos currículos das escolas ginasiais até meados da década de 1970 (PICANÇO, 2003), primeiro pela força de sua representação hegemônica como língua de cultura e depois por uma questão trabalhista: havia professores concursados para essa disciplina lotados nas escolas. Após alguns anos sem espaço em tais instituições de ensino, a língua francesa volta, ainda que não faça parte da grade curricular, nos anos 80, com a criação dos centros de línguas em vários estados do país. No entanto, na década de 90, esse idioma perde consideravelmente seu prestígio nas escolas, devido à promulgação da LDB de 1996, que estabeleceu a hegemonia do ensino da língua inglesa em todo o país.

Atualmente, a difusão da língua francesa conta com a Organização Internacional da Francofonia (IOF). Trata-se, antes de mais nada, como podemos ler no seu site oficial, de “[...] mulheres e homens que compartilham uma língua comum, o francês”2 (ORGANISATION INTERNATIONALE DE LA FRANCOPHONIE, tradução nossa). Nesse site, também é possível saber que o último relatório do Observatoire de la langue française, publicado em 2018, estimou haver no mundo 300 milhões de falantes espalhados pelos cinco continentes. Assim, a francofonia, ainda segundo seu site oficial, é um mecanismo institucional dedicado a promover a cooperação francesa e implementar a cooperação política, educacional, econômica e cultural dentro dos 88 estados e governos da Organização Internacional da Francofonia (OIF). Esse sistema é estabelecido pela Carta da Francofonia, adotada em 1997: sua autoridade máxima é o Sommet de la Francofonia; sua pedra angular foi o Secretário-Geral da Francofonia, posição ocupada, atualmente, por Louise Mushikiwabo. Temos, assim, uma nova política linguística adotada pela França, com missões mais engajadas com suas ex-colônias, dentre elas, a promoção da língua francesa e a sua diversidade cultural e linguística.

1.1 O Círculo de Bakhtin e uma nova concepção de linguagem

Bakhtin e o Círculo defendiam que a língua sofria influências do contexto social e da ideologia dominante. Por isso, ela era considerada, ao mesmo tempo, produto e produtora de ideologias. Para Volóchinov (2017, p.91) qualquer produto ideológico é não apenas uma parte da realidade natural e social, mas também reflete e refrata outra realidade que se encontra fora de seus limites. “Tudo que é ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo. Onde não há signo também não há ideologia” (VOLOCHINOV, 2017, p.91). O domínio da ideologia coincide com o domínio dos signos; eles são mutuamente correspondentes. Ali onde um signo se encontra, encontra-se também ideologia. A palavra é o fenômeno ideológico par excelence. Qualquer palavra, desde que situada em enunciados concretos, é um signo ideológico, manifesta-se cercada de qualificações, vozes sociais e acentos apreciativos, assumindo a função ideológica de acordo com seu contexto (científico, estético, moral, religioso). Mas é na comunicação cotidiana onde ela mais é usual e, como material único para cada indivíduo de sua consciência individual, “[...] é necessária uma análise profunda e detalhada da palavra na qualidade de signo social, com o propósito de compreender a sua função como meio da consciência” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 100). Nenhum signo cultural está isolado se for compreendido e ponderado. A consciência sempre saberá encontrar uma aproximação verbal. Dessa forma, a palavra está presente em todo ato de compreensão e de interpretação. Tais concepções até hoje são amplamente referenciadas pelas diversas áreas do saber, pois sua abrangência teórica ultrapassa o campo da Crítica Literária e da Linguística, apontando perspectivas inovadoras também na Psicologia, Filosofia, Sociologia, História etc.

Segundo Brait (2012), embora o legado do Círculo bakhtiniano não tenha proposição formal de uma teoria ou modelo de análise, é possível encontrar a motivação para a criação de uma teoria/análise dialógica do discurso, apoiando-se em suas próprias concepções basilares de linguagem, em suas noções de construção e de produção de sentidos, que são inseparáveis dos sujeitos historicamente situados e envolvidos em relações discursivas, ressaltando a natureza social da linguagem. No centro das reflexões do círculo, alguns conceitos, como o de dialogismo, interação verbal, heterodiscurso, enunciado concreto, signo ideológico e acento apreciativo são considerados fundamentais para nossa pesquisa, pois, sobre esses conceitos, se ergue a concepção de linguagem do Círculo (MOLON; VIANNA, 2012, p. 146).

Ao tratar do enunciado (2017), Volóchinov critica a reflexão linguística, até então realizada, pelo fato de ela não ousar ir além dos problemas constitutivos do “enunciado monológico”:

Como pudemos observar, a linguística é orientada para um enunciado monológico isolado. A consciência interpretante passiva do filólogo se confronta com o estudo de monumentos linguísticos. Desse modo, todo trabalho acontece dentro dos limites de um enunciado. Entretanto, os limites do enunciado como um todo são percebidos de modo insuficiente, ou podem até mesmo passar despercebidos. Todo o estudo é dedicado à análise das ligações imanentes ao território interno do enunciado. Mas os problemas da, por assim dizer, política externa do enunciado permanecem fora da análise, tal como ocorre, por conseguinte, com todas aquelas ligações que extrapolam os limites desse enunciado como um todo monológico. É obvio que o próprio todo do enunciado, bem como suas formas, fica à margem do pensamento linguístico. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 193)

Para o autor, essa ideia era sustentada por teorias da expressão originadas exclusivamente no terreno idealista e espiritualista, que via na expressão “[...] algo que se formou e se definiu de algum modo no psiquismo do indivíduo e é objetivado para fora, para os outros com a ajuda de alguns signos externos” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 202). O autor afirma, no entanto, que o interior muda de aspecto quando a expressão se exterioriza, pois ele é obrigado a dominar o material exterior, o qual possui as suas próprias leis. Assim, aquilo que é vivido e expresso muda de aspecto e é forçado a buscar uma espécie de meio termo.

