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Relato de Pesquisa

Entre ficção e realidade: cenografia e ethos crítico em uma capa do jornal Extra

Maria Joana Chiodelli Chaise

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https://orcid.org/0000-0002-2368-2281

Ernani Cesar de Freitas

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Luis Henrique Boaventura

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Palavras-chave

Ethos
Destacabilidade
Jornalismo

Resumo

O presente trabalho examina a formulação de um ethos crítico à administração da crise sanitária da COVID-19 pelo Governo brasileiro por parte de uma capa do jornal Extra de março de 2021. A capa noticia a primeira posição mundial do Brasil em número de mortes diárias pelo novo coronavírus através de uma das frases mais utilizadas pelo atual presidente durante as eleições de 2018: “Brasil acima de todos”. O objetivo é analisar o ethos elaborado pela capa do jornal e que efeitos de sentido ele produz. O marco teórico se situa nas reflexões sobre destacabilidade, cenografia e ethos de Dominique Maingueneau (2008b, 2018, 2020). Conclui-se que, apesar de utilizar uma frase aparentemente neutra e sem ataques explícitos ao Governo, o jornal Extra consegue transmitir um efeito de sentido crítico à administração federal ao apoiar-se sobre o ethos pré-discursivo do atual presidente para a produção de um ethos efetivo de oposição à política da crise sem fazer uma crítica nominal.

Introdução

Nas semanas que antecederam o pleito eleitoral de 2018, o jornal carioca Extra pediu aos então candidatos à presidência que posassem para uma foto com uma cópia do “jornal do futuro”: o que eles esperavam que seria manchete de capa ao final de seus governos. Fernando Haddad escolheu “Brasil tem emprego e educação para todos”; Ciro Gomes quis “Brasil bate recorde de empregos”; Jair Bolsonaro, por sua vez, desejou que a manchete do seu governo fosse “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Pouco mais de dois anos depois, o presidente eleito teve seu desejo realizado, mesmo que não tenha sido exatamente como imaginado.

A crise sanitária e humanitária provocada pela pandemia da COVID-19 expôs vícios ideológicos que se mostraram letais nas primeiras semanas e absolutamente catastróficos nos meses que se seguiram à dispersão do vírus. Resistência às recomendações da OMS, ao isolamento, à compra de vacinas e até mesmo ao uso de máscaras, assim como a promoção constante de atos que geram aglomeração por parte da principal voz do Governo constituíram exemplos de comportamento fatal seguido por centenas de milhares de pessoas, o que, aliado à falta de infraestrutura e ao desgoverno do Ministério da Saúde, levaram o Brasil à posição de país onde mais se morre de COVID-19 no mundo um ano após o diagnóstico dos primeiros casos fora da China. Em março de 2021, conforme dados do boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde, morreram 58.675 brasileiros pela doença (MÕES, 2021). Para ilustrar esse contraste (entre o mundo imaginário projetado na capa de 2018 e o mundo real do Brasil sob a atual administração), o jornal Extra reproduziu em sua capa parte da frase que o presidente gostaria de ver como manchete de capa de seu governo: “Brasil acima de todos”. A capa é referente ao dia 24 de março de 2021, em que fora divulgado o número de 3158 mortes em 24h.

A publicação dessa capa gerou interesse por parte dos autores deste artigo a partir do aporte teórico e metodológico da Análise do Discurso de linha francesa, especificamente em relação à destacabilidade e ao ethos elaborado pelo jornal, o que levou ao seguinte problema de pesquisa: como o jornal Extra usa a destacabilidade e o ethos pré-discursivo para alcançar um efeito de sentido crítico ao presidente sem precisar atacá-lo? Nosso objetivo é analisar o ethos elaborado pela capa do jornal e que efeitos de sentido ele produz. Concluímos que o jornal Extra consegue um efeito crítico à atual administração federal ao operar a destacabilidade de uma frase emblemática da campanha presidencial de 2018 e ao se basear sobre dois ethos prévios (da capa de outubro de 2018 e do próprio presidente), o que, somados ao ethos discursivo (capa de março de 2021), resulta em um ethos efetivo crítico. O texto do presente artigo está estruturado da seguinte forma: 1 Introdução; 2 O ethos crítico e a destacabilidade como estratégia na capa do jornal Extra, que se subdivide em 2.1 Ethos e destacabilidade: breve recapitulação (em que se discute também a questão da cenografia) e 2.2 Metodologia e análise; e finalmente 3 Conclusão. Na sequência, exploramos rapidamente a fundamentação teórica.

