Resumo para não especialistas
O território Xakriabá está localizado no município de São João das Missões, região norte de Minas Gerais. Essa região sofreu, desde o fim do século dezessete, com uma forte presença missionária e de colonização da terra, que ensejaram uma longa perseguição à cultura Xakriabá e à sua língua originária, o akwe᷉, do tronco linguístico macro-jê. Este trabalho discute as estratégias de retomada da língua akwe᷉ pelo povo Xakriabá, com foco no papel dos cantos nesse processo. Na primeira seção, abordamos a história Xakriabá e a perseguição da língua originária; na segunda parte, discutimos as estratégias de retomada adotadas; posteriormente, apresentamos cinco cantos em akwe᷉ e, por fim, algumas reflexões sobre a presença dos cantos e da espiritualidade na revitalização de línguas indígenas. Este ensaio é fruto de uma junção entre nossos estudos, realizados a partir de pesquisas com participação em atividades no território Xakriabá, entrevistas e consulta à bibliografia pertinente.
1. Os povos akwe᷉ e uma língua adormecida
Em uma região de paisagem semiárida do cerrado norte mineiro, cerca de 11 mil pessoas do povo Xakriabá vivem nas Terras Indígenas Xakriabá e Xakriabá Rancharia, localizadas no município de São João das Missões. A área homologada advém de uma doação realizada em 1728 por Januário Cardoso, chamado nos documentos históricos de “deministrador dos índios”. Especula-se que esta tenha sido uma recompensa pela aliança instituída para a expulsão dos Kayapó da região e a formalização do território também foi um modo de referendar a autoridade colonial e restringir a mobilidade da população originária, visto que a certidão de doação indicava castigos a serem aplicados e instruções para que fossem recolhidos os que “andassem por fazendas alheias” (SANTOS,1997; PARAÍSO,1987). O território ocupado tradicionalmente pelos Xakriabá era bem mais extenso, englobando, pelo menos, outras regiões dos atuais estados de Minas Gerais, Goiás e Tocantins (SILVA, 2010).
Durante o século XVIII ainda existiam grupamentos Xakriabá próximos aos povos Xerente, Xavante e Akroá, descritos por alguns pesquisadores como “povos irmãos”, por suas afinidades linguísticas e culturais. Naquele tempo, os Akroá viviam entre a região dos rios Tocantins e São Francisco, os Xerente e Xavante no alto rio Tocantins e os Xakriabá dominavam o território das nascentes do rio Paranaíba até o médio São Francisco (ABREU, 1992). Esses três últimos povos, no entanto, não seguiam uma ocupação espacial rígida e apresentavam espaços de uso comum (SILVA, 2010). Levando em conta a filiação linguística, Xerente, Xavante e Xakriabá têm como língua originária o akwe᷉, da família Jê, tronco Macro-jê (TEIXEIRA, 2000) e são chamados em alguns estudos de povos akwe᷉. O tronco Macro-jê compreende as famílias Chiquitano, Jabuti, Rikbaktsa, Ofayé, Karajá, Maxakali, Kamakã, Krenak e Jê e o akwe᷉ Xakriabá faz parte do subgrupo dos Jê Centrais, conforme podemos observar no quadro abaixo:
As relações com os Xerente e os Xavante, que são fluentes em suas línguas, são um elemento importante para a retomada do akwe᷉ Xakriabá, que esteve por muito tempo “adormecido”, devido a um longo processo de perseguição. O povo Xakriabá foi alvo de ataques por parte dos colonizadores desde 1690, quando se iniciou a empreitada do genocida Matias Cardoso para tomar o médio e alto São Francisco. No início do século dezoito também foram alvo da Igreja Católica através da instalação da Missão do Sr. São João do Riacho do Itacarambi (BAETA, 2000). É difícil precisar o impacto que a colonização e as missões tiveram sobre o uso da língua originária, mas ela sobreviveu. Após mais de um século de invasão, em 1819, Saint-Hilaire encontrou uma falante de akwe᷉ na região de São João das Missões e fez um glossário com suas palavras (SAINT-HILAIRE, 1937). Ao longo do tempo, muitas pessoas dão notícia de falantes do akwe᷉, com a ressalva de que estes procuravam esconder seus conhecimentos pelo temor de sofrerem represálias.
