Resumo para não especialistas
Neste trabalho, há um levantamento histórico das mudanças políticas e sociais ocorridas no Exame Nacional do Ensino Médio e os impactos que elas trouxeram para a escrita dos alunos nos anos finais da Educação Básica, convergindo – ou não – para os prescritos tanto na Base Nacional Comum Curricular quanto nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. As alterações no número de questões, no tempo de prova, na função da avaliação e a universalização do exame como principal meio de entrada nas faculdades nacionais permitiram que estratégias de enrijecimento e padronização da escrita fossem não só viáveis como também rendáveis. Por meio da comparação das redações exemplares que circulam na internet com as nota 1000 liberadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – órgão responsável pela elaboração, aplicação e avaliação do ENEM –, foram identificados casos que poderiam ser considerados como plágio, mas que não foram penalizados, ao contrário, foram bonificados com a pontuação máxima no vestibular.
Introdução
O movimento contemporâneo de repensar o ensino básico e o vestibular no Brasil, começado com a universalização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)[1] e reiniciado com a Reforma do Ensino Médio, mostra a relevância de uma pesquisa acadêmica que estude de modo científico tal exame com o objetivo de mensurar a eficácia e os desdobramentos dos parâmetros avaliativos no que concerne, principalmente, à avaliação do eixo Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Isso porque, atualmente, problemas linguísticos e pedagógicos, como a mera reprodução de ideias sem interpretação crítica, são evidenciados na redação do ENEM. Sendo assim, este artigo faz uma reflexão acerca dos impactos do modelo ENEM de avaliação – após sua universalização – no Ensino Médio brasileiro a fim de retificar os negativos e ratificar os positivos, analisando-os conforme a realidade do Novo Ensino Médio. Para isso, é importante fazer uma pesquisa histórica sobre o exame, tendo por base a História da Ideias Linguísticas, e um estudo das produções textuais bem avaliadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), tendo por base as condições de produção do discurso instituídas pela Análise do Discurso, além da evocação do conceito de ideia liguística, posto que “uma ideia linguística é todo saber construído em torno de uma língua, seja como produto de uma reflexão metalinguística, seja como atividade metalinguística explícita ou implícita.” (SILVA, 2018, p. 23) –, a qual possui um saber metalinguístico de natureza prática que objetiva a aquisição do domínio da enunciação (AUROUX, 1992). Desse modo, a redação modelo ENEM institui-se como uma ideia linguística ao se consagrar como um saber de escrita – criando, inclusive, um novo gênero textual – que objetiva mensurar a capacidade de reflexão crítica e de argumentação dos candidatos.
Essa hipótese de pesquisa do acontecimento linguístico da Redação Modelo ENEM se originou a partir das dúvidas e dos questionamentos emergentes nas aulas de redação do Ensino Médio e da análise do comportamento linguístico de meus alunos em suas produções de texto. A reincidência de casos de redações baseadas em esqueletos do que viria a ser a ideia linguística do modelo ENEM me fizeram indagar de onde teria surgido esse movimento de escrita: da escola? Então, precisamos mudar o modelo de ensino presente nas instituições educacionais brasileiras. Do vestibular? Então, precisamos reformular o método de correção e o tempo de escrita da redação no ENEM. Do aluno? Então, precisamos dar autonomia a ele para que não se sinta inseguro para produzir seus próprios posicionamentos. Ou de mim? Então, preciso identificar minhas limitações e pesquisar estratégias que possam ajudar a mim e aos meus colegas de magistério em nossa jornada pedagógica. Isso nos mostra o quanto a experiência docente pode ser rica para a academia, pois vai além na grade curricular obrigatória instituída pela Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCCEM). Por isso, esta pesquisa saiu da sala de aula e irá voltar para ela como forma de reflexão sobre o nosso fazer pedagógico, haja vista que ele impacta a leitura de mundo dos nossos alunos e, consequentemente, a materialização dela através da escrita.