1. O ethos crítico e a destacabilidade como estratégia na capa do Jornal Extra

Nesta seção, exploramos primeiramente uma breve fundamentação teórica em relação às noções de ethos e destacabilidade, com base em Dominique Maingueneau (2018, 2020), para em seguida delinear os procedimentos metodológicos e realizar a análise do corpus.

A noção de ethos em análise do discurso advém de um resgate da abordagem aristotélica ao conceito: em retórica, o ethos, ao lado do logos e do pathos, constitui os meios da prova do orador. O ethos especificamente “designa a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 220). Maingueneau trata do ethos de modo indireto, como “tom”, em sua tese de 1984 que deu origem à Semântica Global e aos planos constitutivos do discurso. Naquele texto, o que hoje se entende como cenografia e ethos estava associado ao “modo de enunciação”. Posteriormente, nos anos 90, Maingueneau (2020) retomou nominalmente o ethos e o integrou ao modo de enunciação sob sua forma atual, embora não sem revisões ao longo dos anos. A abordagem de Maingueneau (2020) se mostrou largamente influente entre os linguistas da análise do discurso, inclusive no Brasil.

O objetivo, através do ethos retórico de Aristóteles, é aparentemente simples: “dar uma boa imagem de si capaz de convencer o auditório ganhando sua confiança” (MAINGUENEAU, 2020, p. 9). Determinar o ethos discursivo do locutor, por outro lado, não é um processo linear e estritamente enunciativo, mas resultado da interação entre diversos ethos operando em diferentes níveis. A abordagem de Maingueneau dá foco à construção da imagem de si através do discurso. Esse esquema interativo é representado por Maingueneau (2008) na Figura 1:

Figure 1. Figura 1. Fonte: (Maingueneau, 2008, p. 71)

O ethos dito (o que o locutor afirma sobre si mesmo enquanto enuncia; nem sempre presente) e o ethos pré-discursivo (também chamado de ethos prévio, que consiste na imagem que o coenunciador detém do locutor com base em experiências anteriores à enunciação) estão ligados aos estereótipos e mundos éticos depositados no pano de fundo cultural compartilhado pelos parceiros da linguagem. A interação entre o ethos dito e o ethos mostrado (a imagem de si que o locutor projeta, mesmo à sua revelia, no momento da enunciação) resulta no ethos discursivo. Da interação entre esse e o ethos pré-discursivo resulta o ethos efetivo, aquele que de fato trará efeitos de sentido ao locutor.

Para Maingueneau (2020), contudo, não basta discriminar o ethos em diferentes etapas, é também preciso assumir que o interlocutor concebe o ethos de acordo com uma corporalidade e um caráter específicos através da qual poderá habitar / transitar no mundo. Tratamos, aqui, da fase seguinte à construção do ethos: o processo de incorporação e de criação de um fiador. “Para além da persuasão por meio de argumentos, a noção de ethos permite refletir sobre a adesão dos sujeitos ao universo configurado pelo locutor” (MAINGUENEAU, 2020, p. 14). Essa adesão é realizada através de um corpo que enuncia, “considerado como um fiador que, por seu tom, atesta o que é dito” (MAINGUENEAU, 2020, p. 14, grifo do autor). É através do fiador que o interlocutor poderá participar do mundo ético do locutor, composto por seus valores e perspectivas. Esse mundo ético é constituído por cenas validadas e estereótipos sedimentados no pano de fundo cultural dividido entre os participantes do discurso.

