Introdução
O Canadá é um país multilíngue. O censo canadense de 2011 atesta que mais de 200 línguas foram citadas pelos canadenses como línguas de comunicação em suas casas ou como língua materna. No mesmo censo, é indicado que aproximadamente 14.2% da população usa uma língua que não é nem o inglês nem o francês, as duas línguas oficiais do país, em suas casas.
Entre as mais de 200 línguas citadas no censo estão as línguas faladas por imigrantes (21.9% da população canadense é composta por imigrantes, de acordo com o STATISTICS CANADA, 2017b) e as línguas indígenas canadenses. Neste artigo, falarei sobre a distribuição e vitalidade das línguas indígenas no Canadá e os esforços para manutenção e revitalização destas línguas. Existem oito famílias de línguas indígenas no Canadá e três línguas isoladas (OXFORD 2019, p. 28) (Tabela 1). O número de línguas é estimado em 70, de acordo com o censo canadense de 2016.
Línguas/FamíliasFamílias | Falantes |
---|---|
Inuit | 37,715 |
Na-Dene (“Athabaskan”) | Família Dene: 18,775Língua Tlingit: 120 |
Algonquian | 143,885 |
Iroquoian | 1,485 |
Siouan | 4,600 |
Salishan | 2,865 |
Wakashan | 1,065 |
Tsimshianic | 1,725 |
Línguas | |
Haida | 130 |
Ktunaxa | 120 |
Beothuk | Extinta |
Oxford observa que os números do censo de 2006 devem ser vistos com cautela uma vez que há discrepâncias. Por exemplo, Oxford (2019, p. 6) pontua que enquanto o censo canadense sugere um total de 585 falantes da língua Halkomelem no censo de 2016, um dicionário recente da língua (Galloway 2009) menciona apenas 62 falantes fluentes (falantes de língua materna).
Dois territórios no país, o Território Noroeste e Nunavut, reconhecem línguas indígenas como línguas oficiais (STATISTICS CANADA, 2017a). No território noroeste, onze línguas são oficiais: o francês, o inglês e nove línguas indígenas (cinco línguas Dene-Atabasquianas (Gwich’in, Slavey [Dene] do Norte, Slavey [Dene] do Sul, Tłı̨chǫ, Chipewyan); uma língua algonquiana (Cree), e três línguas Inuit (Inuktitut, Inuinnaqtun, Inuvialuktun) (GOVERNMENT OF NORTHWEST TERRITORIES, sem data). No território Nunavut, duas línguas indígenas foram reconhecidas como oficiais (Inuktitut e Inuinnaqtun) (OXFORD, 2019, p. 8), juntamente com o francês e o inglês (línguas oficiais de todo o território).
1. Situação das línguas indígenas no Canadá
Segundo Norris (2018, p. 23), a maioria das línguas indígenas canadenses é considerada em perigo, seguindo os níveis de risco (“Levels of Endangerment”) propostos pela UNESCO (UNESCO, 2003). Um fator crucial para esta classificação decorre do fato que a maioria das crianças indígenas canadenses não está adquirindo línguas indígenas como primeira língua. Os resultados de seis censos (entre 1986 e 2011) mostram que há um decréscimo no número de falantes entre crianças e jovens (até 19 anos) de 11% entre 1986 e 2011 (NORRIS, 2018, p. 23) entre a população que se identifica como indígena.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que os dados dos censos canadenses mostram declínio na transmissão de línguas indígenas como primeira língua, estudos sugerem um aumento consistente de aprendizes de línguas indígenas como segunda língua entre pessoas de acima de 55 anos (um acréscimo de 10% entre 1986 e 2011).
O censo canadense de 2001 sugere ainda que 19,7% da população que fala uma língua indígena, aprendeu-a como segunda língua. O mesmo censo mostra que entre as línguas consideradas em perigo (endangered), a maioria dos falantes são falantes de segunda língua, principalmente nos grupos de falantes abaixo de 44 anos:
Línguas em perigo (endangered) | Línguas viáveis (viable)? | |
---|---|---|
Até 14 anos | 71% | 20% |
Entre 15 e 24 anos | 60% | 23% |
Entre 25 e 44 anos | 45% | 19% |
45 a 64 anos | 24% | 15% |
65 ou mais | 17% | 11% |
Em um estudo mais recente (NORRIS, 2018, p. 24) observa-se que enquanto em 2001 o número de falantes de línguas indígenas como segunda língua consistia em 19,7%, em 2011 esse número passou a 21,7% (NORRIS, 2018, p. 24 apud STATISTICS CANADA, 2013) e em 2016 chegou a 25,1% (NORRIS, 2018, p. 24 apud STATISTICS CANADA, 2018), entre a população que se identifica como indígena. Neste mesmo período (entre 2006 e 2016), estudos também sugerem um aumento de 62 % no número de pessoas que indicam que utilizam uma língua indígena regularmente como a língua de comunicação em suas casas (NORRIS, 2018, p. 25). Esses números refletem as iniciativas de revitalização linguística no Canadá, algumas das quais discuto na próxima seção.
