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Experience Report

Esenumenkanto Pata'se/Tamapykary: valorization of Makushi and Wapishana languages through theater

Ananda Machado

Federal University of Roraima image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0002-3363-2587


Keywords

Teaching indigenous languages
Theater

Abstract

The paper aims to reflect on experiences carried out in university extension courses that worked on language teaching through theater and playwriting in indigenous languages. The methodology included storytelling, sketch improvisations improvisation and play writing in Makushi and Wapishana by students who speak these languages fluently. Rehearsals and presentations take place for intermediate and beginner classes. This paper discusses the relationship amongst oral, written, performance, theater, poetic and memory narratives (Benjamin (1985), Zumthor (1997, 2000), highlighting the relevance of theater as a language capable of contributing to the exercise of the narrative act in indigenous languages among the Makushi and Wapishana peoples and in the teaching / learning of their languages and cultures. The result is the organization of a database with playwritings in indigenous languages and other materials for use by the community in general, thus contributing to the process of teaching these languages in Roraima.

Introdução

Compartilhamos aqui reflexão resultante de nossa experiência de trabalho em Roraima com os Macuxi (Caribe) e Wapichana (Aruak), dado que esses fazem parte das mais de 20 etnias indígenas em Roraima1: com os Macuxi traduzimos a palavra teatro que, segundo eles, não existia em seu vocabulário porque ninguém a tinha criado. Assim, depois de algumas discussões, decidimos chamar esenumenkanto pata’se (lugar de assistir algo). Na língua Wapichana para traduzir teatro escolheram tamapykary (repetição). Para trazer a ideia de dramaturgia, os Macuxi usaram Erenkato’moropai ikuto’ (texto para virar ação) e os Wapichana, saadakary aimeakan xa’apkau kawan at (escrito de acordo com a ação/história ou acontecimentos)2.

Podemos observar que cada povo, de acordo com sua cultura e interpretação/vivência, escolheu um nome diferente, ressignificando assim as ideias de teatro e de dramaturgia. Este texto pretende inaugurar uma reflexão sobre os processos de criação cênica e dramatúrgica vivenciados a partir de narrativas orais Macuxi e Wapichana.

Não obstante, falaremos da continuidade do trabalho desenvolvido desde 2009, também, com os Wapichana. Discutiremos as relações entre narrativas orais, escritas, performance, teatro, poética e memória, destacando a relevância do teatro como linguagem capaz de contribuir no exercício do ato narrativo nas línguas indígenas entre esses povos e no ensino/aprendizagem de suas línguas e culturas.

Focaremos o processo de trabalho desenvolvido na “oficina de teatro como metodologia de ensino de línguas indígenas”, ocorrido no primeiro semestre de 2017, pela Extensão da Universidade Federal de Roraima (UFRR)3, com a turma de nível avançado de alunos/professores Macuxi e Wapichana juntos. As aulas aconteceram durante dez sábados, das 8h às 12h, completando 40 horas de oficina de teatro com falantes dessas línguas, no Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena (UFRR).

1. Como os neologismos para teatro e dramaturgia foram criados

Quando a turma de Macuxi decidiu chamar teatro de esenumenkanto pata’se (lugar de assistir algo), interpretaram pelo lado do espectador que de fato espera assistir algo. Mas ao mesmo tempo, muitas vivências de contação de história e de rituais Macuxi alargariam o sentido de teatro; o modo como nomearam essa arte privilegiou o aspecto da plateia, evidenciando o sentimento de comunidade que é bastante forte entre eles.

Quando buscamos traduzir a palavra dramaturgia, os Macuxi decidiram usar Erenkato’moropai ikuto’ (texto para virar ação). Mas poderia ser também, conforme vivenciamos em sala de aula, ação para virar texto. Fizemos um movimento de vai e vem uma vez que exercitamos as práticas de contar e ouvir histórias, ao mesmo tempo em que dividimos personagens e dramatizamos as histórias.

