Share

Experience Report

Revitalization and teaching of the Puruborá language

Mario Oliveira Neto

Secretaria de Estado de Educação de Rondônia

https://orcid.org/0000-0002-3120-3973


Keywords

Puruborá People
Recovering of Traditional Language and Culture
Puruborá Language Teaching

Abstract

We, the Puruborá people, traditionally live in the northern region of Brazil, in the state of Rondônia. Since the early 2000s, we have been struggling to guarantee our rights as an indigenous people. We currently have a Puruborá indigenous school and teachers hired to rescue and strengthen the Puruborá language and culture. The Puruborá language was not spoken for many years, it came close to disappearing. Currently only two elderly people, my great-uncles, still have the broadest knowledge of speakers of the language. As of 2001, work was done to document their knowledge and that of other living speakers at the time, coordinated by Vilacy Galucio, who helped to document information about the language. I will report on our current experience in the process of rescuing the Puruborá language and culture and the motivation to carry out this process. I will focus the report, in my personal experience, my motivation and willingness to learn what little there was of the Puruborá language register and then continue to learn from the elders what they still remembered, and thus be chosen by my people to be the Puruborá teacher.  From our experience so far for the students to learn about our traditional customs, I will show examples of how we work the language, at school, showing the importance for our people of the work of recovering the Puruborá language, from which our culture was getting stronger. This process was of great importance to us, it opened our interests to seek more information about our people.

Quem são os Puruborá

Somos um povo do estado de Rondônia pertencente ao ramo Puruborá da família Tupí. Hoje, uma parte do povo vive na Aldeia Aperoi, no município de Seringueiras BR 429 Manoel Correia. Outras pessoas vivem em outras localidades de Rondônia, como Costa Marques, Guajará-Mirim, Porto Murtinho, Porto Velho, Seringueiras, entre outras. As primeiras referências aos Puruborá começam no início do século XX. O povo era considerado “isolado” (isto é, sem contato com não indígenas) em 1900. Segundo alguns dos nossos anciãos Puruborá, o Marechal Cândido Mariano Rondon teria feito contato com o nosso povo em 1912, nas proximidades do Rio São Miguel. Outros idosos contam que o Marechal Rondon já os teria encontrado em 1909, nas imediações dos Rios São Miguel e de seu afluente Manoel Correia. Eles relatam que nosso povo morava originalmente próximo do rio Branco, onde viviam em contato com os índios Makurap, Aruá e Tupari, mas migraram de lá em função de desavenças e se deslocaram posteriormente para o rio São Miguel. Meu tio Celestino, que vive em Porto Murtinho, conta que, antes da época do contato com o Marechal Rondon, o nosso povo Puruborá vivia no local chamado Maloquinha, junto com os índios Cabixi, à margem direita do Rio Manoel Correia. Depois disso, é que mudaram e passaram a viver numa única aldeia no igarapé Paulo Velho, afluente do Manoel Correia, bem perto do local chamado de Colônia, que é o lugar para onde foram após o contato e a nucleação feita pelo Marechal Rondon.

Entre nossos anciãos, se conta sobre a chegada do Marechal Rondon ao território Puruborá da seguinte forma. Eles narram que ao explorar a região onde vivia nosso povo, um dos cachorros de Rondon desapareceu na floresta. O animal era muito estimado por ele, dizem que ele preferia seus companheiros caninos aos trabalhadores humanos que estavam sob seu comando. Triste e preocupado com o desaparecimento do cachorro, Rondon teria mandado que seus homens explodissem fogos de artifícios para fazer com que o animal ouvisse o barulho e pudesse reencontrar os homens da expedição, seguindo o barulho dos fogos. Só que aquele barulho tão ensurdecedor e estranho na floresta atraiu o cachorro fugido, mas também atraiu os Puruborá que se aproximaram com curiosidade sobre aqueles barulhos estranhos e estabeleceram os primeiros contatos amistosos com os não-índios.