Já no século XX, as disputas pelo território foram intensas. Em 1926, fazendeiros invasores construíram um curral em local sagrado, que foi incendiado em forma de resistência, desencadeando uma série de violências contra os Xakriabá (SILVA, 2018). Outro marco na história de luta pela terra foi a década de 1980, no período conhecido como “Guerra do Sapé”, que culminou no assassinato das lideranças Cacique Rosalino Gomes de Oliveira, Manuel Fiuza da Silva e José Pereira Santana, em 12 de fevereiro de 1987 (FERNANDES, 2020). A Terra Indígena Xakriabá foi homologada naquele mesmo ano e somente em 2003 foi homologada a área contígua, denominada Terra Indígena Xakriabá Rancharia.
Devido a todos esses conflitos, durante muito tempo, ostentar qualquer traço cultural indígena, especialmente falar a língua, poderia significar um grande risco e até mesmo uma sentença de morte. Célia Xakriabá, refletindo sobre o preconceito sofrido por seu povo, aponta que as pessoas que exigem que um povo indígena fale sua língua desconsideram toda a política de extermínio linguístico ocorrida no Brasil e sentencia que “não é exatamente uma cultura, uma língua, que vai sustentar um território, mas, na verdade, é todo o território que sustenta uma cultura, uma língua e uma tradição” (Comunicação oral, 2022).
Apesar de toda a história de silenciamento, o akwe᷉ jamais desapareceu por completo no povo Xakriabá, em parte resguardado pelo segredo. Ele é a língua dos encantados, assunto sobre o qual não nos estenderemos em detalhe devido às restrições impostas pelo tema. Citamos, apenas, um trabalho publicado em 1983, no qual o antropólogo Mariz (1983) discorre sobre Estevão Gomes, importante liderança espiritual, que sabia falar plenamente a língua e a utilizava para se comunicar em rituais. O pajé José Araújo de Souza, conhecido como Déda ou Sirêpté, também relata que sua tia-avó e sua avó conversavam em uma língua diferente, que não utilizavam na frente das outras pessoas. Por fim, há relatos de que a anciã Dejanira Xakriabá, falecida em 2007, sabia a língua originária, que ensinou a seus filhos, entre eles o Sr. Jair Xakriabá, que empreendeu junto com sua família um intercâmbio com o povo Xerente no ano de 2010.
Muitas línguas indígenas dadas como extintas passaram por processos semelhantes de apagamento e agora estão em processos de retomada; alguns exemplos são o Patxohã, do povo Pataxó, o Dzubukwá, nos Kariri-Xocó e nos Truká, e o Tupi por parte dos Potiguara, dos Tabajara e dos Tremembé (FRANCHETTO, 2020). Neste ensaio, discutimos a retomada do akwe᷉ xakriabá, com foco no papel dos cantos nesse processo. O texto que apresentamos é fruto de uma articulação entre nossas pesquisas, realizadas no período de 2018 a 2023. A pesquisa empreendida em 2018 pelo autor Manoel Antônio Silva conta com sua experiência como professor indígena Xakriabá e a autora Ana Paula Rodrigues realizou trabalho de campo dentro e fora do território Xakriabá durante o ano de 2022 e 2023, com cerca de 4 meses em campo. A autora também acompanhou as discussões dos estudantes Xakriabá no curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas da Universidade Federal de Minas Gerais entre 2017 e 2019. Os dados apresentados aqui são frutos de observações realizadas em campo, conversas, pesquisa bibliográfica e entrevistas feitas com pessoas chave no processo de retomada da língua, como anciãos, professores de cultura, lideranças, jovens engajados na luta, entre outros.
2. A retomada linguística no território Xakriabá
Grenoble e Whaley (2006, apud AMARAL, 2020) apontam que o reequilíbrio das forças envolvidas na perda linguística é de suma importância para que se articulem empreendimentos de revitalização; não é à toa que a maioria deles tiveram início no século XXI, na esteira do fortalecimento dos movimentos indígenas. No caso brasileiro, a constituição de 1988 é um importante marco para o estabelecimento dos direitos dos povos originários, bem como o artigo 78 da LDB 9394, de 1996, que garante uma educação escolar indígena intercultural e bilíngue. Segundo Rafael Santos (2010), ainda no ano de 1996, no processo de implantação das escolas indígenas mineiras, quando foi escolhida a primeira turma Xakriabá para cursar o programa de Magistério Indígena, a retomada do akwe᷉ foi bastante discutida.