2. Manutenção e revitalização de línguas no Canadá
Diferentes estratégias têm sido adotadas no Canadá para a manutenção e revitalização de línguas. Galley et al. (2016)1 apresentam um levantamento de algumas destas estratégias (tabela 3):
Grupo-alvo | Iniciativa | Observações |
---|---|---|
Crianças em idade pré-escolar | Atividades de curta duração de exposição a uma língua indígena | Galley et al. (2016) reportam que em diversas comunidades existem creches e escolas para crianças em idade pré-escolar com atividades breves (30-60 minutos por dia) onde as crianças são expostas a palavras, frases e músicas em língua indígena. Os autores pontuam que, embora estas atividades promovam consciência linguística e cultural, elas não necessariamente são feitas para desenvolver fluência na língua. Para isso, outras ações devem ser desenvolvidas em conjunto (por exemplo, exposição à língua indígena fora do contexto escolar). |
Crianças em idade pré-escolar | Ninhos de língua (inspirado no modelo neozelandês) | Imersão completa de crianças em idade pré-escolar em atividades realizadas apenas na língua indígena. O formato no Canadá varia entre programas em creches ou em casas. Este modelo tem se mostrado frutífero em formar falantes fluentes no país. |
Crianças e adolescentes | Atividades extracurriculares | Galley et al. (2016) salientam também a existência de atividades extracurriculares de língua e cultura para crianças e adolescentes e a existência de programas de ensino de língua nas escolas após o horário regular de aula. |
Adultos | Ensino de língua indígenas como segunda língua | Galley et al. (2016) pontuam a existência tanto de programas locais (em comunidades) como programas em universidades. |
Adultos | Imersão | Galley et al. (2016) descreve que programas de imersão para adultos no Canadá são mais raros, mas existem em algumas comunidades (por exemplo, em comunidades Kanien’kéha/Mohawk). Galley et al. (2016, p.12) também descrevem a existência de ‘casas de língua’ (language houses) que são caracterizadas como atividades de imersão. |
Adultos | Programa mestre-aprendiz | Adultos motivados são pareados com um falante fluente. O par interage diariamente (10-20 horas por semana). O modelo mestre-aprendiz (desenvolvido na Califórnia) é usado em diversas regiões do Canadá e promove o desenvolvimento das capacidades comunicativas, a partir de atividades do dia-a-dia. |
Adultos | Cursos para aprendizes silenciosos | Inspirados em programas desenvolvidos na Noruega e na Suécia, os cursos para falantes silenciosos no Canadá utilizam de estratégias de terapia comportamental cognitiva (CBT) para ajudar falantes que compreendem uma língua a superar bloqueios emocionais que os impeçam de falar a língua. |
Adultos | Grupos de conversa com anciões | Muitas comunidades procuram organizar grupos semanais de comunicação com anciões; este tipo de atividade é visto como essencial para a promoção de mais falantes fluentes. |
Neste artigo, focarei mais especificamente em uma destas estratégias: as escolas de imersão em comunidades de falantes da língua Kanien’kéha (Mohawk). Gomashie (2019, p. 156) apresenta um panorama da situação da língua Kanien’kéha (Mohawk) no Canadá. O Censo Canadense de 2016 indica que a língua Kanien’kéha (Mohawk) é a língua mais falada da família Iroquiana com aproximadamente 1,295 falantes (OXFORD 2019, p. 12). Avaliações sociolinguísticas realizadas em comunidades Mohawk pelo Conselho Mohawk Kahnawà:ke em 2014 mostraram que a maioria dos entrevistados se identifica como falante da língua, em algum nível (44% se considera aprendiz iniciante; 14% se considera aprendiz intermediário e 12% se consideram aprendiz avançado). Dos entrevistados, apenas 27% se descreve como não falante. O fato da língua Kanien’kéha (Mohawk) não estar sendo adquirida como primeira língua por crianças na grande parte dos casos, torna-a uma língua classificada como definitivamente em perigo (definely endangered) de acordo com os critérios da UNESCO (2003) (GOMASHIE, 2019, p. 157).