A vivência expressa e a sua objetivação exterior são criadas, como sabemos, a partir do mesmo material. Com efeito não há vivência fora da encarnação sígnica. Portanto, desde o início, não pode haver nenhuma diferença qualitativa entre o interior e o exterior. Mais do que isso, o centro organizador e formador não se encontra dentro (isto é, no material dos signos interiores), e sim no exterior. Não é a vivência que organiza a expressão, mas, ao contrário, a expressão organiza a vivência, dando-lhe sua primeira forma e definindo a sua direção. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 204)

O Círculo defende, portanto, o estudo da linguagem a partir da enunciação, para que nela se incorpore sua realidade concreta de acontecimento histórico, intersubjetivo e, portanto, dialógico. O dialogismo emerge, assim, como princípio fundamental que perpassa todas as noções bakhtinianas e que instaura uma contínua comunicação com o outro.

1.2 Dialogismo: princípio que perpassa as noções do Círculo Bakhtiniano

O conceito de dialogismo está embasado no pressuposto de que todo enunciado existe, necessariamente, em relação com outros enunciados. Para o Círculo, a língua é constituída substancialmente pela interação verbal e todo enunciado pertence a uma corrente de outros enunciados e tem uma dimensão axiológico-social em sua significação.

Efetivamente, o enunciado se forma entre dois indivíduos socialmente organizados, e, na ausência de um interlocutor real, ele é ocupado, por assim dizer, pela imagem do representante médio daquele grupo social ao qual o falante pertence. A palavra é orientada para o interlocutor, ou seja, é orientada para quem é esse interlocutor: se ele é integrante ou não do mesmo grupo social, se ele se encontra em posição superior ou inferior em relação ao interlocutor (em termos hierárquicos, se ele tem ou não laços sociais mais estreitos com o falante (pai, irmão, marido etc.). Não pode haver um interlocutor abstrato, por assim dizer, isolado; pois com ele não teríamos uma língua comum nem no sentido literal, tampouco no figurado. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 204)

Por se tratar de um fenômeno que vai além do diálogo e das formas de uma língua, o dialogismo traz o inacabamento da linguagem como característica constitutiva. Na comunicação discursiva pensada pelo Círculo, há um redizer que seleciona e dá novos tons àquilo que já se ouviu, tendo sempre em vista a resposta futura, ainda que esta não apareça.

Assim, concordamos com os estudos bakhtianianos quando ressaltam que a natureza da consciência é sociológica. A enunciação é apresentada como um produto de natureza social, determinada pelas condições sociais reais mais imediatas e entendida como resultado da interação entre indivíduos socialmente organizados. Portanto, todo enunciado se apoia em outros enunciados, “[...] falante e compreendedor jamais permanecem cada um em seu próprio mundo, encontram-se num mundo novo, num terceiro mundo, no mundo dos contatos; dirigem-se um ao outro em ativas relações dialógicas” (BAKHTIN, 2016, p. 113). O discurso, então, “[...] surge no diálogo como réplica viva, forma-se na interação dinâmica com o discurso do outro no objeto” (BAKHTIN, 2015, p. 52).

É importante também destacar a dinâmica do enunciado no tempo presente, que é manifesta na resposta, na réplica, na pergunta responsiva, na crítica, na adesão e, possivelmente, de outras maneiras, uma vez que ele é perpassado por diversos discursos de outrem, sendo, portanto, penetrado por avaliações, entonações e pontos de vista “alheios”. Faraco ressalta que “[...] todo enunciado emerge sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de significados e valores e é sempre um ato responsivo, isto é uma tomada de posição.” (FARACO, 2009, p. 25), ou seja, é sempre uma explanação de um ponto de vista sobre o contexto.

Todo texto que se manifesta e alcança outro é dialógico, portanto, seu estudo e sua compreensão não podem ser monologizados, isto é, tornado independente da corrente de interações que o constitui. Volóchinov (2017, p.225) afirma que “O enunciado, como tal, existe entre falantes. O ato discursivo individual (no sentido estrito da palavra ‘individual’) é um contradictio in adjecto”.

Dessa perspectiva, tem-se o que Bakhtin chama de enunciado concreto, o qual só pode ser compreendido se for levada em conta toda “[...] a interação em que se deu, diante de todas as implicações que possam se dar, e o do contexto mais amplo que ele acolher” (BRAIT; MELO, 2014, p. 77). O funcionamento normal da linguagem é, portanto, dialógico. Para nos referirmos a algum objeto, recorremos, irremediavelmente, a outros discursos sobre esse objeto, e nunca ao objeto “puro”. Estamos continuamente interagindo com “já-ditos”, conversando com outros enunciados, tomando por base outras palavras, para dizer a nossa palavra.

A comunicação, assim, ultrapassa a simples transmissão de mensagens, assumindo, então, o sentido antropológico de processo pelo qual o homem se constitui enquanto consciência no auto-reconhecimento. Pelo reconhecimento do outro numa relação de alteridade, o eu se constitui pelo reconhecimento do tu, “eu me vejo e me reconheço através do outro” (BEZERRA, 2014, p. 194). Nossas consciências, pela convivência e pela interação, representam um determinado universo, sendo marcadas pelas suas peculiaridades. A consciência do sujeito é a consciência do outro, pois está sempre aberta à interação com outras consciências e é só nessa interação que ele se revela e mantém sua individualidade. Essas consciências ou vozes sociais são plurais e integram o espaço enunciativo-discursivo.