A primeira dramaturgia escrita brasileira teria sido produzida pelos jesuítas, encenada pelos indígenas em suas línguas, com todos os personagens interpretados por atores indígenas e na hora de representarem eles mesmos, os personagens que eram os indígenas das peças eram associados ao demônio.

Já em 1962 Haroldo de Campos falava em transluciferação (reprodução monstruosa), pensando a tradução como recriação, criação paralela, autônoma, porém recíproca, como se fosse o avesso da tradução literal. O poeta paulistano pensava a tradução como atividade paramórfica ou como uma parafiguração, ato que consegue conciliar ao mesmo tempo violência e liberdade, embora possamos afirmar que não seja total porque podemos perceber que existe uma manutenção parcial do texto fonte. Para ele traduzir poderia ser trair, mas não petrificar. O autor usa tresler (ler às avessas), tresluzir (iluminar às avessas) e transluminar (iluminar por transparência). Assim, para ele, Lúcifer seria o anjo da tradução, uma luz que regesse as trevas, olhando para o ato de traduzir como algo inalcançável (CAMPOS, 1984, 1976, 1991).

Nas aulas de teatro, no Insikiran, trabalhamos para discutir nas comunidades sobre qual política cultural, de memória e linguística poderia ser relevante, assim como para praticar a oralidade em novos locais de uso e produzir materiais escritos nas línguas indígenas (dramaturgia Macuxi e Wapichana). E quando traduzimos, o fazemos na direção do inalcançável como apontou Campos (1984).

Há muito tempo as memórias Macuxi e Wapichana vêm sendo repassadas de geração a geração pelas histórias que os anciãos contam. Essa figura do narrador que vive vários personagens, altera postura, ritmo e voz, poderia ser considerada teatral. Portanto, pensar que o teatro já vinha acontecendo mesmo antes de nomear essa arte nas línguas macuxi e wapichana não nos parece nenhum absurdo.

Os mestres da língua, os grandes narradores e tradutores das línguas macuxi e wapichana sempre foram admirados por seus pares e mesmo por quem chegava de fora para dentro das comunidades. Ao mesmo tempo em que aprender a língua portuguesa e a escrevê-la passava a ser signo de prestígio.

A escrita é uma conquista recente para a maioria dos 230 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores que são de um conhecimento ancestral aprendido pelos sons das palavras dos avôs e avós antigos estes povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de transmissão da tradição obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas. (MUNDURUKU, 2008, p. 1).

Há uma série de reuniões que acontecem nas comunidades indígenas onde acabam usando uma língua misturada porque não traduziram ainda palavras tais como: gasolina, conselho, recurso, orçamento, projeto, dentre outras. Algumas vezes parece até que não traduzem para deixar bem claro o que entra de fora para dentro das culturas Macuxi e Wapichana. As línguas macuxi e wapichana mudaram, e com isso, a portuguesa também. Quando a internet entrou nas comunidades muito da linguagem transformou-se bruscamente.

Na língua Wapichana escolheram tamapykary ‘repetição’. O teatro, principalmente nos ensaios, de fato repete bastante. Em algumas línguas como a francesa ensaiar é répétition. Já para significar dramaturgia os Wapichana decidiram por: saadakary aimeakan xa’apkau kawan at (escrito de acordo com a ação/história ou acontecimentos). É provável que essa decisão do grupo tenha sido influenciada pelo processo de trabalho deles, uma vez que partiram de narrativas tradicionais que já estavam escritas na língua Wapichana que adaptaram para o teatro. O grupo dos Wapichana vivenciou também, de modo um pouco diferente dos Macuxi, o movimento escrita-oralidade/cena-escrita.

Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É preciso notar que ela – a memória – está buscando dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas, mas há também o vídeo, o museu, os festivais, as apresentações culturais, a internet com suas variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida que cada uma delas é importante, mas poucos são capazes de perceber que é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais. (MUNDURUKU, 2008, p. 1).

O teatro foi uma das formas que encontramos para criar, registrar e divulgar a memória indígena para as novas gerações conhecê-la e estudá-la. Partiu daí a necessidade do registro em língua indígena e em português dos textos apresentados no teatro.