O engajamento de comunidades Mohawk com atividades de revitalização remonta à década de 70, quando foram instituídos programas de imersão para crianças e adultos, em colaboração com o governo canadense (GOMASHIE, 2019, p. 158). Maracle (2002), em um estudo sobre cinco programas de imersão Mohawk apresenta a fala de um estudante que reflete a fala de muitos outros estudantes destes programas:
“A língua é a base de cura/cicatrização do nosso povo. Eu presenciei isso. Você pode ver o mundo de uma forma diferente com a língua. Quando você tenta descrever algo em Mohawk, você pensa nesta coisa de uma forma completamente diferente na língua. É neste lugar que a cultura vive, na língua. A língua faz a o quadro completo” (tradução minha, grifo meu).
“Language is the foundation of the healing of our people. I witnessed it. You can see the world in a different way with the language. When you try to describe something in Mohawk, you think of it in a whole different way in the language.
That’s where the culture resides, in the language. The language makes the picture complete”. (MARACLE, 2002[1], p. 399)
O uso da palavra cura/cicatrização (healing) na fala do aluno entrevistado por Iehnhotonkwas Bonnie Maracle é um simbolismo central no contexto canadense. Isso porque a retomada das línguas em muitas comunidades indígenas é vista como um processo de cicatrização do traumático período das escolas residenciais (residential schools) que existiram no Canadá entre 1831 e 1996. Estima-se que 150,000 mil crianças indígenas residiram nestas escolas. As escolas residenciais eram enraizadas na perspectiva perversa e discriminatória que os indígenas precisavam ser assimilados à sociedade euro-canadense não-indígena. Crianças indígenas de diferentes povos foram obrigadas a residir nestes espaços, sendo proibidas de usar suas línguas e de praticarem atividades culturais tradicionais. Há na literatura muitos de relatos dos abusos sofridos pelas crianças indígenas, tanto psicológicos quanto físicos nas escolas residenciais (GOMASHIE, 2019, p. 154).2 É reconhecido que as escolas residenciais geraram um trauma intergeneracional nas comunidades indígenas canadenses. Gomashie usa o termo linguicide (genocídio linguístico) para descrever este período no qual a transmissão das línguas indígenas no contexto familiar/comunitário foi brutalmente interrompida. Neste contexto, ao mencionar o poder de cura/cicatrização dos programas de imersão, a fala do aluno do programa de imersão que citei acima ecoa a ideia que a língua indígena é um elemento essencial de identidade social e cultural de um povo (GOMASHIE, 2019, p. 153)3.
Neste texto, eu gostaria de salientar um dos programas de imersão existentes no território Kanien’kéha (Mohawk), o programa Onkwawenna Kentyohkwa (‘Nossa sociedade da língua/our language society’), estabelecido por Owennatekha (Brian Maracle) e Onekiyohstha (Audrey Maracle). Este programa de imersão comunitário, para adultos, iniciou-se em setembro de 1999 no território indígena Six Nations Grand River, próximo à Brantford, no sul da província de Ontario4. (RICHARDS; MARACLE, 2002, p. 372). Este programa tinha como objetivo formar falantes fluentes na língua Kanien’kéha (Mohawk) que pudessem participar da vida comunitária e das atividades tradicionais do povo, utilizando apenas a língua indígena. Diferente de outros programas onde os alunos são expostos apenas uma vez por semana à língua, nos programas de imersão os aprendizes são expostos à língua através da interação com falantes fluentes em atividades culturais e linguísticas diariamente (RICHARDS; MARACLE, 2002, p. 374).