1. Objeto de estudo
O Exame Nacional do Ensino Médio foi criado em 1998 com o objetivo não só de avaliar o rendimento dos alunos que estavam concluindo a educação básica, mas também de gerar dados acerca do nível de aprendizagem nacional, os quais serviriam de parâmetro para o Governo planejar possíveis mudanças institucionais e pedagógicas. Após seu primeiro decênio, o ENEM começou a funcionar como certificação do Ensino Médio, isto é, o aluno que alcançasse no mínimo 450 pontos em cada uma das provas objetivas e 500 na redação, considerando que cada avaliação vale 1000 pontos, receberia o(s) diploma(s) de conclusão de ensino básico. Isso só foi possível porque houve uma reformulação da prova, fazendo-a passar de 63 para 180 questões objetivas – 45 para cada área do conhecimento conforme formulada pelo exame, a saber: Ciências Humanas e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias – e a redação. Concomitantemente, o exame passou progressivamente a ser utilizado como forma de ingresso no ensino superior, tanto em universidades públicas quanto em privadas, o que acontecia em paralelo aos vestibulares específicos das universidades brasileiras.
Com o passar dos anos, cada vez mais universidades foram aderindo ao ENEM como única forma de acesso aos cursos de graduação oferecidos, de modo que o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) passou a dar acesso – por meio de vagas de ampla concorrência, de cotas, do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e do Programa Universidade para Todos (ProUni) – a praticamente todas as faculdades do país, além da possibilidade de estudo internacional em universidades portuguesas como Coimbra e Algarve. Em 2017, houve uma mudança em sua proposta de aplicação, haja vista que o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) passou a ter a função de certificação do Ensino Médio e o ENEM passou a ser exclusivamente uma forma de entrada nas universidades. Essa decisão do Inep, junto ao Ministério da Educação, gerou mudanças gradativas no grau de dificuldade da avaliação a ponto de, em 2018, o segundo domingo de aplicação de prova, cujas questões são sobre ciências da natureza e matemática, receber mais 30 minutos de duração, totalizando 5 horas.
2. Condições de produção do discurso
As alterações sofridas pelo exame não só demonstram perspectivas diferentes acerca da função dessa avaliação e da melhor metodologia a ser utilizada, mas também modificam as condições de produção do discurso (PÊCHEUX, 1997), o que acarretou desdobramentos pedagógicos - positivos e negativos - nas salas de aula do ensino básico. Nesse sentido, a unificação e a reestruturação dos processos seletivos de ingresso em cursos de graduação fez com que a anterior preferência por verificação de conhecimentos específicos – materializada nas provas objetivas e discursivas das universidades públicas, aplicadas de acordo com o curso pretendido – fosse substituída por um saber global e transversal das áreas do conhecimento, isto é, universalizante, ainda que com deslocamentos ano a ano. Por conseguinte, houve uma alta valorização da prova de redação, visto que foi a única questão discursiva que permaneceu como critério de acesso ao ensino superior. Nota-se que a transdisciplinaridade das provas objetivas e o enaltecimento da produção textual foram impactos pedagogicamente positivos que o ENEM gerou no Ensino Médio brasileiro, posto que debates interdisciplinares foram instituídos nas aulas a fim de dar ferramentas ao corpo discente no momento de produção do texto dissertativo-argumentativo exigido pelo vestibular, que sempre aborda uma problemática social a ser solucionada. Ainda assim, esse impacto supostamente positivo foi também instrumentalizado por grandes grupos de ensino – oligopólios – como modo de “vender” fórmulas interdisciplinares para se alcançar o ingresso em cursos de nível superior, tendo em vista que, na Cartilha do Participante do ENEM, afirma-se que a prova de redação:
.
(...) exigirá de você a produção de um texto em prosa, do tipo dissertativo- argumentativo, sobre um tema de ordem social, científica, cultural ou política. Os aspectos a serem avaliados relacionam-se às competências que devem ter sido desenvolvidas durante os anos de escolaridade (grifo nosso). Nessa redação, você deverá defender uma tese – uma opinião a respeito do tema proposto –, apoiada em argumentos consistentes, estruturados com coerência e coesão, formando uma unidade textual. Seu texto deverá ser redigido de acordo com a modalidade escrita formal da língua portuguesa. Você também deverá elaborar uma proposta de intervenção social para o problema apresentado no desenvolvimento do texto. Essa proposta deve respeitar os direitos humanos (grifo nosso). (BRASIL, 2022, p. 4)
.
