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Theoretical Essay

Actorialization, thematization, and figurativization in the discourse of domestic violence: the construction of meanings from the victim’s perspective

Iara Cristina de Fátima Mola

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https://orcid.org/0000-0003-4761-9030


Keywords

Domestic Violence
Discourse Semiotics
Generative Course of Meaning
Discoursive Level
Discursivization Procedures

Abstract

This paper aims to understand how the discourse produced by a woman victim of moral and psychological domestic violence placed under protective measures is configured, in an actorialization-thematization-figurativization context. Adopting as theoretical and methodological tools the studies in the field of Discourse Semiotics, this research focused on the discursive level of the generative course of meaning of a testimonial posted on an Instagram page dedicated to survivors of abuse. According to what the analysis allowed us to observe in relation to the effects of meaning produced by the utterer in the discursivization procedure by actorialization, her then husband not only "directs" her throughout the narrated process, but he “controls” her. This makes her mobilize her own will-to-do and must-do no longer for the sake of the maintenance of her family, but for the sake of her freedom as a woman. Regarding how meaning gains form in this discourse, it was found that its micro-themes can be summarized in two main sets: that of the woman who “needs” to get married because she got pregnant and that of the woman who seeks freedom. This thematic course is figurativized through a series of occurrences that portray the very cycle through which domestic violence is engendered – from abusive practices often socially relativized (such as verbal aggression) to those that, becoming embodied, intensify and constitute themselves as even more contumacious forms of violence (such as feminicide, although this was not the case in the text analyzed here).

Considerações Iniciais: um breve resumo sobre o contexto, os objetivos e o corpus desta pesquisa

Conforme dados publicados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 (FÓRUM BRASILEIRO..., 2020), o ano de 2019 foi marcado por um novo aumento nos indicadores de violência doméstica. Somente no que se refere às denúncias de lesão corporal dolosa em decorrência desse tipo de crime, foram registrados 266.310 novos casos nesse período – 5,2% a mais do que o número contabilizado pelo mesmo anuário em relação ao ano de 2018. Na prática, os números assinalados pelo documento revelam que, em 2019, uma mulher foi agredida fisicamente a cada dois minutos – e, na esmagadora maioria das vezes, agredida pelo seu então companheiro ou ex-companheiro.

De acordo com a Lei nº 11.340/2006, já mais amplamente conhecida como “Lei Maria da Penha” (BRASIL, 2006), a violência doméstica e familiar contra a mulher se configura como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Nela estão previstos, portanto, cinco tipos de violência: físico, psicológico, moral, sexual e patrimonial. Contudo, conforme o contexto social e boa parte das pesquisas voltadas à violência contra a mulher permitem observar, ainda hoje o entendimento do que vem a ser o crime de violência doméstica se manifesta quase sempre, direta ou indiretamente, associado ao de violência física – quando não ao próprio feminicídio.

Exemplo disso, aliás, pode ser verificado no Atlas da Violência de 2019, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em cuja seção intitulada “Violência Contra a Mulher” consta exclusivamente o crescimento de homicídios femininos nos últimos anos. As únicas três passagens em que a expressão “violência psicológica” foi assim registrada no documento correspondem aos trechos que integram a sua seção 6: “Violência Contra a População LGBTI+” (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019).

Nesse cenário, conquanto o próprio número de casos (notificados) de violência física mais do que justifique a ênfase dada a esse tipo de violência como um crime a ser combatido em caráter de urgência – e, em boa medida, explique também essa equivalência entre violência doméstica e violência física –, uma pesquisa empreendida pelo DataSenado, por exemplo, revelava, já em 2015, o aumento no número de registros de violência psicológica contra mulheres (48% em 2015 contra 38% em 2013). Ainda assim, esse continua sendo um tipo de violência ao qual geralmente ainda se confere menos visibilidade, não obstante o fato de ele ter logrado alguma notoriedade social ao longo do ano de 2020, quando o atendimento às prescrições sanitárias no combate à disseminação da Covid-19, por meio de medidas de isolamento social, impôs às mulheres vítimas de violência doméstica o convívio ainda mais intenso e duradouro junto dos seus agressores (FÓRUM BRASILEIRO..., 2020). Com o aumento dos índices de violência doméstica somente no primeiro semestre de pandemia no Brasil, os tipos de violência moral e psicológico passaram a ganhar um pouco mais de evidência, até mesmo nos veículos midiáticos de grande alcance populacional no país, muito embora o entendimento de violência doméstica como equivalente de violência física ainda prepondere sobre os demais tipos de violência aí contemplados.

Observada sob outra perspectiva, no que tange à sobreposição da discussão em torno da violência física à discussão em torno das violências moral e psicológica, importa ainda considerar a possibilidade (e/ou a probabilidade) de que ela se dê não apenas em função dos altos índices de lesão corporal dolosa registrados anualmente (em detrimento de um baixo índice de registros dos outros tipos de agressão, ou mesmo da ausência desses registros, na maior parte das vezes), mas também em virtude de um aspecto anterior que lhe é peculiar. Isto porque, diferentemente das violências moral e psicológica, que provocam danos circunscritos à dimensão do “não tangibilizado” (do não “visível” e, por isso mesmo, do “não comprovável” em si mesmo), a violência física provoca danos “tangíveis” (“visíveis” e, por isso mesmo, “comprováveis” no corpo da vítima). Logo, não é possível “relativizar muito” sobre ela – ao contrário do que frequentemente se acompanha em relação às outras duas, especialmente quando muitas dessas práticas, situadas nos campos do moral e do psicológico, são socialmente normalizadas, inclusive pela própria frequência com que se dão.

Por definição, a violência moral “é considerada qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”, ao passo que a violência psicológica “é considerada qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões” (BRASIL, 2006). Entre as ações elencadas pela Lei Maria da Penha como relativas à violência moral, constam: acusar a mulher de traição, emitir juízos morais sobre a conduta dela, fazer críticas mentirosas a seu respeito, expor a sua vida íntima, rebaixá-la por meio de xingamentos que incidem sobre a sua índole, desvalorizá-la pelo seu modo de se vestir. Entre aquelas relativas à violência psicológica, estão ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento (proibi-la de estudar e viajar ou de falar com amigos e parentes), vigilância constante, perseguição contumaz, insultos, chantagem, exploração, limitação do direito de ir e vir, ridicularização, tirar a sua liberdade de crença, distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade (gaslighting) (BRASIL, 2006).

Das condutas listadas no que se refere a esses dois crimes, identifica-se, então, uma série de ações que, quando não se manifestam também por meio da linguagem verbal, manifestam-se exclusivamente por meio da linguagem verbal. Entretanto, apesar de a linguagem se configurar como um dos recursos ou como o único recurso por meio do qual essas condutas de violência se concretizam, a esmagadora maioria dos estudos que se detêm sobre essa problemática não se situa no campo das Letras e/ou da Linguística.

Dado esse contexto, compondo um projeto mais amplo de pesquisa que se volta ao discurso da violência doméstica a fim de identificar as regularidades linguístico-discursivas por meio das quais ele se constitui na perspectiva da vítima, bem como dando continuidade a um estudo anterior no qual, de maneira mais abrangente, se buscou depreender os efeitos de sentido dos procedimentos de actorialização, espacialização e temporalização do texto aqui retomado (MOLA, 2021b), o presente trabalho tem por objetivo geral compreender como, no conjunto actorialização-tematização-figurativização, se configura o discurso produzido no ano de 2019 por uma mulher vítima de violência doméstica moral e psicológica, em decorrência da qual lhe adveio a necessidade de medida protetiva.

Mais especificamente, por meio da análise desses três procedimentos de discursivização do nível discursivo do percurso gerativo de sentido consoante a teoria situada nos estudos oriundos da Semiótica Discursiva, especialmente a partir de Barros (2005, 2016) e de Fiorin (1996), este artigo visa às respostas destas duas perguntas: i) quais efeitos de sentido podem ser depreendidos do discurso da enunciadora ao longo do procedimento de actorialização, tanto no que se refere à construção de si mesma como ator discursivo quanto no que diz respeito à construção do seu agressor na reconstrução do contexto e da efetiva prática de violência sofrida, principalmente a partir dos empregos dos pronomes pessoais “eu” e “ele”?; e ii) indissociavelmente a esses efeitos de sentido depreendidos da análise da actorialização, como o sentido do texto se concretiza nos percursos de tematização e de figurativização desse discurso, resultando na manifestação da ideologia dessa enunciadora?

Uma vez já definido o ferramental teórico-metodológico que viabiliza o desenvolvimento desta pesquisa, o corpus do qual ela se utiliza corresponde a um depoimento que aqui é também reportado como “texto”, uma vez que é no texto que a Semiótica Discursiva encontra seu objeto de estudo e dele que procura explicar os sentidos, bem como os mecanismos e procedimentos que constroem esses sentidos tanto mediante a organização linguístico-discursiva do texto quanto por meio das relações que ele estabelece com a sociedade e a história (BARROS, 2016).

O texto em questão se encontra publicado numa página do Instagram intitulada “Sobrevivendo ao Abuso”, em cuja apresentação se lê a seguinte inscrição por parte da sua idealizadora: “Sobrevivente de um relacionamento abusivo de quase 20 anos, meu objetivo é levar ajuda, conforto e conhecimento a quem passou ou passa por isso!” (SOBREVIVENDO AO ABUSO, 2019). Em suma, trata-se de um espaço virtual que, entre outros conteúdos, publica depoimentos que lhe são enviados por mulheres que têm em comum o fato de serem vítimas de um ou mais tipos de violência executados pelos seus próprios companheiros.