Trabalhamos a conjugação dos nossos saberes referentes ao teatro, com os dos alunos e os dos narradores, com a ideia de transcrever, não apenas o saber deles, ou o nosso, mas o produto de nossas negociações.

2. O teatro e a narração Macuxi e Wapichana como formas artesanais de comunicação

Walter Benjamin (1985) criticou as “novas” formas de informação, como a jornalística, caracterizada pela brevidade e pela falta de conexão entre uma notícia e outra, em detrimento da narração, que é uma das mais antigas formas de comunicação. Para esse autor, é com essa pluralidade, com a perda de memória, que os meios de comunicação jogam ao matar a força germinativa das narrativas.

O mesmo autor afirmou que a arte de narrar está em vias de extinção, preocupado com o rompimento dos elos interpessoais dentro das comunidades. A narração é uma forma artesanal de comunicação que transmite e transforma o acontecido. O tempo da narração é associado ao tecer, onde o grupo compartilha as camadas translúcidas da narrativa, atingindo um estado de concentração e conquistando múltiplas possibilidades interpretativas e associativas.

O griô africano Sotigui Kouyaté (2006) lembra que “tradição oral gera um tipo de homem”4. Basta perceber as dificuldades que os jovens indígenas sentem em memorizar as narrativas, problema que seus avós não enfrentavam. Pelo teatro, o movimento de ida e volta ao papel (dramaturgia-cena- dramaturgia) vem sendo interessante, por exigir que o ator jovem compreenda/aprofunde os sentidos e decore o texto.

A dramaturgia pretende sair do papel e virar cena pois “o desejo da voz viva habita toda poesia, exilada na escrita. O poeta é voz […]” (ZUMTHOR, 1997, p. 168). Comparando o texto poético ao dramático e substituindo poeta por ator, que em nossa visão, mesmo quando interpreta outros gêneros narrativos, exala poesia, nos apropriamos das ideias trabalhadas por Zumthor em relação à poesia e performance, para pensar a relação dramaturgia e ação cênica.

“Toda poesia aspira a se fazer voz; a se fazer, um dia, ouvir: a capturar o individual incomunicável, numa identificação da mensagem na situação que a engendra, de sorte que ela cumpra um papel estimulador, como um apelo à ação” (ZUMTHOR, 1997, p. 169).

Zumthor, quando escreveu sobre performance, tratou do valor de escutar5 e afirmou algo interessante, que diferencia a narrativa oral da escrita, sendo essa segunda uma “notação auxiliar”, ressaltando a teatralidade da oralidade (ZUMTHOR, 2000, p. 46). Para esse autor: “não se sonha a escrita. A linguagem sonhada é vocal” (ZUMTHOR, 2000, p. 83). Talvez essa reflexão possa contribuir nas discussões sobre o conceito de dramaturgia, sobre as formas de criar e as relações cena-texto-cena.

Graça Graúna, escritora indígena Potiguara, escreveu que “a releitura vinda da oralidade e transfigurada na escrita se transforma em escrivivência, no sentido de que estão vivas (em mim) a poesia, a história e a memória dos antigos”6. Nas oficinas de teatro, muito das memórias e das experiências Macuxi e Wapichana fizeram parte das cenas.

Lembramos ainda do que afirma Zumthor “[…] no continuum da existência social: o lugar da performance é destacado no “território” do grupo. De todo modo, a ele se apega e é assim que é recebido” (ZUMTHOR, 1997, p. 164). Percebemos fortes marcas da vida/territorialização em muitas das narrativas dramatizadas pelos Macuxi e Wapichana.

As lembranças são cultivadas oralmente como artes para as presentes e futuras gerações. Ervas, plantas e flores são usadas em processos indígenas de cura. Danças, rituais, iniciações, precisam ser guardados na memória. Contam fatos passados com precisão de detalhes para ajudar a solucionar problemas atuais, ensinar a viver de forma equilibrada e poder mudar o curso de vidas. O narrador oral ensina por meio das histórias e chega a falar indiretamente dos defeitos de alguém, corrigindo assim seu comportamento, sem envergonhá-lo, oferecendo a cada pessoa o direito de decidir como aplicar as histórias em sua própria vida. Em época difícil, as histórias podem insuflar novos ânimos.