Caso um turista português ou moçambicano, despojado de paixões e maiores interesses sobre nossa política nacional, desembarcasse no Rio de Janeiro no dia 24 de março de 2021 e caminhasse até uma banca de jornal, é provável que a capa do Jornal Extra não levantaria sobrancelhas. O mesmo não se pode dizer do carioca na mesma situação. Isso ocorre porque dividimos um mesmo cenário cultural, composto por muitos discursos já trocados, circulados; temos cenas validadas sobre certos acontecimentos e ethos prévios bem delimitados acerca de certas figuras da vida pública. Todo discurso que envolva essas figuras e esses acontecimentos conversará com todos os discursos já negociados a respeito deles. Por essa razão temos piadas internas sobre situações características de uma determinada cultura. Como afirma Maingueneau (2018, p. 325), é “suficiente para o leitor postular que o locutor conhece as regras do jogo e presume que seus destinatários as conheçam para desencadear uma atividade inferencial, o que permitirá atribuir ao fiador desse texto um ethos apropriado”.

Uma piada deve fazer referência a evento, pessoa ou comportamento conhecido ou experimentado pelo interlocutor para alcançar seu efeito surpresa. Tais discursos referenciam mundos éticos estabelecidos, compostos por cenas validadas e estereótipos. Um apoiador do governo, nesse caso, pode assimilar uma corporalidade, gestual, modo de falar e maneira de se vestir muito características do que se espera fazer sentido no mundo ético da “situação”; o mesmo não pode ser dito para quem faz oposição ao governo. Há, desse modo, a incorporação de um fiador que abra as portas desse mundo ético específico de um lado da polarização política atual, um mundo ético formado por discursos muito particulares, como os discursos anti-vacina, contra o uso de máscaras e que não consideram as políticas públicas do governo para o combate à COVID-19 desastrosas. Para transitar por tal mundo ético, é preciso incorporar um conjunto de regras enunciativas que literalmente convertam uma perspectiva fantasiosa em um horizonte ideológico de sanidade.

Todo esse processo, como explorado anteriormente, começa pela construção de um ethos e é articulado de acordo com uma cenografia. A cenografia é uma das três cenas de enunciação teorizadas por Maingueneau, junto da cena genérica e da cena englobante, que não detalharemos neste artigo. Conforme Maingueneau (2008a, p. 71), “a cenografia é […], ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra: ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la […]”, um fenômeno que Maingueneau (2008a) referencia como enlaçamento paradoxal. A cenografia é assim uma cena de enunciação responsável por tornar o discurso proferido pertinente àquela situação de comunicação ao mesmo tempo em que a situação se torna receptiva ao discurso por sua própria influência. É a cenografia que deve, por exemplo, fazer com que um discurso contrário ao consenso científico (como o anti-vacina) seja percebido como pertinente ao invés de absurdo. Do lado oposto, a cenografia implementada por um jornal pode levar o leitor a perceber uma crítica às políticas de governo sem que essa crítica tenha sido expressamente enunciada.

Como veremos na análise, a interação entre o ethos pré-discursivo do jornal (formado em parte pela capa imaginária de outubro de 2018, em parte por outras capas e cenografias engendradas pelo veículo) e seu ethos discursivo (a capa de março de 2021) foi fundamental para que o jornal Extra alcançasse o efeito de sentido pretendido, uma vez que “a incorporação só é possível para os leitores de uma revista se os estereótipos sobre os quais ela repousa forem identificáveis no espaço em que circula o texto em questão” (MAINGUENEAU, 2020, p. 18).

