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Theoretical Essay

Elective bilingualism and english language teaching in Brazil: initial considerations for linguists and teachers

Adan Phelipe Cunha

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https://orcid.org/0000-0002-4808-8756


Keywords

Elective Bilingualism
English Language Teaching
Bilingual Subject
Linguistic Repertoire
Superdiversity

Abstract

Depicting elective bilingualism as the situation in which individuals choose to learn another language (BAKER, 2001), this essay argues it is essential that Brazilian English language teachers perceive themselves as bilingual subjects, so that it could be possible to transform teaching practices for that language, especially with the increasingly frequent proposals for bilingual education in the Brazilian scenario. We consider that those teachers do not usually perceive themselves as bilingual subjects, due to inadequate comparisons to native speakers of the English (cf. GROSJEAN, 1989). Based on the concept of superdiversity (VERTOVEC, 2007), we invite the reader to rethink Brazil from a plurilingual perspective. Finally, we also consider essential to terminate with the notion of teaching “foreign languages”, replacing it with the concept of elective bilingualism.

Introdução

A sociedade brasileira parece majoritariamente acreditar em uma espécie de “mito do monolinguismo” (CAVALCANTI, 1999; CAVALCANTI; CÉSAR, 2007). Essa concepção equivocada faz crer que o território brasileiro é uniformemente ocupado pela língua portuguesa, e que todos os brasileiros são apenas falantes de português. A percepção de monolinguismo é o resultado de anos de políticas de interdição a outras línguas no espaço brasileiro, especialmente as línguas minoritárias, sempre em torno do projeto de construção de uma nação brasileira idealizada (cf. MAHER, 2007). Tal percepção parece reverberar a crença equivocada de “um povo, uma nação, uma língua”, a partir da qual o brasileiro, por sua herança de matriz portuguesa, mantivera apenas a língua dos colonizadores europeus, apesar das inúmeras línguas existentes no território brasileiro.

Quando entrei no curso de Letras, na Universidade de São Paulo (USP), logo em meu primeiro trabalho de campo, choquei-me com a constatação de que a maioria dos brasileiros não considerava falar bem o português. No trabalho em questão, perguntamos às pessoas se elas se autoavaliavam falar português bem. A grande maioria das pessoas informou-nos que não. Esse pequeno trabalho de campo, em uma disciplina introdutória de graduação, faz-nos lembrar da petição do major Policarpo, personagem central do romance escrito por Lima Barreto (1881-1922), Triste Fim de Policarpo Quaresma:

Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se veem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, além, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical, vendo-se, diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma – usando o direito que lhe confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional declare o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro [...]. (BARRETO, 2017 [1911], p. 44-45).

A petição do major Policarpo, ou meu primeiro trabalho de campo, relembram-nos que mesmo a pluricentralidade da língua portuguesa ainda é mal compreendida por muitos brasileiros. No geral, há bastante desconhecimento, por parte da sociedade brasileira, dos diferentes saberes e conceitos produzidos pelas pesquisas em Linguística. Diante disso, este texto elenca um conjunto de questões indispensáveis, a nosso ver, no debate sobre os professores brasileiros de escolas da educação básica e de institutos de idiomas, inseridos no contexto do ensino da língua inglesa e da educação bilíngue.

Em nosso contexto de pesquisa, observamos que muitos professores brasileiros de língua inglesa são, em geral, falantes bilíngues de português-inglês, e que aprenderam a língua inglesa no território brasileiro. Ponderamos, assim, que estes brasileiros optaram1 por aprender a língua inglesa, pelas supostas vantagens que possam vir a obter, pelo estatuto de prestígio que essa língua lhes poderia conferir, ou também pelo estatuto de língua franca que a língua inglesa vem assumindo tanto no contexto mundial, como no brasileiro (cf. RAJAGOPALAN, 2009; BRASIL, 2018). Esses professores brasileiros de língua inglesa são percebidos, em nossas considerações, como sujeitos importantes de uma relação sociolinguística que aqui caracterizamos como bilinguismo eletivo (BAKER, 2001). Por bilinguismo eletivo, entendemos a situação em que os indivíduos escolhem aprender outra língua (ORTIZ PREUSS; ALVARES, 2014, p. 405). A nosso ver, é estranho ainda pensarmos em “ensino de línguas estrangeiras” ou em “falantes estrangeiros”, como se esses falantes não pudessem conceber a si próprios e serem pensados em sua condição de sujeitos bilíngues (cf. MEGALE, 2017).

O percurso proposto delineia-se a partir de cinco pontos principais, que constituem o que caracterizamos como “considerações iniciais para linguistas e professores”: (1) a questão da variação linguística e da emergência das gramáticas das línguas naturais, como fundamentos da Linguística científica; (2) o prestígio da língua inglesa no cenário brasileiro e a superdiversidade contemporânea (VERTOVEC, 2007), que complexifica as práticas e contatos linguísticos nos diversos espaços geográficos; (3) o ensino de língua inglesa no Brasil e o aumento da oferta de propostas de ensino desta língua sob o viés da Educação Bilíngue; (4) o bilinguismo visto em termos da utilização de duas ou mais línguas na vida cotidiana, e o bilinguismo eletivo do professor brasileiro de língua inglesa como sujeito bilíngue; (5) a ciência entendida como prática da vida cotidiana (MATURANA, 2014) e a necessária reorientação das concepções de bilinguismo, para que os espaços escolares sejam mais acolhedores, rompendo com a visão de “ensino de línguas estrangeiras”.

Com este ensaio, almejamos também registrar, em um mesmo espaço, argumentos de diferentes disciplinas das ciências da linguagem, nem sempre acessíveis ao leitor não especializado. Nesse âmbito, convidamos nossos leitores a repensar o Brasil pela ótica plurilíngue, muito distante de um país “que fala apenas a língua portuguesa”. Nosso território sempre foi composto por inúmeras línguas, mesmo antes da chegada dos colonizadores europeus. Com a globalização, os inúmeros avanços nos meios de comunicação e os movimentos migratórios, outras línguas também se propagam em nosso espaço sociocultural. Consequentemente, novas práticas linguísticas podem ser observadas, a partir de nossas múltiplas interações.

