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Research Report

The Kiriri of Bahia’ “Sertons”: discussing documentation, revitalization and language

Pedro Daniel dos Santos Souza

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https://orcid.org/0000-0002-7747-7451

Jardel Jesus Santos Rodrigues

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https://orcid.org/0000-0003-0285-4248

Fernanda Lima Almeida

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https://orcid.org/0000-0001-6721-6410

Élvia Martins Falcão Souza

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https://orcid.org/0000-0003-3476-2372


Keywords

Language policies
Revitalization
Kiriri

Abstract

Until the middle of the 18th century, Portuguese America was characterised by widespread multilingualism (MATTOS E SILVA, 2004), with Portuguese being one of the many languages spoken, but for a minority of the population. The linguistic policy implemented by the government of D. José I (1750-1777), through the Directory of Indians, determined the use of the Portuguese language as compulsory among the indigenous populations and prohibited the use of the native languages of the various ethnolinguistic groups and the general language(s), which played a crucial role in the glotocide witnessed since the second half of the Seventh Century. In the “sertons” of Bahia, the Kiriri people, through a process of linguistic substitution, stopped speaking their language, Kipeá, and progressively adopted Portuguese as their first language. Based on the Kiriri’s demand for linguistic advice, the Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS) – Educação Diferenciada e Revitalização de Línguas Indígenas – was created at the Federal University of Bahia (UFBA), with the objective of discussing the processes of weakening and replacing indigenous languages with the dominant national languages, emphasizing the global sociopolitical and linguistic implications that are involved in this process. Thus, in the present work, we present an account of the experiences of the aforementioned ACCS in the training of the subjects involved in the elaboration and definition of language policies for the Kiriri of the hinterland of Bahia, characterized by the pressing need to carry out a project of linguistic documentation that will serve as a basis for the revitalization of the indigenous language desired and demanded by the community.

Para início de conversa

No âmbito do multilinguismo generalizado que caracterizava a América portuguesa até meados do século XVIII, o português era uma das diversas línguas faladas e por uma minoria do contingente populacional do período. A política linguística promovida pelo governo de D. José I (1750-1777), por meio da legislação que ficou conhecida como Diretório dos índios, ou pombalino, previa o uso obrigatório da língua portuguesa nas novas vilas de índios erigidas de antigos aldeamentos, bem como a proibição do uso das línguas nativas dos diversos grupos etnolinguísticos e ainda da(s) língua(s) geral(is). Embora seja evidente o papel significativo que a política linguística do governo josefino teria desempenhado na redefinição da realidade sociolinguística da América portuguesa em direção à hegemonia do português, não podemos deixar de destacar que diversos fatores sócio-históricos devem ser mobilizados nesta discussão.

Na execução dessa política linguística, não só evidenciamos uma orientação que prevê a inserção das populações indígenas em práticas de uma cultura escrita em língua portuguesa, mas ainda as suas consequências, que se refletiram no glotocídio, ou nas restrições de uso das línguas indígenas a espaços específicos, como os ritualísticos. O processo de escolarização como previsto no Diretório, ou seja, a emergência, na América portuguesa, da escola “para” índios e não “de” índios, centrada no ensino da doutrina cristã e ignorando as práticas educativas indígenas, serviu como um eficaz instrumento para executar uma política de desarticulação de identidades étnicas e discriminar as línguas e as culturas dos diversos grupos etnolinguísticos.

Na direção oposta à mencionada política linguística e à função das escolas no processo de homogeneização linguística, eliminando línguas e culturas e transformando todos em súditos de Sua Majestade, as políticas de revitalização linguística da contemporaneidade dão ênfase ao papel e à importância da escola para a execução de ações de retomada das línguas. Assim, fundamentando-se na perspectiva de uma Antropologia Linguística e numa reflexão sobre a realidade linguística dos Kiriri dos “sertões” da Bahia, a Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS) – Educação Diferenciada e Revitalização de Línguas Indígenas1, sob coordenação do Professor Doutor Marco Tromboni e da Professora Doutora Lilian Teixeira de Sousa, disciplina ofertada na Universidade Federal da Bahia (UFBA), nos semestres 2017.2 e 2018.1, buscou discutir sobre os processos de enfraquecimento do uso das línguas indígenas por seus falantes nativos e sua substituição progressiva pelas línguas nacionais dominantes, dando ênfase às implicações sociopolíticas globais e linguísticas que estão envolvidas nesse processo. Como produto dessa ação curricular, foram realizadas diversas oficinas no Território Indígena (TI) Kiriri, localizado no município de Banzaê-BA.

No presente trabalho, apresentamos um relato das experiências da referida ACCS na formação dos sujeitos que deverão estar envolvidos na elaboração e definição das políticas linguísticas para os Kiriri, que se caracterizam pela urgente necessidade de realização de um projeto de documentação linguística que sirva de base para revitalização linguística. De início, faremos uma breve apresentação do grupo etnolinguístico, desde os primeiros relatos sobre os aldeamentos e missões à homologação do TI Kiriri. Em seguida, trataremos da educação escolar indígena e da revitalização linguística, a partir de dados sobre as escolas do Território. Por fim, relataremos as experiências de formação em educação linguística com os professores indígenas, as lideranças e demais membros da comunidade interessados no processo de revitalização da língua indígena, tomando a escola como ponto de partida das ações a serem executadas.