A compreensão de um signo se dá, então, na sua aproximação com outros signos já conhecidos e essa corrente ideológica manifesta-se na consciência individual de cada sujeito. Para o Círculo, a consciência individual é elemento ativo possibilitado pelo histórico sociocultural do sujeito, pela maneira como ele é constituído pelo outro e, também, pela forma como ele é sujeito responsável por seus atos/ações/discursos. Dessa maneira, compreendendo-se o caráter socioideológico da consciência individual e, consequentemente, dos signos que a compõem, é possível reconhecer que, para que haja a compreensão de discursos entre dois indivíduos, não basta que eles se apresentem cara a cara, é fundamental que eles compartilhem conhecimentos, que estejam organizados socialmente, de modo que dominem um mesmo sistema de signos.

De acordo com Faraco (2009, p. 42), no que diz respeito à filosofia da ciência humana, pode-se afirmar que Bakhtin era adepto da noção de que a consciência individual é construída por meio da interação e que o universo da cultura tem prioridade sobre a consciência individual. Em decorrência desse universo cultural, que é tido como um grande e infinito diálogo pelo autor, é pertinente inferir que a compreensão não se trata da experiência psicológica da ação dos outros, mas sim de uma atividade dialógica que, a partir de um signo, produz outros e que, a partir de um texto, produz outros.

O sujeito, portanto, vê sua experiência como única e atribui seus atos às suas próprias ideias, sua consciência individual. No ensaio “Para uma filosofia do ato responsável”, Bakhtin (2010b) chama a isso de “evento único do Ser”. Assim, para um aluno, a escolha do curso de graduação lhe parece uma tomada de decisão individual, no entanto, em todo ato realizado, há o confronto de dois mundos: o da cultura e o da vida. A real experiência de seu ato tem duas direções opostas: a ideia de que a cultura pode ser dominada objetivamente e a de que sua vida é irrepetível e realmente experimentada. Cada ato particular e experiências vividas são momentos que constituem a vida do sujeito. Então, sua experiência em relação à tomada de decisão de cursar Licenciatura em Letras- Língua Francesa é única e indivisível na sua vida.

O tempo todo temos uma atitude avaliativa, a qual se manifesta a partir do universo de valores sobre os quais nos posicionamos, pois “[...] viver é assumir uma posição avaliativa a cada momento; é posicionar-se com relação a valores” (FARACO, 2009, p. 24). Estamos sempre emitindo e recebendo julgamentos. Nossa sociedade está repleta de enunciados, os quais “[...] emergem sempre e necessariamente num contexto cultural saturado de significados e valores”, estar em sociedade – viver em sociedade – é “sempre um ato responsivo, isto é, uma tomada de posição neste contexto” (FARACO, 2009, p. 25).

Na perspectiva bakhtiniana, cada ato de enunciação é concebido como composto por diversas vozes. Assim, cada ato é repleto de assimilações e reestruturações dessas diversas vozes, ou seja, cada discurso é composto de vários discursos. Para Bakhtin (2011, p. 300) “O enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas”.

Essas vozes dialogam dentro do discurso, não se tratando, apenas, de uma retomada, mas de um diálogo construído histórica e socialmente. A partir dele, se dá a construção da consciência individual do falante. Só pensamos graças a um contato permanente com os pensamentos alheios, pensamentos esses expressos no enunciado. Dessa forma, a consciência individual é resultante de um diálogo interconsciências.

Outro traço constitutivo do enunciado é o fato de ele ser produzido para alguém. Assim, todo enunciado tem um destinatário. Entretanto, o outro – interlocutor – não é necessariamente alguém totalmente determinado e o estilo do discurso é definido a partir de concepções que o locutor tem a respeito desse destinatário:

Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias – tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva do meu enunciado por ele. (BAKHTIN, 2011, p. 302)

O estudo do vocábulo, como também da oração isolada, não requer ato comunicativo, não suscita uma atitude de resposta por parte do outro. A oração descontextualizada não tem autoria e só quando proferida em uma situação discursiva passa a representar a intenção do falante. A palavra, igualmente, quando constitui um enunciado, pressupõe um ato de comunicação social, sendo, pois, a unidade real do discurso. Por outro lado, o interlocutor, ao ouvir e compreender um enunciado, assume uma atitude responsiva, quer dizer, ele tem a possibilidade de atuar de forma ativa no ato enunciativo. Entende-se, ainda, que o locutor não deseja uma reação passiva do interlocutor, uma vez que age no sentido de provocar uma resposta, atua sobre o outro buscando convencê-lo, influenciá-lo.

Em relação a ela [oração] pode-se ocupar uma posição responsiva, com ela se pode concordar ou discordar, executá-la, avaliá-la, etc.; no contexto, a oração carece de capacidade de determinar a resposta; ela ganha essa capacidade (ou melhor, familiariza-se com ela) apenas no conjunto do enunciado. (BAKHTIN, 2011, p. 278)

Ainda segundo Bakhtin (2011), o enunciado é resultado de uma memória coletiva, repleta de enunciados que já foram proferidos em outras épocas, em outras situações interacionais, as quais o locutor toma como base para realizar o enunciado do momento, para formular seu discurso.