O programa Onkwawenna Kentyohkwa é caracterizado por encontros diários com anciões que desenvolvem atividades em conjunto com os aprendizes. O site do programa (https://onkwawenna.info/adult-immersion/) descreve em mais detalhe a sua atual estrutura. No primeiro ano, os alunos interagem com falantes nativos sobre um número limitado de situações, tais como descrições de estados físicos e mentais; nomeação e descrições (físicas, de posse, cores, números) de lugares, objetos, pessoas e animais. Os alunos praticam conversas sobre situações em diferentes tempos (presente, passado, futuro). No segundo ano, espera-se que os alunos consigam manter conversas sobre qualquer assunto com falantes fluentes. Nesta fase, espera-se que eles consigam falar com mais fluência e que também comecem a ganhar exposição a palavras e expressões utilizadas em outros dialetos, além do qual eles são expostos (Ohsweken). Os alunos do terceiro ano são capazes de conversar sobre assuntos complexos. A descrição do programa indica que os alunos nesta fase conseguem apresentar, na língua indígena, hipóteses e argumentos sobre textos tradicionais e modernos. Os alunos do terceiro ano são também bem-versados em atividades autossustentáveis do povo (tais como caçar, jardinagem e, especialmente, cerimônias tradicionais).
Uma característica importante do programa Onkwawenna Kentyohkwa é o fato que dois de seus instrutores, Brian Owennatekha Maracle e David Kanatawakhon-Maracle, terem atingido proficiência também quando adultos. Em uma entrevista Owennatekha pontua o que parece ser uma característica essencial do programa:
“Nós temos que criar os nossos próprios falantes que vão saber a gramática da língua e também o método e como usá-los para ensinar [a língua]” (tradução e grifo meu).
“[w]e have to create our own speakers who will obviously know the grammar and the method and then use them to teach”. (RICHARDS; KANATAWAKHON-MARACLE, 2002[2], p. 374).
Ou seja, o programa tem como foco a criação e fortalecimento de uma comunidade de fala. Os alunos do programa são agentes ativos de transmissão da língua em suas comunidades e em suas casas. O canal no Youtube do programa (“Onkwawenna Kentyohkwa”) inclui entre uma série de vídeos de ‘antes e depois’, mostrando a evolução dos alunos no programa.
Um dos ex-alunos do programa que aparece neste canal é Ryan DeCaire. O vídeo (“Learning Mohawk - Before and After, Ryan DeCaire”, https://www.youtube.com/watch?v=xMRCPeOWA9k) de 8 minutos mostra Ryan, em 14 de setembro de 2009, com dificuldade para compreender perguntas básicas (“como você se chama?”, “qual é a sua idade?” sabendo apenas se introduzir na língua (“meu nome é Ryan, venho de Wahta, tenho 22 anos”) e os numerais de 1 a 10. Em 2011, o vídeo mostra DeCaire já fluente na língua falando de sua experiência no programa. Falando apenas em Mohawk, DeCaire reflete sobre o fato que quando adolescente ele começou a desenvolver o interesse em aprender a falar sua língua, razão pela qual ele se mudou para a região onde o programa de imersão Onkwawenna Kentyohkwa acontece.
Ryan DeCaire, um dos ex-alunos do programa, manteve-se ativo em diversas atividades que pudessem contribuir com os esforços de revitalização da língua Mohwak (como na criação de um aplicativo que conjuga verbos na língua: https://kawennonnis.ca) e é também professor da Universidade de Toronto (do Centro de Estudos Indígenas e do Departamento de Linguística). Como descrito por Boutsalis (2017) existe um número crescente de indígenas contratados como professores em universidades no Canadá. Muitas universidades canadenses têm sinalizado a importância de extrapolar o perfil acadêmico ‘tradicional’ de contratação que exige, por exemplo, a titulação mínima de doutorado, por exemplo. Ou seja, trata-se de uma das estratégias que pode contribuir para descolonizar a forma como se pensa sobre aquisição, manutenção e revitalização linguística na universidade.
Gostaria de encerrar esta seção apresentando a história de um segundo aluno de um programa de imersão. Thohtharátye Joe Brant é um educador e administrador de uma escola primária no território Mokawk Tyendinaga (Kahá:nayen), na província de Ontário. Brant (2016, p. 7) ressalta que existem programas de ensino formal da língua em sua comunidade (ninho de língua, imersão, e aulas para adultos (segunda língua)). Contudo, o autor explica que a língua ocupa majoritariamente espaços em cerimônias tradicionais, mas que raramente observa-se o uso espontâneo da língua em sua comunidade. Brant (2016), seguindo Hinton (2013), enfatiza que para que os esforços de revitalização de uma língua tenham impacto em uma comunidade, a língua precisa necessariamente ocupar o ambiente familiar. Em outras palavras, Brant salienta que programas institucionalizados de revitalização, sozinhos, não são capazes de reverter um estado de desaparecimento de uma língua.