Existem documentos, localizados nos arquivos do antigo Sistema de Proteção ao Índio (SPI), no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, que relatam sobre a situação dos Puruborá naquela época. Na época do contato foi delimitada uma área para uso dos índios do Rio São Miguel (entre eles nosso povo Puruborá) na margem direita do Rio Manoel Correia, abaixo da foz do igarapé da Cigana. O local ficou conhecido pelos Puruborá como Cigana, porque no local havia grande abundância da ave conhecida popularmente na região como Cigana. Essa área abrangia um raio de duas léguas, ou seja, cerca de 67.600ha, e tinha como centro o Posto Indígena três de Maio1. Esse nome teria sido dado ao Posto Indígena pelo Marechal Rondon no ato de sua fundação em 1919, quando os marcos de delimitação foram assentados. Rondon deixou o posto indígena aos cuidados de um senhor chamado José Félix Alves do Nascimento que foi encarregado por ele para se estabelecer definitivamente no local e administrar o Posto Indígena, e assim recebeu amplos poderes para exercer essa função.

Os nossos anciãos contam que naquele primeiro momento, o posto indígena abrigava por volta de 600 pessoas, mas esse número foi reduzido para apenas 150 pessoas, por causa de epidemias de sarampo, catapora e cachumba, doenças que assolaram a região logo após os primeiros contatos entre indígenas e não-indígenas. Contam também que no posto indígena “Três de Maio” (ou Dois de Maio), além dos Puruborá, moravam também índios Gavião que já ocupavam a mesma região, e posteriormente chegaram índios Cabixi e Miguelenho, que também viviam na região do rio Manoel Correia. Acredito que é dessa época, em que já estavam sendo reduzidos devido a doenças, que é o relato do médico epidemiologista Olympio da Fonseca Filho (1969), onde ele conta que encontrou, no ano de 1924, cerca de 50 pessoas do povo Puruborá que viviam nas cabeceiras do Rio São Miguel. O médico deixou um relato em que fala sobre uma doença de pele que observou entre os Puruborá, uma dermatose chamada de ximbere, na nossa língua, e fotografias que mostram três pessoas (uma mulher, um homem e um rapaz) da nossa etnia Puruborá, onde se pode ver que estavam acometidas por essa doença.

Nos relatos de alguns dos nossos anciãos, o nosso povo Puruborá foi o primeiro povo contatado para morar no Posto, e depois o encarregado do Posto, José Felix, usou os Puruborá como ajudantes para estabelecer contatos pacíficos com outros povos, os Miguelenhos, Cabixi, Makurap e Tupari. De fato, ele queria reunir esses povos no posto indígena e colocar eles para trabalhar na extração da borracha. Os anciãos contavam que José Felix, aprendeu a falar um pouco da língua Puruborá, e se casou com uma mulher da nossa etnia. Mas, acreditamos que a forma que ele adotou na administração do posto contribuiu muito e foi mesmo decisiva para desarticular o nosso povo e para a nossa língua deixar de ser falada e quase chegar a ser extinta rapidamente. Em realidade, o Sr. José Félix atuava como um patrão de seringal e obrigava os índios a cortar seringa e coletar castanha, em troca de mercadoria. Ele também instituiu a prática de ceder uma mulher indígena em casamento como prêmio para os homens que mais se destacassem na produção de borracha, e dava para os imigrantes não-indígenas uma “colocação de seringa”2 caso aceitassem se casar com uma mulher indígena. Com essa atitude do administrador do posto, praticamente todas as mulheres Puruborá, no período que vai dos anos iniciais da criação do Posto até o ano de 1949, quando ele faleceu, foram forçadamente casadas com seringueiros (inclusive a minha avó Dona Emília). Com isso, um dos resultados foi a desagregação do nosso povo que vivia até aquele ano no posto Três de Maio.

Infelizmente, nessas famílias pluriétnicas que se formaram com mãe Puruborá e pai seringueiro não-indígena era proibido o uso da língua Puruborá. Esse foi um fator que contribuiu muito para a quase extinção da nossa língua, de forma rápida, dentro de apenas uma geração. Junto com a língua, as práticas e conhecimentos tradicionais também foram deixando de ser transmitidos, como os rituais, as festas, o xamanismo e conhecimento dos pajés.