Os narradores Macuxi e Wapichana que conhecemos vêm atuando como agentes criativos e re/criativos na permanência e na atualização das histórias. São “homens e mulheres de memória”, que armazenam na mente inúmeras narrativas, utilizando poéticas cênicas, cantos rituais e repertório. Essas práticas poderiam ser consideradas também um tipo de dramaturgia oral.

Percebi que a “literatura” desenvolvida pelos Macuxi e Wapichana em forma de “palavra sonora”, ainda não escrita, vinha sendo compartilhada em grupo, de modo dialógico. Essa construção oral viva une ainda passado, presente e futuro.

O movimento de buscar narrativas para encenação funcionou também como estratégia para documentar e trabalhar o exercício da oralidade, da memória e da escrita nas línguas Macuxi e Wapichana. A partir dessas experiências problematizamos questões como uso dessas línguas, preservação da circulação de suas narrativas orais, sua função política, as apresentações culturais e relações interculturais.

3. O ensino das línguas e culturas Macuxi e Wapichana pelo teatro

Trabalhamos o teatro nos cursos de extensão para ensinar as línguas indígenas a quem é Macuxi/Wapichana e não aprendeu em casa a língua de seus ancestrais. E também para desconstruir preconceitos, estendendo esse ensino aos demais interessados. Os cursos acontecem na UFRR desde 2009 e em algumas comunidades indígenas desde 2012.

Em primeiro lugar, exercitamos as práticas de contar e ouvir histórias.7 Selecionamos, para dramatizar, narrativas que contivessem conflitos, que fossem engraçadas ou que desejassem divulgar pelo teatro.

O grupo improvisa a história e, quando a encenação era interessante, partia para a roteirização, com criação dos diálogos, explicação das ações da cena, tais como entradas e saídas de personagens, descrição de cenários, figurinos, organizando assim as dramaturgias Macuxi e Wapichana.

Muitas vezes escrevíamos o texto tal como falavam e encenavam nas improvisações e ensaios, inclusive filmando ou gravando áudio. Depois ouvíamos/assistíamos para transcrever, criando assim uma dramaturgia em língua indígena com metodologia muito próxima à história oral (transcrevendo tudo e depois editando).

Os ensaios e apresentações muitas vezes aconteceram em aulas das outras turmas de língua e cultura Macuxi e Wapichana (níveis iniciante e intermediário). Assim o teatro contribuiu tanto para a formação continuada dos professores dessas línguas (que já eram falantes e sabiam escrevê-las), como para o aprendizado por quem tinha conhecimento parcial ou iniciante.

Era solicitado aos alunos/plateia que escrevessem as palavras que conseguissem entender nas línguas faladas em cena e, no final da apresentação, identificávamos o que compreendiam das narrativas. Para além das palavras, as ações e imagens construídas em cena contribuíam para essa interpretação pelos alunos das turmas iniciantes e intermediárias.

Depois, cada professor recebia o texto impresso na língua macuxi ou wapichana e trabalhava seu vocabulário, a ordem de palavras, aprofundando a compreensão do léxico, da sintaxe e da semântica com sua turma. Muitas vezes esse movimento fazia corrigir a escrita, tanto na escolha da grafia, quanto na eficácia da expressão e comunicação, aperfeiçoando a qualidade dramatúrgica. Os comentários também nos ajudaram a redigir as rubricas, para que qualquer leitor possa perceber as sugestões de movimentação.

O grupo de falantes/professores em formação fazia dois trabalhos a que antes não estavam habituados: o de criar a cena e o de escrever o texto tal como falavam e encenavam. A Dramaturgia Macuxi construída até o momento inclui alguns textos: Tapîrike Nankon Toroyamî’ Pantoni (A Festa no Céu).