Analisando as entrevistas no nosso corpus, restou-nos desvelar a construção ideológica subjacente aos sentidos dos signos “língua” e “cultura francesa”, nas respostas dos voluntários da pesquisa, e a sua influência na escolha da profissão desses sujeitos. Este estudo mostrou como o trabalho de divulgação da língua francesa pelas políticas linguísticas da França colaborou para a formação da teia dialógica das vozes sociais explicitadas nos dizeres desses discentes. Essas vozes se encontram vinculadas através de formas complexas – “ora coincidindo, ora divergindo” (BAKHTIN, 2002, p. 96) – a uma série de “estratificações sociais”: gênero, camadas etárias, classes sociais, correntes, escolas, círculos. Importante considerar que o espaço e o tempo também contribuem para essa estratificação, na medida em que definem situações e usos particulares.

A vida social viva e a evolução histórica criam, nos limites de uma língua nacional abstratamente única, uma pluralidade de mundos concretos, de perspectivas literárias, ideológicas e sociais, fechadas; os elementos abstratos da língua, idênticos entre si, carregam-se de diferentes conteúdos semânticos e axiológicos, ressoando de diversas maneiras no interior destas diferentes perspectivas (BAKHTIN, 2002, p. 96)

Bakhtin ressalta também que, para além da heterogeneidade desses princípios, existem as diversas forças que operam na interação social. O sujeito é, portanto, o produto da interação viva das forças sociais. Todas as linguagens do heterodiscurso, qualquer que seja o princípio básico de seu isolamento, são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas de sua interpretação verbal, perspectivas específicas objetais, semânticas e axiológicas. (BAKHTIN, 2002, p. 98)

Ao lado de forças centrípetas unificadoras de uma língua (as vozes sociais oficiais), que estão constantemente tentando impor uma ordem única no mundo, que é naturalmente heterogêneo, há, permanentemente, a pressão do heterodiscurso descentralizador, as chamadas forças centrífugas, que promovem a diversidade de linguagens (ou heterodiscurso), as quais, sem exatamente uma razão particular, enfrentam e refratam essa ordem. A comunicação é, portanto, enquanto relação de alteridade, o núcleo básico dos estudos do Círculo, que concebe o sujeito constituído numa relação de intersubjetividade. Assim, cada enunciação participa, ao mesmo tempo, de uma língua única, representada pelas forças centrípetas e, ao mesmo tempo, do heterodiscurso social e histórico representado pelas forças centrífugas.

Essas foças geram o processo dialógico, as relações dialógicas, em que as palavras não têm um começo ou um fim e são sempre dirigidas a um futuro, mesclando-se a um passado. Isso quer dizer que não há uma palavra que finalize o que se quer dizer de uma vez por todas. Tudo o que falamos é orientado sempre para uma espécie de resposta a um outro discurso e, ao mesmo tempo, tenta antecipar-se ao discurso futuro.

O discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do “já dito”, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo o diálogo vivo. (BAKHTIN, 2002, p. 89)

Compreendemos, portanto, que essas relações dialógicas, ou seja, o entrelaçamento de um discurso com os demais, penetra e influencia os níveis semânticos do objeto do discurso. Assim, em cada enunciado que compõe essa cadeia viva da linguagem, “[...] a palavra é carregada de conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial, tem um sentido, acompanhado por um acento de valor ou apreciativo” (CUNHA, 2009, p. 28), sendo esse acento de natureza social, orientado em relação ao outro.

Bakhtin nos adverte, nos Apontamentos de 1970/1971, publicados em Estética da Criação verbal (2011, p. 378), que a compreensão do texto e do outro pode e deve sempre ser melhor que a própria compreensão do autor em um exercício de exotopia. Para ele, a compreensão completa o texto, é sempre ativa, criativa e continua a criação, ampliando, com a nossa contribuição, a própria compreensão. Além disso, ainda de acordo com o autor, não se pode separar compreensão de avaliação. Nosso olhar é sempre avaliativo. “O sujeito da compreensão enfoca a obra com sua visão de mundo já formulada, de seu ponto de vista, de suas posições”. (BAKHTIN, 2011, p. 378). É com nossa visão de mundo que vamos em direção ao discurso do outro.

A linguagem, portanto, para nosso estudo, é um fenômeno não somente social e histórico, mas também ideológico. Dessa maneira, os elementos linguísticos adquirem sempre novos significados, em função dos contextos sociais e históricos concretos em que são enunciados. Essa visão dinâmica da linguagem tem uma relação direta com a construção do sujeito, que se constitui pela assimilação das palavras e dos discursos de outros.

2. Metodologia

A metodologia aplicada buscou fornecer os instrumentos necessários para a realização de uma pesquisa qualitativa da análise dos dados, na qual este estudo se insere. Adotamos, assim, a pesquisa de campo com uma abordagem metodológica qualitativa que visa a interpretar e descrever os dados do estudo em foco. Para coletar nossos dados, recortamos a realidade e selecionamos as informações necessárias e significativas. Para isso, fez-se necessário explicitar os meios de transformação dessas informações em dados e, dessa operação, dependeram as respostas possíveis às questões da pesquisa. Nosso procedimento investigativo teve, portanto, enfoque interpretativo. A fim de dar conta de aspectos da teoria do Círculo de Bakhtin, nos identificamos ainda com a perspectiva trazida por Freitas (2002), que propõe uma abordagem de pesquisa qualitativa com enfoque sócio-histórico, de modo que devemos considerar que todo conhecimento é construído na inter-relação entre indivíduos, sendo a produção de conhecimento durante uma pesquisa um processo socialmente compartilhado, implicando o desenvolvimento mútuo.