A primeira ação realizada pelos professores Xakriabá para a retomada da língua foi uma pesquisa no território em busca de anciãos falantes, mas estes eram receosos, sendo muito difícil fazer com que assumissem seus conhecimentos. Rapidamente, a espiritualidade se fez presente e o professor Almeida começou a empreender um projeto de gravar as palavras em akwe᷉ recebidas através de outro professor, que as proferia em momentos de transe gerados por uma doença que o acometeu (SANTOS, 2010). Como fruto da pesquisa, conseguiram registrar 32 palavras, que estão no livro “O Tempo passa e a história fica” (XAKRIABÁ, 1997). A principal estratégia adotada a partir desse léxico foi a composição de músicas, muitas delas produzidas em conjunto entre os professores e seus alunos (SILVA, 2018).
Neste primeiro momento, a retomada do akwe᷉ produziu outro impacto linguístico inesperado: a valorização do dialeto xakriabá, que faz parte do que chamamos de português indígena. Ao proceder às gravações das palavras de seu colega, Almeida percebeu que deveria gravar os mais velhos, suas vozes e modos de dizer, o que deu origem à caixa de literatura Xakriabá, que foi distribuída nas escolas e conta com um CD e diversos livros (SANTOS, 2010). Rafael Santos (2010) narra que muito do registro de histórias, poemas e modos de falar no português Xakriabá se deu em meio ao processo de retomada da língua originária e em nossa pesquisa professores afirmaram ter percebido que se não valorizassem seu dialeto ele também poderia ser perdido, “como aconteceu com o akwe᷉”.
Um segundo grande empreendimento de retomada linguística ocorreu em 2010, quando o cacique Domingos Nunes de Oliveira realizou o projeto de enviar uma família Xakriabá ao povo Xerente para que aprendessem a língua e a ensinassem para a comunidade. O intercâmbio durou até 2014 e os membros desta família são falantes fluentes de akwe᷉, mas atualmente não moram no território Xakriabá. A ideia inicial era construir uma escola específica para o ensino do akwe᷉, o que não foi possível, de modo que os conhecimentos adquiridos não foram repassados como previsto (SILVA, 2018). Conforme relatado por diversos povos no evento Viva língua Viva (2022), algumas estratégias de revitalização não logram êxito, entretanto inúmeras iniciativas estão sendo tomadas para a retomada do akwe᷉ Xakriabá e consideramos que muitos ganhos já foram atingidos, como o uso da língua em momentos de celebração e o aumento do status da língua originária e do dialeto em português indígena.
Atualmente, alguns jovens procuram conversar em akwe᷉ em seus encontros ou interações online, e, em 2018, foi incorporado o ensino da língua nas escolas do território. Este já ocorria nas aulas de cultura, mas agora existe uma disciplina específica, uma vez por semana, nas turmas de ensino médio. Alguns materiais didáticos são confeccionados pelos próprios professores; um livro está sendo preparado em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e o pesquisador externo Dener Mendonça criou um vocabulário online do akwe᷉ em conjunto com professores xakriabá[1]. O professor de cultura e pajé Déda (Sirêpité), principal referência para a língua no território, repassa seus conhecimentos a outros professores informalmente ou em aulas e há uma grande troca de saberes e materiais entre os professores de cultura e de akwe᷉, que circulam entre as aldeias em busca de informações. Nas universidades, pesquisadores Xakriabá estão realizando pesquisas sobre a retomada linguística, principalmente em cursos de licenciaturas indígenas (cf. MOTA, 2020; SILVA, 2018; ABREU, 2016).
Até o momento, catalogamos as seguintes iniciativas de revitalização linguística entre os Xakriabá: 1) Pesquisas realizadas por iniciativa do povo Xakriabá dentro do território; 2) Intercâmbio com o povo Xerente; 3) Implementação das aulas de akwe᷉ nas escolas; 4) Uso da língua em plataformas digitais como whatsapp e instagram; 5) Estudos realizados por pesquisadores Xakriabá no contexto universitário; 6) Confecção de materiais didáticos para as escolas; 7) Formação de professores; 8) Construção de vocabulário em site com parceiros externos; 9) Composição de músicas; 10) Uso das músicas em akwe᷉ nos rituais religiosos, manifestações políticas, encontros culturais, entre outros momentos, dentro e fora do território. No que tange à comunidade de falantes que está sendo criada, as crianças são o ponto chave da retomada e muitas já sabem frases e cantos na língua. Grupos mobilizados politicamente, como a organização da juventude que trabalha em parceria com caciques e lideranças, também estão ativos e envolvidos no processo.