Abaixo citamos uma versão Macuxi da “Festa no Céu”. Cabe observar que o personagem do urubu derruba o sapo lá do céu. O grupo começava e terminava a peça cantando primeiro um Parixara de boas-vindas. Em quase todas as apresentações houve canto e dança no início e no final.

Parixara é o nome dado ao canto e dança Macuxi e/ou Wapichana que está relacionada à fartura das colheitas, à chegada da caça ou pesca. Funciona como se fosse uma dança com animais como porcos, sapos e pássaros. Em geral é uma dança coletiva e acontece em círculo. Os cantos de Parixara/Parichara são poéticos e tem muita repetição. Usam alguns instrumentos musicais como kewei (chocalho), tambores, ruwe (flautas feitas de ossos de animais e de madeira oca - embaúba e bambu). No passado era uma dança com máscaras feitas de palmeira inajá, que cobriam parte do rosto e as pernas. A cada dois passos batem forte com o pé direito no chão e dobram ligeiramente o tronco para frente. É comum beberem pajuaru e caxiri (bebidas fermentadas de mandioca). As festas de Parixara duravam dias e comemoravam casamentos, funerais, uma nova casa ou lugar (FIOROTTI, 2018).

Atualmente há grupos de Parixara que se apresentam em assembleias, reuniões e festejos indígenas. Há eventos nas universidades e outros locais urbanos que convidam esses grupos de Parixara para cantar e dançar. Na apresentação da Festa do Céu as asas dos animais eram como saias de Parixara, aproveitando a forma e a estética desses materiais.

No texto abaixo, que é uma versão bem diferente de outras amplamente conhecidas, o urubu tentava fazer com o macaco o mesmo que fez com o sapo, que também conseguia ir à festa no céu, mas o macaco não permitia, e, muito esperto, enchia o urubu de pauladas. No final, o macaco, bem feliz, cantava e dançava. Assim a peça teatral era concluída. Nada era dito em português. Somente após os alunos que assistiram falarem o que tinham compreendido, um breve resumo traduzia para eles oralmente o texto.

Narrador: penna pemonkon yamî’pe toronyamî’ wanî’pî ka’po, tiaronkon toronyamî’ ko’manto’ wanî’pî ka’raata, mierî toronyamî mana’to’ weyu seepurî’pî. Mîrîrî epu’’tîpî kurunya mîrîrî e’nen e’maipe. Kurunya pîretukku eta’pî.

Sapo: pîretukku eta’pî kurunya mîîkîrî atausinpasa’ wîtî’pî ipu’ tîiya pra inna kaima. Tîîse tapîiya kurunpî upîrî ton pra man ta’pîiya, kurunpî mîrîrî yuku’pî kurunya ayariuya unpo pona. Kanne uttî pepin uyapîrî ton pîraman, uutîya ayarakkîrî enna pîtî, uye’pî kewekîpî’nen. Nura as’ne pekaipan. Ka’rata wananpona. Pîretukku ma’pî kurunya non pona iwî’pîiya moroopai yanî’pîiya.

Urubu: Ka’rata’ eerepamî pîra tîîse pîretukku ma’pîuya ipîra iro’ta ta’mîrikai non pona’ asa’manta’pî moroopai ya nî’pîuya.

Narrador: ewonkî kurun taarîpai kurunya iwarîkka eta’pî.

Urubu: Uurî kurun mîîkîrî to’yenkutîpî’nen to’yanto pîuya kaima. Mîrîrî warantî iwarikka yenkutîpîuya. Tîîse iwarikka wanî’pî pakko pe pîra. Tîîkaituputon yarî’pîiya ineka’ tamoopa kaima, imakuipîpe e’ma man, rarwoi, rawoi pe, ayarîuya sîrîrî mîrîrî warantî ayarî’ya tawainunse. Anne as’ne uurî ke’wîi uurî tîîpatî pî’se pra.