Em 1949, após a morte de José Félix do Nascimento, o SPI se recusou a enviar outro administrador e extinguiu o Posto, alegando que ali não havia mais índios, pois o povo já era “mestiçado”. Nessa época, várias das nossas famílias Puruborá deixaram a área do Posto e sua região de origem, e foram residir em Limoeiro, que era na época um conhecido seringal, no Rio São Miguel, e que está atualmente dentro da Reserva Biológica (REBIO) do Guaporé. A maioria das famílias foi então trabalhar na extração da borracha para seringalistas locais.

No ano de 1982, os meus parentes Puruborá que viviam no povoado de limoeiro foram expulsos de lá, com a criação da reserva Biológica do Guaporé. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), à época, expulsou os Puruborá desse local, de maneira desnecessária e sem qualquer indenização, com a alegação de estarem situados nos limites da REBIO do Guaporé (LEONEL, 1995).

Sobre o local do antigo Posto Indígena criado pelo SPI, apenas as famílias do meu tio-avô Paulo Aporete Filho e da minha avó Emília Oliveira Puruborá continuaram vivendo nesse local por mais tempo, e é o local que reconhecem como seu território tradicional. Paulo Aporete Filho permaneceu no local até 1983, quando foi forçado a deixar a região, devido a problemas de saúde. Já a família de minha avó, Dona Emília, retornou para o local antigo conhecido como Cigana, no Rio Manoel Correia no ano de 1955, após muitas idas e vindas. Minha família, meus tios e tias, ainda relembram de várias colocações de seringa onde viveram ao longo do rio Manoel Correia, até quando foram definitivamente expulsos, no ano de 1994.

São cerca de 25 colocações, que eram locais de habitação e de atividades extrativistas, como a exploração de seringa, castanha e poaia ao longo do rio, desde sua confluência com o Rio Caio Espíndola (ao sul da colocação Porto Olga) até a colocação Vai-quem-quer no rio Manoel Correia. Entre estas estão as colocações chamadas Colônia (onde funcionava a sede do posto Três de Maio), Cigana (que era ocupada pela família da minha avó antes de sua expulsão em 1994) e Bicentenário (onde se localizava o porto Bicentenário, que servia às atividades comercias de borracha e castanha do seringal).

Apesar de todos esses problemas, algumas de nossas famílias resistiram aos impactos negativos, do abandono forçado do Posto, da expulsão dos locais de uso tradicional e de toda a desarticulação social e étnica provocada por essa situação, desde a época em que viviam no Posto Indígena. A resistência dessas famílias foi e é até os dias de hoje fundamental para a reorganização do nosso povo Puruborá. São famílias que sempre se reconheceram no sentido do coletivo e que hoje continuam a se reconhecer e se identificar como povo indígena frente a outros povos indígenas e não indígenas na região. Embora o Estado Brasileiro tenha deixado de nos reconhecer em algum momento, mas, para nós, sempre fomos um povo indígena originário desta terra.

Nesse sentido, acredito que um dos núcleos familiares mais importantes foi o construído em torno de minha avó, Emília Puruborá. Ela foi expulsa, em 1994, de seu território tradicional, por negligência do Estado, pois foi alegado pelos funcionários à época que ela não era indígena. Depois que a família foi expulsa do local denominado Cigana, antigo território tradicional dos Puruborá, eles desceram o rio Manoel Correia, passando a viver nas margens da BR 429, próximo ao local em que os rios Manoel Correia e Caio Espíndola se juntam para formar o rio São Francisco, afluente do rio São Miguel. É nesse local que estamos hoje e que denominamos de Aldeia Aperoi. Essa pequena área de terra foi comprada pela família de minha avó Emília e herdada por nossos familiares. Quase todos nós Puruborá que vivemos na Aldeia Aperoi, ou próximo a ela, somos descendentes diretos da nossa matriarca Emília Oliveira Puruborá.

Figure 1. Figura 1. Dona Emília Puruborá. Fonte: acervo do autor.