Essas exigências da prova discursiva do ENEM corroboram, em tese, o chamado “campo de atuação na vida pública”, que a Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio prevê para o currículo escolar, e o desenvolvimento do que os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) definem como forma de convergência entre as competências gerais apresentadas pelo documento, isto é, quando os princípios linguístico-textuais cobrados na redação são abordados de modo contextualizado – ao se lançar mão das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas no momento da análise crítica da realidade brasileira contemporânea – e produtivo – na seleção de informação e de pesquisas oriundas das Ciências da Natureza e da Matemática – em relação às áreas do conhecimento trabalhadas nos três últimos anos do ensino básico.
Já no âmbito social, houve impacto em relação à democratização do acesso ao ensino superior, visto que, por meio do Sisu, qualquer concluinte do Ensino Médio pode se candidatar a uma vaga em universidades públicas e privadas, de qualquer estado brasileiro, participando apenas de um processo seletivo, com direito a pedido de isenção da taxa de inscrição, ao programa de cotas, ao Fies e ao ProUni – desde que sejam seguidas as diretrizes de regulamentação desses benefícios. Essas medidas não só facilitaram a migração de alunos entre estados para ingressar na graduação, mas também progrediram no que diz respeito à equidade de acesso à educação no Brasil. Paradoxalmente, o aumento[1] da competitividade na relação candidato/vaga e o efeito decisivo que a prova discursiva passou a ter na aprovação no vestibular fez emergirem aulas que, em vez de efetivarem e aprimorarem a proposta transversal e cidadã do ENEM e da BNCCEM, focam em técnicas cristalizadas de produção textual que garantem uma alta pontuação na prova de redação, visto que não só a necessidade de escrita em uma hora pelo aluno como também a de avaliação em massa pelos corretores dá margem para a criação, a persistência e a eficiência de tais técnicas, gerando impactos negativos tanto na formação estudantil quanto no acesso igualitário à universidade.
3. Materialismo do encontro
Acerca do segundo impacto, é pertinente pontuar que, a partir de 2012, foram divulgadas, tanto pelo Inep – por meio do primeiro Guia do Participante ENEM para redação – quanto pelos grandes veículos de comunicação nacional, as redações que obtiveram a nota 1000 na edição anterior do exame. Desde então, o número de candidatos com o rendimento máximo caiu de 3.694 em 2011 para 2.083 já em 2012 e foi para 481 em 2013 – ano posterior à divulgação – tendo alcançado em 2022 o quantitativo de 28 avaliações discursivas gabaritadas. O primeiro documento do Inep dedicado à prova discursiva tinha como objetivo deixar mais transparente e justo o processo de correção da redação com novas padronizações, por exemplo, a separação da pontuação de 40 em 40 por competência e a diminuição da discrepância de 300 pontos para 200 como critério de solicitação de um terceiro corretor. Todavia, no mesmo ano, houve uma grande repercussão acerca dos desvios gramaticais verificados nas produções textuais que tiraram mil e dos casos da receita de miojo e do hino do Palmeiras encontrados em dois espelhos de redação veiculados na internet. Tais acontecimentos geraram um enrijecimento ainda maior na correção, o que explica apenas parcialmente a queda de 89,8% no índice de alunos que obtiveram nota máxima em 2011 em comparação a 2013. Sendo assim, a fim de se entender melhor o movimento de diminuição do quantitativo de notas mil, é necessário considerar, além do aumento da dificuldade teórica e do enrijecimento da correção após a divulgação dos espelhos, a desigualdade de acesso à educação e à informação como potencializadores do cenário.