A observação de Brant (2016) parte de seu próprio processo de aprendizado da língua. Brant descreve que em sua comunidade a única casa onde a língua Kanien’kéha (Mohawk) é falada como língua principal de comunicação. Brant descreve as ações tomadas pela sua família para tornar sua casa um espaço onde apenas a língua Kanien’kéha (Mohawk) fosse usada. Primeiramente, sua família procurou minimizar ou eliminar a presença do inglês na comunicação interna à família. Além disso, Brant e sua família, ao longo dos anos, procuraram organizar ou participar de refeições com pelo menos dois falantes nativos para que pudessem ampliar seu vocabulário de forma contextualizada. Brant também descreve que à medida que seus filhos cresciam e que eles desenvolviam novos interesses, ele e sua esposa procuravam ativamente expandir seu domínio linguístico sobre esses novos interesses. Brant salienta que o programa de imersão combinado ao comprometimento para retomar a língua no contexto familiar foi essencial para que eles se encontrassem na situação atual, de fluência da língua. Diversos estudos têm documentado os efeitos positivos de estratégias voltadas a atividades linguísticas familiares (CHRISP, 2005; EDWARDS; NEWCOMBE, 2005; PAUWELS, 2005). Alinhado à esta perspectiva, o First Peoples’ Cultural Council preparou, entre outros materiais5, um manual chamado “língua para a vida: nutrindo línguas indígenas no contexto familiar” (DUNLOP, GESSNER; PARKER, 2019) (Language for Life: Nourishing Indigenous Languages in the Home). Neste material, são descritas estratégias e atividades coletivas que possam guiar famílias no processo de aprender e falar a língua.
Em síntese, nesta seção procurei mostrar os efeitos de longa duração dos programas de imersão em comunidades Mohawk. Vimos que estes programas foram cruciais na trajetória de pessoas como Ryan deCaire e Thohtharátye Joe Brant, ambos atualmente envolvidos em pesquisa e em programas de preservação e revitalização da língua Mohawk. Também procurei salientar, a partir da situação da família Brant, o papel crucial da comunicação em língua indígena no ambiente familiar para que programas de revitalização comunitários sejam bem-sucedidos; ou seja, o papel de cada indivíduo para além dos programas institucionalizados. A situação da família Brant ecoa as palavras de Bilger (1994, p. 153) segundo o qual “um único falante de uma língua, dedicado, pode ressuscitar uma língua enquanto um milhão de falantes reprimidos ou indiferentes podem deixar uma língua morrer em uma geração” (tradução minha)6.
3. O valor do processo
As escolas de imersão canadenses foram utilizadas aqui para pontuar uma reflexão: que estes programas e os processos que eles envolvem não apenas trazem uma contribuição individual (que cada aluno desenvolva fluência em uma língua) mas principalmente uma contribuição comunitária; ou seja, cada falante motivado contribui para a formação de novos falantes, através da interação e/ou da instrução direta. O Canadá nos mostra que o cenário da situação linguística de um país pode ser mudado, como vimos na introdução com os resultados do censo canadense, por conta de uma confluência de fatores, entre eles: ativismo linguístico nas comunidades; formação de professores e pesquisadores indígenas; apoio governamental a programas voltados para manutenção e revitalização linguística.
Apresento aqui um exemplo que salienta a importância de usos de estratégias que promovam a visibilidade das línguas indígenas. Tehakanere John Henhawk, um professor da Six Nations Polytechnic, na província de Ontário, foi um aluno do programa de imersão em Onkwawenna Kentyohkwa, que descrevi anteriormente neste artigo. Henkawk diz que percebeu após participar deste programa que era importante incentivar o uso da língua nas mídias sociais (DEER, 2019). Ele teve então a ideia de criar memes com frases populares de filmes e séries como uma forma de trazer visibilidade para a língua Mohawk, para aprendizes destas línguas. Para Henkawk ‘às vezes as menores coisas podem inspirar aprendizes’ (‘Sometimes the smallest things can spark learners’) (DEER, 2019). Esta é uma mensagem importante e inspiradora, uma vez que estratégias de manutenção e revitalização linguística podem tomar formas diversas e quando combinadas podem ter efeitos permanentes, como parece estar acontecendo no Canadá, no qual o número de falantes de segunda língua cresce consistentemente.