Seguido de uma legenda, o texto selecionado para este estudo, datado de 4 de outubro de 2019, foi o primeiro publicado pela responsável da página já referida, criada em 1º de agosto de 2019. O texto da “seguidora” – doravante identificada como “mulher” e/ou como “Maria”, por se tratar de um dos nomes femininos mais comuns no Brasil – foi divulgado por meio de nove imagens, todas elas correspondentes a capturas de tela do celular feitas pela idealizadora, que cuidou de apresentar a autora do relato sem mencionar o seu nome ou apelido.

Quanto ao conteúdo desse depoimento, especificamente, ele segue fielmente reproduzido no quadro 1, no qual, para efeito de melhor organização da análise e até mesmo de melhor aproveitamento do espaço, o texto foi dividido em quatro partes. Como critério dessa divisão, foram considerados os momentos do texto nos quais Maria se refere às separações (aos afastamentos/rompimentos) do casal.

PARTE 1: até o primeiro rompimento PARTE 2: até o segundo rompimento
Então fiquei casada 5 anos .. precisei casar porque fiquei grávida então foi algo meio forçado não deu pra detectar no namoro pois não teve .. eu já percebi isso no 1 mês mas eu já estava sem saída eu não tinha opção e outras pessoas falavam [ ] não casa só porque está grávida mas eu queria ter a família .. achei que o que eu via era coisas da minha cabeça e ia mudar .. enfim casamos moramos juntos e tudo piorou minha gravidez foi uma tristeza sem fim ele me agredia verbalmente bebia não se importava comigo , eu tinha que levantar grávida no meio da madrugada pra sair com ele porque não queria que ele colocasse o dinheiro todo fora .. roupas pro bebê ele não comprava . Enfim um terror depois veio as drogas quase 1 ano lutando porque eu não queria deixar ele porque eu não queria ver o pai do meu filho perdido nas drogas e eu queria salvar ele disso .. sai de casa voltei pro meu estado eu morava em SC mas minha família era de RS . Sai de casa com meu filho e eu saí com a roupa do corpo Na mala so tinha 2 calcinhas .. passou 3 meses ele vendeu tudo que tinha e veio embora pra RS onde eu morava porque eu disse que nunca mais voltava pra RS com ele porque lá eu era sozinha não tinha família . Então ele sempre com ciúmes ele cronometrava meu tempo ele me espiava na rua .. duvidava das minhas palavras possessivo sempre dizia que eu não valia nada e que eu sempre traia ele Monitorava meu celular eu fiquei mais de 1 ano sem celular tinha que ir no orelhão ligar pra minha mãe e dizer Mãe tô viva porque ele não deixa eu ter ele quebrava se talvez passa-se na cabeça dele que eu tinha alguém Ele tinha ciúmes até dos velhinhos de 70 anos ele dissia que de mim esperava tudo porque eu não me dava o valor .. No último ano então pensei vou casar no Papel ele vai se sentir mais seguro .. em agosto de 2018 casamos com cerimônia e papel passado Piorou tudo .. dae tudo desceu por água a baixo . Ele começou a sair começou a ter mais amizades de trabalho .. somos evangélicos tínhamos cargos na igreja ele cantava no louvor e eu sempre soube que ele estava lá porque queria se aparecer e não servir a Deus A gente se separou em Janeiro
PARTE 3: até o terceiro rompimento PARTE 4: desde o terceiro rompimento
ele foi embora porque eu não aguentava mais ele saia voltava quando queria não me respeita a mais usava do dinheiro de casa .. saiu da igreja. E eu continuei mas ele não . Decidi sair de casa deu 3 meses ele voltou ficou até bem até junho tudo piorou de novo mais agressões mais perseguição comecei a trabalhar ele piorou ia no meu trabalho monitorava meu tempo entra casa e trabalho .. me revistava o corpo dizia que eu tinha celular escondido na vagina .. ia ver meu xixi na privada se não tinha porra .. eu tinha que tomar banho de porta aberta porque ele dizia que eu me masturbava pensando em outro .. Compramos um carro .. ele comprou porque não em perguntou se eu achava certo em julho . Já começou mais brigas . Em agosto pedi pra ele sair de casa ! Ele disse que ia sair .. dia 30/8 eu fui a outra cidade fazer um treinamento da empresa quando voltei ele tinha tirado as coisas de dentro de casa pegou nosso carro e voltou pra SC. Morar com a mãe , eu só soube disso no outro dia pela vizinha Que me contou que ele disse que ia embora porque lá não precisava pagar aluguel .. até às Ok vai com Deus Deu 7 dias ele postou que já estava com outra daqui da minha cidade e ela estava lá Mais 5 dias eles pega o carro volta pra minha cidade com ela . Uma mulher bem de vida enfermeira tem sua casa seu carro e cargo bom .. eles volta pra cá . 1 semana ela tira ele de casa e manda passear resume ele ta morando aqui num quartinho sem emprego sem poder ver o nosso filho pois coloquei medida protetiva pra nós 2 . Eu não entendi tudo aquilo porque tanto ciúmes porque tanta coisa se ele tinha acesso a tudo meu Celular e-mail era juntos face juntos Eu fazia de tudo pra ele se sentir bem mas era sufocante Sabe que ninguém acreditava Ninguém Eu tive que dar meu celular pro nosso pastor ver porque eu contando ninguém acreditava
Table 1. Quadro 1 – Fiel reprodução do conteúdo do texto elaborado por Maria. Fonte: Sobrevivendo ao Abuso, 2019.

Quanto à sua organização, finalmente, o artigo se divide em duas outras seções a partir destas primeiras considerações. Quanto à sua organização, finalmente, o artigo se divide em duas outras seções a partir destas primeiras considerações. Na segunda (1), encontra-se a síntese do arcabouço teórico que sustenta este estudo e que, com vistas a um melhor aproveitamento, é apresentado concomitantemente à análise do texto, desdobrando-se em duas novas partes, relativas, respectivamente, ao procedimento de actorialização (1.1) e aos procedimentos de tematização e figurativização (1.2). Na terceira e última (2), estão assinaladas as considerações finais, nas quais também são registrados os encaminhamentos vislumbrados para a continuidade deste projeto, ao que se seguem as referências que viabilizaram esta pesquisa.

Ao final, a partir dos aspectos evidenciados com base na configuração discursiva aqui analisada, espera-se que, ao discutir um problema social cuja gravidade tem sido cada vez mais acentuada, sobretudo no momento atual, este estudo possa contribuir não apenas para fomentar muitos outros que também se debrucem sobre esse tema na grande área da Linguística e das Letras, culminando em apontamentos que sugiram uma perspectiva crítica e inovadora no campo da Linguística e das suas interfaces, como também para – quiçá – estimular que medidas de políticas públicas de combate à violência doméstica possam vir a ser efetivamente pensadas a partir da ampliação das competências linguístico-discursivas entre as mulheres.

1. Entre os aparatos teórico-metodológicos e os resultados da análise: os sentidos depreendidos do nível discursivo do percurso gerativo de sentido

Situado no campo da Semiótica Discursiva, desenvolvida por A. J. Greimas e pelo Grupo de Investigações Sêmio-Linguísticas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, o percurso gerativo de sentido diz respeito à forma como o plano do conteúdo de um texto é concebido metodologicamente – numa espécie de simulacro – para que os sentidos desse texto possam ser explicados, consoante os seus mecanismos.

Para viabilizar essa explicação à luz dessa teoria semiótica, o percurso gerativo consiste de três etapas, as quais partem dos elementos mais simples e abstratos que podem ser identificados na superfície textual para chegar àqueles mais complexos e concretos: (i) a do nível fundamental, (ii) a do nível narrativo e (iii) a do nível discursivo. Conquanto cada um desses níveis possa ser analisado de maneira independente, o sentido do texto dependerá da relação estabelecida entre eles (BARROS, 2005; 2016).

Neste estudo, conforme já antecipado, a análise do texto se debruça sobre o terceiro e último nível – o discursivo –, que é, portanto, o mais complexo e o mais concreto de todos. Porém, para que não se perca de vista a necessária relação entre essas etapas, entende-se a pertinência de que os dois primeiros níveis sejam pincelados nesta própria sequência, mediante o que uma investigação anterior realizada por esta pesquisadora (MOLA, 2021a) já permitiu constatar. Nela, a categoria semântica fundamental consistiu na oposição dominação vs. liberdade, na qual essa relação se manifestou de modos diversos, sendo que a dominação correspondeu ao valor disfórico e, a liberdade, ao valor eufórico na perspectiva do sujeito mulher (no caso, portanto, Maria). Já no que se refere ao nível narrativo, pôde-se observar que, embora o sujeito mulher tenha transformado o seu estado de conjunção com o objeto família em um estado de disjunção, a principal transformação que ela realizou residiu no fato de transformar o seu estado de disjunção com o objeto-valor liberdade em estado de conjunção. O objeto-valor família, no entanto, merece especial atenção por se tratar daquele que figurava como contrato proposto pelos seus destinadores (o destinador social e o destinador marido) e pelo qual, inicialmente, Maria mobilizava os seus valores modais de querer-fazer e dever-fazer.

Sobre o terceiro nível do percurso gerativo de sentido, importa acrescentar a realização de um estudo subsequente que foi igualmente empreendido por esta pesquisadora (MOLA, 2021b). Ocorre que, nessa última etapa, são cinco os procedimentos por meio dos quais a organização narrativa será transformada em discurso: (i) o da actorialização, (ii) o da espacialização, (iii) o da temporalização, (iv) o da tematização e (v) o da figurativização. Nela, o sujeito da enunciação assume o esquema narrativo e o converte em discurso, sendo possível que ele reproduza ou não a enunciação no interior do enunciado.