1. Conhecimento acadêmico e reconhecimento escolar: o professor de línguas e a variação linguística

Uma primeira questão bastante discutida nos espaços acadêmicos remete ao distanciamento (ou até mesmo uma defasagem) entre o conhecimento cientificamente produzido sobre as línguas naturais, como objeto de pesquisa, e o conhecimento sobre as línguas transmitido nos espaços escolares. Tal questão parece-nos fundamental para a desejável democratização e popularização dos conhecimentos produzidos pela Linguística como fazer científico, por parte da sociedade brasileira.

Nesta direção, a investigação sobre o papel do professor de línguas, sua formação, suas práticas e suas concepções subjacentes são muito importantes para a proposição de mudanças no ambiente escolar, que venham a beneficiar tanto professores quanto alunos. Xavier (2016, p. 165) afirma que “formar um professor autônomo, possuidor de base sólida em sua disciplina de atuação, um ser humano independente e reflexivo que tenha condições de levar seu aluno ao encontro do conhecimento não é tarefa que possa ser facilmente alcançada”.

Em minhas primeiras leituras sobre formação de professores, conheci o experimento de Hughes & Lascaratou (1982), no qual os pesquisadores pediram que três grupos de participantes – (i) professores de inglês de nacionalidade grega, (ii) professores de inglês de nacionalidade britânica e (iii) britânicos não-docentes – avaliassem erros linguísticos de alunos gregos. O estudo demonstrou que os erros considerados mais graves pelos professores gregos não eram geralmente os mesmos considerados pelos britânicos não-docentes. Os professores tendiam a avaliar como mais graves os desvios gramaticais de natureza morfossintática, ao passo que os avaliadores não-docentes se centraram mais nas questões de inteligibilidade e entendimento dos enunciados ali presentes, ou seja, em questões mais ligadas aos domínios semântico-pragmáticos.

No contexto brasileiro, mesmo no âmbito da língua portuguesa, já existe um enorme distanciamento entre o discurso linguístico transmitido nas escolas de educação básica e a língua que efetivamente utilizamos em nossa vida cotidiana. O estudo da colocação pronominal pode ilustrar esse ponto. No espaço escolar, os estudantes brasileiros escutam que “a ordem preferencial do português é a ênclise”, ao estudar este tópico gramatical. Mas, em nosso cotidiano, no Brasil, falamos “te amo”, “te falei”, “me dá”. Essa incongruência é bem capturada pelo poeta Oswald de Andrade (1890-1954), no poema “Pronominais” (1925):

Pronominais

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro. (ANDRADE, 1972 [1925).

Modelos de ensino não baseados nos preceitos da Linguística contemporânea acabam tendo por base epistemológica subjacente o “relativamente” superado2 modelo da Gramática Tradicional (cf. FARACO, 2008). Por conseguinte, muitas vezes de modo ingênuo, adota-se uma visão de língua estática, singular e homogênea, como se a língua e a Gramática Tradicional fossem uma mesma entidade: como amplamente demonstrado pela Linguística, não o são. É nesse domínio que, como linguistas, reconhecemos existir ainda certo desconhecimento dos princípios fundamentais de nosso campo do saber, por parte do público em geral.

A questão da variabilidade das línguas naturais, a variação linguística, é um dos conceitos centrais e fundamentais da teoria linguística atual. Faraco (2008) ilustra bem esta centralidade:

Como os estudos científicos da linguagem verbal têm mostrado, nenhuma língua é uma realidade unitária e homogênea. Só o é, de fato, nas representações imaginárias de uma cultura e nas concepções políticas de uma sociedade.

No plano empírico, uma língua é constituída por um conjunto de variedades. Em outras palavras, não existe língua para além ou acima do conjunto das suas variedades constitutivas, nem existe a língua de um lado e as variedades de outro, como muitas vezes se acredita no senso comum: empiricamente a língua é o próprio conjunto das variedades. Trata-se, portanto, de uma realidade intrinsicamente heterogênea. (FARACO, 2008, p. 31 – grifos nossos).

Se tanto no plano empírico, quanto no debate científico, como aponta Faraco (2008), é fácil comprovar-se que as línguas naturais sejam constituídas por conjuntos de variedades, o discurso padrão de muitos professores de línguas, nos diversos contextos educacionais brasileiros, ainda destoa bastante do que vem sendo descrito pelos cientistas da linguagem. A variação linguística parece ser, antes de tudo, uma das inúmeras facetas da dimensão criativa da cognição humana, que nos permite memorizar, armazenar, combinar e recombinar elementos linguísticos, almejando criar diferentes efeitos de sentido junto a nossos interlocutores.

Não menos importante, vale destacar, as gramáticas são “emergentes”, como afirma Hopper (1987). As estruturas gramaticais das línguas naturais são provisórias, fluídas e sempre negociáveis nas interações entre os seres humanos. Essa concepção de gramática é um tanto diferente daquela “gramática vista como livro”, que por sua própria finitude material, não consegue dar conta de todos os usos linguísticos potenciais, gerados por meio da criatividade e inteligência humanas, quando enchemos de vida e dinamicidade as estruturas linguísticas por meio de nossas enunciações.

Deste modo, uma primeira consideração é que o espaço sociocultural brasileiro pode vir a potencializar essa sensação de distanciamento entre o sujeito falante e sua(s) língua(s), uma vez que o falante brasileiro de português também não se reconhece na sua própria língua materna, ao menos conscientemente. O discurso dogmático sobre a norma culta da língua portuguesa, embora não tenha explicitamente essa intenção, parece gerar, reforçar e realimentar um potencial distanciamento entre falantes e seus repertórios linguísticos.

2. A superdiversidade nos contextos urbanos e a língua inglesa no Brasil

Aprender inglês é uma competência bem-avaliada pela maior parte da sociedade brasileira (cf. FINARDI, 2016; RAJAGOPALAN, 2016). Especialmente nos grandes centros urbanos do Brasil, há um discurso usual que alega que aprender a língua inglesa pode melhorar oportunidades profissionais futuras, por exemplo. Observemos uma amostra desse discurso no excerto de uma peça publicitária disponibilizada no Portal Terra, em fevereiro de 2020:

“FALAR INGLÊS É META PARA 2020 DE MUITOS BRASILEIROS

Entra ano, sai ano e aprender inglês é uma das principais promessas de Ano Novo de muitos brasileiros. [...].

A importância de aprender inglês é velha conhecida dos brasileiros: Até quem não domina o idioma estrangeiro sabe que aprender a língua inglesa pode trazer muitos benefícios na vida. Entre os principais estão: aumenta as chances de conseguir emprego; pode fazer seu salário aumentar; permite morar em qualquer lugar do mundo (inglês é considerado o idioma mundial); possibilita se graduar no exterior ou fazer intercâmbio.