Os cantos são o principal lócus de vitalidade do akwe᷉ Xakriabá. A língua originária ainda não é falada de maneira fluente, no entanto é inegável que ela é cantada por muitos. O Pajé Déda foi um dos principais agentes desta retomada e seu nome indígena, Sirêpté, vem deste legado: é o nome de um canário da terra que espalha suas sementes por onde passa, sempre cantando. Sirêpté conta que recebeu esse nome porque, devido a seu ofício de pajé, sempre percorreu as mais diversas aldeias e, como o pássaro, espalhava por onde passava suas sementes de língua, os cantos em akwe᷉. Ele visava, sobretudo, as crianças, após perceber que “as crianças brincam, e brincando aprendem tudo”.
Abaixo, reproduzimos cinco cantos, compostos por diversas pessoas, transcritos em trabalho anterior de um dos autores (SILVA,2018), de modo que a leitora possa conhecer um pouco mais da língua akwe᷉ xakriabá. Salientamos que a escrita desta língua ainda está em processo de definição e alguns cantos possuem restrições e só podem ser entoados por pessoas preparadas, em momentos e lugares específicos. As traduções são complexas, tanto por se tratar de uma língua em retomada, quanto por motivos de ordem espiritual, por isso apresentaremos apenas as versões originais. Os três primeiros cantos são orações, cantadas para a abertura dos rituais, como forma de pedir licença. O canto número 4 é uma forma de buscar força e o quinto traz o nome de espécies de abelhas encontradas no território, além de um agradecimento a Deus pelos adereços tradicionais como o cocar, a saia de palha e o arco e flecha.
3. Cantos em akwe᷉ xakriabá
AKWEM HUMININIXÃ TONEGRY
1. HUMINIXÃ, HUMINIXÃ KANKEHE NAKOAK BUKINUK ETYKE (bis) HUMINIXÃ BAIKONG BIKONG (bis) OAYTOMORIM KANKEHE AMIOÁ (bis)
2. WYKITU WYKITU WYKITU (bis) INTSCHE TONEGRY TONEGRY (bis) WYKITU ESTRSGÓ OÁ TICÁ AKWÃ WYKITU (bis)
3. WYKITU INTSCHE DEGRÃ (bis) WYKITU WYKITU (bis) WYKITU DAGRY AMBÁ OIPREDÉ (bis) KURINÃ WYKITU HÕHÕÕÕÕ (bis)
4. TENEOKÃNÃK DUÃ NAYGRÁ (bis) DEIN KEHÉ DUÃ HUNINIXÃ (bis) DOÃ FOI KIM HÕHÕHÕHÕ (bis)
5. NANDOÃ HÃ (bis) HUMINIXÃ HÃHÃ NANDOÃ (bis) HARUÁ MUNDURY MANDASSAIA URUÇU RAIZ DE IMBU NANDOÃ JATAI (bis)
AHIANTÃ KANKEHE AKWÃ
4. Cantos, espiritualidade e retomadas de línguas indígenas
A difusão dos cantos em akwe᷉ xakriabá aumenta o status da língua originária, bem como possui grande impacto na afirmação da identidade dentro e fora do território. A importância dos cantos, contudo, vai além: em diversas culturas, indígenas ou não, eles são essenciais para a conexão com o mundo espiritual. No caso dos povos indígenas no Brasil, a relação entre cantos e espiritualidade é generalizada, o que fica explícito quando pensamos nos exemplos do xamanismo e do Toré. Como afirma Rosângela de Tugny (2018), os xamãs transitam entre mundos e tempos diversos - “quando humanos e animais ainda se falavam”- em uma espécie de terreno tradutório “sempre cantado” (TUGNY, 2018, p.25). Já o Toré, bastante presente entre povos indígenas do nordeste e no povo xakriabá, consiste em um ritual baseado na dança, no canto e em uma variedade de segredos que, no caso xakriabá, permitem o contato com os espíritos dos antepassados e também com a grande protetora Iaiá Cabocla (ABREU, 2016). A retomada linguística tem um valor espiritual próprio, pois a língua akwe᷉ é a língua dos ancestrais, encantados, fazendo com que os cantos nessa língua possuam uma força especial. De modo geral, os cantos promovem uma força maior do que a fala porque, na maioria das vezes, falamos individualmente, mas podemos cantar em conjunto.