1. Os Kiriri dos sertões da Bahia

A segunda metade do século XVII foi marcada, sobretudo, pelas chamadas “adentradas aos sertões”, forma como a historiografia tem retratado o movimento de invasão e de conquista dos sertões pelos portugueses (DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992). A busca por riquezas e a expansão da pecuária extensiva foram as molas propulsoras do referido período. No entanto, a procura por terras nos sertões não ocorreu de maneira pacífica, sendo antecedida por muitos conflitos envolvendo diversos atores sociais: sesmeiros, ameríndios, missionários e colonos. Entre esses conflitos, destacamos o antagonismo entre os colonos e os ameríndios; enquanto que os primeiros buscavam ampliar as dimensões de suas propriedades, para as populações originárias, a terra significava a garantia da reprodução social e biológica. Nesse contexto de conflitos, foram criados aldeamentos missionários, em sua maioria administrados pelos padres da Companhia de Jesus, nas chamadas “rotas das boiadas”, que ligavam a Cidade da Bahia – Salvador – aos pastos do médio São Francisco, ponto de apoio para o gado e seus condutores.

Os principais aldeamentos indígenas que compõem a rota das boiadas na Bahia foram criados pelos jesuítas João de Barros e Jacob Roland, na segunda metade do século XVII. Como nos informa Serafim Leite (1945), a primeira aldeia erigida teria sido a de Nossa Senhora da Conceição de Natuba, fundada em 1666, e atual cidade de Nova Soure; em 1667, foi a vez da Aldeia de Santa Teresa de Canabrava, na atualidade, cidade de Ribeira do Pombal, ser criada; imediatamente após, temos a criação da Aldeia da Ascensão do Saco dos Morcegos – atual vila de Mirandela, no Território Indígena Kiriri –, cuja população decrescia durante o período de forte estiagem, quando se deslocava, periodicamente, para Aldeia de Tomar do Geru, na Capitania de Sergipe d’El Rey, em busca de alimentos.

A partir da ampla documentação consultada, Serafim Leite (1945) destaca a presença de índios da etnia Kiriri nos referidos aldeamentos, embora não implicasse sua exclusividade. Os aldeamentos e missões criadas pela Companhia de Jesus possuíam composição, geralmente, multiétnica e multilíngue, reunindo nestes espaços diversas etnias, autorizando-nos a afirmar que se tratava de uma das políticas indigenistas adotadas pela referida instituição.

O Diretório dos índios, implantado inicialmente no Estado do Grão-Pará e Maranhão, em 1757, e expandido para toda a América portuguesa pelo Alvará régio de 17 de agosto de 1758, por meio de seus 95 parágrafos, determinou uma nova política indigenista que trouxe mudanças significativas nas relações entre as autoridades da Coroa, os colonos e as populações indígenas. As diretrizes do Diretório, que teve como grande incentivador Sebastião José de Carvalho e Melo, o Conde de Oeiras, depois Marquês de Pombal, então Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino, motivo pelo qual ficou conhecido também como Diretório pombalino, implementaram um projeto civilizador que tencionava transformar os povos indígenas em súditos de Sua Majestade (SOUZA, 2019). Dentre os impactos mais significativos, podemos destacar a transformação dos aldeamentos em vilas, a obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa e, consequentemente, a proibição do uso da(s) língua(s) geral(is) e das línguas indígenas de cada grupo étnico, como base da “civilidade” que se pretendia alcançar. Para colocar em prática essa nova política indigenista, foram estabelecidos, em Salvador, os tribunais especiais do Conselho Ultramarino e da Mesa de Consciência e Ordens (SOUZA, 2019).

Os Kiriri do sertão baiano, grupo étnico sobre o qual relataremos as nossas experiências de formação com vistas à retomada da língua, vivenciou os impactos do projeto glotocida da Coroa portuguesa expresso no Diretório dos índios, uma das variáveis para explicar a atual hegemonia da língua portuguesa no Brasil. A documentação colonial disponível testemunha o uso do Kipeá, língua falada pelos Kiriri, que pertencia à família linguística Kariri, do tronco Macro-Jê (MAMIANI, 1698, 1699). Nessa direção, Dantas, Sampaio e Carvalho (1992) destacam a predominância da família Kariri, do tronco linguístico Macro-Jê, desde o Ceará e a Paraíba até a região setentrional do sertão baiano, grosso modo, região onde se localizavam as Aldeias de Nossa Senhora da Conceição de Natuba, de Santa Teresa de Canabrava e da Ascensão do Saco dos Morcegos. Para os autores, não é possível definir com precisão seus contornos, uma vez que “apenas quatro de suas línguas – Kipeá, Dzubukuá, Kamuru e Sapuyá – chegaram a ser identificadas e apenas a primeira delas suficientemente bem descrita, ainda no período colonial, graças ao trabalho de Mamiani (1698)” (DANTAS; SAMPAIO; CARVALHO, 1992, p. 432).