Ou seja, ter conhecimento do idioma pode trazer uma série de realizações profissionais e pessoais. Por esse motivo é meta para muitos brasileiros no próximo ano” (DINO, 2020).

Esse discurso, que atrela o inglês à ascensão social, tende a reforçar a posição de prestígio que essa língua adquire, no contexto brasileiro. Muitos parecem crer que aprender inglês seja necessário para que se possa romper com nossa aparente barreira monolíngue. No entanto, mesmo professores de língua inglesa, brasileiros, muitas vezes não se reconhecem como falantes bilíngues. A maioria destes professores parece conceber a língua inglesa na perspectiva de uma “língua estrangeira”, sem refletir sobre seu próprio bilinguismo.

Nos últimos anos, temos visto surgir inúmeras escolas com propostas relacionadas à educação bilíngue, ofertando o ensino de inglês, na maioria das vezes. A importância da língua inglesa no cenário sociocultural brasileiro é bem captada por Megale (2018), ao ponderar sobre o aumento do número de escolas bilíngues em nosso território:

Na era de mundialização da comunicação, globalização da economia e planetarização das relações internacionais, os brasileiros, de forma geral, demonstram um interesse cada vez maior em aprender línguas estrangeiras de prestígio, principalmente, o inglês, devido, não só ao fato de que essa língua exerça o papel de comunicação mundial por excelência, mas, também, pela representação que circula comumente no imaginário nacional de que a língua inglesa proporcionaria maiores possibilidades de ascensão social (RAJAGOPALAN, 2009). Nesse cenário, evidencia-se um crescimento significativo, no Brasil, de escolas bilíngues que têm como línguas de instrução o inglês e o português (MEGALE, 2018, p. 1).

Apesar do crescimento do número de escolas com propostas de educação bilíngue português-inglês, pouco se reflete, todavia, sobre o estatuto dos sujeitos bilíngues inseridos nesses contextos. Savedra (1994, p. 127-128) apresenta-nos os conceitos de “bilinguismo” e “bilingualidade”, a partir das considerações efetuadas por Hamers & Blanc (1983). Segundo a autora, o bilinguismo é a “situação em que coexistem duas línguas como meio de comunicação num determinado espaço social”, e a bilingualidade “representa os diferentes estágios de bilinguismo pelos quais os indivíduos bilíngues passam na sua trajetória de vida”. Nesta perspectiva, o bilinguismo tem natureza mais macrossituacional, remetendo ao contexto social de uso das línguas, enquanto a bilingualidade tem por escopo a competência individual de cada falante.

Uma primeira inferência possível, parece ser que, no contexto brasileiro, o acesso à língua inglesa almeja mais à bilingualidade que ao bilinguismo. Ou seja, parece que muitos de nós, que estudamos inglês, o fizemos mais pelo desejo de possuir uma competência de produção discursiva em outra língua, do que pelo desejo de tornar o Brasil um “país plurilíngue”, através da adoção da língua inglesa como componente essencial na construção de uma suposta identidade nacional homogênea. O brasileiro parece desejar falar inglês mais que ser alguém bilíngue, ainda que criticamente, seja necessário efetuar um verdadeiro exercício analítico para que se possa explicar como um fato poderia ocorrer sem o outro.

Ainda assim, no atual contexto da globalização, com formas híbridas de interação entre os indivíduos e certas facilidades em termos de movimentação pelo planeta, tem sido bastante difícil analisar o espaço social sob perspectivas estabilizadoras e/ou homogêneas. Vertovec (2007) apresenta-nos o conceito de “superdiversidade”: a diversidade dentro da diversidade. Cada vez mais, essa superdiversidade gera situações nas quais é difícil caracterizar grupos uniformemente – quem é o outro e quem somos nós – visto que “o outro” é uma categoria dinâmica, difusa, complexa e imprevisível, em constante fluidez. Observa o autor ainda que, a partir dos anos 1990, duas forças coocorrentes, em termos históricos, remoldam drasticamente a maneira como as pessoas organizam suas vidas: (a) reconfigurações no âmbito do poder, das influências e, também, da circulação de pessoas, no espaço global, consequentes da nova ordem mundial emergente no cenário pós-Guerra Fria; (b) o surgimento da Internet, que impõe mudanças profundas nos padrões de comunicação decorrentes dessas tecnologias, em escala global. Embora Vertovec (2007) construa o conceito de superdiversidade a partir da pesquisa antropológica, a aplicação do conceito tem sido importante, para a depreensão de fenômenos linguísticos complexos existentes em nossos múltiplos espaços contemporâneos.

Blommaert (2013) afirma que a noção de “mobilidade” é central nos estudos sociolinguísticos de ambientes globalizados, por permitir romper com a concepção de língua como algo relativamente fixo no espaço e no tempo. Ao destacar que todo espaço físico é também um espaço político, cultural e social e, portanto, um espaço de poder controlado por pessoas (que detêm este poder), o autor rememora que as línguas, ou suas variedades linguísticas, sempre foram tidas como pertencentes a comunidades de fala específicas. Se as pessoas, com suas línguas, habitavam espaços determinados, em um tempo preciso, agora a situação é um tanto diferente.

Antes, as pessoas se entendiam porque conheciam umas às outras, os papéis e expectativas sociais eram mais estáveis, e havia certo conhecimento consensual acerca dos aspectos socioculturais relativos a uma comunidade específica. Em nossa época, ao observamos os ambientes com superdiversidade, o autor alega existir uma “mobilidade perturbadora”, por conta das inovações tecnológicas no domínio dos transportes e dos meios de comunicação. Essa mobilidade perturbadora complexifica as relações entre as pessoas, as culturas e as línguas, criando certo grau de imprevisibilidade (BLOMMAERT, 2013, p. 8) para os observadores e para as metodologias de pesquisa científica. Tais situações têm sido cada vez mais frequentes em nossas vidas, especialmente nos centros urbanos, neste século XXI.