Utilizamos, portanto, como dados de análise, as transcrições das entrevistas produzidas por alunos do Curso de Licenciatura em Letras-Língua Francesa da UFPE. Esses sujeitos pertencem ao corpo discente dessa Universidade. Uma vez que lidamos diretamente com seres humanos, nossa pesquisa se encontra devidamente registrada na Plataforma Brasil e foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O desenvolvimento deste trabalho foi iniciado após o consentimento do CEP, que foi dado através da emissão de um Parecer Consubstanciado3 favorável e somente após isso, foram feitas as entrevistas que contaram com sujeitos que aceitaram participar voluntariamente de entrevistas de pesquisa qualitativa semiestruturadas individuais.

Os procedimentos de análise emergiram a partir da observação dos dados para a posterior delimitação das categorias bakhtinianas que poderiam embasar nossa pesquisa, dando-lhe um caráter indutivo. Escolhemos a entrevista como procedimento de coleta de dados, pois não a consideramos como uma simples técnica, mas uma interação que pressupõe o envolvimento no processo de interação entre pessoas, compreendemos também que a entrevista semiestruturada, pode, segundo Manzini (1991, p. 154), fazer emergir informações de forma mais livre e as respostas não estão condicionadas a uma padronização de alternativas, sendo, portanto, a maneira que achamos mais indicada para adquirir nossos dados.

Por fim, segundo Gilbert (1980), a coleta de dados realizada através da entrevista demanda uma atuação do pesquisador no desenvolvimento da interação com o entrevistado. A fim de melhor nos beneficiarmos da coleta de dados, fizemos uma entrevista piloto que nos guiou na melhoria de nossa postura enquanto entrevistador. Essa entrevista, embora tenha sido descartada, foi fundamental para nos ajudar a elaborar o roteiro dos temas e as perguntas.

3. Análise dos dados

Foram convidados para as entrevistas cinco estudantes, que denominamos Ing1, Ing2, Ing3, Ing4 e Ing5. Todos eram da mesma turma e já estavam no final do primeiro período do curso. Na grade curricular dessa fase do curso, há somente um componente específico - francês 1: fonética e fonologia4. Quando foram chamados para a entrevista, a monitora responsável pelo grupo já havia informado do que se tratava, o que fez com que alguns chegassem negando os estereótipos sobre a língua francesa. Embora isso tenha ocorrido, foi possível encontrar nos enunciados desses ingressantes a visão sócio-histórica que prevalece sobre a língua e cultura francesas.

No quadro abaixo, Ing1 fala o que pensa da França e atribui essas ideias a terceiros, trazendo palavras que remetem àquele país. Ing2, quando relata sua compreensão da cultura francesa, o faz na terceira pessoa: “as pessoas” e “o pessoal”. Ing4 segue o mesmo caminho de seus colegas.

Ing1: no geral, é o que você recebe externamente ouvindo o que as outras pessoas falam. Não porque/não exatamente assim:: mas, influências. Por exemplo, generalidades sabe? que você... ah! Torre Eifell, ah! baguete, macarron num sei o quê. Essas coisas assim... você fica... é né? Você tem essa visão da França. Ing2: Os perfumes, muito famoso né? Quando se quer saber qualquer coisa da França as pessoas sempre falam, perfume francês...escolhi a Torre sei lá, o monumento mais importante né? De Paris, aqui a França a Torre as comidas:: marcante né? A culinária francesa, o pessoal fala de chefes franceses e tudo. [...] em programas de tv no cotidiano mesmo as pessoas comentam sobre, em filmes também, muito, aparece muito sobre a cultura francesa, mais romantizada. Ing4: de perfume é porque:: toda vez que alguém fala de França sei que é muito pelos perfumes dela, tem muito essa cultura do perfume forte que eles fazem os melhores perfumes do mundo.
Table 1.

Para Ing1, uma visão “geral” foi adquirida de forma passiva por todos, revelando, com esse enunciado, que somos sujeitos inseridos sócio-historicamente que falam a partir de campos sociais específicos. Para isso, ela emprega o pronome de tratamento “você” genericamente e construções frasais que remetem a uma passividade do sujeito<você recebe: externamente ouvindo o que as outras pessoas falam > e trata essa aquisição como uma influência que não pode ser compreendida ou evitada. Ing2 e Ing4 também seguem o mesmo caminho, sem se dar conta da dialogização das várias vozes que relacionam os signos Paris, Torre Eiffel, glamour, perfumes, civilidade etc a esse tema, atribuindo a “pessoas” e o “pessoal” suas impressões sobre a cultura francesa: <pessoas sempre falam, perfume francês>, <o pessoal fala de chefes franceses e tudo>, <as pessoas comentam>. A criação ideológica é sempre social e histórica e esses sujeitos o fazem sem perceber que todo discurso é constituído a partir de outro discurso, como resposta, tomada de posição em relação a outro discurso. Isso quer dizer que todo discurso é permeado, atravessado, habitado pelo discurso do outro e por isso heterogêneo.