Macaco: iwarikka kore’mapîiya tarîpai yei piapîke kurun pu’pai pa’ tîpîiya tenkIsI, panîse mîrîrî warantî kurun autîpî maasa non pona kurun enaa pra tîîse yu’pona iwarîkka arappîmîpî tîwîiya pra tîîse mîrîrî e’nen sîrîrî tîpose pakko, pepîn mîkîrî iwarikka. (Texto em língua Macuxi “A Festa no Céu”).

A diferença entre a narrativa Macuxi e outras versões que circulam e até foram gravadas é que a araponga é quem anunciava a festa que aconteceria na noite de São João. Ela dizia que a festa era apenas para bicho que voa (isso é comum em ambas as versões). Mestre sapo decidiu entrar no violão do urubu (adaptamos para ir nas costas do urubu). O urubu estranhou o peso e sacudiu dizendo que derrubaria ele lá embaixo, mas acabaram chegando ao céu. O sapo ficou abandonado por todos e adormeceu, quando acordou percebeu que a festa tinha terminado e o urubu já tinha ido embora. O sapo entrou no trombone e quando macuco soprou, o solo não saiu. Ele empurrou a vara, o sapo voou longe, caindo lá embaixo e esborrachando-se. A mensagem final dessa versão que muitos conhecem é que ir à festa sem convite está errado. Na versão Macuxi a esperteza do macaco sobressai. E a narrativa justifica o porque o urubu tem a testa vermelha.

Outro texto criado e encenado foi Pri’yawon Pepîn Moropai Piasan (A Moça e o Pajé), trazendo um tema sensível às culturas Macuxi e Wapichana, uma vez que algumas igrejas continuam invadindo as Terras Indígenas e contribuindo para que nas comunidades haja proibição e desvalorização das práticas e conhecimentos dos pajés.

Mamaa: Inna ne' ne pe unre man, ne' ne-pe ipe' pai wauî mîrîrî.

Piasan: Inna morîîya, î' eneepî' pî' natî?

Mamaa: Î' kamam se?

Piasan: Pimi yu' se wauî mîrîrî itepiiton

Mamaa: Pimi itîîkî amooka pia

Mãe: Ela está com dor de cabeça.

Pajé: Vocês trouxeram alguma coisa?

Mãe: Como assim?

Pajé: Pimenta, maruai, banho de folha, de pião roxo com sal.

Mãe: Pimenta no olho do paciente.

(Fragmento do texto na língua macuxi e depois em português: a mãe, a moça e o pajé).

No fragmento do texto acima podemos perceber como levaram à cena o que vivem no cotidiano. Nesse caso, uma mãe leva sua filha doente ao pajé. Na cena acima ele usa pimenta, resina de maruai, folha de pião roxo e sal para curar a paciente. Talvez a grande recorrência de dramatizações envolvendo pajelança aconteça porque atualmente está difícil encontrar pajés nas comunidades Macuxi e Wapichana.

A turma Macuxi encenou ainda a peça “Uma Caçada” e “A Entrada da Língua Macuxi na Comunidade Raposa”, narrativa que tratou do contato, evidenciando a brutalidade com que a língua portuguesa foi imposta na escola da Comunidade Raposa e brincando com as dificuldades de comunicação e de pronúncia da língua portuguesa pelos Macuxi.

Uma das cenas mais engraçadas, que fez todos caírem na gargalhada, foi em Pri’yawon Pepîn Moropai Piasan (A Moça e o Pajé), o único texto que fez o caminho contrário, foi traduzido da língua portuguesa para a macuxi.

Trata-se de uma cena curta na qual a mulher chama o pajé para procurar a doença dela e no final, o pajé diz que ela estava apaixonada. A mulher revela ao pajé que a paixão é por ele. O pajé termina feliz dizendo que enfim encontrou alguém que o queria bem. O texto desta cena está abaixo, na língua macuxi.

Inkenpa: Tosi! Piasan ayanno mipîwai, u’nîwanî era’mimkî.

Piasan: Inna, maasa ayepran karemikî u’pî ayepîton karemî tapîuya.