A superdiversidade e a mobilidade perturbadora requerem novas abordagens para o conceito de comunidade linguística. Essa necessidade tem sido bastante apontada nas pesquisas dos contextos plurilíngues. Lima-Hernandes (2016), por exemplo, ao conjeturar sobre as línguas de herança, reconhece a limitação do conceito de comunidade de fala, a complexidade da noção de pertencimento, e sobretudo, a dificuldade de caracterização de ocorrências linguísticas em contextos de (super)diversidade:

Como lidar com os entremundos, com a diversidade? Começa que o rótulo comunidade linguística como um recorte que congregue iguais pode não funcionar no contexto de LH (= língua de herança). Entre os membros dessa “comunidade” poderá haver uma língua oficial não compartilhada. Cada um poderá falar em uma das línguas ou nas duas ao mesmo tempo. A decisão, no entanto, não é aleatória. É uma decisão treinada ao longo da aquisição da linguagem e segue pela vida afora, deslocando o falante para estar cada vez mais dentro de um grupo restrito (LIMA-HERNANDES, 2016, p. 102)

O estatuto da língua inglesa, em escala global, gera inúmeros pontos de reflexão tanto para os cientistas, quanto para os professores de línguas. Normalmente, na qualidade de linguistas, estamos habituados a caracterizar as línguas em conjugação com o grupo social que faz uso destas para suas interações e trocas. Nossas sociedades cada vez mais interconectadas e superdiversificadas, em nível planetário, demandam dos cientistas novos olhares, reflexões, análises e teorias, para a explicação dos fenômenos corriqueiros que ali acontecem cotidianamente. Já os agentes de mercado têm conseguido lidar com mais rapidez, ainda que nem sempre os discursos por eles veiculados estejam em conjunção com as postulações propostas pelas comunidades científicas.

3. O ensino da língua inglesa no cenário brasileiro: das aulas de língua estrangeira para as propostas de educação bilíngue

O ensino da língua inglesa, no Brasil, ocorre em diferentes espaços, tanto na esfera da educação pública, quanto em ambientes de educação privada, seja em escolas regulares, em escolas bilíngues, ou até mesmo em institutos de idiomas. É fundamental registrar também que inúmeros profissionais do ensino de língua inglesa, atuantes em muitos desses espaços, não são formados na área de Letras, o que a nosso ver, agrava a necessidade de reflexão sobre os pontos elencados ao longo deste texto.

Ainda que sem um projeto estatal de plurilinguismo explícito, que adote a língua inglesa para tal finalidade, com a entrada em vigência do documento normativo “Base Nacional Comum Curricular” (BRASIL, 2018), doravante BNCC, o ensino de inglês na educação básica passou a ter endosso oficial do Estado brasileiro. A BNCC exige a oferta de língua inglesa a partir do 6º ano do Ensino Fundamental, ano inicial da etapa “Ensino Fundamental – Anos Finais”. Destacamos que a BNCC (re)oficializa3 a obrigatoriedade do ensino da língua inglesa, mas que sua adoção já vinha acontecendo antes, por meio do componente curricular “Língua Estrangeira Moderna”, previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB – BRASIL, 1996).

A BNCC, que preconiza a ideia de “direitos de aprendizagem” (BRASIL, 2018, p. 7) para os estudantes da educação básica brasileira, justifica a opção curricular pela língua inglesa da seguinte maneira:

Aprender a língua inglesa propicia a criação de novas formas de engajamento e participação dos alunos em um mundo social cada vez mais globalizado e plural, em que as fronteiras entre países e interesses pessoais, locais, regionais, nacionais e transnacionais estão cada vez mais difusas e contraditórias. Assim, o estudo da língua inglesa pode possibilitar a todos o acesso aos saberes linguísticos necessários para engajamento e participação, contribuindo para o agenciamento crítico dos estudantes e para o exercício da cidadania ativa, além de ampliar as possibilidades de interação e mobilidade, abrindo novos percursos de construção de conhecimentos e de continuidade nos estudos. (BRASIL, 2018, p. 241).

A BNCC atribui à língua inglesa o estatuto de língua franca (BRASIL, 2018, p. 241) e nada comenta sobre a possibilidade de bilinguismo neste contexto. Na realidade, o termo “educação bilíngue” e “bilinguismo”, ao longo do documento (BRASIL, 2018, p. 70-71), seguem estritamente relacionados aos contextos de bilinguismo reconhecidos pelo Estado brasileiro, a partir da Constituição Federal de 1988, a saber: a educação indígena, a educação de fronteira, a educação de surdos e a educação de comunidades imigrantes.

Muitos brasileiros não aprendem a falar o inglês na escola da educação básica. De certo modo, as aulas de inglês oferecidas na educação básica centraram-se muito na tentativa de desenvolvimento de conhecimentos de língua inglesa através de uma abordagem dita instrumental (BRITISH COUNCIL, 2017), baseada principalmente no trabalho com textos escritos, práticas de tradução desses textos e a memorização e repetição de padrões gramaticais fixos extraídos a partir dessas leituras.

Ainda que o trabalho com a oralidade tenha ficado relegado para fora dos muros da escola básica, por conta desse desejo de “falar inglês”, a língua inglesa não perdeu prestígio no Brasil. Tal incumbência acabou incidentalmente delegada aos institutos de idiomas (MARCELINO, 2009), gerando um robusto mercado de ensino de línguas, na paisagem econômica brasileira4. Estes institutos ofertam cursos livres de língua inglesa, e muitas vezes também de outras línguas ditas “modernas”. Esse mercado de ensino de línguas de prestígio promete cumprir o que não se alcançou com as aulas de línguas da educação básica.

Os familiares e responsáveis de alunos brasileiros esperam que seus filhos se desenvolvam, nos diversos componentes curriculares oferecidos nas escolas, mas avaliam muitas vezes que o “inglês do colégio é fraco”, e que para tanto, poder-se-ia buscar um instituto de idiomas, que realmente ensinasse os alunos a dominar a língua inglesa. É notório, portanto, que ninguém cursa matemática na escola regular, por exemplo, na expectativa de aprender efetivamente os conteúdos dessa disciplina em uma outra instituição, como acontece muitas vezes com a língua inglesa.

É nessa perspectiva que surgem novas abordagens para a oferta de língua inglesa, no contexto da educação básica brasileira, nos últimos anos. Marcelino (2009, p. 1) aponta que “o crescimento do bilinguismo no Brasil evidencia um desenvolvimento na educação e uma demanda mercadológica pressionada pelos pais de alunos de escolas regulares”. Ou seja, a necessidade mercadológica de alguns colégios particulares acabou fazendo com que se buscassem alternativas que possibilitassem aos familiares dos alunos não precisar procurar “pela prestação de um serviço” (o ensino de língua inglesa) fora daquele espaço escolar. Não haveria mais a necessidade do ensino de uma disciplina já contemplada naquele projeto pedagógico, tal como de fato ocorre com as demais disciplinas. Assim, Marcelino (2009, p. 2) salienta que as escolas bilíngues integram o papel dos institutos de idiomas às escolas regulares, ao oferecerem “educação de qualidade” e o ensino de um idioma adicional.