1. Histórico de luta pelos nossos direitos (anos 2000)

Durante todo o período que descrevi na seção anterior, que abarca desde os relatos dos primeiros contatos até os anos 2000, praticamente desapareceram as referências ao nosso povo, tanto que chegou ao ponto de o nosso povo e a nossa língua Puruborá serem considerados como extintos. Até o início dos anos 2000, quando iniciaram os primeiros movimentos políticos contemporâneos de nosso povo, não havia referência aos Puruborá nos registros oficiais que citam os povos indígenas do país, nem havia referência à língua Puruborá entre as línguas indígenas faladas no estado de Rondônia.

O movimento que ficou conhecido como “Ressurgimento” foi iniciado no ano 2000. Escutar a palavra “ressurgimento” me deixa triste cada vez que a ouço, pois sempre existimos, sempre estivemos aqui, mas, para os órgãos do governo, como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o povo não existia mais. Então foi a partir dessa época que nós, povo Puruborá, voltamos a aparecer; foi a partir de uma visita do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), na pessoa do Frei Volmir Bavaresco que nos visitou com um parente Miguelenho que acompanhava a equipe do CIMI. O parente Macirilo Miguelenho foi quem contou para a equipe do CIMI que morava uma “cabocla” nas margens da BR 429, no Rio Manoel Correia. Na verdade, ele estava se referindo a minha avó Emília Puruborá, que o parente sabia que era indígena. A partir daí começou todo o trabalho de levantamento de informações sobre o povo Puruborá e de luta por nossos direitos e pela identidade do nosso povo, como documentação junto à FUNAI. Foi quando fizemos uma grande assembleia do povo Puruborá quando ainda tínhamos vários anciãos vivos, infelizmente nos anos seguintes vários morreram.

O marco da revitalização contemporânea do nosso povo ocorreu entre os dias 16 e 18 de outubro de 2001, quando com apoio da regional de Rondônia do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), realizou-se o Encontro de parentes Puruborá. Nesse encontro, reuniram-se cerca de 40 pessoas no sítio da minha avó Dona Emília, no local onde hoje é a aldeia Aperoi. Na ocasião, chamada hoje de “primeira assembleia do povo Puruborá”, foi quando demos início à luta por nossos direitos, enquanto povo originário e produzimos um documento no qual fizemos reivindicação, para as autoridades, de uma área que fosse demarcada no território originário Puruborá. Esse encontro também marca o início da luta pelo reconhecimento da nossa identidade indígena, uma vez que para o Estado o povo estava extinto e partir dessas lutas passou a ressurgir para FUNAI.

Figure 2. Figura 2. Assembleia Puruborá. Fonte: Acervo do autor.

Para o nosso povo a luta pela demarcação do território tradicional é uma reivindicação muito relevante, pois é somente com a demarcação e proteção do território indígena que poderemos garantir a nossa sobrevivência material e cultural enquanto povo. Até o momento não temos a terra tradicional demarcada, e ainda sofremos com problemas como ameaças, discriminação, impactos da destruição florestal no entorno da nossa aldeia, entre outros.

2. Documentação dos saberes Puruborá a partir dos anciãos

No período de 2000 a 2001, perdemos alguns sabedores do nosso povo, para nós foi uma perda muito grande. A partir de 2001, percebemos uma necessidade crescente em conhecer acerca da língua materna do nosso povo, então a pedido do povo e com a sua anuência começou-se um trabalho de documentação dos saberes que os anciãos ainda lembravam, apesar de alguns lembrarem pouco por terem passado décadas sem falar a língua indígena devido a morarem em lugares distantes uns dos outros. O trabalho de documentação foi feito pela pesquisadora Ana Vilacy Galucio, do Museu Paraense Emílio Goeldi, que trabalhou com todos os anciãos vivos àquela época. Mas especialmente com meus tios-avôs Paulo Aporete Filho e José Nilo Evangelista Puruborá. Em pouco tempo, nos anos seguintes, alguns outros anciãos faleceram nos deixando muita dor e levando consigo seus conhecimentos sobre a cultura do povo.