Produtos midiáticos constituem parte importante das análises operadas a partir da noção de ethos. O jornalismo, tangibilizado em uma série de formatos discursivos é, também, uma forma de fala, um texto público, que circula pelo ambiente social. Sob esta perspectiva, Traquina (1999) considera que as notícias são índices do real e destaca que, ao produzir determinado discurso jornalístico, o sujeito jornalista realiza uma operação de seleção, exclusão, ou até de acentuação de diferentes aspectos do acontecimento, e com isso o recria, constrói a realidade. Essa construção, é importante citar, precisa filiar-se ao que Bucci (2019) chama de verdade factual, tomando emprestado o termo cunhado por Hannah Arendt, relacionando-a àquela verdade que se erige apoiada estritamente nos acontecimentos e que pode ser descrita, conforme se apresenta no plano material daquilo a que chamamos fatos. Apoiado nos fatos, o jornalista tem a tarefa de produzir não apenas o texto, mas também títulos e linhas de apoio. Também é importante enfatizar que na avaliação de Maingueneau (2008b) o produto final, o texto a ser produzido pela imprensa, é uma construção coletiva constituída de fragmentos textuais em mosaico em que intervêm o locutor citado, seu agente, o jornalista, o paginador, e mesmo o responsável pelo título.

Esses enunciados curtos, que resultam de uma lógica de extração de um fragmento de texto, são nominados por Maingueneau (2008) como enunciados destacáveis. Para o autor, o destacamento não se dá somente a partir das sequências destacadas, mas sim ao se considerar as condições que permitem que enunciados sejam destacáveis. A destacabilidade opera, então, uma possível ‘destextualização’ do texto, uma saída de partes do enunciado para uma operação de enfatização em relação ao todo textual. Esse realce pode resultar em manobras de eliminação de modulações, que reforçam a autonomia e o caráter lapidar do enunciado. Como resultado, surge o que o autor nomina como sobreasseveração, uma antecipação do destacamento. O texto realçado pode estar próximo ao texto de origem, ou nem tanto, e assim surge a distinção ao que Maingueneau (2008b) denomina sobreasseveração forte ou fraca. No caso da forte, esse autor explica que são os enunciados dissociados do texto de origem na apresentação, a menos que os leitores façam uma busca para ter acesso à publicação original. A segunda distinção é a dita sobreasseveração fraca, que promove o destacamento fraco, quando o enunciado destacado está próximo do texto de origem.

Veremos a seguir, nos procedimentos metodológicos e posteriormente na análise, esses dois momentos da contribuição teórica de Maingueneau (2008, 2020): (1) um exemplo de enunciado estrategicamente destacado e (2) de que modo os ethos pré-discursivo e discursivo interagem para a produção de um efeito de sentido crítico do jornal para com o Governo Federal em relação à crise da COVID-19.

2. Procedimentos metodológicos

Este trabalho apresenta um estudo de natureza exploratória e cunho bibliográfico com abordagem qualitativa mediante a Análise do Discurso. O marco teórico se situa nas reflexões sobre cenografia e ethos de Dominique Maingueneau (2018, 2020). Nosso objetivo é analisar o ethos elaborado a partir da capa do jornal Extra e os efeitos de sentido que ela produz. A publicação foi realizada no dia 24 de março de 2021 pelo veículo carioca, que faz parte do Grupo Globo e está em atuação desde 1998. A escolha do corpus se justifica pelo jogo discursivo encenado pelo jornal, que faz referência, pelo uso da destacabilidade, tanto a uma frase utilizada positivamente pelo atual presidente para criticá-lo (sem que essa frase contenha, aparentemente, qualquer conotação crítica aparente), quanto a uma encenação discursiva anterior promovida pelo próprio jornal: a matéria de 2018 em que os então candidatos deveriam expressar o que esperavam que se concretizaria como manchete de seus governos (e então posar com a capa fictícia para uma foto).