Nos sertões da Bahia, o glotocídio iniciado com o Diretório dos índios, ou ainda uma redução dos espaços de uso da língua indígena, encontra seu golpe quase fatal com a Guerra de Canudos-BA (1896-1897), que culminou com a morte de diversos índios, dentre os quais os últimos pajés kiriris que dominavam a língua e as “tradições” (REESINK, 2012). Atualmente, os Kiriri habitam a região Nordeste do estado da Bahia2, especificamente, no município de Banzaê, no médio Itapicuru, distantes a 300km da capital do estado, Salvador, em um território com cerca de 12.320 hectares correspondentes ao octógono regular, que, partindo da igreja missionária de Nosso Senhor da Ascensão (Aldeia de Mirandela, antiga Aldeia da Ascensão do Saco dos Morcegos), se dirige para todos os pontos cardeais e colaterais, conforme determinava o alvará de 23 de novembro de 1700 (BANDEIRA, 1972). Fabrício Lyrio Santos (2014, p. 64) destaca que esse alvará “constitui uma das mais importantes resoluções do período colonial, jamais revogado, desde então. Ele decretava a concessão e demarcação de uma légua de terra em quadra para cada aldeia com o objetivo de garantir a sustentação dos índios e dos próprios missionários”. Embora ainda em vigor, o alvará não garantiu a posse das terras aos índios e, na contemporaneidade, a questão da demarcação das terras indígenas tem sido a principal bandeira de luta de diversos grupos étnicos que, ao longo dos anos, tiveram seus direitos usurpados.

Segundo o Censo demográfico 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os Kiriri, equivocadamente agrupados entre as etnias cujas línguas não são classificadas nem em troncos e nem em famílias, teriam uma população de 3.079 indivíduos, sendo 56 falantes da língua indígena. Embora não seja nossa intenção discutir os critérios do IBGE para definir o número de línguas e seus falantes, não podemos deixar de pontuar que as informações são muito díspares àquelas divulgadas por pesquisadores de línguas indígenas no Brasil (RODRIGUES, 2013; MOORE, 2011).

Se, para os Kiriri, a questão da língua reflete um processo de perda linguística, já que são falantes do português como língua materna, as disputas pelo reconhecimento do direito à terra consolidam-se no processo de retomada do território e de homologação da demarcação administrativa do Território Indígena Kiriri, por meio do Decreto n.º 98.828, de 15 de janeiro de 1990. Na figura 1 abaixo, temos uma representação do referido espaço.

Figure 1. Figura 1. Mapa do Território Indígena Kiriri Fonte: Elaborado por Paulo Henrique Neves Santos, Jardel Jesus Santos Rodrigues e Fernanda Lima Almeida.

Em oposição à política homogeneizadora implementada pelo Diretório dos índios, que, inclusive, encerrou uma possibilidade de o Brasil vir a ter uma base linguística indígena, sendo fundamental para as reconfigurações sociolinguísticas desse território, na contemporaneidade, as políticas de preservação e de revitalização, ou retomadas de línguas indígenas, até mesmo aquelas que envolvem uma prática de retomada para as situações em que ocorreu uma completa substituição da língua indígena pela língua portuguesa, como o caso dos Kiriri, trazem à cena o reconhecimento do multilinguismo brasileiro e a premente necessidade de uma luta engajada contra as práticas de homogeneização linguística, que se fundam em desaparecimento de línguas e de modos de viver.

Considerando essa mudança de perspectiva, os Kiriri encontram-se em processo de retomada linguística e, por conta disso, solicitaram uma assessoria linguística da Universidade Federal da Bahia, por meio do Prof. Dr. Marco Tromboni de Souza Nascimento, o que resultou na oferta da disciplina Ação Curricular em Comunidade e em Sociedade (ACCS) Educação Diferenciada e Revitalização de Línguas Indígenas, nos semestres 2017.2 e 2018.1. Como resultado da ACCS, iniciamos um trabalho de formação de professores indígenas no TI Kiriri, por meio de oficinas, em atendimento às demandas que foram apresentadas pelas lideranças e comunidade em geral. Como, nesse contexto, a escola constitui-se como um significativo espaço para gestar e difundir a política de retomada da língua, na próxima seção, apresentaremos informações sobre a educação escolar no Território.

2. Educação escolar indígena e revitalização linguística

Segundo Bandeira (1972), a primeira escola no Território Indígena Kiriri, Escola Padre Renato Galvão, mantida pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na década de 1960, atendia aos níveis primário e secundário, o que corresponderia ao atual ensino fundamental. Tempos depois, mas sem uma data precisa, teria surgido a Escolinha da Lagoa Grande, “dirigida por uma professora não-indígena que conseguiu a simpatia das crianças. Suas funções se restringem a alfabetizar e fazer cálculos rudimentares de adição, subtração e multiplicação, tal como a do SPI” (BANDEIRA, 1972, p. 70).

Apenas na década de 1980, a partir da redemocratização, da luta pelos direitos e das emergências étnicas, os povos indígenas ganham o cenário nacional e, consequentemente, o povo Kiriri reaparece e, no campo educacional, são inseridos, efetivamente, os conteúdos referentes à cultura kiriri no currículo escolar. Segundo Moraes (2018a), desde o início, havia uma certa preocupação por parte dos Kiriri, aqueles envolvidos ou não com a educação, de que os conteúdos didáticos discutidos nas escolas versassem sobre a realidade do povo.

No TI, essas escolas enfrentavam falta de material didático, infraestrutura precária e não havia professores indígenas lecionando (BANDEIRA, 1972; MORAES, 2018a). A formação dos primeiros professores indígenas kiriris, na década de 1980, ocorreu com apoio do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), do Centro de Educação e Cultura Popular (CECUP) e da Associação de Ação Indigenista da Bahia (ANAÍ-BA), que formaram monitores para atuar nas escolas. Ainda nessa década, os monitores buscavam complementar sua formação através do curso supletivo, oferecido pelo Centro de Estudos Supletivos do Estado da Bahia (CESBA), em Salvador-BA. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), arbitrariamente, através do projeto Missão Novas Tribos, substituiu os monitores/professores kiriris por professores não-indígenas, que não ensinavam conteúdos de interesse dos Kiriri. O mencionado projeto perdurou até 1989 (MORAES, 2018a).