É relevante ver Ing1, Ing2 e Ing4 aferirem aos signos Tour Eiffel, baguete, macarron, culinária e perfume ênfase valorativa, quando atribuem a essas palavras ideias de generalidades que remetem, segundo eles, o sujeito à visão estereotipada da cultura francesa <você tem essa visão da França>, <fala de França sei que é muito pelos perfumes [...] tem muito essa cultura do perfume>, <Os perfumes, muito famoso né? >, <a Torre as comidas:: marcante né? >, <A culinária francesa>. Isto mostra que a significação dos signos tem sempre uma dimensão axiológica e nossa relação com o mundo é atravessada de valores. Esses enunciados deram ao signo “cultura francesa”, a partir de uma convenção social, um acento apreciativo, historicamente construído e reiterado até sua estabilização. A compreensão de cultura francesa, assim, acontece quando a aproximamos de outros signos já conhecidos e essa corrente ideológica se manifestará na consciência individual de cada sujeito. “A consciência individual se nutre dos signos, cresce a partir deles, reflete em si a sua lógica e suas leis”. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 97)

No quadro abaixo, Ing2 e Ing4 trazem uma supervalorização do povo francês e de seus hábitos.

Ing2: (ing2 havia visitado a França) achei bem atrativo, coisa de outro mundo, porque aqui no Brasil tem muito:: não sei muito, não:: pobre, mas, não tem uma valorização, acho que isso. [PESQUISADORA: Valorização de que?] de cultura, qualidade de vida, não tem [PESQUISADORA: e aí na França tem?] não nem todos, mas grande parte. O pessoal é tudo escolarizado, pelo que eu sei, uma grande parte no caso, aqui é muito...menor [PESQUISADORA: hum, hum] [...] num sei se é a cultura. __________________ Ing4: Eu vi muito e eu acho que vi em vários filmes de franceses que eu assisto como retrata é a educação deles, porque por mais que ele seja [...] você vê que para uma pessoa francesa a educação não é apenas, não é um::: uma coisa a mais ela é obrigação sua ser educada, por mais que você esteja com raiva e não goste da pessoa, você tem por obrigação ser educada com ela, que é uma coisa natural deles[...] a cultura francesa, eu acho muito bonita e eu acho a língua francesa bonita, ela é melodiosa, ela é toda métrica, às vezes parece que quando você tá falando, parece sempre que você está recitando um poema [...] e também tem a questão das comidas que sempre que principalmente nesse:: desenho existe um personagem que gosta muito de queijo e é muito engraçado porque ele parece conhecer todos os tipos queijos que tem na França e ele adora isso e também tem a questão da outra personagem que ela é uma estilista, como a França é conhecida como um dos países, o país da moda, então essa personagem ela tá na França e querer que essa, esse sonho de ser estilista também:: é uma coisa que é realmente muito a França. Tem até um filme da Barbie da moda e magia que:: assim que ela diz que vai passar o dia na França a primeira coisa que ela pensa eh... eh... em desfiles, em roupas e... coisas chiques da França. Tem uma parte que é na França, mas só sei que a parte que a gente lembra mais que é:: essa coisa glamorosa que a França tem.
Table 2.

No excerto acima, Ing2, comparando o Brasil com a França, coloca a França como uma < coisa de outro mundo> e quando tenta explicar o que é diferente, exclui a pobreza e ressalta a valorização francesa de sua cultura e sua qualidade de vida. Para ing2, na França, <o pessoal é tudo escolarizado>. Vê-se, mais uma vez, a estabilização de sentidos e a construção de um senso comum em torno da expressão cultura francesa.

Ing4 ressalta o que sabe sobre o povo francês a partir do que viu em filmes e desenhos e diz < Eu vi muito e eu acho que vi em vários filmes de franceses que eu assisto como retrata é a educação deles, porque por mais que ele seja [...] você vê que para uma pessoa francesa a educação não é apenas, não é um::: uma coisa a mais ela é obrigação sua ser educada> Ing4 reforça que as características (educação) que ela admira nos franceses é retratada em “vários filmes franceses” e afirma que “para uma pessoa francesa a educação é obrigação”, o que vai de encontro a sua afirmação seguinte < é uma coisa natural deles>. Quando Ing4 compara o Brasil com a França e traz a questão da educação, como sendo natural dos franceses, seus enunciados tomam um sentido e trazem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo: no Brasil, não é nem obrigação, nem é natural ser educado.

Ing4 continua falando sobre o que sabe de franceses e traz, a partir do que ela viu em desenhos animados, o que lhe é mostrado: <e também tem a questão das comidas[...]um personagem que gosta muito de queijo >, < tem a questão da outra personagem que ela é uma estilista, como a França é conhecida como um dos países, o país da moda> < Tem até um filme da Barbie da moda e magia que:: assim que ela diz que vai passar o dia na França a primeira coisa que ela pensa eh... eh... em desfiles, em roupas> Ing4 termina resumindo < coisas chiques da França. [...] essa coisa glamorosa que a França tem.> a transformação dessas palavras, nesses filmes, em produtos ideológicos só ocorre porque eles adquiriram, na nossa sociedade, um sentido para além de sua existência material, quando passam a significar cultura francesa para alguém, quando são revestidos de sentido simbólico, de um valor social.

Como vimos anteriormente, a França, após a Segunda Grande Guerra, investiu fortemente em seus valores nacionais. Esse projeto se deu internamente e externamente, através de intervenções políticas. Esses valores são até hoje exaltados na mídia e difundidos pelo mundo todo. Os desenhos animados aos quais Ing4 se refere são de canais da televisão fechada, mas muitas crianças brasileiras têm acesso também em canais abertos nacionais. Ing4 diz ter tido suas primeiras impressões sobre a cultura e língua francesas através deles o que lhe passa a ideia estereotipada da cultura francesa. Vê-se que, através dessas mídias, os signos que remetem à cultura francesa ganham uma significação, uma ênfase valorativa, que congelam a ideia de cultura francesa de chique/glamorosa.