No que se refere ao texto analisado, Maria corresponde ao eu pressuposto na enunciação e projetado no enunciado na instância de narradora, dirigindo-se a um tu que também está pressuposto e que, embora não seja identificado na instância de narratária, corresponde à idealizadora da página do Instagram (SOBREVIVENDO AO ABUSO, 2019), para quem Maria inicialmente escreve. Quanto aos interlocutores aos quais a narradora dá voz em discurso direto, o texto apresenta somente um: “outras pessoas”, aquelas que lhe “falavam” para não se casar – “[...] outras pessoas falavam [     ] não casa só porque está grávida [...]”; no que se refere às falas do então marido, no entanto, a enunciadora-narradora se utiliza o tempo todo do discurso indireto, tendo em “dizer” o seu verbum dicendi (como em “sempre dizia que eu não valia nada e que eu sempre traia ele”, na segunda parte do quadro 1, e em “dizia que eu tinha celular escondido na vagina”, na terceira). A única exceção ocorre em “contar”, que ela emprega no discurso indireto relativo à vizinha (“[...] vizinha Que me contou que ele disse que ia embora porque lá não precisava pagar aluguel”, na quarta e última parte) (MOLA, 2021b).

O último estudo reportado concentrou-se, pois, nos três primeiros procedimentos elencados, que compõem a chamada “sintaxe discursiva” e que foram tomados numa perspectiva mais ampliada. Nele, constatou-se que o texto tomado como objeto de estudo tem caráter tanto enunciativo quanto enuncivo, isto é, ao mesmo tempo que compreende as marcas da enunciação eu-aqui-agora, também engloba igualmente o espaço e o tempo enuncivos, em que figuram um “lá” e um “algures” que orientam a direção do texto na sua quase totalidade, fazendo com que o aqui-agora surjam somente ao final do depoimento.

A título de ilustração, o seu caráter enunciativo é constatado na quarta parte do quadro 1, no excerto “[...] ele ta morando aqui num quartinho sem emprego sem poder ver o nosso filho pois coloquei medida protetiva pra nós 2”, em que o eu enunciador está instalado no enunciado por meio do possessivo “nosso” e do pronome pessoal do caso reto “nós” [este sobre o qual Fiorin (1996) se refere como a junção de um eu com um não eu, e não como a multiplicação de objetos idênticos]. Quanto ao seu caráter enuncivo, o que se verifica é que, antes da projeção desse aqui-agora que se revela mais ao final do texto, a primeira parte do depoimento, por exemplo, está toda situada no tempo do alhures-então: a casa da qual Maria saiu não é a mesma na qual se encontra desde a segunda parte – era, então-alhures, em Santa Catarina, ao passo que, no aqui-agora, ela se encontra no Rio Grande do Sul1. Assim, são dois os espaços e os tempos enunciativos identificados no texto (primeiro, alhures; depois, aqui; primeiro, então; depois, agora), sendo que, a respeito dos tempos, o momento de referência do relato não é o presente (agora), mas o passado (então), de modo que o “agora” surge, na verdade, apenas na metade da quarta e última parte do depoimento como um desdobramento desse passado trazido à tona por Maria na condição de desfecho (MOLA, 2021b).

Essa análise da combinação entre debreagem enunciativa e enunciva de actantes, espaço e tempo, aliás, foi o que permitiu responder à primeira pergunta da referida pesquisa (MOLA, 2021b), relativa aos efeitos de sentido que poderiam ser depreendidos a partir dos usos que a enunciadora faz dos três primeiros procedimentos de discursivização tomados conjuntamente. A esse respeito, observou-se que o discurso de Maria produziu um efeito de sentido próprio: ao mesmo tempo que permitiu depreender o efeito de subjetividade e o de proximidade característicos do seu eu projetado na enunciação, também permitiu depreender os efeitos de objetividade, de distanciamento e, sobretudo, de realidade associados ao emprego de um então e de um algures que, no texto, correspondem à “mera reprodução dos acontecimentos”.

As estratégias enunciativas para a obtenção desse efeito, a propósito, foram evidenciadas pela quantidade de vezes com que foram reiteradas, como no caso da debreagem interna (que, por si só, produz um efeito de realidade) e do número de vezes em que locais e datas específicas foram sendo referenciados no decorrer do depoimento. Por meio delas, Maria foi determinando o estatuto veridictório do seu próprio texto, respondendo, dessa maneira, à segunda pergunta da pesquisa em questão, relativa ao que esses efeitos de sentido revelavam acerca da enunciadora na sua constituição como sujeito e, sobretudo, como ator discursivo atravessado pelo contexto da violência doméstica (MOLA, 2021b).

Do ponto de vista da verdade e da realidade, a enunciadora parece ter pretendido que esse texto fosse lido como tal pela sua enunciatária inicial – a idealizadora da página no Instagram. E toda a análise levou a crer que a sua necessidade de que fosse lido dessa maneira – como manifestação da verdade – teve como motivação o problema de que, contando aos outros sobre a violência doméstica a que esteve submetida por cinco anos com o então marido, ninguém acreditava nela, sobressaindo-se aí a questão do descrédito dado à palavra da vítima (MOLA, 2021b). Isto porque, conforme o Instituto Maria da Penha esclarece a esse respeito, não raro, os agressores “constroem uma autoimagem de parceiros perfeitos e bons pais, dificultando a revelação da violência pela mulher [...]” (CICLO DA VIOLÊNCIA, 2018, grifos desta pesquisadora), inclusive pela própria dificuldade que elas enfrentam de se fazerem acreditadas diante dessa imagem positiva construída por esses homens e já consolidadas nos círculos sociais que frequentam.

Em vista disso, portanto, é que esse efeito de realidade, ao final, corresponderia ao acordo fiduciário entre enunciadora e enunciatária na produção do enunciado, determinando o estatuto veridictório do texto: do ponto de vista da verdade e da realidade, Maria pretendia que esse texto fosse lido como tal pela idealizadora da página e, quanto ao entendimento do texto, que fosse entendido tal como ela o disse, e não o contrário (FIORIN, 1996).

Uma vez compreendidos esses aspectos, tanto no que se refere aos níveis fundamental e narrativo (MOLA, 2021a) quanto no que diz respeito ao nível discursivo a partir de três dos procedimentos de discursivização (MOLA, 2021b), é que, tal como já assinalado inicialmente, este estudo busca aprofundar a análise do primeiro deles – no caso, a actorialização, em 1.1 – e, concomitantemente, contemplar os outros dois – tematização e figurativização, em 1.2 –, de modo que se possa responder às duas novas perguntas já especificadas.

1. 1. Actorialização: o emprego dos pronomes na construção dos sentidos da enunciação de Maria

Conforme postulado por Fiorin (1996, p. 164) a partir de Benveniste (1966, p. 230-232), são duas as correlações para a categoria de pessoa (actancial): “[...] 1) a da pessoalidade, em que se opõem pessoa (eu/tu) e não pessoa (ele), ou seja, participantes da enunciação e elementos do enunciado; e 2) a da subjetividade, em que se contrapõem eu vs tu; a primeira é a pessoa subjetiva e a segunda é a pessoa não subjetiva”.

Ainda de acordo com o estudioso (FIORIN, 1996), é a situação de enunciação que determina o que é pessoa e não pessoa, isto é, quem são ou não os participantes da enunciação, sendo pessoas enunciativas aquelas que participam do ato de enunciação e pessoas enuncivas aquelas que dela não participam. Assim, dadas essas distinções, o que se verifica no texto analisado é a correlação da pessoalidade, em que o eu/tu da enunciadora-enunciatária – que são também o da narradora-narratária nos papéis de seguidora e de idealizadora da página “Sobrevivendo ao Abuso” (2019) – se opõem ao ele, marido. Participantes da enunciação, elas são as pessoas enunciativas, ao passo que ele é a não pessoa, a pessoa enunciva, que pertence ao domínio do enunciado – aquele de quem eu e tu falam.

Dos três conjuntos de morfemas que servem para expressar a pessoa no texto em questão, encontram-se: (i) pronomes pessoais do caso reto e do caso oblíquo, como em “eu já percebi isso no 1 mês mas eu já / estava sem saída eu não tinha opção” e “ele me agredia verbalmente” (na primeira parte do quadro 1); (ii) pronomes possessivos, como em “minha gravidez” (na primeira parte do mesmo quadro), “meu estado” e “minha família” (na segunda parte); e (iii) desinências número-pessoais dos verbos, como em “precisei”, “fiquei” e “casamos”, entre diversos exemplos (em diferentes partes do quadro, por todo o depoimento).

Nos quadros 2, 3, 4 e 5 a seguir, em conformidade com as quatro partes em que o relato foi dividido para a sua análise neste trabalho, constam os levantamentos acerca do primeiro conjunto por meio dos elementos que mais se repetem ao longo de todo o texto e que, acredita-se, é aquele que pode vir a contribuir mais particularmente para a análise da discursivização mediante o procedimento de actorialização: os pronomes pessoais do caso reto.

Para a composição desses próximos quatro quadros, é preciso acrescentar que, embora esses pronomes pessoais do caso reto também se encontrassem implícitos (a exemplo do “eu”, como sujeito oculto), o recorte priorizou somente aqueles trechos em que eles foram explicitados. Tal critério foi adotado partindo-se de uma hipótese surgida ao longo da própria análise do texto: a de que, posto que na linguagem tudo significa, a explicitação dos pronomes do caso reto empregados pela enunciadora-narradora poderia remeter a um sentido diferente daquele depreendido diante da sua não explicitação, sobretudo no que concerne aos usos oculto e não oculto do “eu”.

Figure 1. Quadro 2 – Pronomes pessoais do caso reto empregados na primeira parte do texto. Fonte: Elaborado pela autora a partir de excertos do texto em Sobrevivendo ao Abuso, 2019.