Para Moraes (2018a), a escola dos Kiriri possui uma forte dimensão política para estes indígenas, uma vez que a instituição foi implantada, efetivamente, no Território no período de intensos conflitos com os sesmeiros pela posse da terra, a qual já era ocupada pelos Kiriri desde fins do século XVII, haja vista os aldeamentos criados pelos jesuítas. Nesse sentido, o domínio da leitura e da matemática revelaram ser importantes ferramentas para enfrentar os não-indígenas, em virtude de o analfabetismo ter lhes conferido uma desvantagem frente aos ímpetos do Estado e dos regionais, notadamente aqueles que ocupavam o Território ou que possuíam interesse naquelas terras.

Fundamentando-nos em Moraes (2018a), podemos considerar que a noção de educação intercultural e currículo norteiam a educação diferenciada indígena Kiriri. Para esse grupo, a valorização das “práticas e saberes tradicionais, integrando-os aos conteúdos escolares básicos, efetivando a integração de diferentes saberes (indígenas e não indígenas) na escola” (MORAES, 2018a, p. 76), transforma a escola num espaço de fronteira, uma encruzilhada onde há o encontro entre os conhecimentos tradicionais dos Kiriri e dos não indígenas.

O Decreto Presidencial n.º 26, publicado em 4 fevereiro de 1991, retirou da FUNAI a responsabilidade pela educação escolar indígena, transferindo-a para o Ministério da Educação (MEC). Assim, caberiam aos estados e aos municípios a competência para implementar as escolas, que, geralmente, recebiam o mesmo tratamento das escolas rurais, sem levar em consideração suas especificidades. Para contornar essa realidade, a ação do movimento indígena resultou numa mudança de perspectiva sobre a educação escolar, como podemos observar nos documentos e marcos legais que tratam desse tema: 1) Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas (1998); 2) Parecer n.º 14/99, do Conselho Nacional de Educação, que trata das Diretrizes e Bases da Educação Escolar Indígena (1999); 3) Resolução CEB n.º 3/99, que fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas (1999); 4) Plano Nacional da Educação (PNE), Lei n.º 10.172 (2001); e 5) Referenciais para a Formação de Professores Indígenas (2002). Considerando os desdobramentos dessa legislação, podemos destacar que houve um significativo impacto na educação escolar indígena no âmbito nacional e também nas unidades educacionais espalhadas pelo TI Kiriri.

A administração da educação escolar indígena Kiriri foi, então, assumida pelo município de Banzaê-BA, a partir de meados de 1990, mas os problemas enfrentados pela etnia não cessaram, ao contrário, as escolas não eram tratadas como diferenciadas, nenhuma escola do Território possuía todas as séries da educação básica e havia uma escassez constante de material didático e de merenda escolar (MORAES, 2018a). Apesar disso, os professores e funcionários que trabalhavam na escola eram escolhidos pela comunidade, sobretudo, pelos seus líderes, através de contratos de Prestação de Serviço Temporário (PST).

Na tentativa de solucionar os empasses e implementar uma escola que, de fato, atendesse aos interesses da comunidade, os Kiriri iniciaram o processo de estadualização das unidades educacionais a partir de 2000. No entanto um dos problemas que surgiram com a estadualização foi o processo de contratação dos professores, que passou a acontecer por meio do Regime Estadual de Direito Administrativo (REDA), o que, na prática, impossibilitou a progressão de carreira, e sem os auxílios de saúde, creche, rescisão, conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (MORAES, 2018a).

Apesar do problema com a contratação de professores, as escolas passaram por reformas estruturais e implementaram todas as séries da educação básica (ensino fundamental e ensino médio). Além disso, os Kiriri concretizaram o sonho de um calendário diferenciado, dispondo de 40 dias letivos de atividades relativas às práticas culturais da comunidade, que envolvem a participação em rituais e outras atividades relevantes para o grupo. Soma-se a isso a questão da merenda diferenciada composta por produtos não industrializados, com exceção do biscoito de água e sal.

Ademais, as disciplinas que integram a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) são ofertadas nas unidades educacionais do Território, com acréscimo das disciplinas de “Cultura” e de “Língua indígena”. A disciplina “Língua indígena” é trabalhada a partir da Arte de gramática e do Catecismo elaborados por Luiz Vincencio Mamiani, em fins do século XVII. Moraes (2018a) explicita a relação entre a disciplina de Língua Indígena e o processo de revitalização linguística:

Atualmente [sic] esses índios não possuem falantes do Kipeá, mas coletam algumas palavras que os mais velhos conhecem, estudam as obras de Mamiani e, em seus rituais, quando as mulheres incorporam, falam uma língua que não é o português e é identificada como sendo o Kipeá. Quando isso acontece eles registram as palavras ditas ou tiram dúvidas com essas entidades, perguntando como se falam algumas palavras. Por isso [sic] atualmente o que eles têm sobre sua língua é um léxico com algumas palavras que coletam da tradição oral, das obras dos jesuítas e das suas entidades sagradas. Apesar das poucas informações sobre sua língua [sic] eles estão se aprofundando nos estudos sobre ela e buscando efetivar um processo de revitalização linguística. Os principais estudiosos são professores ou ex-professores da disciplina ‘Língua indígena’, que ensinam o que registraram e sistematizaram para seus alunos (MORAES, 2018a, p. 87-88).