Apesar de o Ministério da Educação ter distribuído cópias do Guia do Participante para a redação no ENEM de 2012 nas escolas públicas do país, não só o acesso, mas também o estudo desse documento foi privilegiado aos que tinham conexão à internet e aulas preparatórias para o que se viria a chamar de “Redação Modelo ENEM” - nosso arquivo (ORLANDI, 2001) de pesquisa -, a qual foi construída a partir dos espelhos divulgados das produções textuais nota mil, a ponto de a Cartilha do Participante anual deixar de ser intitulada de “Redação no ENEM” – com o uso preposição “em” com ideia de lugar contraída com o artigo “o” – como fora de 2012 a 2019 e passar a ser nomeada como “Redação do ENEM” – com o uso da preposição “de” com ideia de posse contraída com o artigo “o” – na edição de 2020, ou seja, o que antes era a contextualização do funcionamento de um texto dentro de um vestibular passou a ser um gênero textual possuído por ele. Embora o ENEM possua – declaradamente ou não – um modelo específico de texto, não necessariamente ele o tenha produzido de modo consciente e proposital, posto que, a priori, o objetivo do primeiro Guia do Participante era apenas ilustrar as redações nota mil para explicar os critérios de correção, e não institucionalizar um novo modelo de texto, tanto que os exemplos dessa cartilha são bem diferentes entre si. Esse contexto reverbera o materialismo do encontro de Althusser (2005, p. 28), o qual afirma que “Cada encontro é aleatório; não somente nas suas origens (nada garante jamais um encontro), mas nos seus efeitos.”.
A aleatoriedade da origem da Redação Modelo ENEM é marcada, em primeiro plano, pelo encontro da divulgação de redações com a crítica da mídia, a qual poderia tão somente veicular o Guia do Participante de modo informativo, como sempre veiculou o Manual do Candidato, sem desdobramentos técnicos como a análise das produções textuais por especialistas em linguagem – o que gerou a crítica aos erros gramaticais que não geraram perda de pontos – e sem a divulgação em massa do experimento feito por estudantes já matriculados no ensino superior ao propositalmente escreverem fragmentos notadamente desconexos com a proposta de redação – a receita de miojo e o hino do Palmeiras – a fim de comprovarem sua tese de que os corretores no vestibular não liam os textos completamente, o que geraria uma arbitrariedade das notas. Tudo isso trouxe foco, leitura e interesse pela cartilha e consequentemente uma pressão sobre o Inep para aumentar a qualidade das correções. Em segundo plano, há o encontro – majoritariamente digital – das redações divulgadas com estudantes e cursos preparatórios, que enxergaram nelas uma oportunidade de aprendizagem e ensino mais palpável para o vestibular mais importante do território nacional, posto que, por uma questão de coerência lógica, as próximas redações que tirariam 1000 não poderiam ser inferiores às que foram expostas. Assim, criou-se um parâmetro textual, mas que ainda não era suficiente para construir um novo formato de texto, ou seja, eis aqui o primeiro efeito aleatório: uma disciplinarização com o uso da redação do ENEM, visto que, como ressalta Auroux (1992, p. 67): “a constituição de um corpus de exemplos é um elemento decisivo para a gramatização”.
Vale ressaltar que tal corpus de exemplos foi construído com o passar dos anos - e não imediatamente após o primeiro guia para redação no ENEM - por meio da verificação de semelhanças entre os espelhos nota 1000 divulgados sobre os diferentes temas cobrados. O primeiro movimento de padronização notado foi no aspecto formal: a quantidade de linhas, de parágrafos e a existência do título. No exame de 2011, a média de linhas escritas foi de 28, cinco das seis redações exemplificadas tinham título e quatro tinham cinco parágrafos, enquanto, no exame de 2016, a média de linhas escritas foi de 33, todas as 8 redações tiveram quatro parágrafos e apenas três tinham título. Esse movimento pode ser explicado pelo aumento da criteriosidade da correção para altas pontuações, visto que, sem título e com um parágrafo de desenvolvimento a menos, há mais linhas para construir dois argumentos sólidos e convincentes, o que pode ser considerado uma estratégia válida na construção de um texto dissertativo-argumentativo. Só que, ao mesmo tempo, essa criteriosidade gera uma demanda de conhecimento de mundo e de “repertórios socioculturais” - nomenclatura utilizada pelo ENEM para designar citações de autoridades, produções culturais em qualquer formato e alusões históricas - desproporcional ao conhecimento construído, na prática, durante a formação no ensino básico brasileiro. Isso acarreta uma procura dos alunos por uma redação que represente, em tese, o que a BNCCEM e os PCNEM estabelecem como conteúdos a serem formalizados na escola. Logo, o ENEM acaba virando uma ferramenta política de validação de um ensino não verificado, de fato, a despeito da desigualdade de acesso à formação estudantil ideal, a qual nem nos grandes grupos de ensino que são tidos como referências nacionais é constatada, posto que os casos de “plágio” e reprodução de modelos de texto são feitos justamente pelos estudantes que têm acesso à internet e aos cursos privados de preparatório para o vestibular que os veiculam.