Inkenpa: Ne’ne pe man seeni, moropai nene pe man seeni poro, ne’ne pe man seeni pata.

Piasan: Inna, anî yarakarîri taisi eepinsa nai.

Inkenpa: Inna, potupînai amooko, minne ripîpenai amooko.

Piasan: Ka! Manun uupî atausinpa amentîpî, amentîpî, yasiriton posa u’ya wai wakîrî pe.

Diferentemente do processo de trabalho com os Macuxi, a dramaturgia Wapichana foi construída com adaptações dos textos do livro didático Wapichan Paradan Idia’an Aichapkary Pabinak na’ik Kadyzyi kid, como Kuxi na’ik Kupay (O Peixe e o Porco); Pimydy na’ik Pidian (O Beija-Flor e a Pesso)’; Baidukury na’ik Anawan (O Urubu e a Onça); Zyn na’ik Dupawai (A mulher e o Jamaxim).

Umas dramatizações eram etiológicas, tal como a origem do pajé e a explicação do porquê a testa do urubu é vermelha. Outras chamavam atenção para o valor de costumes indígenas, tais como a pajelança e a caça. Alguns objetos indígenas caminhavam e falavam.

Nas histórias, houve disputa entre personagens de tamanho pequeno, porém inteligentes, que conseguiam vencer os maiores e mais fortes. Igualmente, desafios entre animais que se vangloriavam de suas qualidades, mostrando suas diferenças. Outro denunciava seus defeitos e a narrativa concluía que um não era melhor do que o outro, sendo apenas diferente.

KUXI NA’IK KUPAY

Narrador: Kutya’anaa wynyinhau paraydayzun zii, intiweakayzun da’i pa’atiaka, kainha’a: aru, kapaxi, sukury, urana, kuxi na’ik baurainhau. Aizii aichakary nii kywai dia’a. Kuxi dapadan kupay intiweaka’azun, ytykpa’azun kanun kadyny’u manawyn padynaa dia’a, sariap ikian, kunpadi kupay at:

Porco - Watykap kanum kadyny’u.

Peixe - Ayxa’anaa muku kunpadi.

Narrador: Yryynaa intiweakan, kuxi saakadannaa:

Porco - Ungary kaupa’u daari bi’i, unwanhykynyy imi’i bara’a, ungary kaniribe’u, ungary maxaapan kizichi’u ipei kamuu. Mazan, na’apainim unzuikeu an, pidiannau tuman nii wanhykynyi kadyny’u, ipeu nii inhau niken, inpizuan paka’y xiiu kid na’ik inpizuu dakuinhan na’ik insusuan unniuiz. Pygary man kunpadi kupay, na’apainim inhau aruupan py dynaa da’y. Sariap insiupichan pixiri atii panadun inkiudian nii pixiri, ykayan kunpadi kupay.

Peixe - Ungary winii (wazutu) watiweakan idia’an, xa’apanyn id ipei pidiannau, kuraiziannau naydapan ungary dynaa.

Porco - Pygary kunpadi kupay, aunaa ipei man pidiannau naydapan pydynaa. Narrador: Kaipa’a kuxi winiiayzun kupay. (Texto adaptado pela turma do curso Teatro como Metodologia de Ensino das Línguas Macuxi e Wapichana, OLIVIERA et al, 2015)

O processo Wapichana permitiu que as turmas iniciantes compreendessem a cultura e os textos escritos apenas na língua Wapichana. O material é trabalhado nas aulas, mas os professores usam o livro acima citado que é monolíngue em Wapichana e foi criado para alunos que têm a língua Wapichana como primeira língua.

Alguns alunos gravaram o áudio das apresentações e depois ficaram lendo e ouvindo, tentando melhorar a pronúncia. Certamente este processo colabora para memorização de vocabulário e assimilação da sonoridade da língua, além de ser uma forma dinâmica e divertida de ensinar e de aprender. Ao mesmo tempo, vem criando repertório, considerado pelos professores de línguas indígenas valoroso no ensino dessas línguas.