O procedimento, na imprensa, de crítica velada a uma figura de governo com base em uma referência oblíqua a fato de conhecimento público é algo bastante tradicional, sobretudo por parte de publicações como o jornal Extra e o jornal Meia Hora. Ao investigar capas antigas, por exemplo, é comum que o sarcasmo de uma manchete se perca ao desconhecer o contexto da época. Em todos esses casos, ao operar tal cenografia, a publicação em questão está se valendo do ethos prévio da figura referenciada em uma combinação com seu ethos discursivo atual para a produção de um ethos efetivo. Trata-se de uma operação, em parte, de fé no conhecimento de mundo do leitor: é preciso que jornal e leitor compartilhem do mesmo mundo ético, constituído pelas mesmas cenas validadas e sobre as quais se depositam os mesmos estereótipos e ethos prévios, para que o ethos efetivo de efeito crítico seja alcançado. O mesmo poderia ser dito a respeito de uma piada: em geral, é preciso que o locutor e seu interlocutor dividam o mesmo pano de fundo cultural para que as referências feitas na cena humorística sejam devidamente comunicadas. Cenas validadas e ethos prévios precisam estar dispostos em um mesmo plano de fundo para ambos os participantes da troca linguageira.

Vale retomar a Figura 1 que exploramos anteriormente: o processo de construção do ethos efetivo é um de combinação, interação entre diferentes cenários e conhecimentos partilhados para a construção do ethos efetivo. Para tanto, baseamos a análise a seguir no seguinte dispositivo:

Ethos pré-discursivo A (mundo ético compartilhado)

+

Ethos pré-discursivo B (mundo ético compartilhado)

+

Ethos discursivo (construído no momento da enunciação)

=

Ethos efetivo

No caso do corpus analisado, veremos que o ethos efetivo é crítico ao atual presidente sem precisar citá-lo na manchete (“Brasil acima de todos”), e que, mais do que isso, o leitor compreende essa crítica com base nos ethos prévios disponíveis, o que significa que o uso dessa frase é validado pela cenografia, já que sua recepção foi tornada pertinente, legitimada através do processo de enlaçamento paradoxal (MAINGUENEAU, 2008a). No vácuo, ou seja, sem qualquer influência de mundos éticos e cenas validadas, tal frase estampando uma capa com referência ao recorde diário do número de mortos pela COVID-19 no Brasil seria um absurdo, denotaria certo tom celebratório em relação à tragédia. O leitor sabe que não deve interpretar a manchete sob essa perspectiva porque a cenografia engendrada pelo jornal valida somente uma interpretação como possível: a de que a frase usada é uma indireta crítica ao atual presidente, não um comentário solto a respeito do recorde de mortes por Covid em 24h. Conforme Maingueneau (2008a, p. 71, grifos do autor), “a cenografia, com o ethos da qual ele participa, implica um processo de enlaçamento: desde sua emergência, a fala é carregada de certo ethos, que, de fato, se valida progressivamente por meio da própria enunciação”.

Na sequência, veremos a análise do corpus selecionado: a interação entre os ethos prévios e a cenografia com efeito crítico ao presidente, e que implicações esse tipo de procedimento bastante utilizado no jornalismo pode ter para futuras pesquisas em análise do discurso.

3. Uma cenografia crítica: a construção do ethos efetivo na capa do Jornal Extra

Reproduzimos na sequência a foto de Jair Bolsonaro exibindo a capa do jornal Extra almejada para seu governo em outubro de 2018 (Figura 2) e uma capa real do jornal carioca de 24 de março de 2021 após mais um dia de recorde de mortes por COVID-19 no Brasil (Figura 3).

Figure 2. Figura 2. Fonte: extra.globo.com (2018)

Como comentado anteriormente, a foto acima faz parte de uma matéria do jornal Extra de outubro de 2018 que pretendia compreender as visões dos então candidatos à presidência para seus respectivos governos. Em contraste com os outros candidatos, que fizeram em suas capas fictícias menção a tradicionais pautas políticas, como educação e emprego, o então presidenciável Jair Bolsonaro preferiu seu lema de campanha, que faz aceno à base eleitoral evangélica, e o simbolismo com tons nacionalistas: a bandeira brasileira triunfante e tremulando ao vento sobre um céu azul.

A pretensão era de que a capa que o então candidato ostenta se materializasse ao longo de seu governo. Em seguida, na figura 3, o jornal Extra resgata parte da manchete imaginada por Bolsonaro para ilustrar cenário real constituído através das políticas públicas e posicionamentos oficiais do governo em relação à pandemia.