Na TI Kiriri, há três escolas e nove anexos, que funcionam “com uma ou duas salas, onde as aulas são realizadas de maneira multisseriada” (MORAES, 2018a, p. 71). No quadro 1 abaixo, apresentamos a distribuição dessas unidades escolares, informando ainda o número de professores.

Nome da Escola N.º de professores Local Aldeia onde ficam os anexos
Colégio Estadual Indígena Florentino Domingo de Andrade 32 Aldeia de Araçá SegredoBaixa da CangalhaBaixa do Juá
Colégio Estadual Indígena Kiriri Índio Feliz 33 Aldeia de Cajazeiras SegredoAraçáCajazeiras
Colégio Estadual Indígena José Zacarias 33 Aldeia de Mirandela Pau FerroMarcaçãoGado Velhaco
Table 1. Quadro 1. Distribuição das escolas no TI Kiriri Fonte: Moraes (2018a, p. 72), com correções.

A distribuição das escolas, conforme quadro acima, dá-nos a dimensão da importância da educação escolar no Território Indígena Kiriri. Presente nas diversas aldeias que formam o Território, a escola, enquanto locus para gestar o processo de revitalização linguística, constitui-se também como um espaço de disputas políticas e “guerras” em torno da língua, ou, ainda mais especificamente, do modelo de língua a ser retomado.

Para os Kiriri, assim como outros povos indígenas, a retomada dos usos da língua está diretamente relacionada com a reafirmação de sua identidade. De certa forma, vamos encontrar os ecos dessa percepção na discriminação dos não-indígenas, ou até mesmo de outros indígenas, em relação ao fato de este grupo etnolinguístico ter o português como língua materna e não mais a sua língua originária. No âmbito da dimensão mágico-religiosa, como discute Moraes (2018b), a língua funciona como o veículo de reestabelecimento da comunicação integral com os "encantados"3, o que reforça ainda mais a importância da retomada da língua.

Considerando a matriz curricular e, mais especificamente, a importância que os Kiriri atribuem às disciplinas de Cultura e de Língua indígena, a escola assume a posição de um dos veículos para uma efetivação da desejada retomada da língua, cabendo, então, aos professores a responsabilidade de estudar e de transmitir os conhecimentos linguísticos sobre o Kipeá. Em contrapartida, os professores não apresentam as condições objetivas para atender a demanda da comunidade.

O que ensinar nas aulas de “Língua indígena”? Essa é uma questão que se coloca de partida para os professores responsáveis pela execução da disciplina. Além da Arte de gramática e do Catecismo, elaborados por Luiz Vincencio Mamiani, como mencionamos, o que se preservou do Kipeá são itens lexicais coletados por diversos membros do grupo, reunidos em listas, sendo algumas organizadas por campos semântico-lexicais. A documentação desse léxico teve, como fontes, as consultas aos mais velhos e aos materiais elaborados por Mamiani (1698, 1699), não descartando também a possibilidade de consulta aos encantados, para saber a pronúncia de um vocábulo ou a sua tradução para a língua Kipeá (MORAES, 2018b).

Essa realidade vivenciada pelos Kiriri coloca em evidência, tanto no que diz respeito à escola e à inclusão das disciplinas de “Cultura” e de “Língua indígena” no currículo, quanto ao problema da língua, ou do modelo de língua a ser retomado, a necessidade de realização de um trabalho mais sistemático de documentação linguística, com vistas à tomada de decisões e ao atendimento à demanda da comunidade de uma política para a revitalização do Kipeá. Com o olhar voltado para essa questão, passaremos a relatar, mais especificamente, as ações que foram realizadas junto aos professores, lideranças e demais membros da comunidade interessados no processo de retomada linguística.

3. Educação linguística no Território Indígena Kiriri

Como destacamos na seção anterior, a documentação do léxico realizada pelos Kiriri, de forma assistemática, teve como fontes as obras do jesuíta Luiz Vicencio Mamiani (1698, 1699) e consultas aos mais velhos e aos encantados, como relatados pelos próprios indígenas. Embora as obras de Mamiani tenham sido usadas para a documentação do léxico, é preciso chamar a atenção de que não há consenso entre os Kiriri sobre essa questão, na medida em que, para alguns, há questionamentos sobre o fato de as obras jesuíticas terem registrado a língua de seus antepassados.

Os Kiriri possuem o conhecimento da existência dos trabalhos de Mamiani, a partir dos quais alguns professores fizeram o levantamento de alguns itens lexicais. Não podemos deixar de evidenciar, no entanto, a limitação de condições técnicas e formação para o acesso adequado ao registro feito pelo jesuíta. Essa situação coloca em questão os métodos e técnicas que teriam sido utilizados para o levantamento do léxico, haja vista também a formação dos professores. No âmbito de tornar mais acessíveis as obras, estamos realizando uma edição semidiplomática e, posteriormente, uma edição modernizada, a fim de tornar o texto mais “transparente” para os indígenas.