A começar a análise pelo emprego do “eu” na primeira parte do texto (do início do casamento até o primeiro rompimento entre Maria e o marido), o número total de “eu” (nove) supera o registro de “ele” (seis) na segunda coluna do quadro 2. Nesse primeiro momento, por meio desse “eu” nos excertos enumerados na segunda linha do referido quadro, Maria revela o que pode ser considerado, já dentro do contexto geral da não liberdade que experimenta (posto que ela “precisou casar [...]”, que “foi algo meio forçado [...]”, etc.), algum exercício de “autonomia” – aqui assinalada exclusivamente no sentido de pequenas “tomadas de decisão” e/ou de “escolhas” que expressavam a sua vontade. Assim, ela se manifesta por meio de um “eu” que declara a sua percepção dos fatos (1 e 5), que tem ciência da sua condição (2 e 3), que manifesta um desejo específico (4), que se sacrifica em prol daquilo em que acredita/no que investe (6) e que, antes de passar ao primeiro rompimento, manifesta ainda uma sequência direta de “três quereres/não quereres” (7, 8 e 9), chamando especial atenção a decisão expressa no último item: ela “não queria deixá-lo”, ela “não queria vê-lo perdido em drogas”, ela “queria salvá-lo disso.

Já no que se refere ao emprego que a enunciadora-narradora faz de “ele” nesse primeiro momento, na terceira linha do quadro 2, Maria revela somente duas situações gerais em que o marido está em posição de “protagonista”, isto é, como sujeito com papel de destaque nos acontecimentos, tanto pelo que fazia quanto pelo que não fazia, respectivamente: ele a agredia verbalmente (1) e ele não comprava roupas para o bebê (4). No mais, em quatro das seis menções (2, 3, 5 e 6), o “ele” aparece conjugado ao “eu” explicitado (o “eu” que “tinha que”, que “não queria” e que “queria”), sendo que, em (3), esse “eu” está ocultado – “porque [eu] não queria que ele colocasse o dinheiro todo fora”.

Com essa primeira prévia, é preciso ponderar que não se está perdendo de vista que todas as ações empreendidas por Maria (“eu”) se realizam, na verdade, como uma grande reação às ações originalmente empreendidas pelo marido [perspectiva, portanto, que situa o “ele” na sua condição de destinador-manipulador2, tal como já se verificou no estudo do nível narrativo do percurso gerador de sentido (MOLA, 2021a)]: ocorre que, em se tratando de uma análise discursiva, que tem exclusivamente nos elementos identificados no texto o seu objeto de estudo, interessa evidenciar como esse “eu”, como expressão da pessoa Maria, vai se constituindo na própria enunciação por meio da relação que engendra com o “ele”, não pessoa, estabelecendo-se num tempo e num espaço determinados.

Figure 2. Quadro 3 – Pronomes pessoais do caso reto empregados na segunda parte do texto. Fonte: Elaborado pela autora a partir de excertos do texto em Sobrevivendo ao Abuso, 2019.

Quanto ao emprego do “eu” na segunda parte do texto (do primeiro ao segundo rompimento entre Maria e o marido), o número total de “eu” na segunda coluna do quadro 3 (12) supera o total da segunda coluna do quadro 2 (nove). Todavia, se, na primeira parte (no quadro 2), a análise do emprego do “eu” sugeria um exercício de autonomia (dentro do contexto da não liberdade vivenciada por Maria) e o emprego de “ele” aparecia quatro vezes conjugado ao “eu” no total de seis registros (o “ele”, por assim dizer, como “objeto” da ação do sujeito “eu”), o que se verifica nesta segunda parte é que, dos 12 trechos reproduzidos na segunda linha do quadro 3, são quatro aqueles em que o “eu” aparece conjugado à avaliação do “ele” e dois aqueles em que Maria está submetida à permissão/autorização do marido: para o “ele”, o “eu” não valia nada (6), o traía (7), tinha alguém (10) e não se dava valor (11); em vista disso, “ele” não a deixava ter celular (8 e 9).

Aqui, as quatro vezes em que Maria enuncia o “eu” sem estar diretamente impactada pelo “ele” é quando se refere a um momento de anterioridade ao momento do acontecimento da narrativa: Maria (“eu”) morava em Santa Catarina com “ele” (1), onde era sozinha (4 e 5)3, mas o seu estado natal era o Rio Grande do Sul, onde tinha família e para onde “ele” foi (3). O único momento em que o “eu” é o “agente da ação” (no sentido de “insubordinado”, “independente”, por assim dizer) é quando “sai com a roupa do corpo” (2), sendo esse um desdobramento do evento que se refere ainda à primeira parte do depoimento, quando se dá a primeira separação. No mais, tudo o que o “eu” realmente faz de si mesmo nessa segunda parte, isto é, de sua própria iniciativa, é revelar uma percepção sobre a atuação do “ele” na igreja (12).

Tomadas as considerações do emprego do “eu” no quadro 2 para considerá-lo agora situado no quadro 3, uma possibilidade de efeito de sentido depreendido desse segundo momento é que, aqui, Maria/“eu” passa da condição de algum exercício de “autonomia” da sua primeira fase a uma condição que seria de quase total ou de total assujeitamento nesta segunda. Em suma, o “eu” de Maria como empreendedor da ação tal como se viu anteriormente se apaga: o seu “eu” existe antes do “ele” apenas quando se refere à moradia na sua terra natal; no mais, aparece subordinado à avaliação e à autorização do “ele” na maior parte do tempo e, de si e por si próprio no momento do acontecimento, manifesta apenas uma impressão que “sempre” teve.

Já em contrapartida, o “ele”, que na primeira parte foi contabilizado seis vezes (em quatro delas, “subordinado” ao “eu”, no quadro 2), surge agora 13 vezes na terceira linha do quadro 3, num “salto” que faz pensar acerca do seu “protagonismo” nessa segunda etapa. “Protagonismo” esse, aliás, que explicaria o “assujeitamento” comentado acerca do “eu” nessa segunda fase. Motivado pela saída do “eu”/Maria, “ele”/marido vendeu tudo o que tinha (1) e foi atrás da mulher na cidade natal dela. Em relação a ela, diretamente, o “ele”: estava “sempre com ciúmes” – “até dos velhinhos” (2 e 8) –, cronometrava o tempo dela (3), a espiava na rua (4), dizia que ela “sempre o traía” (5) e que dela “esperava tudo” (9), não a deixava ter celular (6) e o quebrava nas vezes em que ela tinha um (7), saía/fazia novas amizades (11).

As únicas três vezes em que a ação do o marido/“ele” não é determinante sobre o “eu” aparecem em (10), (12) e (13), numa expectativa de Maria/“eu” (que achava que “ele” se sentiria “mais seguro” se se casassem “no papel”) e numa informação dada pelo “eu” (“ele cantava no louvor”) seguida da sua percepção negativa (“sempre soube que ele estava lá [na igreja/cantando] porque queria se aparecer).

Oportunamente, no que se refere ao fato de o marido ter vendido o que tinha em Santa Catarina e ter ido à procura de Maria no Rio Grande do Sul, importa observar que o depoimento não comporta uma apreciação de valor por parte da enunciadora quanto a isso ter ou não correspondido ao que ela desejava. Por isso mesmo, ante a notificação de que o casal seguiu junto, essa “reconciliação” não poderia – e nem deve, por estar situada no campo da violência doméstica – ser automaticamente assimilada como sinônimo de alguma satisfação da parte do “eu”. Afinal, se Maria não tivesse consentido com essa continuidade, haveria alguma nova contrapartida a que seria submetida por parte do seu marido? Uma vez que se trata do mesmo ator discursivo que, no início do seu texto, se declarava “sem saída” e “sem opção”, quais “saídas” e “opções” Maria ainda desfrutaria, depois de já ter se deslocado para outro estado e para mais perto da própria família e, mesmo assim, nem esse afastamento nem a proximidade da família terem coibido o seu então cônjuge de ir atrás dela? Nesse contexto, então, essa “procura” configuraria muito mais uma estratégia de manipulação por intimidação por parte desse destinador-manipulador do que uma possível manifestação do seu amor e/ou do arrependimento da sua prática como agressor, haja vista que o desfecho dessa iniciativa do marido já foi antecipado desde a reprodução integral do depoimento, no quadro 1.

Além desse, acrescente-se ainda outro tipo de manipulação empreendido pelo destinador marido, que é o da provocação. Isto porque, se o marido dizia que Maria “sempre o traía” e que “dela esperava tudo”, cabia-lhe, como destinatária, evitar a imagem que esse marido fazia dela, o que implicava realizar tudo aquilo que ele lhe propunha. Na verdade, tratava-se de algo que, mais do que unicamente pela preservação da própria imagem positiva, ela “devia-fazer” em prol da manutenção do acordo estabelecido (a aquisição do objeto-valor família): deixar-se ter o seu tempo cronometrado, deixar-se ter o corpo revistado, etc. Nesse quadro, à medida que o marido mantém a mulher em condição de “subordinação”, tornando-a “objeto” da sua ação, note-se que o total de registros de “ele” se potencializa, ao passo que o total de registros do “eu” diminui – o que é muito significativo linguisticamente, sobretudo num texto como esse, já que “é na linguagem e por ela que o homem se constitui como sujeito, dado que, somente ao produzir um ato de fala, ele constitui-se como eu” (BENVENISTE, 1966, p. 259 apud FIORIN, 1996, p. 163).

Ainda nessa direção, em que se vislumbra o que seria a desconstituição da já limitada autonomia do sujeito “eu”/Maria mediante as ações do “ele”/marido que a atravessam, observa-se o surgimento de um terceiro pronome pessoal, mais frequentemente utilizado na língua oralizada: “a gente”. Aqui, é preciso destacar que, na primeira parte do depoimento, tinha-se “saí de casa”, sugerindo a “autonomia” de Maria em relação a essa iniciativa, muito embora o registro do sujeito “eu” figure aí oculto; já neste segundo momento, tem-se “a gente se separou”, o que, nesta análise, tende a corroborar esse enfraquecimento do “eu” – enfraquecimento, portanto, que teria sido provocado pelo próprio aumento da fragilidade de um “eu” já “apagado” no dia a dia da violência a que foi submetido, linguisticamente ocultado no relato e concretamente suplantado por um “a gente”, já que a sua decisão por si mesmo não preponderaria sobre a vontade do “ele”, tal como já sucedera anteriormente.