Figure 3. Figura 3. Fonte: vercapas.com.br (2021)

Como apontado anteriormente, o jornal Extra obtém um efeito de sentido crítico ao atual mandatário do governo sem que, para isso, precise atacá-lo nominalmente. Esse efeito é alcançado, principalmente, em dois passos. Em primeiro lugar, com a construção do título, uma forma de destacar e, ao mesmo tempo, realçar parte da frase que se tornou mantra da campanha bolsonarista de 2018, reencarnada agora, em 2021, com novo sentido.

A operação de destacabilidade, na concepção de Maingueneau (2008a), precisa ser entendida enquanto um movimento de realce enunciativo. Ao noticiar a pandemia, cotidianamente os veículos de comunicação impressos, como é o caso do jornal Extra, são desafiados a nomear o acontecimento eleito para ser apresentado como o mais importante e sintetizá-lo numa manchete. Ao produzirem um título que resume o que será retratado, operam processos de seleção, edição e formatação do acontecimento e, com isso, recriam-no (TRAQUINA, 1999). A operação desse processo estabelece uma relação de retomada de algo antes veiculado, porém em outra cena enunciativa. O movimento de destacabilidade formata, portanto, a partir de um fragmento de texto, um percurso interpretativo. No caso da análise empreendida, o trecho destacado pelo jornal em sua capa em 2021 manifesta os dados concretos do enfrentamento da pandemia que têm colocado o país “acima de todos”: onde mais pessoas morrem de COVID-19 no mundo em março de 2021.

O Brasil retratado pelo Extra contrasta com aquele que Bolsonaro representou quando, ainda candidato, formatou um ideal de manchete que gostaria de ler no futuro. Aquele Bolsonaro de 2018 pretendia dar a seus eleitores entrada a um mundo ético oposto ao atual através de um fiador responsável por validar sua cenografia. O objetivo era levar seus eleitores a passar pelo processo de incorporação para “vestir” a corporalidade e caráter de seu líder. Conforme Maingueneau (2020, p. 14), todo texto “possui uma vocalidade específica: a instância subjetiva se manifesta por meio de um corpo enunciante historicamente especificado”. Em sua capa de 2021, o jornal Extra utiliza esse corpo enunciante historicamente especificado em 2018 para apontar a distância entre a fantasia daquele ano e a dura realidade do ano atual. O percurso interpretativo que a manchete destacada constrói é de cobrança da responsabilidade do gestor a partir do realce da realidade de um país que se sobressai entre os demais da maneira mais negativa possível, em óbitos de seus cidadãos. Tangencialmente, o jornal também manifesta ao leitor uma imagem de descrédito em relação ao presidente eleito, justamente em função de sua pretensa manchete ter se traduzido, na realidade, em algo bem distante do ideal pretendido pela manchete proposta por Bolsonaro quando candidato, em 2018.

Antecipando o destacamento, há o que Maingueneau (2008b) chama de sobreasseveração. Neste caso, a manchete produzida pelo Extra pode ser considerada de sobreasseveração fraca, tendo em vista que não há necessidade de busca, por parte do leitor, para compreender o indicador que torna o país destaque: logo acima da manchete a informação apresentada é de 3.158 mortes no país em 24 horas, enquanto no mundo os casos reduziam, à época. O jornalismo profissional, portanto, ao atuar na função de mediador entre os acontecimentos sociais e os leitores, os quais não têm acesso ao universo de produção informativa de coleta de informações e checagem anteriores à publicação, constrói a realidade que retrata pelos princípios de credibilidade que o sustentam. A manchete do jornal Extra é interpretável pois o destinatário a destaca sobre o fundo de um repertório de conhecimentos que são partilhados por brasileiros no momento de circulação do periódico, tendo em vista contextualizar uma realidade que boa parte da população vivenciava de muito perto naquele momento, ao perder parentes ou conhecidos pela COVID-19 ou ao consumir conteúdos noticiosos.