Como consideram os indígenas, associada ao processo de retomada do território, que se consolida com a homologação do Território Indígena Kiriri, torna-se, cada vez mais necessária, a retomada da língua. A escola e, em particular, os professores de “Língua indígena” passam a assumir um papel importante e, em certa medida, a serem “observados” pela comunidade. Mas qual língua, ou modelo de língua, revitalizar, uma vez que não se trata de uma comunidade de falantes da língua originária? Nesse contexto, a partir da demanda dos Kiriri por assessoria linguística, temos a oferta da “Ação Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS) – Educação Diferenciada e Revitalização de Línguas Indígenas”, na Universidade Federal da Bahia, com vistas a discutir os processos de enfraquecimento e de substituição das línguas indígenas pelas línguas nacionais dominantes, dando ênfase às implicações sociopolíticas globais e linguísticas que estão envolvidas nesse processo, e, junto aos indígenas, elaborar e definir políticas linguísticas e, consequentemente, um projeto de documentação que sirva de base para retomada da língua indígena, como desejado e demandado pela comunidade.

As atividades realizadas na ACCS, nos semestres 2017.2 e 2018.1, sob coordenação do Professor Doutor Marco Tromboni e da Professora Doutora Lilian Teixeira de Sousa, podem ser assim sistematizadas:

1. Leituras e discussões com vistas à qualificação do grupo de trabalho da ACCS.

2. Preparação de material para realização de oficinas de formação dos professores indígenas, das lideranças e demais membros da comunidade interessados no processo de revitalização da língua dos Kiriri.

3. Realização de oficinas com professores e gestores das escolas do TI Kiriri: (i) Preconceito, variação e mudança linguística; (ii) Linguística histórico-comparativa; (iii) História, língua e configuração territorial do povo Kiriri; (iv) Políticas e documentação linguísticas; (v) Pai Nosso: análise comparativa entre o Kipeá, o Dzubukuá e os usos linguísticos na comunidade.

4. Avaliação das oficinas realizadas, a fim de refletir sobre o trabalho e definir novas ações.

Para apresentação do grupo de trabalho e alinhamento do projeto junto à comunidade, realizamos nossa primeira reunião no Colégio Estadual Indígena José Zacarias, localizado na Aldeia de Mirandela, que contou com a participação de gestores, professores, lideranças e membros da comunidade em geral. As discussões promovidas nesse encontro geraram questões relevantes para o trabalho que se iniciava. Um importante embate que emergiu dizia respeito à relação entre a configuração política do TI, dividido em diversos grupos, com seus caciques e pajés, e a variação linguística, sobretudo, a chamada variação diatópica ou espacial. Nesse embate, a definição de um vocábulo como pertencente ao léxico da língua Kiriri passava pelo grupo político e, nesse caso, o membro de um determinado grupo podia não reconhecer a legitimidade de uma palavra registrada por um kiriri vinculado a outro grupo. Os discursos dos líderes sobre as formas linguísticas “verdadeiras” e a negação do caráter variável da língua, evidentemente por seu desconhecimento, motivaram a realização de nossa primeira oficina: “Preconceito, variação e mudança linguística”. Ainda nesse momento, outras inquietações dos indígenas focalizaram a pronúncia das palavras (fonética), as formas variáveis de escrita, a suposta sintaxe, entre outras questões.

Como também podemos constatar no primeiro encontro com os Kiriri, as dissensões políticas no TI, de certa forma, têm gerado alguns problemas que precisam de uma mediação, já que os atores sociais envolvidos com a questão linguística pertencem aos vários grupos políticos e os espaços de diálogos ainda são muito tênues. Vale destacar que o TI Kiriri, desde seu processo de retomada, tem sido marcado por uma tendência à divisão do povo em subgrupos articulados com suas próprias lideranças e com suas próprias interpretações do que é “ser Kiriri” (CARDOSO, 2008). Como as escolas são fundamentais nesse contexto de discussão sobre uma política de revitalização linguística, Cardoso (2008, p. 1324) afirma que, atualmente, “com os grupos já bem estabelecidos na área, as novas cisões passam a ser expressas na configuração organizacional das escolas indígenas”, gerando situações complexas, como o caso de anexos de escolas administrados diretamente por uma determinada liderança do grupo local, ainda que, oficial e burocraticamente, estejam sujeitos à escola sede e ao diretor de outro grupo.

Pelo quadro esboçado por Cardoso (2018), podemos mensurar os desafios que precisam ser enfrentados na definição de uma política linguística para os Kiriri. Tendo em vista essa realidade, nossas oficinas visavam, sobretudo, à educação linguística dos professores indígenas, haja vista as cobranças da própria comunidade de que estes tivessem um papel ativo no processo de retomada da língua. Passaremos a fazer um breve relato do trabalho desenvolvido com os professores indígenas, assim como com os indígenas interessados na discussão sobre o processo de retomada da língua, nas oficinas realizadas.

Na primeira oficina, “Preconceito, variação e mudança linguística”, podemos confirmar a percepção dos professores sobre a variação linguística no TI, manifestada na variação lexical existente entre as aldeias e os diversos grupos políticos. Os exemplos de variação lexical elencados pelos próprios participantes demonstraram seu conhecimento a respeito da questão, embora a busca por uma suposta forma “verdadeira” estivesse em seus discursos. É bem forte na comunidade o desejo de voltar a falar a língua dos antepassados, mas uma língua estática e cristalizada no tempo, na medida em que os Kiriri não vislumbravam a possibilidade de a língua variar diacronicamente. Assim, buscamos, durante a oficina, também discutir a variação diacrônica da língua, na tentativa de mostrar que os registros de Mamiani, questionados por serem diferentes dos itens lexicais que subsistem na memória da comunidade, podem ser vistos como formas pretéritas da língua.