4. Acontecimento linguístico
Partindo desse contexto, é possível dizer que houve um acontecimento - “acidental, singular, descontínuo, não previsível” (MARIANI, 1996, p. 42) - com a publicação de A redação no ENEM 2012: guia do participante (BRASIL, 2012), que foi ressignificada, a médio prazo, no contato com o público como um novo gênero textual - “a necessidade interpretativa busca integrá-lo, transformando-o em novos elementos da memória” (idem). Paradoxalmente, o aspecto aleatório do acontecimento, que é considerado como positivo em Mariani, “uma vez que rompe com a imposição imaginária da necessidade de estabilização (e com a onipotência de se poder controlar o futuro)” (ibidem) teve como um dos seus efeitos - também aleatórios - justamente a estabilização de uma redação que permite ao candidato ter um relativo controle de sua nota futura a partir da reprodução de um modelo de texto. Sendo assim, o guia do participante de 2012 configura-se como um acontecimento linguístico, haja vista que ele descreve “o que se espera do participante em cada uma das competências avaliadas” (BRASIL, 2012, p. 3), corroborando a síntese de Zoppi Fontana (2009, p. 3) sobre esse conceito:
.
[...] a noção de acontecimento lingüístico é definida pela sua reflexividade enunciativa, isto é, pela sua interpretação como acontecimento pelos sujeitos envolvidos na enunciação, e pela sua reflexividade metalingüística, através da qual a língua se constitui em objeto de uma enunciação política.
.
Nesse momento, percebe-se o segundo movimento de padronização da redação ENEM em seu aspecto simbólico, subjetivo, acerca das ideias contidas no texto, referente, agora, ao impacto na formação estudantil, que foi historicamente marcado pela identificação de trechos em um espelho nota 1000 no exame de 2016 (motivo pelo qual os dados estatísticos apresentados até aqui tiveram esse ano como corte temporal) que foram tirados de outras redações. Nesse sentido, para desenvolver o tema “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”, uma candidata utilizou fragmentos de redações excelentes que foram divulgadas na internet, tanto pelos jornais nacionais - em relação à redação nota mil de 2015 - quanto por uma plataforma de estudo digital - em relação a uma redação exemplar escrita pelo professor de redação do curso referente ao tema de 2014 (tais textos podem ser consultados no anexo).
O primeiro ponto de atenção nesse processo é: como textos sobre os temas “Publicidade infantil em questão no Brasil” (ENEM 2014) e “A persistência da violência contra a mulher” (ENEM 2015) podem ser capazes de fundamentar um posicionamento crítico - considerado excelente, visto a nota que recebeu - sobre intolerância religiosa no Brasil? A validação dessa dissertação-argumentativa sugere que o que é significativo nessa avaliação não é a reflexão específica sobre aquela problemática social, mas sim a verificação da utilização de repertórios socioculturais, mesmo que eles nunca tenham sido, de fato, estudados pelo candidato. Outro ponto de atenção é o que o ENEM considera - ou não - plágio e como ele é punido - ou não - no vestibular, visto que, na edição seguinte, quando o tema foi “Desafios para a formação educacional de surdos”, um candidato foi indiciado por crime de fraude em certame de interesse público por ter plagiado o resumo do livro Redação de Surdos: Uma jornada em Busca da Avaliação Escrita em sua redação. O candidato assumiu que conseguiu entrar com o celular na prova e, ao encontrar um repertório que tinha relação com o tema da prova discursiva, transcreveu a descrição dele no seu texto. Apesar da confissão, não houve flagrante no uso do celular, mas sim a denúncia dos corretores por identificarem esse plágio, ou seja, o mesmo processo de checagem de fontes poderia ter sido feito com a redação de 2016, ainda mais por ser um caso de nota mil. Percebe-se, aqui, uma discrepância nos desdobramentos dos casos tanto prática - enquanto um candidato pode receber pena de 1 a 4 anos de reclusão, além da multa, outro recebe pontuação máxima - quanto teórica: quem foi zerado por plágio em um texto dissertativo-argumentativo foi o que copiou um fragmento narrativo, de um gênero textual diferente, sem citação de fonte, e não quem copiou os argumentos e posicionamentos críticos de provas anteriores do mesmo vestibular.