Para concluir esta discussão menciono um exemplo pessoal, no contexto brasileiro. A minha experiência trabalhando com povos indígenas no Território Indígena Xingu me mostrou que a inclusão de atividades de reflexão sobre a língua, assim como a discussão acerca de métodos de pesquisa e preparação de materiais didáticos é central; tão central quanto qualquer material (livro de leitura, gramática pedagógica, dicionário) que esteja em preparação. Trazer o debate sobre questões de linguística como variação linguística e preconceito linguístico, tipologia, estruturas das línguas, métodos de pesquisa em linguística para o interior da comunidade pode contribuir positivamente para a valorização das línguas e pode contribuir direta ou indiretamente com iniciativas das próprias comunidades indígenas para a manutenção e revitalização de suas línguas (ver LIMA, 2020 para mais detalhes sobre esta experiência entre os Kawaiwete). Estas atividades não devem ser vistas apenas como transferência unilateral de conhecimento acadêmico para as comunidades. Ao invés disso, estas atividades proporcionam trocas de olhares pois o linguista também é exposto a outras formas de se pensar sobre ensino de língua e documentação linguística. Crucialmente, parece-me que o mais importante dessas atividades é a troca de ideias entre os membros da comunidade; os membros de cada comunidade são centrais nas atividades a serem desenvolvidas para a manutenção e revitalização de suas línguas.
4. Considerações finais
Neste artigo apresentei um breve panorama sobre estratégias de manutenção e revitalização de línguas no Canadá, com um foco particular nos programas comunitários de imersão de língua Mohawk. Procurei ressaltar a existência de estratégias diversas para manutenção e revitalização de línguas no Canadá, tanto estratégias de larga escala (como os programas de imersão) como projetos individuais de grande efeito, como o aprendiz Mohawk que cria memes escritos em Mohawk para atrair a atenção de aprendizes Mohawk e motivá-los a aprender sua língua.
Também mencionei o crescente número de pesquisadores, professores e ativistas linguísticos indígenas que estão atuando nas universidades canadenses. É essencial que os indígenas cada vez mais ocupem estes espaços não apenas como alunos, mas como professores que trazem uma nova perspectiva para os estudos linguísticos na universidade. Ou seja, a contratação de professores indígenas que não necessariamente percorreram o caminho tradicional de formação acadêmica (mestrado, doutorado em linguística, por exemplo) promove a inversão da lógica colonialista de que os indígenas precisam aprender conosco a refletir sobre questões linguísticas. É necessário que se criem mais oportunidades na academia para que os indígenas atuem como professores e pesquisadores e tragam suas perspectivas sobre questões linguísticas e que isso impacte a forma como refletimos no contexto acadêmico sobre aquisição, manutenção e revitalização de línguas.
Por fim, concluo este texto trazendo aqui uma reflexão proposta por Iehnhotonkwas Bonnie Jane Maracle. Em 2002, Maracle publicou um estudo que visava apresentar um panorama dos programas de imersão de adultos em comunidades Mohawk. Após concluir o seu projeto de pesquisa que, entre outras atividades, consistia em entrevistar com coordenadores, instrutores e alunos de cinco programas de imersão, ela observou que:
“No percurso deste projeto, a pergunta sobre o que faz um programa bem-sucedido ou não nunca foi colocada. Da perspectiva de um aprendiz de língua, eu acredito que manter um programa de imersão e poder participar de um programa como este é um sucesso por si só.’ (tradução minha)
“During the course of the research, the question of whether or not these programs were ‘successful’ was never put forward. From the standpoint of a language-learner, I believe running of an immersion program and being able to participate is a success in itself’. (MARACLE, 2002[1], p. 401).
Esta me parece uma questão fundamental: o valor do processo. É claro que programas de imersão ou qualquer outra iniciativa (institucionalizada ou não) têm objetivos específicos e que desvios destes objetivos podem ser vistos, a princípio, como um sinal negativo. Porém, estes mesmos programas (de pequeno ou grande porte) e iniciativas individuais mobilizam pessoas, promovem trocas de conhecimento e ideias, encorajam e inspiram; mesmo não sendo um falante Kanien’kéha (Mohawk), como não sorrir ao ver o meme escrito nesta língua?
Em resumo, todas as iniciativas, mesmo as que impactam uma única pessoa, têm valor nos esforços de manutenção ou revitalização de uma língua.
5. Agradecimentos
Agradeço aos editores do volume (Bruna Franchetto e Marcus Maia) e aos pareceristas (Andrés Salanova e Sarah Shulist) pelos valiosos comentários. Agradeço também ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional, em especial à professora Bruna Franchetto.