A partir da década de 2010, observa-se também uma maior utilização do rótulo “programa de educação bilíngue”, na esfera da educação privada brasileira. Os programas bilíngues são um tipo novo de modalidade de serviço oferecido a escolas privadas, que viabilizam uma ampliação da carga horária dedicada à aprendizagem de língua inglesa. Diferenciam-se das escolas internacionais, que costumam seguir um currículo de outro país, e das escolas bilíngues, cuja definição legal encontra-se em homologação, neste ano de 2021, pelo Conselho Nacional de Educação5. A fronteira entre a escola bilíngue e a escola que adota um programa bilíngue ainda não é muito nítida, no cenário brasileiro contemporâneo.

A literatura especializada afirma que “a educação bilíngue é aquela educação que acontece em duas (ou mais) línguas” (BAKER, 2001; GARCÍA, 2009). A leitura de García (2009, p. 26) possibilita-nos diferenciar teoricamente as práticas em educação bilíngue daquelas conduzidas nos institutos de idiomas. Segundo a autora, a educação bilíngue utiliza uma língua adicional como um meio para a instrução de conteúdos escolares, ao passo que os programas tradicionais de ensino de idiomas focam na utilização da língua alvo como o próprio conteúdo a ser instruído. Na educação bilíngue, utiliza-se a língua adicional para o estudo de saberes de outros componentes curriculares, como matemática, artes ou ciências, por exemplo. Nos programas de ensino de línguas estrangeiras, tal como verificado nos institutos de idiomas, privilegia-se apenas o desenvolvimento de habilidades linguísticas, o estudo da língua através de textos orais e escritos, sem que isso necessariamente envolva conteúdos acadêmicos: o foco da abordagem é o estudo restrito ao desenvolvimento de competências de recepção e produção oral e escrita nessa outra língua.

Com a emergência de escolas bilíngues e escolas com programas bilíngues, pelo Brasil, será necessário futuramente observar-se o que esse contexto tem entendido por educação bilíngue, e como tem executado tal modalidade de educação. Outra proposta de investigação futura pode se centrar na descrição e análise de como as diferentes línguas são utilizadas nas aulas de/em língua inglesa nos programas de educação bilíngue. A partir da ótica dos professores, pode-se inclusive, observar o modo como eles concebem e utilizam as suas línguas em suas aulas (se como uma finalidade ou como um meio) e quais são suas expectativas com relação aos alunos, diante daquilo que trazem para as práticas em sala de aula. Não menos importante, o ponto de partida também pode ser a própria autopercepção desse professor acerca de seu próprio estatuto enquanto sujeito bilíngue e sobre o seu repertório linguístico.

4. Bilinguismo eletivo e o professor brasileiro de língua inglesa

Quando voltamos nossas atenções para a autopercepção dos professores brasileiros de língua inglesa acerca de seu estatuto de sujeitos bilíngues, observamos que a comparação com falantes nativos ainda é bastante recorrente. Gonzales (2016) afirma que a “falácia do falante nativo” tem implicações nas representações de professores de língua não nativos:

A falácia do falante nativo tem sido identificada como uma das ideologias mais prevalentes e prejudiciais a afetar os professores falantes não-nativos (NNSTs). [...]. Resultados deste estudo revelaram uma dicotomia na autopercepção dos participantes: embora eles não considerem a sua não-natividade como um problema em potencial nas suas carreiras futuras, por causa da sua educação continuada e suas vantagens como NNSTs, em relação aos professores nativos, os NNSTs se veem em uma posição desfavorável por sua “habilidade de língua e conhecimento cultural não-ideais”. (GONZALES, 2016, p. 461 – tradução nossa).

Embora a pesquisa supramencionada tenha ocorrido no contexto colombiano, avaliamos que estas asserções também podem se aplicar ao contexto brasileiro. Um exemplo para ilustrarmos essa questão é a pergunta clássica muito feita aos professores de inglês não nativos: “Você já foi para o exterior ou aprendeu só no Brasil?”. Esta simples pergunta – não isenta de pressupostos e implícitos, ideologias e concepções – costuma ser recorrente ao brasileiro que se apresente como professor de língua inglesa.

No entanto, conforme apontado por Grosjean & Li (2013, p. 6), “pesquisadores sobre bilinguismo têm repetido, ao longo dos anos, que metade da população mundial, se não mais, é bilíngue”. Assim, o bilinguismo, no contexto mundial, é mais regra do que exceção, e talvez mais comum e ocorrente do que estejamos acostumados a pensar e perceber, inclusive no domínio acadêmico. De tal modo, muitas pesquisas têm voltado suas atenções para a melhor compreensão do bilinguismo.

Wei (2000, p. 35) aponta que o “bilinguismo não é um fenômeno estático e unitário. Ele se manifesta de diferentes maneiras e muda a depender de uma variedade de fatores, tais como o fator histórico, cultural, político, econômico, ambiental, linguístico e psicológico [...]”. O bilinguismo, por si só, é complexo, cheio de nuances e possibilidades de exploração. Longe de explorarmos toda a complexidade de variáveis presentes nos estudos que versam sobre o bilinguismo, subscrevemo-nos, neste trabalho, ao posicionamento que o conceitua como a utilização de duas ou mais línguas na vida cotidiana:

As palavras “bilíngue” e “bilinguismo” têm muitos significados diferentes dependendo do contexto em que são usadas. Elas podem incluir o conhecimento e o uso de duas ou mais línguas, a apresentação de informações em duas línguas, a necessidade de duas línguas, o reconhecimento de dois ou mais idiomas, e assim por diante. [...]. Definiremos bilinguismo, e mesmo multilinguismo, como o uso de duas ou mais línguas (ou dialetos) na vida cotidiana (GROSJEAN; LI, 2013, p. 5 – tradução nossa).