Na segunda oficina, a “Linguística histórico-comparativa”, nossa atenção voltou-se para, em termos introdutórios, discutir a questão dos parentescos entre as línguas e, numa breve apresentação do método histórico-comparativo, mostrar como formas linguísticas podem ser reconstruídas, a partir da análise e comparação de línguas “aparentadas”. O Kipeá, língua dos Kiriri, ao lado do Dzubukuá, do Kamuru e do Sapuyá constituem as línguas da chamada família Kariri, do tronco linguístico Macro-Jê. Apenas a primeira teria sido relativamente bem descrita, graças ao trabalho de Luiz Vicencio Mamiani, mas também podemos encontrar testemunhos do Dzubukuá no “Katecismo Indico da Lingua Kariris”, de Bernardo de Nantes (1709)4. A realização dessa oficina proporcionou aos professores indígenas refletir sobre como as demais línguas da família Kariri podem contribuir para o processo de retomada do Kipeá.

Na terceira oficina, “História, língua e configuração territorial do povo Kiriri”, foi possível aos professores refletir de forma mais sistemática a relação entre os seus antepassados, no início do contato, e os padres jesuítas da Companhia de Jesus e a dispersão geográfica dos aldeamentos e da língua pelo território. A partir da literatura especializada, discutimos como se deu o processo de contato entre os Kiriri do século XVII com os enviados pela Companhia de Jesus para evangelização e as reverberações sobre a língua; apresentamos a dispersão pelo espaço geográfico das aldeias de povos de línguas da família Kariri pelo Nordeste brasileiro, focalizando a historicidade do processo de formação do espaço geográfico; e, ainda, discutimos a escrita da Arte de gramática e do Catecismo, como ferramentas de interlocução tendo em vista a política de retomada da língua que se pretende executar. Em relação à dispersão pelo espaço geográfico dos povos de línguas da família Kariri pelo Nordeste, o “Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes”, de Curt Nimuendajú, em inícios da década de 1940, dá-nos notícia sobre permanência e redefinições identitárias desses grupos etnolinguísticos:

Figure 2. Figura 2. Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes (detalhe). Fonte: Curt Nimuendajú (2017).

O detalhe do “Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes”, de Curt Nimuendajú, conforme figura 2, foi apresentado e discutido com os professores, com vistas a um olhar mais sistemático da dispersão geográfica, a partir da perspectiva da historicidade e da etno-história, além da compreensão do processo de ocupação e retomada do Território. No detalhe, podemos observar o registro dos seguintes etnônimos relacionados à família Kariri: Kipeá-Kariri, Kariri, Kariri-Chocó, Dzubukuá, Kamurú-Kariri e Sapuyá.

Na quarta oficina, “Política e documentação linguísticas para os Kiriri: reflexões iniciais para uma composição posterior”, buscamos refletir sobre algumas questões conceituais do campo das políticas linguísticas, com vistas a subsidiar uma discussão e, consequentemente, a elaboração de uma proposta de documentação linguística que viabilize definir uma política para a retomada da língua dos Kiriri. Nessa oficina, foram abordadas questões como a distinção entre política linguística e planejamento linguístico, planejamento de corpus e planejamento de status, um breve histórico das políticas para as línguas indígenas no Brasil, a relação ente as sociedades ágrafas e as sociedades de cultura escrita, a escrita em sociedades grafocêntricas e o sistema alfabético, documentação linguística e política linguística, a dialetologia e os atlas linguísticos como proposta de documentação.

Entre os objetivos para a realização da oficina “Política e documentação linguísticas”, dois merecem destaque, haja vista o trabalho de assessoria linguística que a comunidade estava demandando: estabelecer a distinção entre planejamento de corpus e planejamento de status, visando à elucidação de seus impactos na elaboração de políticas para as línguas e, no caso em questão, para a língua dos Kiriri; traçar o percurso histórico das políticas linguísticas para os povos indígenas no Brasil, com ênfase nas imposições e nos silenciamentos. Para finalizar as atividades dessa oficina, apresentamos ainda as linhas gerais para o início de um trabalho de documentação da língua indígena Kiriri, com vistas à discussão e à elaboração de um Atlas Linguístico do Território Indígena Kiriri (ALTIK), tanto no que se refere à língua portuguesa quanto à língua indígena ainda na memória dos mais velhos e de alguns poucos professores que atuam nas referidas escolas do Território.

As quatro oficinas relatadas foram realizadas no semestre 2017.1. Embora contassem com professores das escolas do Território Indígena Kiriri, e seus respectivos anexos, as atividades ocorreram no Colégio Estadual Indígena Florentino Domingues de Andrade, que se localiza na Aldeia de Araçá. No decorrer das oficinas, a apresentação e a discussão dos conteúdos foram mediadas por atividades práticas que possibilitaram uma participação dos presentes na elaboração de questões conceituais, com vista a garantir uma maior dinamicidade das oficinas e a avaliação quanto à compreensão dos temas abordados.

Após avaliação das oficinas realizadas, decidimos que o próximo trabalho deveria então incidir sobre dados da língua Kiriri. Assim, realizamos uma viagem de campo no mês de abril de 2018 e fizemos uma documentação gravada de cantos e de itens lexicais, assim como a digitalização de registros escritos feitos por um indígena que atuou como professor da disciplina “Língua indígena”. O trabalho de documentação concentrou-se na Aldeia de Mirandela, com os índios indicados pelo mencionado professor como conhecedores da língua Kipeá. Com esse material, elaboramos a atividade que deveria ser realizada com os professores indígenas, no formato de oficina.