Mesmo com as perdas, Ana Vilacy, ao longo de anos, fez um grande trabalho junto aos anciãos. Devido aos anciãos estarem muitos anos sem falar a língua, o trabalho foi um pouco complicado, pois alguns anciãos lembravam de uma forma da palavra e outros de outra forma, ao longo da documentação houve várias correções de palavras. O fruto desse trabalho de documentação foi a escrita e gravação de muitas palavras e frases na língua Puruborá. E com isso foi feito um livro de vocabulário ilustrado de animais da língua Puruborá (GALUCIO; APORETI FILHO; PURUBORÁ, 2013), no qual eu, Mário de Oliveira Neto, comecei a me interessar no aprendizado da língua Puruborá quando ouvi os sons das vogais e consoantes apresentados por Ana Vilacy em uma visita na aldeia Aperoi para apresentação de parte de seu trabalho com os anciãos. Eu fiquei muito feliz em conhecer um pouco da língua, e então me empenhei em aprender porque era algo novo para mim, pois não conhecia nada da língua e outros aspectos culturais do nosso povo, até que me tornei professor na minha aldeia Aperoi.

Nesse momento percebi que havia como aprender a falar, o que para mim era um sonho, algo que não sabia, e após isso comecei lendo o vocabulário de palavras e ouvindo as gravações feitas por Ana Vilacy, com meus tios-avôs.

Figure 3. Figura 3. Documentação da língua e cultura Puruborá. Fonte: Acervo do autor.

Atualmente, somente meus tios-avôs – que já estão idosos – ainda possuem todo conhecimento antigo de falantes da língua Puruborá, são eles: Paulo Aporete filho e José Nilo Evangelista Puruborá. Meus tios conseguiram aprender a língua e cultura do povo com seus pais, apesar de serem proibidos de falar na língua indígena. Era na madrugada que seus pais os ensinavam a falar, e assim aprenderam a língua e os mitos de origem do povo Puruborá, como o mito de origem da língua, o mito da pintura corporal e o de origem dos alimentos. E até hoje meus tios nos ensinam, contribuindo para o meu aprendizado e resgate da minha cultura.

No ano 2011, os moradores da Aldeia me escolheram para ser o professor de língua materna Puruborá por ter me dedicado ao aprendizado da língua.

Para nós, Puruborá, fazer o trabalho de resgate da língua e cultura do nosso povo é um dever e uma obrigação para que possamos manter nossa cultura viva, pois nós – mais jovens – não temos todos os conhecimentos sobre a cultura tradicional. O trabalho também é importante para recuperarmos nossa própria história, que por décadas ficou no esquecimento do povo. E agora, após os primeiros trabalhos realizados nos anos 2000, começamos a resgatar a cultura e, principalmente, a língua Puruborá que ficou décadas sem ser falada.

Figure 4. Figura 4. Crianças Puruborá com vestimenta tradicional. Fonte: Acervo do autor.

Após o trabalho de documentação feito com os mais velhos, demos início ao aprendizado da nossa língua tradicional, haja vista que aprendemos português como primeira língua. Para nós, este momento é muito importante para que possamos cuidar e zelar do nosso patrimônio linguístico e cultural que é lembrado por nossos anciãos. Cabe a nós buscarmos conhecimentos para fortalecer a cultura e a língua Puruborá para as futuras gerações.

3. Resgate e fortalecimento da língua e cultura Puruborá no contexto da Escola Indígena Ywara

A Escola Indígena Estadual de Ensino Fundamental Ywara foi fundada em 2005, numa construção de madeira coberta de palha em frente à casa de minha avó Emília. Era uma espécie de galpão onde também aconteciam as assembleias do povo. Com a implantação da escola em 2005 tudo mudou, porque os não índios (também chamados de ‘brancos’, por nós indígenas) começaram a perceber que ali realmente vive um povo indígena. Além disso, nosso próprio povo começou a se interessar mais pela nossa cultura.

Figure 5. Figura 5. Escola Ywara. Fonte: Acervo do autor.

No início das atividades da Escola Ywara, a nossa cacique, Hozana Puruborá, foi a professora, e ela ficou no cargo durante os seis primeiros meses. Em seguida, sua filha Gisele Montanha assumiu o cargo de professora do ensino fundamental (primeiro ao quinto ano). A partir do ano de 2011, iniciamos de forma sistemática, o estudo da nossa língua Puruborá na escola. Devido eu ser a pessoa que estava estudando há mais tempo a língua indígena, fui escolhido para ser o professor de língua materna da escola Ywara. É na escola que realizamos a aprendizagem da cultura e da língua tradicional Puruborá. Então a escola simboliza esse lugar central onde estudamos sobre nossos antepassados, aprendemos os rituais e reforçamos a atual luta política e social do povo.