As polêmicas ocorridas em 2016 e em 2017 levantaram a discussão sobre a eficácia da redação ENEM em relação àquilo que ela se propõe avaliar e as análises foram distintas: enquanto alunos e alguns professores de preparatórios - inclusive o autor da redação de 2014, cujo trecho foi plagiado - consideram legítima tal forma de estudo e avaliação de escrita, outros professores e o próprio Inep se posicionaram contra essa prática, desincentivando-a publicamente. Mesmo assim, novos casos não só foram surgindo, como também foram oficializados como estratégia de produção textual em diversos canais de YouTube, sites, blogs e em páginas de redes sociais, a qual tem sido validada pelo ENEM, que continua avaliando tais textos com altas pontuações 5 anos após os casos, as discussões e as críticas. Assim, nota-se a disciplinarização da Redação Modelo ENEM como fruto de uma dinâmica de coconstrução de sentido que deu “pega”, remontando-nos à tese do primado do encontro sobre a forma:
.
Neste sentido, os elementos que “pegam” [fanno presa] não estão ali porque a forma exista, mas possuem, cada um, uma história própria, resultado, por sua vez, de um entrelaçamento de encontros que se realizaram, mas que obviamente, também, falharam. Neste sentido, com a condição de que seja repelido o telos e o projeto (e o correlato conceito de natureza como ordem), resultam perfeitamente compatíveis a tese do primado do encontro sobre a forma e da relação sobre os elementos (MORFINO, 2006, p. 27-28).
.
Todavia, não necessariamente a redação do ENEM ficará sempre assim, o que nos remonta a Mariani acerca da não garantia da estabilização do sentido e a Althusser acerca dos encontros desfeitos, ambos semelhantemente aleatórios, assim como seus encontros, acontecimentos e “pegas”. Enquanto essa possibilidade - dentre tantas outras - não se concretiza, vale analisar como que um processo teoricamente de democratização do acesso à informação, proposto pelo lançamento da primeira Cartilha de redação no ENEM, se materializou em um processo elitista e segregacionista, o que nos leva aos conceitos de institucionalização e socialização da Eni Orlandi:
.
A institucionalização, no sistema capitalista, se faz através das instituições e discursos administrativos, e é necessária para que uma forma de conhecimento tenha um lugar específico no campo da ciência, e se possa disponibilizar para a formação e a pesquisa. Já a socialização é outra coisa. Com a socialização, não se intermedia as relações só pelas instituições, mas pela produção de condições de acessibilidade, de politização do campo de conhecimento. (GRIGOLETTO; MARIANI, 2020, p. 256).
.
Sendo assim, é possível concluir que, na verdade, houve apenas uma circulação - não uma democratização nem uma socialização - da informação limitada a determinados grupos sociais, que são justamente os que podem consumir a mercantilização do conhecimento institucionalizado da Redação Modelo ENEM. Agora, como isso fomenta o abismo de desigualdade social e de ingresso à universidade; como isso reverbera históricas simbologias de poder; e, claro, como isso impacta a produção textual crítica - ou alienada - no ensino básico brasileiro é o que nos dedicaremos a estudar.
Agradecimentos
Agradeço ao meu sempre disposto e compreensivo orientador Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF) pela lapidação deste artigo.
Informações Complementares
Conflito de Interesse
A autora não tem conflitos de interesse a declarar.
Declaração de Disponibilidade de Dados
Os dados utilizados na pesquisa podem ser encontrados em:
https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/sinopses-estatisticas/enem https://guiadoestudante.abril.com.br/enem/redacao-nota-mil-no-enem-2016-tem-plagios/
Fonte de Financiamento
Registro aqui meu agradecimento ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UFF por custear a nossa participação no XII Congresso Internacional da Abralin, viabilizando, assim, esta publicação.