Na manchete fictícia e imaginada em 2018, por outro lado, o destacamento transforma a passagem enunciada em uma única frase com valor generalizante, uma espécie de sentença, mas que não apresenta elementos que a sustentem além da idealização do então candidato Bolsonaro, numa explícita estratégia de enunciar a sua verdade, com pretensão eleitoreira. O destinatário, neste caso, não tem índices aos quais recorrer para interpretar a manchete, carente de carga informativa ou mesmo interpretativa - o que poderia estar relacionado a um projeto de governo, como no caso dos outros dois candidatos convidados a exporem suas pretensões: Haddad com emprego e educação para todos e Ciro Gomes com recorde de empregos. Configura-se, então, a sobreasseveração forte, a qual apresenta o enunciado dissociado do texto de origem na apresentação, a menos que os leitores façam uma busca para recuperar o contexto. Neste caso, a capa fictícia de Bolsonaro, em 2018, enunciava a presença de Deus acima de todos - em referência a uma de suas bases eleitorais, os evangélicos - e a pretensão de um Brasil que estivesse acima de “todos”, numa referência que mescla patriotismo e nacionalismo e não projetos de governo ou políticas públicas.

Deve-se notar também que esse procedimento é operado dentro de um framework consistente com o ethos pré-discursivo de Jair Bolsonaro e com o ethos pré-discursivo que o jornal elaborou na produção da foto do então candidato em 2018 segurando sua capa imaginária. Há em jogo, então, uma interação entre diferentes ethos prévios com um ethos discursivo (do jornal) para obtenção de um efeito de sentido crítico contra o presidente, sendo que esse efeito depende ativamente de o leitor conhecer o cenário em que essa interação acontece, ou seja: exige-se nessa enunciação que o leitor compartilhe com o locutor (jornal Extra) dos mesmos dados estereotípicos e mundos éticos sobre os quais se baseiam os ethos prévios com os quais o ethos discursivo interage. De acordo com Maingueneau (2018, p. 323), referindo-se ao ethos prévio, “[...] os destinatários geralmente têm uma representação do locutor anterior a seu discurso. Isso é particularmente evidente para aqueles que ocupam a cena midiática”.

Em outras palavras, para compreender a capa de 24 de março de 2021 em toda sua intenção discursiva, o leitor deve conhecer tanto Jair Bolsonaro e sua frase emblemática quanto as fotos que os presidenciáveis de 2018 tiraram para o jornal Extra com suas capas idealizadas. Podemos representar essa interação, com base no dispositivo introduzido nos procedimentos metodológicos, da seguinte maneira:

Ethos pré-discursivo A (ethos prévio de Jair Bolsonaro)

+

Ethos pré-discursivo B (foto do então candidato com a capa do Jornal Extra em 2018)

+

Ethos discursivo (capa do Jornal Extra de 24 de março de 2021)

=

Ethos efetivo (efeito de sentido crítico ao presidente)

O efeito de somente um desses ethos prévios sobre o outro é claro ao considerarmos o que cada um soma ao cenário pretendido pelo jornal. É possível, por exemplo, que boa parte dos leitores tenha conhecimento apenas do primeiro ethos prévio; nesse caso, apesar de certo efeito crítico ainda poder ser alcançado, é seguro dizer que porção substancial da ironia alcançada pela capa de 2021 se perde na tradução. Os fiadores de ambos os discursos também são radicalmente diferentes: o primeiro fiador dava entrada a um mundo ético utópico, um Brasil unificado, pacífico e com forte iconografia nacionalista sob uma espécie de déjà vu retrofuturista do período ditatorial dos anos 60, 70 e 80; principalmente dos anos 70, década sobre a qual essa nostalgia mórbida parece ser mais forte. O segundo fiador, por outro lado, dá inadvertidamente boas-vindas a um interlocutor crítico ao governo e suas políticas públicas de combate à pandemia. Seria possível considerar também, além desses desdobramentos de análise, o ethos iconotextual (MAINGUENEAU, 2018, 2020) do jornal ao contrastar o fundo negro da capa de 2021 contra o fundo branco em 2018; a bandeira nacional fremente ao vento sobre o céu azul do mundo imaginário contra a terra arrasada de um superlotado cemitério carioca no deserto do mundo real.