Figure 3. Quadro 4 – Pronomes pessoais do caso reto empregados na terceira parte do texto. Fonte: Elaborado pela autora a partir de excertos do texto em Sobrevivendo ao Abuso, 2019.

Quanto ao emprego do “eu” na terceira parte do texto (do segundo ao terceiro rompimento entre Maria e o marido), o número total de “eu” na segunda linha da segunda coluna do quadro 4 (seis) é menor que o da segunda linha da segunda coluna do quadro 3 (12). E, apenas em duas delas, o “eu”/Maria manifesta um posicionamento, uma tomada de decisão (ainda dentro do seu contexto de não liberdade): quando declara que “não aguentava mais” (1) e que, não obstante o marido deixar de frequentar a igreja, ela continuou (2). Nos outros três registros, o “eu” segue sob a provocação do seu destinador-manipulador: o marido dizia que o “eu” escondia o celular na vagina (3) e que se “masturbava pensando em outro” (5) – motivo pelo qual esse “eu” “tinha que tomar banho de porta aberta” (4). No último excerto em que o “eu” aparece, é sob a condição de indiferença que o então marido confere à sua opinião: o que Maria achava não importava (6).

No que se refere ao emprego do “ele”, na terceira linha do quadro 4, note-se que a primeira das nove menções assinala que “ele foi embora” porque Maria “não aguentava mais”, o que poderia, a princípio, contrariar o sentido depreendido de que a opinião dela não importava. Contudo, essa afirmação que condiciona a saída dele à exaustão da parte dela está situada ainda no contexto com que é finalizado o quadro anterior, que compreende o período de tempo que se estende até a segunda separação (“A gente se separou em Janeiro”); portanto, trata-se ainda de uma explicação que recai sobre essa segunda separação.

Na primeira separação, o “eu”/Maria, mesmo ocultado, “saiu de casa”, fazendo pensar na força que lhe foi exigida para essa iniciativa (de novo, num contexto já dado por ela como “sem opção” e “sem saída”) e, portanto, corroborando o sentido do exercício de alguma “autonomia”. Na segunda, a formulação do “a gente se separou” faz pensar numa “decisão compartilhada”, inclusive pela questão, já mencionada, de que não se sabe se ainda existiriam mais “opções/saídas” que Maria pudesse improvisar – pelo que o seu depoimento permite depreender, o casamento “no papel” teria sido a última solução encontrada por ela no sentido de “fazê-lo se sentir mais seguro”. Além disso, também como já se pontuou, o fato de ela ter “saído de casa” já se comprovara como não suficiente para dar fim à violência sofrida.

De todo modo, quando, ainda no que versa a respeito da segunda separação, surge neste terceiro momento a explicação da saída do “ele”/marido, seria possível admitir que, uma vez que “ele foi embora” porque ela (“eu”) “não aguentava mais” (1), a opinião/os sentimentos dela contavam; todavia, na mesma linha em que digita essa informação (“ele foi embora porque eu não aguentava mais”), Maria emenda: ele saia voltava quando queria” (2), de forma que a saída dele nessa segunda vez podia simplesmente se tratar de mais uma repetição desse movimento – “sair e voltar quando quisesse”. Tanto assim que, três meses depois, “ele voltou” (4).

Ainda nessa terceira parte, o “ele”, no relato de Maria, dá duas demonstrações do seu poder de decisão: uma sobre si, ao sair da igreja (3), e outra sobre si e sobre o que, pelo que se infere do contexto, envolvia a mulher, ao comprar um carro (7). No mais, as provocações não apenas continuaram, como ainda se intensificaram quando Maria começou a trabalhar: “ele piorou” (5), e aí dizia que ela se “masturbava pensando em outro” (6), entre outros assujeitamentos que lhe impunha nessa sequência do depoimento (monitorar o tempo que levava entre casa e trabalho, revistar o seu corpo, conferir o “seu xixi na privada”...).

Esse intervalo da segunda separação até a consolidação da terceira precisa ser ainda destacado no que tange ao já referido ciclo da violência doméstica. Isto porque, ao registro do “3 meses [depois da segunda separação] ele voltou”, segue-se imediatamente o “ficou até bem até junho tudo piorou de novo mais agressões mais perseguição”, em que o “até” em “até bem” indica um advérbio de inclusão, ao contrário do segundo “até”, aplicado como preposição que estabelece um limite posterior de tempo. E, no que diz respeito a esse período de tempo no qual o agressor “fica até bem”, antes de os episódios de violência serem retomados e/ou até mesmo intensificados (no caso aqui analisado, “tudo piora” depois disso), entende-se que ele corresponde à “Fase 3” do chamado “Ciclo da Violência”.

No site do Instituto Maria da Penha, mais especificamente, encontra-se uma página intitulada “Ciclo da Violência”, em que consta: “Apesar de a violência doméstica ter várias faces e especificidades, a psicóloga norte-americana Lenore Walker identificou que as agressões cometidas em um contexto conjugal ocorrem dentro de um ciclo que é constantemente repetido”. Sumariamente, na “Fase 1”, “Aumento da Tensão”, o agressor se mostra tenso e irritado por coisas insignificantes, decorrendo daí os seus acessos de raiva, fazendo com que ele humilhe e/ou ameace a vítima e destrua objetos. Na “Fase 2”, “Ato de Violência”, a falta de controle do agressor chega ao limite e o leva a cometer o ato violento, materializando-o em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. Na “Fase 3”, “Arrependimento e Comportamento Carinhoso”, o agressor se mostra amável, visando à reconciliação – o que confunde a companheira que, pressionada a manter o seu casamento (sobretudo quando tem filhos), abdica dos seus direitos e recursos, confiante de que o companheiro “vai mudar” (CICLO DA VIOLÊNCIA, 2018).

No entanto, conforme o estudo de Walker concluiu, “com o tempo, os intervalos entre uma fase e outra ficam menores, e as agressões passam a acontecer sem obedecer à ordem das fases” (CICLO DA VIOLÊNCIA, 2018). No caso, o intervalo mencionado por Maria foi de três meses, após o qual não houve, realmente, a retomada do ciclo a partir da Fase 1 – “Aumento da Tensão” –, mas uma “piora”: nas palavras da própria mulher nesse momento, ocorreram “mais agressões, mais perseguição”; pouco adiante, quando acrescenta que começou a trabalhar e quais as consequências associadas a isso, declara: “ele piorou”. Em termos de manipulação do sujeito destinador (MOLA, 2021a), mais intimidação e mais provocação, portanto.

Ainda acerca dessa piora, observa-se que, nesse ponto, Maria já não especifica imediatamente de que tipo de agressão se trata, tal como o fez na primeira parte do quadro 1, quando declara que ela a “agredia verbalmente”. Além disso, chama atenção que, até esse ponto, ela não se referira às ações do marido como “perseguição”.

Diante disso, para encerrar o emprego do “ele” na terceira linha da segunda coluna, eis que aparecem os dois últimos dos nove registros, em que o “ele” é retratado num pedido do “eu” e na resposta que recebe, respectivamente: “ Em agosto pedi pra ele sair de casa” (8) e “Ele disse que ia sair” (9). Destaque-se nessa passagem que Maria “pede”, isto é, não “exige”. Ela não o “põe para fora”, por exemplo; ela não o “manda passear”, tal como referirá que a outra mulher (a “enfermeira”, que “tem sua casa seu carro e cargo bom”) fez em relação a “ele” na última coluna do quadro 1 que será recuperada a seguir, no quadro 5. No mais, nesse “pedi pra ele sair de casa”, o “eu” outra vez está ocultado, sendo que esse “pedido” também parece determinar o exato momento da narrativa em que o objeto-valor família deixa de ser o valor prescritivo em razão do qual se operam o querer-fazer e o dever-fazer que lhe foram dados pelo destinador (MOLA, 2021a): sobrepondo-se ao desejo de aquisição/manutenção da família, agora interessa à Maria o valor-objeto da liberdade.

Figure 4. Quadro 5 – Pronomes pessoais do caso reto empregados na quarta parte do texto. Fonte: Elaborado pela autora a partir de excertos do texto em Sobrevivendo ao Abuso, 2019.

Quanto ao emprego do “eu” neste quadro (que compreende desde o terceiro rompimento entre Maria e o marido até o momento em que produz esse texto), contam-se seis registros de “eu”. Dois deles (1 e 2) recaem sobre um evento marcante para Maria: ela foi realizar um treinamento em outra cidade e, quando retornou, o então marido tinha se mudado da casa. Os demais, que aparecem no final dessa quarta parte e, portanto, no final de toda a narrativa, correspondem, de modo geral, às suas considerações finais no que respeita todo o conteúdo relatado: em suma, a então esposa “não entendeu tudo aquilo”, isto é, não entendeu por que, não obstante toda a mobilização dos valores modais para o cumprimento da sua parte no acordo (“Eu fazia de tudo pra ele se sentir bem”), ela foi sancionada negativamente4. E essa punição negativa aparecerá no emprego do “ele”, que “ estava com outra” sete dias depois de sair de casa, de modo que esse “já” se traduz como um advérbio de tempo que reforça uma apreciação por parte desse ator discursivo – algo diferente daquilo com o que Maria contava, dado o acordo fiduciário que lhe fora proposto.