Incluímos o teatro como uma das ações de extensão passíveis de revitalizar a oralidade nas línguas macuxi e wapichana, no sentido de sua forma dinâmica e sensível, na qual a ação e o movimento dos personagens complementam a expressão verbal. No caso de situações de bilinguismo e de dificuldades de comunicação, a cena teatral preenche possíveis lacunas de compreensão pelo seu aspecto visual. Além da possibilidade de retomar, pela pesquisa, narrativas que permaneceram guardadas no suporte escrito, adaptando-as para o teatro, voltando-as para o suporte oral. E algumas delas, que tinham sido registradas apenas na língua portuguesa, foram traduzidas para língua indígena.

4. Considerações finais

Nas discussões sobre as apresentações, constatou-se a importância de se ter atenção com as características dos personagens e do movimento, bem como com a necessidade do exagero. Exagerar foi uma ação que se revelou difícil para alguns com seu modo de ser tímido e discreto.

Planejamos organizar materiais audiovisuais nas línguas Macuxi e Wapichana para que essas novas tecnologias contribuam e sejam mais um espaço de uso das línguas e culturas. Como era objetivo deste texto, fizemos um esboço da metodologia que vimos trabalhando nas oficinas de teatro realizadas com os Macuxi e Wapichana, que fazem parte de algumas experiências consideradas por nós relevantes, realizadas nos últimos 11 anos.

Continuaremos a nos apresentar como parceiros das comunidades e das escolas indígenas para articular nossos saberes com os deles e construir um espaço intercultural o mais equilibrado possível no qual os Macuxi, os Wapichana, dentre outros povos, possam decidir como, quem, em que língua e porque trabalhar juntos.

Sonhamos com eles em montar um Grupo de Teatro Macuxi e Wapichana que crie repertório e possa circular com apresentações nessas línguas nas várias comunidades. Paralelamente, seja em língua indígena com breve síntese explicativa, seja em português, o teatro poderá apresentar-se nas escolas e outras instituições da sociedade não indígena, principalmente na região das comunidades, para valorizar e divulgar as culturas Macuxi e Wapichana, contribuindo na implementação da Lei 11.645/2008, que obriga o ensino da história e das questões indígenas nas escolas não indígenas.

Criamos um banco de dados com textos dramáticos indígenas e outros materiais para facilitar o acesso e divulgar o acervo para o uso da comunidade em geral, inclusive para que o material contribua no processo de ensino dessas línguas. Contribuímos para a criação de espaço para o uso dessas línguas indígenas na universidade, divulgando as especificidades e preciosidades dessas culturas, através de suas narrativas, para um público amplo, que vai desde professores e alunos dos mais diversos cursos da UFRR, até lideranças indígenas de muitas comunidades, organizações e demais interessados.

Conseguimos também aproveitar o teatro como metodologia de ensino dessas línguas, uma vez que, para encenar é necessário interpretar os textos, decorar as falas na língua indígena, falar e ser ouvido/compreendido pelo público. A leitura e a audição de textos escritos nas línguas Macuxi e Wapichana são fatores de aperfeiçoamento da pronúncia e, acompanhados de tradução, é material que vem funcionando bem no ensino dessas línguas. Certo é que o teatro vem incrementando ainda mais esse processo, dado que interpretar ajuda a compreensão e a memorização.

Desejamos particularmente enfatizar o papel que as produções artísticas Macuxi e Wapichana podem ter de armas poderosas na luta contra o preconceito como dizia Darcy Ribeiro sobre as artes indígenas.

Desejamos continuar, se assim os Macuxi e Wapichana quiserem, a vivenciar esses encontros8, construir espetáculos teatrais que funcionem como uma exposição itinerante, contribuindo com o ensino, registro e a transmissão dessas memórias indígenas, divulgando amplamente suas línguas e narrativas.

How to Cite

MACHADO, A. Esenumenkanto Pata’se/Tamapykary: valorization of Makushi and Wapishana languages through theater. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 3, p. 01–14, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n3.id226. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/226. Acesso em: 26 apr. 2024.

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