Após o intenso processo de coleta e pesquisa sobre a língua Puruborá, coordenado por Ana Vilacy, em conjunto com os poucos falantes da nossa língua à época, foi possível organizar vários CDs e DVDs com gravações em Puruborá e um vocabulário com nomes de animais na língua (GALUCIO; APORETI FILHO; PURUBORÁ, 2013). Esse material possibilitou definir uma ortografia para a língua e o início do trabalho de aprendizagem da língua viva por mim e por outras pessoas. Inicialmente foram feitas oficinas sobre fonética e ortografia Puruborá na aldeia Aperoi, inclusive durante uma das primeiras assembleias do povo. Na ocasião aprendemos, por exemplo, que a nossa língua tem sete vogais orais {a, e, i, o, u, â, y}.

No começo, eu não sabia falar a nossa língua, por isso considero que o trabalho de documentação e resgate do conhecimento dos nossos anciãos estimulou um reavivamento da cultura e dos costumes indígenas. Mas quando comecei a estudar a língua, percebi que tinham coisas que podiam ser alteradas e melhoradas na forma de escrever, e assim foi feito.

Hoje podemos dizer que nós somos povos indígenas e a segurança disso é a nossa língua materna, já que a nossa tradição e cultura tem pouco registro. Ademais, se não aprendermos a nossa língua materna, o futuro das novas gerações corre perigo.

Figure 6. Figura 6. Calendário Indígena Puruborá. Fonte: Acervo do autor.

Em 2013, tive o privilégio de ir a Belém a convite de Ana Vilacy e do Museu Emílio Goeldi para um evento que homenageava os povos indígenas. A ocasião foi para mim mais uma experiência e um sonho realizado, apesar de ter ido com o sentimento de luto profundo devido à perda de Dona Emília, minha vó, e matriarca do nosso povo Puruborá. Nessa ocasião foi organizada uma pequena exposição sobre a nossa língua e uma trilha no Parque Zoobotânico do Museu Goeldi, onde as crianças e outros visitantes podiam conhecer como se pronuncia alguns nomes de animais na nossa língua e eu tive a oportunidade de falar do nosso trabalho na escola Ywara na aldeia Aperoi e da importância de reaprender a língua tradicional do nosso povo. Nossa língua é de fácil aprendizagem.

Em 2014 construímos um prédio mais equipado para o funcionamento da escola, que foi feito em madeira e composto de sala de aula, cozinha, dispensa e banheiro. O novo prédio foi erguido nas proximidades da antiga escola e é o local em que as aulas acontecem atualmente. É nesse espaço que nós desenvolvemos um trabalho de resgate não só da língua materna, mas também de nossas comidas tradicionais, pinturas, mitos, artesanatos, e músicas que estamos fazendo na escola. Até 2019, as aulas aconteciam sob a responsabilidade minha (Mario de Oliveira Neto) e de mais dois professores indígenas: Deivid Lobato da Silva e Geane Souza Oliveira. Em 2019 houve novo processo seletivo que acarretaria em mudanças no corpo de professores para 2020, porém as atividades escolares foram temporariamente interrompidas, inicialmente devido à falta do número mínimo de alunos, e posteriormente devido à pandemia de saúde causada pela Covid-19.

No entanto, mesmo com dificuldades, com esse trabalho realizado na escola, estamos avançando no ensino-aprendizagem da língua Puruborá. Já estamos fazendo pequenas músicas. Estamos também preparando um material de didático para os alunos futuros. Este trabalho é feito por todos, com cada um contando sua própria história e é ilustrado com seus próprios desenhos, todo escrito na língua Puruborá e com tradução em Português. Também temos duas músicas que fizemos na escola com a participação dos alunos e professores. Incluo aqui uma dessas músicas, escrita em Puruborá.

mãj apyka djio katej hu ameko tut anemã 'ita ipa dede.mãj'o mãj'o apyka wyta bike

“Vamos caçar, no mato, caititu com os cachorros, quando chegar vamos limpar, é muita carne, vamos comer, vamos comer, a carne já está assada”.