A quinta oficina, “Pai Nosso: análise comparativa entre o Kipeá, o Dzubukuá e os usos linguísticos na comunidade”, que visava à qualificação dos participantes quanto a temas atinentes ao campo da Linguística e, em específico, à língua dos Kiriri, ocorreu no Centro de Cultura Kiriri, localizado na Aldeia de Mirandela, no primeiro semestre de 2018. Considerando o caminho de formação já percorrido, bem como dados de língua falada coletados em viagem de campo mencionada anteriormente, a oficina fundamentou-se em textos de língua indígena, tanto escritos quanto orais. A oração do “Pai Nosso”, haja vista os materiais disponíveis, foi escolhida para servir de mote à discussão sobre aspectos fonético-fonológicos, grafemáticos e lexicais atinentes às variantes linguísticas a que tivemos acesso para a preparação da oficina. As variantes escritas, tanto em português quanto em língua indígena (Kipeá ou Dzubukuá), foram retiradas dos seguintes materiais: Catecismo da Doutrina Christãa na Lingua Brasilica, de Luiz Vincencio Mamiani (1698); Katecismo Indico da Lingua Kariris, de Bernardo de Nantes (1709); Idioma Kipeá Kiriri, de Dernival Santos e outros (2012); Orações, da Arquidiocese de São Salvador da Bahia, disponível em: http://arquidiocesesalvador.org.br/ oracoes/, acesso em: 23 jun. 2018. Quanto aos dados de língua falada, utilizamos a gravação realizada com o professor indígena, quando da viagem de campo já mencionada. Além da gravação da oração do “Pai Nosso”, o informante também disponibilizou uma versão escrita que teria feito para utilizar em suas aulas de “Língua indígena”, quando atuou como professor da referida disciplina no Colégio Estadual Indígena José Zacarias, localizado na Aldeia de Mirandela.

Em termos gerais, a referida oficina promoveu uma análise comparativa entre dados de língua escrita e de língua falada em língua indígena, além de analisar algumas estruturas da língua portuguesa em diferentes estágios (em fins do século XVII e em inícios do XXI), possibilitando retomar a reflexão sobre a variação e a mudança linguísticas. A discussão sobre a historicidade da língua indígena “falada” pelos Kiriri, a partir da documentação realizada pelo padre Mamiani, possibilitou ainda reforçar uma reflexão sobre o caráter dinâmico das línguas. Outro aspecto que se mostrou relevante na realização de nossa oficina diz respeito à relação entre escrita e fala. A comparação entre as representações grafemáticas, manifestadas sobretudo nas escolhas gráficas dos padres Mamiani e Bernardo de Nantes para representarem os sons da fala, possibilitou uma discussão sobre a complexidade da elaboração e definição de sistemas de escrita e suas implicações para o ensino e, consequentemente, a aprendizagem da língua. Essa discussão tem uma importância fulcral no trabalho de documentação e revitalização linguísticas que se pretende desenvolver junto aos Kiriri, enquanto uma demanda da própria comunidade.

No decorrer da oficina, a apresentação e a discussão dos conteúdos foram mediadas por uma prática que criou condições para participação dos presentes, com vista a garantir uma dinamicidade do trabalho proposto, como ficou evidente na avaliação realizada ao final. Com isso, consideramos que o trabalho realizado deu mais um passo importante para a formação dos sujeitos que estarão envolvidos na elaboração e na definição das políticas linguísticas para os Kiriri, além de despertar a consciência para a premente necessidade de iniciar a realização de um projeto de documentação linguística que sirva de base para revitalização da língua indígena desejada e demandada pela comunidade.

4. A título de conclusão

As atividades realizadas no âmbito da ACCS pautaram-se num olhar crítico e científico sobre os processos sócio-históricos de perdas linguísticas promovidas no decorrer dos séculos de conquista e de colonização que culminaram na situação linguística atual do Brasil, marcada por glotocídio entre os povos indígenas e pela consequente adoção do português como língua materna, muitas vezes tomando a escola como instrumento para a promoção da “colonização linguística”. A escola, que antes promovia uma substituição da língua indígena pelo português, passou a assumir um papel crucial no processo de retomada linguística. Nessa direção, nossa atuação na qualificação de professores indígenas, lideranças e comunidade em geral, assumindo um caráter transdisciplinar, insere-se numa discussão mais ampla sobre a elaboração e definição de políticas linguísticas para os povos indígenas.

Por fim, consideramos que as oficinas foram espaços importantes para a formação dos sujeitos que estarão envolvidos na elaboração e na definição das políticas linguísticas para os Kiriri, além de despertar a consciência para a premente necessidade de iniciar a execução de um projeto de documentação linguística que sirva de base para revitalização da língua indígena desejada e demandada pela comunidade. Ademais, merecem ser ressaltadas as discussões sobre a importância das obras de Mamiani para a compreensão do estágio atual da língua Kipeá e como pode servir também de instrumento para discutir-se a política de retomada linguística.

How to Cite

SOUZA, P. D. dos S.; RODRIGUES, J. J. S.; ALMEIDA, F. L.; SOUZA , Élvia M. F. The Kiriri of Bahia’ “Sertons”: discussing documentation, revitalization and language . Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 3, p. 01–20, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n3.id234. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/234. Acesso em: 25 apr. 2024.

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