Ing4 reproduz essas vozes sociais quando chama a cultura e língua francesa de bonitas < a cultura francesa, eu acho muito bonita e eu acho a língua francesa bonita> atribuindo à língua o status de poesia < ela é melodiosa, ela é toda métrica, às vezes parece que quando você tá falando, parece sempre que você está recitando um poema >. Ing4 e Ing2, quando trazem suas impressões sobre a cultura francesa, o fazem dentro de um contexto cultural cheio de valores e significados. A apropriação por vários sujeitos de palavras que remetem à moda, boa culinária, civilidade, nos permite articular a ideia glamour francês ao dialogismo vigente na nossa sociedade.

Podemos ver, através dos enunciados dos alunos, que, mesmo sendo uma visão estereotipada da França, a difusão dos valores construídos nesses espaços é garantida pela ampla circulação em sites, filmes, músicas. Em cada fala dos alunos, o que vemos é uma réplica de uma ideia, cujos eixos centrais são língua e cultura francesas. Podemos ver que, quando os alunos querem se referir à língua e à cultura francesas, recorrem, irremediavelmente, ao discurso comum à França, e nunca ao objeto “puro”, pois o signo reflete e refrata a realidade vivenciada.

No quadro seguinte, Ing3 fala de sua percepção sobre os estereótipos sobre a França e revela que achava que estudar francês era reservado à elite.

Ing3: do monumento (TORRE EIFELL) que é muito caricata e também por causa do cenário que é muito bonito e a França quando a gente ouve assim parece um lugar muito bonito. Perfumes e porque remete muito à França essa coisa de moda essa coisa de...eh... vestuário, cosméticos, tem muito essa ideia de beleza da França muito isso que... ouço bastante que... na época assim em Paris usava muito perfume porque as ruas fediam bastante (rs) tem todo esse histórico. Isso aqui é uma imagem tão cartunizada da França que é a torre Eiffel em frente de uma sopa, queijo e vinho e a bandeira da França atrás que é basicamente símbolos assim ícones da França. parecia que era inalcançável:: a ideia da cultura francesa da língua francesa fosse algo:: inalcançável, assim , para eu também para as pessoas do meu contexto social eu sou do subúrbio de paulista e na aula assim a gente sempre pensava que o francês era uma língua chique e pobre não aprendia francês, sabe?
Table 3.

A percepção de que ideias estereotipadas fazem parte de discursos alheios sobre a cultura francesa é explicitada por Ing3, que diz <é muito caricata e também por causa do cenário que é muito bonito e a França quando a gente ouve assim parece um lugar muito bonito. Perfumes e porque remete muito à França essa coisa de moda essa coisa de...eh... vestuário, cosméticos, tem muito essa ideia de beleza da França muito isso que... ouço bastante>, ganhando uma ênfase valorativa que o faz tomar uma posição quanto ao que ele diz: <na época assim em Paris usava muito perfume porque as ruas fediam bastante (rs) tem todo esse histórico>. É interessante ressaltar que esse “histórico” surge como resposta a uma supervalorização de um produto francês, imagem amplamente difundida pela França com o objetivo de se manter no cenário político mundial. Então Ing3 continua <Isso aqui é uma imagem tão cartunizada da França que é a torre Eiffel em frente de uma sopa, queijo e vinho e a bandeira da França atrás que é basicamente símbolos assim ícones da França. > Os signos ícones (Torre Eiffel, sopa, queijo e vinho - culinária francesa - e a bandeira da França) são listas de palavras que, quando associadas à França, ganham um valor de glamour, transformando-as em ícones franceses, ou seja, estereótipos.A expressão “cultura francesa” é sempre analisada enquanto lugar de conflito de pontos de vista distintos sobre a língua francesa, um conflito ideológico do atual e antigo, para ricos ou pobres, cuja natureza ideológica é excludente. Vale realçar que os diferentes pontos de vista que ali se entrecruzam não são individuais, mas constituem juízos de valor social, pois “[...] qualquer produto ideológico é não apenas uma parte da realidade natural e social, mas também reflete e refrata outra realidade que se encontra fora de seus limites.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 91) e essa ideologia não é de domínio do indivíduo, ela se cria no processo de interação discursiva.

É importante ressaltar que, em alguns enunciados, ouvimos vozes que tentam “desconstruir” sentidos estabelecidos, observando o tempo verbal do pretérito do imperfeito. Vejamos nos enunciados a seguir: < parecia que era inalcançável:: a ideia da cultura francesa da língua francesa fosse algo:: inalcançável, assim , para eu também para as pessoas do meu contexto social eu sou do subúrbio de paulista e na aula assim a gente sempre pensava que o francês era uma língua chique e pobre não aprendia francês, sabe? > Ing3 reporta um discurso cujas origens remontam ao século passado, em que filhos de burgueses aprendiam francês, estudavam na França e voltavam trazendo seus ideais e costumes. Por muito tempo, a Língua Francesa era estudada pela elite pernambucana. Porém, vemos a negação desse discurso por Ing3, que é ressaltada através da utilização do pretérito imperfeito, mostrando-nos que é possível ver na materialidade linguística uma indicação de mudança social. <a gente sempre pensava que o francês era uma língua chique e pobre não aprendia francês, sabe? > Aqui podemos perceber as diferentes vozes, que atravessam e constituem o sujeito. Essas vozes dissonantes em seu discurso representam o dialogismo social e histórico deste sujeito que, por ser situado, apresenta um olhar diferente sobre quem pode ou não aprender francês.