O que nos motiva a fazer esse resgate é conhecer a nossa própria história, saber por que nossos mais velhos deixaram de falar a língua fluentemente. Esse resgate é muito importante para que os mais novos conheçam a cultura do nosso povo que está sendo perdida, mas que estamos buscando conhecer e pôr em prática novamente.

O trabalho de recuperação da língua Puruborá é extremamente importante para o nosso povo. Para nós, esse trabalho é muito importante porque nos dá identidade como povo, e como temos vários parentes que estão na faculdade sempre é necessário saber um pouco da língua e da cultura do nosso povo. Para mim está sendo muito importante porque eles me trazem algo novo para que eu possa buscar conhecer com os anciãos. Meu trabalho tem sido muito importante depois que me tornei professor da escola Ywara, onde parte da nossa cultura voltou a ser conhecida novamente e está despertando o interesse dos mais jovens em participar mais da festa tradicional. Hoje nós já cantamos na língua, alguns já falam um pouco. Para nós, isso reflete a nossa vontade de buscar o resgate da cultura.

4. Considerações finais

Todo esse trabalho de resgate da língua Puruborá, isso engrandece nossa cultura e nos dá motivação para continuarmos firmes na luta principalmente na demarcação de nosso território que para nós seria, no momento, muito importante, pois está saindo muito parente por falta de terras para poderem trabalhar. Outras pessoas têm vontade de vir para aldeia, mas as terras aqui são particulares e por isso dificultam a vinda de algumas famílias, mas enquanto isso continuamos aqui firmes e fortes na luta para manter nossa cultura viva e nosso direito, enquanto povo, garantido.

Para concluir vou usar uma frase na nossa língua “bâ obâj Parparaâkâ oxywâ” que significa “a minha força vem dos meus ancestrais”, porque deles trago uma espiritualidade muito forte para sempre estar pronto para buscar nossos direitos e continuar meus sonhos, que é um dia ver nosso povo falando a língua indígena como nossa primeira língua, ou seja, a língua materna. Essa é uma das minhas missões como sabedor e como Puruborá que sou. Esse sonho vai tendo seguimento quando os alunos e os pais dos alunos se interessam mais e mais por conhecer e dar prosseguimento na cultura do povo. O importante nesse processo é seguir com o sonho de manter a língua viva para as futuras gerações.

5. Agradecimentos

Em primeiro lugar agradeço wabâj ‘Deus’ por ter me dado a oportunidade de fazer parte dessa luta de resgate de nossa cultura, principalmente a língua indígena Puruborá. Com ajuda de um trabalho de documentação feito por Ana Vilacy e os anciãos Paulo Aporete Purubora e José Evangelista Purubora e Dona Emília Purubora, minha avó, ela que para mim e para nosso povo Puruborá é uma das pessoas mais importantes porque em momento nenhum deixou de alimentar o sonho de ver seu território garantido e a sua cultura viva, até o dia de sua partida fisicamente. E mais, passou esse sonho e essa vontade para filhos e netos e outros parentes, nos encorajando para que lutássemos por nossos direitos e perseverássemos neste mesmo sonho. E é por isso que tenho muitos motivos para agradecer aos meus anciãos, a cada aluno, cada tio e tias, esposa, sobrinho, primos e primas, professores que vem fazendo parte desse resgate por terem confiança no meu trabalho, não só como professor, mas como liderança também. Fico muito feliz em hoje ver meus alunos falando várias coisas na língua, isso não me engrandece, isso me faz ver que todos também querem fazer parte desse resgate. Agradeço também a Ana Vilacy Galucio e Carla Costa, pela grande ajuda na revisão e formatação do texto.

How to Cite

NETO, M. O. Revitalization and teaching of the Puruborá language. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 3, p. 01–16, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n3.id246. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/246. Acesso em: 26 apr. 2024.

Statistics

Copyright

© All Rights Reserved to the Authors

Cadernos de Linguística supports the Opens Science movement

Collaborate with the journal.

Submit your paper