Os cantos indígenas não se limitam às celebrações religiosas, eles “sustentam a luta”. Em sua dissertação de mestrado, Célia Xakriabá (2018) cita o episódio ocorrido em 2018 no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, quando policiais avançaram sobre o povo de maneira truculenta e as mulheres Guarani começaram a entoar seu canto de reza de fogo, tocando o maracá. “Foi um dos momentos mais marcantes no movimento indígena para mim”, relembra, “porque naquele momento começou a chover apenas no local em que estava acontecendo o ATL” (CORREA, 2018, p.93 e 24). Sobre a espiritualidade dos povos indígenas, a antropóloga continua:
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Muitas vezes as pessoas não indígenas não acreditam na nossa espiritualidade, mas nós só conseguimos avançar na luta por conta da nossa força da espiritualidade, certamente quando estamos no ATL, não estão somente presentes quatro mil indígenas, também se fazem presentes milhões de indígenas com enorme força ancestral, que foram tombados, vítimas do genocídio do Estado brasileiro. Estão conosco também, além dos que já se foram, os que ainda virão (XAKRIABÁ, 2018, p.95).
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As retomadas linguísticas são, justamente, um elo entre os que vieram antes e os que estão por vir, pois a esperança é de que as próximas gerações falem a língua dos ancestrais. Estes se fazem presentes de forma ativa em diversas retomadas, inspirando cantos nas línguas originárias, por exemplo. Txâma Puri conta que, entre seu povo, os “kanaremunde”, cantos rituais, foram o ponto inicial da retomada da língua originária e, por serem uma forma de comunicação com os taheantah (espíritos), eles não são compostos, mas recebidos pelas pessoas que foram inspiradas a cantá-los pela primeira vez (PURI, 2021). Entre os Xakriabá, também são recebidos cantos em akwe᷉, algumas vezes através de sonhos. Além de estar presente nas retomadas, a espiritualidade foi essencial no resguardo do que ficou de algumas línguas, que sobreviveram parcialmente em palavras e frases usadas em rituais sagrados e secretos (cf. KARIRI-XOCÓ et.al, 2020). Agora, estas línguas vêm a público, em um processo afirmativo de contra-colonização (SANTOS, 2007) e de cura[1].
No ano de 2022, Célia Xakriabá, eleita primeira deputada federal indígena por Minas Gerais, espalhou cantos em akwe᷉ por todo o estado para plateias lotadas, como na abertura do show do artista Gilberto Gil no Estádio Mineirão. Célia e muitos outros têm cantado em um idioma tão perseguido que, no passado, pessoas tiveram suas línguas cortadas apenas por utilizá-lo. Mesmo tendo sido arrancado, até de maneira literal, de tantas bocas, o akwe᷉ é resistente, como os Xakriabá, um povo do cerrado. No tempo da seca, o cerrado parece morto, os galhos escuros das árvores retorcidas ficam quase sem folhas, a poeira cobre a vegetação na beira das estradas e o céu é de um azul inteiro, sem nuvens. No entanto, bastam as primeiras chuvas para que a paisagem se enverdeça e o bioma mostre sua vida, que, na verdade, nunca o deixou. Muitas línguas foram perseguidas no território que hoje chamamos de Brasil, estima-se que 80% delas foram perdidas (FRANCHETTO E BALYKOVA, 2020), porém muitas sobreviveram em segredo, mesmo que de maneira parcial, e agora florescem. Que se aproxime para o akwe᷉ e para todas as línguas indígenas o tempo das águas.
Informações Complementares
Conflito de Interesse
Os autores não tem/têm conflitos de interesse a declarar.
Declaração de Disponibilidade de Dados
O compartilhamento de dados não é aplicável a este artigo, pois nenhum dado novo foi criado ou analisado neste estudo.