Sobre os dois outros empregos do “eu” faltantes, tem-se o que parece ser a necessidade de Maria quanto a conferir crédito a si mesma, ratificando a veracidade das informações apresentadas não apenas para o pastor (5), mas, talvez, para a própria narratária: “contando, ninguém acreditava” (6) – aspecto esse já identificado como um problema comum às mulheres que sofrem violência, dada a autoimagem positiva construída pelos seus agressores.

Antes de se passar ao emprego do “ele” no quadro 5, importa ainda retomar um aspecto mencionado durante a análise do quadro 4, quanto ao pedido de Maria para que o então marido saísse de casa, determinando o momento de transformação do que, até então, era o seu objeto-valor – da família à liberdade. Essa transição pode ser ratificada pelo próprio “desprendimento” sugerido pela expressão “Ok vai com Deus”, quando Maria soube, pela vizinha, que o então marido fora embora, conforme ela mesma lhe pedira. Ora, uma vez que o objeto-valor se tornara a liberdade, esse “deixá-lo ir”, sem qualquer consternação, explica-se por si só. Entretanto, também não se pode tomar essa não afetação negativa como equivalente de qualquer não afetação por parte de Maria, já que ela própria estabelece o ponto até o qual esse “desprendimento” parece ir: “até às Ok vai com Deus”, isto é, entendendo-se por “até 5 Ok” a justificativa do então marido de que ia embora para a casa da mãe porque lá não pagava aluguel. Porém, nada estava “previsto” quanto ao que se seguia para além do “até aí”, ou seja, que sete dias depois ele “já” estivesse com outra mulher.

Nesse contexto é que, ao que configuraria algum nível de “desprendimento” ou até mesmo de “alívio” por parte de Maria, o “ele”, empregado sete vezes nessa última parte, surge para lhe causar nova consternação, “pluralizando-se” como “duas não pessoas”, inserindo um “ela” na narrativa do “eu” e tornando-se um “eles” (ele + ela) que à Maria também competiria englobar. Assim, embora, numa primeira observação dessa última coluna, o total de registros de “eu” (seis) e de “ele” (sete) pudesse sugerir algum equilíbrio quantitativo que, por sua vez, talvez implicasse uma “equivalência” de ações nessa última etapa, o fato é que, somando-se ao “ele” o emprego de “eles” e de “ela”, são 11 registros no total que remetem às ações do marido mediante as quais Maria seria afetada.

Objetivamente, os verbos que indicam alguma ação do “eu” em relação a “ele” se encerraram na terceira parte, no quadro 4, com o pedido que Maria fez ao então marido para que ele fosse embora. Em contrapartida, os verbos que indicam ação direta do “ele” sobre ela nesta quarta e última parte do depoimento são três, inicialmente: “ele” tirou as coisas de dentro de casa (1) e disse que foi embora por um dado motivo (2), “ele” postou que “já estava com outra” (3). Depois, pluralizado, “eles” “pegam o carro (1) e retornam à cidade onde Maria foi morar (2).

O “ela”, na narrativa, surge primeiro articulado no que se refere a “ele”, que “volta à cidade com ela” (1); depois, surge desarticuladamente: “ela” o “tira de casa” e o “manda passear” (2). As outras três menções ao “ele”, que não compreendem as ações diretas do marido, dizem respeito às apreciações de Maria: “ele” morando “num quartinho” (5), sendo o mesmo “ele” que tinha acesso a tudo o que era do “eu” (6), que “fazia de tudo” para que “ele se sentisse bem”.

Para encerrar o exame da actorialização dentro do proposto neste estudo, é preciso, finalmente, retomar a hipótese aventada para a seleção dos pronomes do caso reto explicitados no texto, que se confirmou ao longo da análise, permitindo algum aprofundamento discursivo mediante essas minúcias linguísticas. Embora o cuidado desta pesquisa em não permitir que a análise se orientasse por quaisquer orientações de natureza psicologizante, chama atenção o fato de que, nas três vezes em que registra que rompeu com o marido, Maria não explicita o pronome “eu”: ela o oculta, como se vê em “Saí de casa”, “A gente se separou” e “pedi pra ele sair de casa”. O mesmo, a propósito, se verifica na quarta parte, quando se refere à medida protetiva: “coloquei medida protetiva pra nós 2”. Em contrapartida, Maria explicita o emprego do “eu” quando:

• se refere às suas percepções: “eu já percebi isso no 1 mês mas eu já estava sem saída”, “eu não tinha opção” e “achei que o que eu via era coisas da minha cabeça e ia mudar”, na parte 1; “eu sempre soube que ele estava lá porque queria se aparecer”, na parte 2; “eu só soube disso no outro dia pela vizinha”, “Eu não entendi tudo aquilo” e “Eu fazia de tudo pra ele se sentir bem”, na parte 4;

• manifesta o que quer: “mas eu queria ter a família”, “eu não queria deixar ele porque eu não queria ver o pai do meu filho perdido nas drogas e eu queria salvar ele disso”, na parte 1; “ele foi embora porque eu não aguentava mais ele saia voltava quando queria” e “eu continuei [na igreja] mas ele não” na parte 3;

• descreve um compromisso: “eu fui a outra cidade fazer um treinamento da empresa”, na parte 4;

• relata a subordinação aos desmandos do marido: “eu tinha que levantar grávida no meio da madrugada”, na parte 1; “eu fiquei mais de 1 ano sem celular”, na parte 2; “eu tinha que tomar banho de porta aberta”, na parte 3;

• se reporta às suas origens e a momentos anteriores àqueles de referência do enunciado: “eu morava em SC” e “veio embora pra RS onde eu morava porque eu disse que nunca mais voltava pra RS com ele porque lá eu era sozinha não tinha família”, na parte 2; e

• relata a descrença dos outros no seu depoimento: “Eu tive que dar meu celular pro nosso pastor ver porque eu contando ninguém acreditava”, na parte 4.

A única exceção é a retomada do rompimento na segunda parte, quando Maria declara: “eu saí com a roupa do corpo”. Nesse momento do texto, no entanto, a narradora já “voltou pro seu estado” – evento que, em remetendo a um espaço no qual ela tinha suas raízes e em sendo posterior ao rompimento que já havia se dado, não contraria a observação de que, no que diz respeito aos ensejos para cada separação, o emprego do “eu” aparece ocultado.

1.2. Tematização e Figurativização: os investimentos semânticos acerca da violência

Já aprofundado o procedimento de discursivização pela actorialização, bem como somando-se à análise dele, as considerações a seguir versam a respeito de em que consistem o quarto e o último procedimentos elencados nos parágrafos iniciais desta segunda seção: a tematização e a figurativização, que compõem a chamada “semântica discursiva”.

Conforme o estudo anterior centrado no nível narrativo desse mesmo texto (MOLA, 2021a), sabe-se que aqui se tem um sujeito que, ao final, entrou em estado de disjunção com o objeto dominação e em estado de conjunção com o objeto liberdade. E é na semântica discursiva que essa mudança de estado se concretizará. De acordo com Barros (2016, p. 206),

A tematização e a figurativização correspondem ao “enriquecimento” semântico do discurso já mencionado. Na tematização ocorre a disseminação no discurso dos traços semânticos tomados de forma abstrata. Já na figurativização, esses traços semânticos são “recobertos” por traços semânticos “sensoriais” (de cor, de forma, de cheiro, de som, etc.) que lhes dão o efeito de concretização sensorial [...]

A começar pelo tema, Fiorin (2016, p. 91) esclarece que ele é “[...] um investimento semântico, de natureza conceptual, que não remete ao mundo natural [...]”, mas que, como categoria, organiza, categoriza, ordena os elementos desse mundo. Acerca da tematização, portanto, o texto analisado é elaborado a partir de ao menos dois grandes temas possíveis, os quais decorrem da disseminação dos valores dos níveis fundamental e narrativo já estudados (MOLA, 2021a): o tema da mulher que, sob a dominação do contrato social, “precisa se casar porque engravidou” (“não tinha opção”, na primeira parte do quadro 1) e o tema da mulher que, sob a dominação do marido, busca por liberdade (“eu não aguentava mais”, na terceira parte). A esses, a contar somente pelo que se identifica na primeira parte do texto, podem ser ainda acrescidos seis outros temas mais pontuais:

i) o da mulher que, também orientada pelos valores disseminados socialmente em relação ao que compreende “ser mulher” e ao que dela “se espera”, deseja ter a sua própria família (como se verifica em “mas eu queria ter a família”);

ii) o da mulher que “supera todas e quaisquer as dificuldades em nome da preservação da sua família” (“eu tinha que levantar grávida no meio da madrugada pra sair com ele porque não queria que ele colocasse o dinheiro todo fora”);

iii) o da esperança da mulher vítima de violência doméstica no que diz respeito a uma mudança no comportamento “dominador”/violento do marido (“achei que o que eu via era coisas da minha cabeça e ia mudar”);

iv) o da esperança da mulher vítima de violência doméstica quanto à sua própria capacidade/condição de contribuir decisivamente para essa mudança (“eu queria salvar ele disso”);

v) o da mulher que é esse “arrimo” do marido quando ele próprio “enfrenta dificuldades” (“depois veio as drogas quase 1 ano lutando porque eu não queria deixar ele porque eu não queria ver o pai do meu filho perdido nas drogas e eu queria salvar ele disso”); e

vi) o do descompromisso do marido violento para com o bem-estar da própria família (“ele me agredia verbalmente”, “bebia”, “não se importava comigo”, “não queria que ele colocasse o dinheiro todo fora”, “roupas pro bebê ele não comprava”).