P: E a expectativa SER professor de francês? O que você pensa? Como você acha que vai ser? Tenta falar um pouquinho disso. Ing3: Espero que seja realmente uma oportunidade para que eu possa trazer o francês e tirar ele desse patamar de que é uma língua que só certas pessoas podem aprender. Eu quero ser um professor que seja influente para todas as pessoas. Sabe? Eu quero ser eu quero socializar o ensino da língua francesa. Que a língua francesa tire essa máscara de que é uma coisa inalcançável, como eu tinha essa concepção. Essa é a expectativa que eu tenho é de ser um professor para todos, não só para um grupo select, não quero que o francês seja percebido dessa forma, que pode ser aprendido por qualquer pessoa.
Table 4.

Quando questionado sobre a profissão, Ing3 diz que quer ser professor de francês para dar oportunidade a todos de aprender essa língua <realmente uma oportunidade para que eu possa trazer o francês e tirar ele desse patamar de que é uma língua que só certas pessoas podem aprender. > Ing3 mostrou compreender o enunciado da pesquisadora, orientando-se em relação a ele e encontrou “para ele um lugar devido no contexto correspondente” (VOLOCHÍNOV, 2017, p. 232). Ao afirmar querer “socializar” a Língua Francesa < eu quero socializar o ensino da língua francesa > Ing3 revela seu desejo de, como professor, questionar a imagem chique, culta e reservada à elite da LF, propondo um outro lugar a essa língua <quero que o francês seja percebido dessa forma, que pode ser aprendido por qualquer pessoa. >, reavaliando seu sentido, “alterando o seu lugar na unidade do horizonte valorativo” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 238), permitindo à sociedade um sentido novo que se revela em um antigo com o objetivo de se opor a ele e o reconstruir.

4. Considerações finais

Adotamos a perspectiva teórica do Círculo bakhtiniano, por entendermos ser relevante o caráter sócio-histórico e dialógico da linguagem. Compreendemos que um aluno, ao escolher um curso de graduação, toma essa decisão como individual, no entanto, em todo ato realizado, há o confronto de dois mundos: o da cultura e o da vida. A real experiência de seu ato tem duas direções opostas: a ideia de que a cultura pode ser dominada objetivamente e a de que sua vida é irrepetível e realmente experimentada. Cada ato particular e experiências vividas são momentos que constituem a vida do sujeito. Então, sua experiência em relação à tomada de decisão de cursar Licenciatura em Letras- Língua Francesa é única e indivisível na sua vida. No entanto, há outros seres humanos e tudo que está situado fora de mim está correlacionado com eles. Como o sujeito não se encontra nessas vidas, para interagir, ele se adequa a um papel.

De acordo com o relatório da PROPLAN (UFPE), citado na introdução, o Curso de Licenciatura em Letras-Língua Francesa tem uma evasão que se mantém acima da média dos outros dessa Universidade, o que nos fez levantar a hipótese de que, ao escolher o curso, o aluno leva em consideração a representação social da língua francesa. Por isso, a necessidade de trazer a história de formação e representação sobre a LF, não somente em nossa sociedade, mas para o mundo, por nos afiliarmos à Análise Dialógica do Discurso para atingir o nosso objetivo de pesquisa que foi descortinar, através dessa teoria, as vozes sociais presentes no discurso de discentes do curso de Licenciatura em Letras - Língua Francesa acerca da maneira como eles enxergam a língua e cultura francesas. A melhor compreensão da historicidade da Língua Francesa, de suas representações sociais e o entendimento de como elas surgem e moldam os discursos dos discentes, influenciando-os na escolha da profissão, conduziram-nos à realização desse estudo.

Nossas análises confirmaram nossa hipótese de que a escolha do curso se deve ao ideal imaginário sobre a LF “chique” e “culta”, amplamente difundido em nossa sociedade. Isso foi possível ver através da ADD, que mostrou que a ideologia em torno do signo França não poderia ser estudada desvinculada da realidade prática dos discentes. Foi preciso situá-lo nos processos sociais globais que lhes dão significação, o que deu a cada enunciado dos entrevistados “um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 272), provando que todo discurso carrega em si respostas/valores de outros discursos já proferidos, mesmo que estes não sejam nitidamente perceptíveis. Assim, enunciados deram ao signo “cultura francesa”, a partir de uma convenção social, um acento apreciativo historicamente construído e reiterado até sua estabilização, como sinônimo de língua de elite, bela, chique etc. Em vista desse resultado central, podemos dizer que a presente pesquisa contribui para o entendimento da grande evasão atribuída ao curso de licenciatura em Letras-Língua Francesa, pois as análises demonstram, como já apontado, que muitos tomam a decisão baseados em um ideal de língua e cultura francesas, o que, segundo Fernandes (2021), faz com que muitos desses discentes tomem “a decisão de entrar no curso sem refletir sobre o seu futuro profissional, abandonando, por conseguinte, facilmente essa escolha” (FERNANDES, 2021, p.133). Não obstante, vimos também a grande troca acadêmica existente entre IES brasileiras e países francófonos. Na UFPE, por exemplo, a França está em terceiro lugar no ranking de países visitados por nossos pesquisadores, mostrando que o investimento na carreira do professor de francês no Ensino Básico brasileiro, aliado a um projeto de internacionalização de nossas Instituições e integrado ao movimento Ciência Aberta, seria bastante relevante para a sociedade.

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How to Cite

FERNANDES, O. P. P.; RODRIGUES, S. G. C. Culture, poésie, Paris, glamour: une analyse dialogique des voix sociales qui constituent les discours des étudiants du Cours de Lettres-Français sur la langue et la culture françaises. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e560, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id560. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/560. Acesso em: 28 mar. 2024.

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