Existe ainda, no campo dos estudos linguísticos sobre o bilinguismo, uma série de pesquisas que conceituam o sujeito bilíngue, o repertório linguístico do falante bilíngue, e suas diferenças com relação aos falantes monolíngues. Nesta direção, Grosjean (1989, p. 4-5) afirma existirem duas correntes sobre o conceito de bilinguismo, que impactam as concepções acerca do sujeito bilíngue, conforme apresentamos de modo sintetizado, abaixo:

(i) Visão fracionada ou monolíngue: bilíngues seriam (ou deveriam ser) como dois monolíngues em uma mesma pessoa. O bilíngue, deste modo, pode ser estudado assim como qualquer outro falante monolíngue;

(ii) Visão holística ou bilíngue: o falante bilíngue possui uma configuração linguística específica e única, haja vista não ser a somatória de duas competências linguísticas monolíngues completas ou incompletas. O bilíngue, deste modo, deve ser estudado em suas especificidades, pois não opera da mesma maneira que falantes monolíngues.

Na visão fracionada, os bilíngues teriam (ou deveriam ter) duas competências linguísticas isoláveis e separadas. Essas competências seriam similares a aquelas correspondentes em falantes monolíngues das línguas em questão: assim, o falante bilíngue seria a conjunção de dois monolíngues em uma mesma pessoa. Nessa perspectiva, o sujeito bilíngue pode considerar suas competências linguísticas inferiores às dos falantes nativos (GROSJEAN, 1989, p. 5), o que corrobora as conclusões apresentadas por Gonzales (2016).

Grosjean (1989, p. 4) defende que “o falante bilíngue não é dois monolíngues em uma mesma pessoa”, alegando ser necessário adotarmos a visão holística, para entender o sujeito bilíngue sob uma ótica mais concreta e menos idealizada. O autor relembra que, em muitos estudos, “monolíngues têm sido o modelo de falante-ouvinte ‘normal’, e os métodos de investigação desenvolvidos para estudar a fala e a linguagem monolíngues têm sido usados com pouca ou nenhuma modificação para estudar bilíngues” (GROSJEAN, 1989, p. 5 – tradução nossa). Por isso, o autor assegura que as competências linguísticas dos sujeitos bilíngues não devem ser comparadas com as dos falantes monolíngues, pois o sistema linguístico do sujeito bilíngue não é imperfeito, como o modelo do falante nativo pode fazer crer.

Grosjean (2010) discorre sobre o “princípio da complementaridade do falante bilíngue”. Grosso modo, entende-se que “bilíngues geralmente adquirem e usam suas línguas para diferentes propósitos, em diferentes domínios de sua vida, com pessoas diferentes. Diferentes aspectos da vida geralmente requerem línguas diferentes” (GROSJEAN, 2010, p. 29 – tradução nossa). Por tal princípio, destaca-se que a função de cada língua é desigual, para o falante bilíngue, em seu domínio cognitivo, visto que geralmente cada língua costuma ser usada em propósitos específicos (ex.: universo laboral, práticas religiosas, contextos afetivos, contextos educativos etc.). Tais propósitos variam, e podem se modificar, ao longo da vida de cada falante (GROSJEAN, 2010, p. 85-86). O grau de fluência também pode oscilar, dependendo desses propósitos em questão, dentre outros fatores.

O autor destaca ainda que em alguns contextos e situações, o sujeito bilíngue pode fazer uso de ambas as línguas, concomitantemente. O repertório linguístico dos falantes bilíngues é completo, respondendo às suas necessidades de comunicação, seja utilizando uma ou outra língua, seja utilizando ambas. Uma vez reiterado que falantes bilíngues são diferentes de falantes monolíngues, e que a concepção de falante nativo ainda é bastante idealizada, e consequentemente problemática (cf. PAIKEDAY, 1985), podemos avançar um pouco mais sobre a questão da autopercepção do professor de língua inglesa sobre seu próprio bilinguismo.

Preferimos caracterizar esta situação aqui discutida, dos professores brasileiros “não-nativos” de língua inglesa, como um exemplo de bilinguismo eletivo, isto é, quando os sujeitos bilíngues optam por aprender outra língua, além daquela considerada sua “língua materna”. Baker (2001) apresenta-nos a definição de bilinguismo eletivo, contrapondo este tipo de bilinguismo ao bilinguismo circunstancial, e relacionando-o à noção de prestígio:

Bilinguismo Eletivo: O bilinguismo eletivo é uma característica dos indivíduos que optam por aprender uma língua, por exemplo, em sala de aula. Os bilíngues eletivos vêm de grupos de idiomas majoritários (por exemplo, americanos que falam inglês e aprendem espanhol ou francês). Eles adicionam um segundo idioma sem perder o primeiro idioma.

Bilinguismo Circunstancial: Os bilíngues circunstanciais aprendem outra língua para sobreviver. Por causa de suas circunstâncias (por exemplo, como imigrantes), eles precisam de outro idioma para viverem de maneira eficaz (por exemplo, latinos nos Estados Unidos).

O bilinguismo eletivo é uma questão de escolha. O bilinguismo circunstancial geralmente trata da sobrevivência com pouca ou nenhuma escolha. A diferença entre o bilinguismo eletivo e o circunstancial é, portanto, valiosa porque aumenta imediatamente as diferenças de prestígio e status, política e poder entre os bilíngues (BAKER, 2001, p. 3-4 – grifos nossos, tradução nossa).

O bilinguismo eletivo tende a ser aditivo, acrescentando línguas ao repertório linguístico do falante. O bilinguismo circunstancial pode vir a ser subtrativo, ou não, dependendo da conjuntura que o sujeito venha a enfrentar. Isso ocorre porque no bilinguismo eletivo, os sujeitos podem escolher aprender outra língua, ou seja, suas circunstâncias socioeconômico-culturais lhes permitem deliberar sobre essa questão. Já o bilinguismo circunstancial, como observado nas situações de ensino de línguas para acolhimento, por exemplo, relaciona-se muito mais às necessidades de sobrevivência e adaptação. Nestas ocasiões, as perspectivas de escolha costumam ser muito reduzidas, já que a situação socioeconômica geralmente lhes exige outras prioridades.

O termo “bilinguismo eletivo” tem sido ainda pouco utilizado no Brasil. O primeiro trabalho brasileiro que encontramos, utilizando o termo, foi Ortiz Preuss & Alvares (2014, p. 407), que conceituam o bilíngue eletivo como “aquele que fala a língua dominante e outra de prestígio no grupo social”. Posteriormente, rastreamos um trabalho que menciona o termo (cf. CHEDIAK, 2019), mas cujo escopo específico são questões relacionadas a biletramento e ao ensino de leitura. Vale comentar ainda que, no contexto brasileiro, o termo “eletivo” (do inglês, elective) costuma estar associado a “elite”. Diversos trabalhos em língua portuguesa falam em “educação bilíngue de elite” (cf. LIBERALI; MEGALE, 2016), já que escolas desse contexto costumam ser escolas da rede privada. No entanto, na concepção aqui apresentada, o termo “bilinguismo eletivo” é mais abrangente que o termo “educação bilíngue de elite”, já que aquele pode potencialmente remeter a múltiplos contextos de ensino de língua inglesa, incluindo os que ocorrem na educação pública.