Referências
ALTHUSSER, Louis. A corrente subterrânea do materialismo do encontro (1982). Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v.1, n.20, 2005.
AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 1992.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). A redação do Enem 2022: cartilha do participante. Brasília, 2022.
______. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). A redação no Enem 2017: guia do participante. Brasília, 2017.
______. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). A redação no Enem 2012: guia do participante. Brasília, 2012.
______. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Médio. Brasília: MEC/SEF, 2018.
______. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC/SEF, 2000.
GRIGOLETTO, E.; MARIANI, B. Entrevista com Eni Orlandi. Revista da ABRALIN, [S. l.], v. 19, n. 3, p. 247–268, 2020. DOI: 10.25189/rabralin.v19i3.1778. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1778. Acesso em: 22 jun. 2023.
MARIANI, Bethania. O comunismo imaginário: práticas discursivas da imprensa sobre o PCB (1922-1989). Tese (doutorado em Letras). Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Campinas, SP: 1996.
MORFINO, Vittorio. O primado do Encontro sobre a Forma. Crítica Marxista, São Paulo, Ed. Revan, v.1, n.23, 2006
ORLANDI, Eni P. História das ideias linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da língua nacional. São Paulo: Pontes, 2001.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-. 69). In: GADET, Françoise, HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux, 3 ed. Campinas: Unicamp, 1997.
SILVA, Alexandre José da. História das ideias linguísticas: história, ideias e caminhos. VERBUM (ISSN 2316-3267), São Paulo, v. 7, n. 1, p. 23-39, mai. 2018.
ZOPPI FONTANA, Mônica Graciela. Acontecimento linguístico: o discurso político e a comemoração da língua. In: IV SEAD - SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO 1969-2009: Memória e história na/da Análise do Discurso. Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009.
Anexo
Figure 1.
Avaliação
DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2024.V5.N2.ID733.R
Decisão Editorial
EDITOR 1: Ronaldo de Oliveira Batista
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7216-9142
FILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie, Pernambuco, Brasil.
-
EDITOR 2: Jorge Viana de Moraes
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9096-7079
FILIAÇÃO: Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
-
CARTA DE DECISÃO: São importantes as pesquisas e abordagens do ensino de língua portuguesa e da história da linguística brasileira uma vez que a consciência do percurso histórico do conhecimento é algo fundamental para os pesquisadores. Realizando diálogo já tradicional no Brasil entre Análise do Discurso e História das Ideias Linguísticas, o texto faz análise (ainda que inicial e breve) relevante sobre o material em questão.
Rodadas de Avaliação
AVALIADOR 1: Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5529-4606
FILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil.
-
AVALIADOR 2: Nancy dos Santos Casagrande
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1501-5216
FILIAÇÃO: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil.
-
RODADA 1
AVALIADOR 1
2024-03-13 | 06:18 PM
O trabalho está alinhado com a proposta dos Cadernos de Linguística, apresentando boa organização em aspectos importantes como clareza, correção, objetividade e coerência. O tema do trabalho é de grande relevância para os estudos linguísticos pedagógicos brasileiros. Considerando tal relevância de uma pesquisa acadêmica com o objetivo de estudar de modo científico o exame ENEM, a fim de mensurar a eficácia e os desdobramentos dos parâmetros avaliativos no que concerne, principalmente, à avaliação do eixo Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, buscou-se uma reflexão crítica acerca dos discursos dos candidatos de ordem social, científica, cultural ou política, com um olhar sobre os enfoques a serem avaliados que se referem às competências que os estudantes desenvolveram em seus anos de escolaridade. A análise se deu a partir de categorias bem definidas, a partir do apoio teórico o que levou a bons resultados no que concerne à circulação da informação limitada a determinados grupos sociais consumidores da mercantilização do conhecimento institucionalizado da Redação Modelo ENEM, o que revelou o estímulo à desigualdade social e ao ingresso à universidade. O resumo apresentado é consistente, informativo e cobre todo o conteúdo do texto, as referências bibliográficas são pertinentes, os objetivos estão claramente delineados e as conclusões estão justificadas. Isto posto, recomendo o artigo para publicação.
-
AVALIADOR 2
2024-08-18 | 07:49 AM
Recomendação: Aceitar