Da segunda parte do texto em diante, o percurso temático da violência doméstica propriamente dita – ou seja, esse encadeamento de temas que institui o “tema macro”, por assim dizer – é que vai sendo delineado e ganhando novos desdobramentos, permitindo que nele se entrevejam outros temas “micro” dos quais a violência doméstica vai se constituindo ao longo do dia a dia no que respeita às suas vítimas:

i) o estado de solidão no qual essa mulher – muitas vezes já acompanhada de filho(s) – se vê para o enfrentamento da violência praticada pelo parceiro (como em “eu disse que nunca mais voltava pra RS [entende-se a confusão com SC] com ele porque lá eu era sozinha não tinha família”);

ii) a falta de recursos financeiros e materiais que, muitas vezes, culmina com a dependência financeira que “obriga” a vítima a permanecer na relação abusiva (“Sai de casa com meu filho e eu saí com a roupa do corpo Na mala so tinha 2 calcinhas ..”);

iii) a perseguição do ex-marido violento (“ele vendeu tudo que tinha e veio embora pra RS onde eu morava”);

iv) a relativização da violência por parte da própria vítima associada a uma confusão entre demonstração de amor/cuidado e controle (“ele sempre com ciúmes”, “possessivo”, “Monitorava meu celular”);

v) a concretização do casamento (“no papel”) como sinônimo de “segurança”/estabilidade para o casal e a consequente invalidação dessa crença (“No último ano então pensei vou casar no Papel ele vai se sentir mais seguro .. em agosto de 2018 casamos com cerimônia e papel passado Piorou tudo .. dae tudo desceu por água a baixo .”);

vi) a desconstrução da equivalência entre a adesão a uma fé ou a uma igreja e a prática dos princípios por ela disseminados no que se refere ao comportamento do marido violento (“sempre soube que ele estava lá porque queria se aparecer e não servir a Deus”);

vii) os sucessivos rompimentos estabelecidos pela vítima e reconciliações “propostas” pelo agressor (ao todo, três apresentados no texto);

viii) as três fases do ciclo da violência (no decorrer de todo o texto);

ix) as formas que configuram o que se entende por agressão verbal e violência psicológica (no decorrer de todo o texto);

x) o alívio sentido pela vítima de violência doméstica quando o agressor finalmente se afasta (“ele disse que ia embora porque lá não precisava pagar aluguel .. até às Ok vai com Deus”);

xi) a culpabilização incorporada pela própria vítima (“Eu não entendi tudo aquilo porque tanto ciúmes porque tanta coisa se ele tinha acesso a tudo meu Celular e-mail era juntos face juntos Eu fazia de tudo pra ele se sentir bem”); e

xii) o descrédito dado à palavra da vítima de violência doméstica (“Sabe que ninguém acreditava Ninguém Eu tive que dar meu celular pro nosso pastor ver porque eu contando ninguém acreditava”).

Nesses dois subconjuntos de temas menos abrangentes que compõem os dois grandes temas assinalados inicialmente, observa-se que os seis identificados na primeira parte do texto praticamente reproduzem uma série de valores que ainda circulam socialmente no que se refere aos próprios contratos sociais quanto àquilo que se espera que uma mulher seja e/ou faça: ela deve querer uma família e, em a constituindo, deve “lutar” pela sua manutenção, “salvando” o seu marido e/ou o seu casamento, a despeito de qualquer que seja a dificuldade enfrentada. Esses, portanto, são os temas “menores” subjacentes ao grande primeiro: o tema da mulher que, sob a “dominação” do contrato social, “precisa se casar porque engravidou”.

Já no que diz respeito aos 12 identificados a partir da segunda parte do texto, são esses os “microtemas” contemplados dentro do segundo grande tema: o da mulher que, sob a dominação do marido, busca por liberdade. Ao final, esses 18 “subtemas” que constroem todo o percurso temático do texto concretizam a mudança de Maria de um estado a outro no esquema narrativo. Tal como explicita Fiorin (2016, p. 94), “[...] O nível temático dá sentido ao figurativo e o nível narrativo ilumina o temático [...]”, sendo que nem todo percurso temático é recoberto por um percurso figurativo. O contrário, no entanto, não se efetiva: para todo percurso figurativo corresponde um tema subjacente.

Por “figura”, mais especificamente, entende-se “[...] todo conteúdo de qualquer língua natural ou de qualquer sistema de representação que tem um correspondente perceptível no mundo natural [...]” (FIORIN, 2016, p. 91), sendo que, por “mundo natural”, entende-se não somente aquele efetivamente existente, mas também aquele construído.

No texto analisado, constata-se o percurso figurativo revestindo o percurso temático, concretizando-o ainda mais. Por definição, tem-se ainda que ele se configura como um texto predominantemente figurativo, e não predominantemente temático, se considerada a dominância de elementos concretos e a própria finalidade do seu discurso (FIORIN, 2016). Isto porque, como sujeito desse discurso, Maria não procura “explicar a realidade”, tampouco organizá-la, categorizá-la ou ordená-la: antes, na mesma direção do que se constatou por meio dos três outros procedimentos de discursivização estudados anteriormente (MOLA, 2021b), ela constrói um simulacro da realidade, representando o mundo. Para tanto, não investe essa representação de traços semânticos sensoriais da ordem do visual, do auditivo, do olfativo, do gustativo ou do tátil, mas de traços da ordem de um conjunto de comportamentos (verbais e não verbais) que, na série de ocorrências descritas, figurativizam não apenas (e de modo geral) todas as três fases do ciclo da violência já apresentado na subseção anterior [1. aumento da tensão, 2. ato de violência e 3. arrependimento e comportamento carinhoso (CICLO DA VIOLÊNCIA, 2018)], como também (e de maneira ainda mais específica) a própria aplicação da violência doméstica dos tipos moral e psicológico que encontra a sua correspondência no mundo real.

Nessa série, o simulacro da violência, tanto moral quanto psicológica, surge reproduzido no quadro 6, no qual, visando a uma melhor concatenação, foram resgatadas das considerações iniciais deste trabalho as definições de cada um desses dois tipos de violência:

Figure 5. Quadro 6 – Percurso figurativo da violência doméstica moral e psicológica conforme Maria. Fonte: Elaborado pela autora a partir de excertos do texto, 2021.

Conforme se verifica com base nesse último quadro, entre as formas de violência moral figurativizadas por Maria, identificam-se: acusar a mulher de traição, emitir juízos morais sobre a sua conduta, fazer críticas mentirosas a seu respeito e rebaixá-la por meio de xingamentos que incidem sobre a sua índole; entre as formas de violência psicológica figurativizadas pela enunciadora, estão ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insultos e limitação do direito de ir e vir.

Por fim, encerrando a análise desse último procedimento de discursivização, o espaço doméstico no qual essa violência é consumada também está figurativizado no texto, assim como o tipo de interação nele presumido por meio da convivência no lar (em que o “meu” daria/dá lugar ao “nosso”), consoante a evolução de uma relação socialmente prevista na composição “marido-mulher” (casamento, filho(s), bens compartilhados). Daí, portanto, registros como casada”, “casar”, “fiquei grávida”, “namoro”, “eu queria ter a família”, “casamos”, “moramos juntos”, “minha gravidez”, “grávida”, “bebê”, “pai do meu filho”, “sai de casa” [entende-se por “saí”], “meu filho”, “casar no papel”, “casamos com cerimônia e papel passado”, “a gente se separou”, “dinheiro de casa”, “decidi sair de casa”, “pedi pra ele sair de casa”, “ele tinha tirado as coisas de dentro de casa”, “pegou nosso carro” e “nosso filho”.

2. Considerações Finais: entre conclusões e encaminhamentos

Inserido num projeto de pesquisa mais abrangente, este trabalho inicial pretendeu compreender como, no conjunto actorialização-tematização-figurativização, se configura o discurso produzido no ano de 2019 por uma mulher vítima de violência doméstica moral e psicológica, aqui reportada como “Maria”, a quem se fez necessária a instauração de medida protetiva. Para depreender e explicar os sentidos do texto analisado, que consistiu no depoimento dado por Maria à idealizadora de uma página do Instagram intitulada “Sobrevivendo ao Abuso” (2019), foram tomados como ferramental teórico-metodológico os estudos advindos da Semiótica Discursiva, mais particularmente no que se refere ao nível discursivo do percurso gerador de sentido, mediante três dos seus procedimentos de discursivização.

A fim de que o referido objetivo pudesse ser alcançado, foram formuladas duas perguntas a partir das quais a pesquisa se desenvolveu. Em relação à primeira delas – quais efeitos de sentido podem ser depreendidos do discurso da enunciadora ao longo do procedimento de actorialização, tanto no que se refere à construção de si mesma como ator discursivo quanto no que diz respeito à construção do seu agressor na reconstrução do contexto e da efetiva prática de violência sofrida, principalmente a partir dos empregos dos pronomes pessoais “eu” e “ele”? – constatou-se que, uma vez que esses pronomes foram quantificados e analisados em conformidade com cada uma das quatro partes em que o texto foi dividido, a aplicação deles foi, de fato, revelando diferentes percepções por parte de Maria em cada um desses momentos. Tanto em relação a si própria quanto em relação ao contexto de violência no qual estava inserida e que, portanto, envolvia diretamente o seu então marido.

A princípio, embora essa divisão do texto tenha sido pensada a fim de viabilizar a melhor organização da análise, o que se verificou foi que, uma vez que o critério adotado para tal compartimentalização consistiu em cada um dos períodos que culminavam com uma separação do casal, essa referência também contribuiu para que os efeitos de sentido decorrentes do emprego de “eu” e de “ele” ao longo do depoimento pudessem ser ainda mais bem ancorados.