Fonte de Financiamento
Esta pesquisa foi financiada com a Bolsa Permanência para estudantes indígenas do Ministério da Educação, bolsa de doutorado da Agência de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES, com incursões a campo apoiadas pela fundação Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research. Agradecemos a essas instituições.
Referências
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XAKRIABÁ, Professores. O tempo passa e a história fica. Belo Horizonte: SEE-MG; MEC, 1997.
Avaliação
DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2024.V5.N1.ID691.R
Decisão Editorial
EDITOR 1: Ana Vilacy Moreira Galucio
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0168-1904
FILIAÇÃO: Museu Paraense Emílio Goeldi, Pará, Brasil.
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EDITOR 2: Ângela Fabíola Alves Chagas
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4925-1711
FILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Pará, Brasil.
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CARTA DE DECISÃO: O artigo trata da retomada da língua Xakriabá, através dos cantos tradicionais do povo. O texto descreve iniciativas de outros pesquisadores que contribuem para a retomada da língua nas comunidades através de estratégias diversas. A partir desse retrato, o texto faz uma importante reflexão sobre o lugar da língua originária, que foi substituída pelo português. É tema de interesse para o campo da política linguística e da antropologia linguística. Por isso, consideramos uma importante contribuição para o conhecimento das línguas indígenas do Brasil, que deve ser publicado nos Cadernos de Linguística.
Rodadas de Avaliação
AVALIADOR 1: Jorge Domingues Lopes
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2211-8029
FILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Pará, Brasil.
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AVALIADOR 2: Isabella Coutinho Costa
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2586-8928
FILIAÇÃO: Universidade Estadual de Roraima, Roraima, Brasil.
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RODADA 1
AVALIADOR 1
2023-08-30 | 11:55 PM
O texto intitulado "Os cantos Xakriabá e a retomada da língua akwẽ" trata da temática acerca da perspectiva de valorização e aprendizagem da língua originária xacriabá, perdida no processo de contato da comunidade indígena com os grupos não indígenas. Ao selecionar o gênero textual canto, traça uma reflexão pontual do papel desse material linguístico para a retomada da língua falada pelos ancestrais, apesar de não evidenciar detalhes da metodologia utilizada em sua pesquisa. O texto pode interessar ao público em geral, mas, especialmente, ao público das comunidades linguística, indígenas e não indígenas, que refletem sobre a identidade e o uso de língua originária.
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AVALIADOR 2
2023-09-25 | 11:34 AM
O artigo apresenta alguns pontos que podem ser melhor trabalhados e discutidos, bem como as explicações sobre os cantos apresentados, mesmo sem serem devidamente traduzidos, mas que podem minimamente apresentar uma explicação do que se tratam e de como eles podem auxiliar no processo de retomada da língua. Há outros aspectos mencionados ao longo da avaliação no próprio documento anexado. Recomendo a publicação pelas importantes iniciativas mencionadas que podem servir de exemplo para outros trabalhos.
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RODADA 2
AVALIADOR 2
2024-01-02 | 10:19 AM
Artigo corrigido com as revisões incorporadas. Aprovado para publicação.
Resposta dos Autores
DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2024.V5.N1.ID691.A
RODADA 1
2022-00-00
Prezado Jorge Lopes,
Agradecemos imensamente sua leitura atenta de nosso artigo e suasvaliosas contribuições. Fizemos uma revisão gramatical e inserimos um parágrafo(destacado em amarelo) explicando melhor o método utilizado. Também foi inserida umaexplicação sobre os cantos e o porquê de não estarem traduzidos para o português.
Atenciosamente,
Ana Paula Rodrigues e Manoel Antônio Silva.
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Prezada Isabella Coutinho,
Agradecemos imensamente sua leitura atenta de nosso artigo e suas valiosas contribuições.Fizemos uma revisão gramatical e optamos por utilizar a palavra Xakriabá sempre emmaiúscula, como tem sido predominante nas obras de acadêmicos deste povo.Anteriormente, havíamos escolhido utilizar a inicial minúscula quando se tratava de umadjetivo (por exemplo, “a língua xakriabá") e maiúscula quando se referia diretamente aopovo Xakriabá.
Conforme sugerido, adicionamos um parágrafo (destacado em amarelo) explicando umpouco sobre os cantos e o porquê de não estarem traduzidos.
Atenciosamente,
Ana Paula Rodrigues e Manoel Antônio Silva.