Como pesquisador, avalio que conceber o ensino de línguas sob esta ótica – do bilinguismo eletivo – pode ser mais acolhedor que a concepção de “ensino de línguas estrangeiras”, por exemplo. Faço tal consideração ao observar que a maior parte dos professores de inglês, seja pelo estatuto de prestígio do inglês no contexto mundial, seja por outros benefícios ou possibilidades que saber inglês pode oferecer, optam por aprender a língua inglesa, sem renunciar à língua portuguesa falada no Brasil. Portanto, esses professores são, no mínimo, sujeitos bilíngues.

5. Ciência e vida cotidiana: conhecer a si mesmo para reorientar as práticas de pesquisa e a formação docente

Muitos de nós apenas temos contato com as formulações da Linguística científica quando ingressamos no curso de Letras. Ainda assim, inúmeros egressos desse curso saem da faculdade com os mesmos preconceitos que possuíam anteriormente (cf. XAVIER, 2016) e com conhecimentos gerais apenas sobre gramáticas normativas, quando muito. Podemos assumir que a concepção subjacente de língua que muitos professores de inglês levam para a sala de aula é aquele normativa, desatrelada dos usos, instrumentalizada, homogeneizadora e, no contexto da língua inglesa, baseada nas práticas escritas cultas do eixo hegemônico “Estados Unidos-Reino Unido”. A situação é agravada quando consideramos que muitos profissionais do ensino de inglês tampouco são formados na área de Letras, ou seja, muitos seguem desconhecendo os saberes científicos produzidos pela Linguística.

O caminho da reflexividade, para o professor de inglês, na educação bilíngue ou não, é desejável para reorientar concepções equivocadas ou práticas contraproducentes em sala de aula. A BNCC, por exemplo, muito discorre sobre os direitos de aprendizagem do aluno, ou sobre novas necessidades curriculares, mas quase nada propõe quanto à formação dos profissionais de ensino. Na perspectiva adotada neste texto, não nos faz sentido imaginar que professores de língua inglesa não reconheçam seu próprio bilinguismo, seja operando com visões fragmentadas acerca do que é ser bilíngue, seja ainda se comparando a falantes monolíngues idealizados, que não existem efetivamente fora de algumas descrições gramaticais.

Sendo o bilinguismo eletivo uma situação de bilinguismo na qual há uma língua de prestígio que o falante escolhe adquirir/aprender, a reconstrução da perspectiva dos professores, enquanto agentes fundamentais nesse processo, faz-se muito necessária, visto que “[...] as temáticas abordadas sobre o ensino e aprendizagem podem ser múltiplas e se constroem, em muitos projetos, a partir de reflexões que emergem da sala de aula, relacionadas ao ensinar (professor) ou ao aprender (aluno)” (ALBUQUERQUE-COSTA; MAYRINK, 2015: 221). O resgate do eixo de prospecção dos professores brasileiros de língua inglesa, observando e analisando suas crenças e juízos, pode, de alguma maneira, permitir-nos reconstituir algumas características importantes do universo do bilinguismo, no espaço brasileiro.

É essencial não deixarmos a estaticidade de nossos livros ou das “normas cultas” fazerem-nos esquecer que todo ser humano, em situações biossociais adequadas, é um ser vivo cheio de inteligência, independentemente de onde nasça ou de qual língua tenha adquirido em sua infância precoce. Tampouco o mercado será capaz de oferecer “novas soluções educacionais”, sem que os professores reanalisem concepções equivocadas, mesmo quando tais percepções pareçam estar consolidadas. No debate sobre o ensino de inglês, um primeiro passo, a nosso ver, é reorientar a percepção dos professores brasileiros de língua inglesa, acerca de seus próprios repertórios linguísticos:

[...] não há ainda, no Brasil, formação específica para esse profissional [= da educação bilíngue], embora assistamos a um crescimento significativo dessas escolas por todo o país.

As angústias, dúvidas e possíveis certezas reveladas a partir dos posicionamentos dos professores de/em português e de/em inglês em relação ao seu repertório linguístico, aos repertórios linguísticos de seus alunos e ao cenário em que atuam, possibilitam elencar algumas demandas na formação desses profissionais e, consequentemente, a necessidade premente de realização de pesquisas que versem sobre essa questão no cenário brasileiro. (MEGALE, 2017, p. 220 – interpolação nossa)

Nem sempre é possível aos linguistas o lugar de “observadores puros”, para refletir sobre questões acerca do funcionamento da linguagem e das línguas naturais. Esta objetividade fria e ingênua, baseada talvez nos modelos das ciências naturais (DEMO, 1995: 81), não é produtiva, para o tipo de debate aqui proposto (cf. BORTONI-RICARDO, 2008; LIMA-HERNADES, 2016; OLIVEIRA E PAIVA, 2019), que se constrói sem a ilusão de pensarmos nossas vidas apenas sob a ótica de “objetos de pesquisa”.

Novos modelos científicos, mais acolhedores e humanizantes, também se fazem desejáveis, especialmente para os contextos da Linguística e da Educação. O modelo epistemológico proposto pelo pensador Humberto Maturana (1928-2021) parece ir nesta direção. Maturana (2014, p. 30) afirma que a ciência é a “glorificação da vida cotidiana”, uma vez que os cientistas têm paixão em explicar os fatos cotidianos. A paixão pelas explicações, diz o autor, ocorre mesmo quando estes cientistas, pela suposta extraordinariedade do fazer científico, pretendam isolar a ciência de suas próprias vidas, operando com noções como “objeto de estudo”. Segundo o autor, é justamente nessa conexão com a vida cotidiana que reside a validade do saber científico, e propostas que envolvam os sujeitos, no processo de construção dos saberes, também são desejáveis.