No que se refere à primeira parte do depoimento, que compreende o seu início até a ocorrência do primeiro rompimento entre a enunciadora e o marido, foram contabilizados nove registros de “eu” e seis registros de “ele”. Acerca do que os usos do “eu” permitiram depreender de si, observou-se que, nessa etapa, mesmo situada no contexto geral da não liberdade que já experimentava, Maria revela algum exercício de “autonomia”, isto é, no conjunto da sua percepção dos fatos e da sua própria condição, dos seus “deveres” e dos seus “quereres”, ela quer, inclusive, “salvar” o companheiro, sendo importante destacar que o “eu” que diz “eu” está explicitado nesse registro. Quanto ao que o “eu” enunciado por Maria permite depreender em relação ao “ele” ainda nessa etapa, a menção ao marido aparece sempre conjugada aos “deveres” e “quereres” da esposa, à exceção da imagem que ela já constrói dele como “agressor verbal” e descomprometido para com as necessidades do bebê. Nesse primeiro conjunto de acontecimentos, o “ele” é reportado pelo “eu” como “pai do seu filho”, sendo que o encerramento dessa parte se dá por meio do registro “Saí de casa”.

No que se refere à segunda parte do depoimento, que compreende o intervalo do primeiro até o segundo rompimento, foram contabilizados 12 registros de “eu”, 13 registros de “ele” e um registro de “a gente”. Acerca do que os usos do “eu” permitiram depreender de si, observou-se que, nessa etapa, Maria passa do exercício de alguma “autonomia” a uma condição de objeto de constante reprovação/acusação por parte do marido, subordinada aos “abusos” cometidos por ele. Exceções são os empregos de “eu” que se referem a um momento anterior aos acontecimentos relatados e ao momento em que Maria saiu de casa com a roupa do corpo (no primeiro rompimento). Quanto ao que o “eu” enunciado por Maria permite depreender em relação ao “ele” ainda nessa etapa, a menção ao marido o apresenta como agente de uma série de agressões praticadas contra a esposa, entre “reprovações”, acusações, provocações, controle/fiscalização em relação a ela e “ciúme”. Nesse segundo conjunto de acontecimentos, o “ele” é reportado pelo “eu” como “possessivo”, sendo que o encerramento dessa parte se dá por meio do registro “A gente se separou”.

No que se refere à terceira parte do depoimento, que compreende o intervalo do segundo até o terceiro rompimento, foram contabilizados seis registros de “eu” e nove registros de “ele”. Acerca do que os usos do “eu” permitiram depreender de si, observou-se que, nessa etapa, Maria segue submetida às incessantes práticas de violência que lhe são infligidas pelo marido, acrescentando agora a indiferença manifestada por ele quanto à opinião dela e, também agora, manifestando que “não aguentava mais”, sendo que o “eu” que diz “eu” também está explicitado nesse registro. Quanto ao que o “eu” enunciado por Maria permite depreender em relação ao “ele” ainda nessa etapa, a menção ao marido o apresenta não “apenas” como agente de uma série de violências cometidas contra ela, mas como um agente que intensificou as suas “agressões” e “perseguições”, de forma que “tudo piorou”, incluindo, por exemplo, a intervenção sobre o corpo dela, na forma de “revista”. Nesse terceiro conjunto de acontecimentos, o “ele” é indiretamente reportado pelo “eu” como “agressor”/“perseguidor” (“[...] de novo mais agressões mais perseguição [...]”), sendo que o encerramento dessa parte se dá por meio do registro “Em agosto pedi pra ele sair de casa Ele disse que ia sair”.

Por fim, no que se refere à quarta e última parte do depoimento, que compreende o intervalo do terceiro rompimento até o momento em que a enunciadora escreve o seu relato, foram contabilizados seis registros de “eu”, sete de “ele”, dois de “eles” e dois de “ela”, sendo estes dois últimos menos relevantes na análise, por não refletirem as construções dos atores enunciativos pretendidas neste estudo. Acerca do que os usos de “eu” permitiram depreender de si, observou-se que, nessa etapa, Maria não apenas “não entendeu” o porquê de tanto “ciúme” do então marido, como ainda se mostra reflexiva, ponderando que “fazia de tudo” para que ele “se sentisse bem”, conquanto isso fosse “sufocante”. No mais, ela revela a dificuldade de se fazer acreditada – a esse respeito, o “eu” que diz “eu” está explicitado duas vezes. Quanto ao que o “eu” enunciado por Maria permite depreender em relação ao “ele” ainda nessa etapa, a menção ao marido o situa numa sequência de deslocamentos do seu papel até ali: ele passa da condição de alguém que “segue fazendo o que quer” à condição de objeto de alguém que teria “feito com ele o que quis” (a enfermeira) e, logo, a uma condição que sugere a sua eventual vulnerabilidade – “tá morando aqui num quartinho”. Nesse quarto conjunto de acontecimentos, não é encontrada qualquer apreciação sobre ele, sendo que o encerramento dessa parte se dá por meio do registro “Eu fazia de tudo pra ele se sentir bem”.

Em suma, pode-se concluir que esses efeitos de sentido resultam da relação entre a maneira como Maria vai se construindo discursivamente por meio do emprego do “eu” em cada uma das quatro fases assinaladas e a maneira como o marido vai sendo discursivamente construído por ela mediante do emprego do “ele”. Ele, portanto, não só a “direciona”: ele a “atravessa” por meio do controle que exerce sobre ela ao longo de toda a movimentação de Maria no texto (e na vida), a tal ponto de levá-la a deslocar o seu querer-fazer e o seu dever-fazer em prol da sua família para um querer-fazer e um dever-fazer em prol da sua liberdade.

Concomitantemente a essa influência da não pessoa sobre a pessoa enunciativa, um segundo aspecto também aí se manifesta: toda a atuação de Maria se dá não apenas à medida que se intensificam as ações do marido sobre ela, mas, igualmente e/ou sobretudo, à medida que a imagem dele se lhe modifica, reiterando essa sucessão de transformações (discursivas) por parte da esposa. Além disso, essas relações também interferirão diretamente no desfecho de cada etapa, no que diz respeito à forma com que se consubstancia cada um dos três rompimentos. Quando, por exemplo, o marido intensifica as agressões, transformando-se num “perseguidor”, Maria “pede” para que ele vá embora – o que parece ser um indicativo de medo. Antes disso, todavia – isto é, antes de “tudo piorar” –, ela “sai de casa” – o que parece ser um indicativo de alguém que, até então, ainda se sentia mais “destemida”.

Em relação à segunda pergunta – indissociavelmente a esses efeitos de sentido depreendidos da análise da actorialização, como o sentido do texto se concretiza nos percursos de tematização e de figurativização desse discurso, resultando na manifestação da ideologia dessa enunciadora? –, constatou-se que são vários os “microtemas” percorridos do início ao final do texto, mas que, de modo geral, podem ser sintetizados em dois: o tema da mulher que, sob a “dominação” do contrato social, “precisa” se casar porque engravidou, e o tema da mulher que, sob a dominação do marido, busca por liberdade. Tal percurso temático, que confere ao texto unidade e coerência semântica, é também figurativizado por meio de uma série de ocorrências e ações que, conquanto não se voltem à ordem do sensorial, retratam o próprio percurso do que configura a violência doméstica moral e psicológica, desde as práticas de abuso que muitas vezes vão sendo suavizadas e/ou relativizadas até aquelas que se intensificam e se constituem como formas mais contumazes de violência, corporificando-se.

Em sendo ainda um estudo inicial, este trabalho se encerra, pois, com alguns encaminhamentos deixados ao longo da própria análise, acerca dos quais a pesquisa se deterá, a exemplo do que se observou na hipótese levantada no transcorrer dela: a de que a explicitação dos pronomes do caso reto empregados por Maria poderia remeter a um sentido diferente daquele depreendido diante da sua não explicitação, sobretudo no que concernia aos usos ocultos do “eu”. Nessa direção, em vista de tudo o que foi pontuado, poder-se-ia perguntar: afinal, por que Maria é um sujeito discursivo que não diz explicitamente “eu” quando o trecho do enunciado contempla justamente a sua decisão pelo afastamento do marido? Nesse caso, o ocultamento do “eu” indicaria, de forma atenuada, a manifestação de uma decisão que, conquanto tomada, não corresponderia ao real desejo de um sujeito pleno e seguro da sua vontade? Ou, ainda, ao desejo de uma mulher que, apesar de se reconhecer “agredida”/ “perseguida”, ainda não se encontraria desejosa da separação e/ou convicta da sua real necessidade?

No que respeita essa última questão, poder-se-ia presumir, inadvertidamente, que a instauração da medida protetiva já bastasse para respondê-la. O desfecho da quarta parte, entretanto, lança dúvidas a esse respeito, fazendo pensar na confusão sentida pela mulher vítima de violência doméstica, somando-se aí o fato de os interlocutores de Maria não lhe conferirem credibilidade diante das denúncias de toda a violência sofrida. Assim, se não pela sua possível dúvida e/ou confusão em face desse desfecho, inclusive envolvendo a medida protetiva, por que ela ainda teria empregado o pronome possessivo em “nosso pastor”, nas últimas linhas?

Visando a uma análise linguístico-discursiva que, ao final do projeto, abranja uma amostra maior de depoimentos, espera-se que, a partir dela, os resultados obtidos possam contribuir não apenas para preencher a atual lacuna dessa temática na área dos estudos linguísticos, como também – e sobretudo – para que o conhecimento oriundo dessa investigação possa, quiçá, se estender para além dos muros do meio acadêmico e adentrar os (in)cômodos dos espaços domésticos nos quais a violência praticada contra as mulheres, por parte dos seus próprios ditos “companheiros”, continua se dando de forma tão oculta e cada vez mais, tão frequentemente, tão estarrecedora.

Referências

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How to Cite

MOLA, I. C. de F. Actorialization, thematization, and figurativization in the discourse of domestic violence: the construction of meanings from the victim’s perspective. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e563, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id563. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/563. Acesso em: 21 nov. 2024.

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