Diante do que foi exposto até aqui, chegamos à conclusão de que o jornal chega a um ethos efetivo crítico através da interação entre os ethos prévios do presidente e do próprio jornal com o ethos discursivo da capa atual, que destaca estrategicamente o enunciado anterior do presidente para conferir-lhe novo sentido. Passaremos na sequência aos resultados e considerações finais.

4. Considerações finais

A proposta deste trabalho amparou-se na construção de um ethos, desencadeada pelo jornal Extra, que mesmo estabelecendo uma relação direta com a publicação anterior, não o faz de maneira explícita. Ao manter parte da manchete original, “acima de todos”, e alternar o enunciador de Deus para Brasil, exclui-se a conotação religiosa e se reforça a noção de que o país está nesta posição ocupada pelos expressivos números de óbitos. Ele continua “acima de todos”, mas de acordo com o ethos projetado pelo jornal, esse pódio é agora negativo.

Nosso objetivo, conforme enunciado na Introdução, foi analisar o ethos elaborado pela capa do jornal e que efeitos de sentido ele produz. Verificamos a partir da análise que o leitor apenas conseguirá apreender o efeito completo da capa de 2021 se tiver conhecimento da capa de 2018, da frase usada sobre a qual o jornal operou a destacabilidade, e compartilhar com o editor do jornal dos mesmos dados estereotípicos e mundos éticos, além de o mesmo ethos pré-discursivo em relação ao presidente Jair Bolsonaro.

Convém anotar também que este trabalho possui certas limitações: seria possível, certamente, fazer uma análise do ethos iconotextual das duas capas que compõem o corpus, além de uma exploração mais profunda dos conceitos que acompanham as reflexões de Maingueneau (2020) sobre o ethos, como fiador, incorporação, ethos categorial, mundo ético e estereótipos. Tal discussão, contudo, terá de ficar para a próxima oportunidade.

Concluímos, dessa forma, que o jornal utilizou o ethos prévio elaborado na capa de 2018 e o ethos prévio do atual presidente ao destacar estrategicamente sua frase emblemática (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” retornou como “Brasil acima de todos” em 2021) para ilustrar, a partir de um ethos efetivo crítico, os efeitos nefastos do fracasso governamental no combate à COVID-19. Esperamos contribuir para a expansão das discussões sobre ethos na comunicação social: o processo de retomada de ethos prévios aliado à destacabilidade de enunciados específicos é bastante comum no jornalismo e merece atenção redobrada por deixar geralmente claros o posicionamento e linha editorial do veículo que o utiliza, o que pode ser apontado com precisão através de uma análise discursiva.

Referências

BUCCI, Eugênio. Existe democracia sem verdade factual? Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019. 104p.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

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______. Brasil acima de todos. 2021. Disponível em: < https://www.vercapas.com.br/edicao/capa/extra/2021-03-24/ >. Acesso em: 14 abr. 2021

MAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de (Orgs.). Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial. 2008a. p.55-73.

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MÕES, Malu. Março teve todos os 31 dias em que a covid matou mais no Brasil. Poder 360. Online. 2021. Disponível em: < https://www.poder360.com.br/coronavirus/marco-teve-todos-os-31-dias-em-que-a-covid-mais-matou-no-brasil/ >. Acesso em: 17 jun. 2021.

TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. 2. ed. Lisboa: Vega, 1999.

Como Citar

CHAISE, M. J. C.; FREITAS, E. C. de; BOAVENTURA, L. H. Entre ficção e realidade: cenografia e ethos crítico em uma capa do jornal Extra. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e550, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id550. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/550. Acesso em: 22 dez. 2024.

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