Ao refletir sobre o que é conhecer, o autor afirma que “o conhecimento é a apreciação do outro sobre a conduta de alguém, quando a considera adequada ou não” (MATURANA, 2014, 124). Ressalta este autor que o conhecimento é sempre adquirido na convivência, pois aprendemos a ser, de uma ou outra maneira, no convívio com outros seres humanos. Assim, descobre-se que, de algum modo, o conhecimento tem muito a ver com as ações consideradas adequadas, sempre em um domínio particular:

[...] Quando digo que há conhecimento? Muitos de vocês são professores e estão na tarefa de dizer se as crianças, os jovens, ou os adultos — dependendo do espaço no qual vocês são professores — sabem ou não sabem, conhecem ou não conhecem. O que é que se faz? O que é que faço como professor para dizer: "Este jovem conhece esta matéria o suficiente para passar de ano"? Olho sua conduta em um espaço que especifico com uma pergunta e, se a considero adequada nesse espaço, digo: "Sabe.". MATURANA (2014: 124)

A reflexividade do professor de língua inglesa acerca de suas práticas, portanto, é fundamental não apenas para a própria liberdade dos docentes, mas para todos, especialmente quando lembramos que os professores também são avaliadores de seus alunos. Humanizar a sala de aula e humanizar a ciência são atitudes indispensáveis para a construção de caminhos mais seguros para os diferentes sujeitos presentes nos espaços escolares. A maior autopercepção do professor reorienta tanto práticas de ensino, como práticas de pesquisa, permitindo ao docente fazer “ciência cotidiana”, ao se autoavaliar como agente no mundo. É nessa direção que reunimos o conjunto de considerações apresentadas ao longo deste ensaio.

Não importando qual teoria científica venhamos a construir, fato é que as línguas só possuem existência concreta na vivência real de seus sujeitos falantes, que necessitam ser concebidos e percebidos sempre em sua dimensão mais holística, integradora e humana. Por essa razão, recomendamos sempre que nós, educadores e cientistas, tenhamos sobretudo um compromisso com a dignidade e bem-estar dos seres humanos. Se a ciência é método, e as perguntas são muitas vezes melhores que as respostas oferecidas, talvez um caminho razoável, nas Humanidades, para classificarmos respostas científicas como plausíveis, seja aferirmos o quanto de liberdade e dignidade elas oferecem aos agentes humanos. Essa avaliação é plenamente possível sem perdermos de vista nosso compromisso científico com a lógica, a verdade e a possibilidade de verificação empírica das contatações propostas.

6. Considerações Finais

Nossas considerações partiram da constatação, muitas vezes velada, de que o professor brasileiro de língua inglesa não costuma se ver como sujeito bilíngue, pois se compara ao falante nativo de língua inglesa (GONZALES, 2016; MEGALE, 2017), especialmente aos nativos advindos de países considerados hegemônicos. Este professor pode considerar sua aquisição linguística incompleta ou imperfeita (GROSJEAN, 1989), em comparação com quem julga ser o verdadeiro falante ideal de língua inglesa. Esse professor parece também operar com uma concepção subjacente de língua restrita à modalidade escrita, adstrita a contextos cultos. Esse profissional parece se esquecer da onipresença da heterogeneidade linguística, por conceber a norma padrão como a única norma existente em nossas realidades sociais.

Avaliamos, neste ponto, que o espaço sociocultural brasileiro pode vir a potencializar essa sensação de distanciamento entre o sujeito bilíngue e seu repertório linguístico, uma vez que o falante de português brasileiro também não costuma se reconhecer na sua própria língua materna. O discurso dogmático sobre a norma culta da língua portuguesa, embora não tenha explicitamente essa intenção, gera, reforça e realimenta tal distanciamento.

Procuramos reconstituir também algumas questões referentes ao prestígio que a língua inglesa tem no cenário brasileiro, problematizando o conceito de comunidade linguística, em razão da instabilidade, dinamicidade e complexidade das práticas linguísticas existentes nos espaços com superdiversidade contemporâneos. Diante desses desafios, rótulos como “línguas estrangeiras” parecem-nos bastante superficiais, ou até mesmo, inadequados. É preciso reconhecer ainda que talvez até termos como bilinguismo ou multilinguismo/plurilinguismo já estejam antiquados, ou com potencial explicativo limitado, justamente devido à fluidez que emerge com as formas híbridas de interação e comunicação, cada vez mais presentes em nossas vidas cotidianas.

Não obstante, em nosso percurso expositivo, consideramos imperativo revisitar a literatura científica sobre o bilinguismo, para tentar elucidar alguns pontos sobre como os professores brasileiros de língua inglesa percebem os sujeitos bilíngues, suas práticas linguísticas e as línguas que compõem seus repertórios linguísticos. Sendo o bilinguismo a utilização de duas (ou mais) línguas na vida cotidiana, retomamos que a maior parte da população mundial é bilíngue, sendo na verdade o monolinguismo a situação excepcional para a maioria dos grupos humanos. Nessa perspectiva, é fundamental romper com a visão idealizada do sujeito bilíngue, como aquele que opera como “dois monolíngues” em uma mesma pessoa. O princípio da complementaridade linguística (GROSJEAN, 2010) nos relembra que os sujeitos bilíngues desenvolvem seu repertório linguístico de acordo com suas necessidades interativas, ou seja, suas línguas remetem a esferas de circulação concretas e específicas.

Seja por determinação de um documento normativo, como a BNCC, seja por demandas mercadológicas, como observado pela difusão da oferta de “programas de educação bilíngue”, uma tarefa fundamental relaciona-se ao perfil de professores que se almeja formar, para o ensino da língua inglesa, em nosso país. Por essa razão, a nosso ver, analisarmos o bilinguismo eletivo pode auxiliar-nos a fazer jus tanto ao bilinguismo promovido pelos contextos de ensino de línguas não-maternas, quanto às questões sobre os sujeitos bilíngues e seus repertórios linguísticos levantadas ao longo do ensaio.

Promover a reflexividade do professor brasileiro de língua inglesa é primordial, uma vez que, na qualidade de sujeitos bilíngues eletivos, não há espaço para visões ingênuas que, de certo modo, caracterizam os bilíngues brasileiros como “estrangeiros duplos” no português-inglês que compõem seu repertório linguístico, como discursos equivocados e puristas podem fazer crer. Para tanto, novos modelos de ciência, mais baseados em nossa dimensão subjetiva e holística, são também fundamentais, seja para que os espaços escolares se tornem mais acolhedores, seja para que possamos oferecer explicações mais precisas sobre os contatos linguísticos que ocorrem em nossos espaços, cada vez mais fluídos e dinâmicos.

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