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Experience Report

Kuin Kahab Mikahab: Hãhãhãe Pataxó Hãhãhãe Ũg Iẽ Ikhã Ikô Tâypâk Anekö: I want to eat, i want to live: the fight for bringing back the Pataxó Hãhãhãe language

Reginaldo Ramos dos Santos

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Keywords

Pataxó Hãhãhãe Language
Linguistic Revival
Teaching Proposal
Didactic Material

Abstract

This work is part of my academic path since the Intercultural Indigenous undergraduate degree at UFMG, in 2018, on the Pataxó Hãhãhãe language. The Pataxó Hãhãhãe people have a population of almost 4,000 indigenous people and live in the Caramuru Catarina Paraguaçu Indigenous Territory, which borders the three municipalities of southern Bahia: Itaju do Colônia, Pau Brasil and Camacan. Until 1938, the Pataxó Hãhãhãe spoke only their ancestral language. The persecution forced them to stop speaking their own language. Bahetá was the last speaker who lived until 1992. A booklet (Bahetá Lessons) was published with 129 words and two sentences, collected with the old Bahetá in the late 70's. In 2017 was published the Pataxó Hãhãhãe People's Dictionary, bringing a new horizon to the vocabulary of my language, with new information on other indigenous languages with whom the Pataxo Hãhãhãe have been in contact, such as Kamakã, Kariri Sapuyá, Tupinambá and Pataxó. In this article I bring the Pataxó Hãhãhãe experience of retaking or reviving the language left by our elders and how this process has been in the school context, from the analysis and reflection of a proposal for teaching the indigenous language developed at the Indigenous School of Aldeia Bahetá. To carry out the research, researchs were made in public archives, with elders as well with non-indigenous researchers, and field work. It is hoped that this work will help in the struggle for the Pataxó Hãhãhãe language recovery and encourage new generations to use the language by valuing the memories of Bahetá, Txitxiáh, as well as the knowledge of the elders who have been feeding us through speech.

Introdução

Meu nome é Reginaldo Ramos dos Santos, com nome indígena de Akanawan Baênã Txoipehinã Hãhãhãe Txitxiáh, nome dado pela atuação do cacique do Povo Pataxó Hãhãhãe da Aldeia Bahetá nos anos de 2003 a 2016. Nesta aldeia, localizada no Território Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu, no município de Itajú da Colônia, sul da Bahia, a 530 km de Salvador, resido até hoje como liderança e professor. Nasci em 14 de janeiro de 1975 na cidade de Itabuna, Estado da Bahia, sou indígena, da etnia baênã-hãhãhãe, baênã por parte de minha avó e hãhãhãe por parte de meu avô. Minha língua indígena é do tronco linguístico Macro-Jê. Sou filho de dona Maria de Lourdes Ramos, neto do casal de indígenas Txitxiáh e Rosalina que foram pegos no mato na região da Pedra do Couro D’Anta, na década de 1910, pelo então SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e levados para o Posto Indígena Caramuru, hoje Território Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu do Povo Pataxó Hãhãhãe, 54.205 hectares com uma população de mais de 4 mil indígenas.

O meu povo tem em seu contexto uma história de luta e sofrimento, marcada durante todos esses anos pela sua bravura e resistência pela segurança e proteção de suas terras, costumes, tradição e língua. A formação do povo pataxó hãhãhãe é o resultado da mistura de várias famílias, entre as quais estão Baenã, Hãhãhãe, Kamakã, Tupinambá, Kariri-Sapuyá, Guerén e Mongoió, que se reconhecem internamente como pertencentes a estes grupos étnicos. Ao longo da vida foram expulsos de suas terras, perseguidos por fazendeiros e políticos da região e obrigados a viverem em um espaço limitado.

Diante de todas as dificuldades e perseguições que o meu povo passou, ele nunca deixou de lutar e de resistir. Foi assim que no ano de 1910 foi criado o Serviço de Proteção ao Índio – SPI, que tinha como política pública cuidar e zelar pelos interesses dos povos indígenas do Brasil, mas na realidade o SPI não fez o seu papel que é proteger o povo da floresta, foi esse órgão o grande responsável pela redução das terras dos povos indígenas do Brasil, forçando nosso povo a esquecer o vocabulário linguístico chegando a um ponto crítico de quase matança da nossa língua. O povo pataxó hãhãhãe sofreu severos ataques durante muito tempo desde a criação do aldeamento pelo SPI, no território hoje Caramuru Catarina Paraguassu. Enquanto isso, os Pataxó Hãhãhãe, formados por essas várias etnias, já habitavam as terras da Bahia com suas culturas, línguas, religiões e tradições. Meu povo viu suas terras serem invadidas por latifundiários da região que tiveram total apoio do governo do Estado e assim muitas famílias tiveram que ir embora e passar a viver em fazendas. Poucas famílias ficaram vivendo na aldeia Bahetá, no município de Itajú do Colônia e na aldeia Panelão, no município de Camacan, marcando ponto de resistência. Foi no ano de 1982 que os Pataxó Hãhãhãe se reuniram e fizeram sua primeira retomada¹ na fazenda São Lucas, no município de Pau Brasil. Lá renascia uma nova vida e também o começo de uma ação judicial intensa nos tribunais para tornar nulos todos os títulos falsos cedidos aos fazendeiros pelo então governador da Bahia, na época Roberto Santos. Nesse mesmo período, a FUNAI impetrou uma ação (ACO -312) no Supremo Tribunal Federal para anular esses títulos, ação essa que durou 30 anos. No ano de 2008 o relator do processo, o ministro Eros Grau, alocou em votação o processo pela primeira vez com seu voto favorável à anulação dos títulos; em seguida o ministro Carlos Menezes pediu vista e somente no dia 02 de maio de 2012 a relatora do processo, a ministra Carmen Lucia, deu continuação ao julgamento, sendo que a Corte entendeu que os títulos falsos cedidos sobre nosso território eram realmente falsos, julgando a ação procedente em favor dos Pataxó Hãhãhãe. Na luta pela defesa e demarcação de nosso território muitas retomadas foram feitas, e, em muitas dessas, fomos expulsos através da força policial militar da Bahia, por ordens judiciais de reintegração de posse cedida pela Justiça Federal de Ilhéus, Bahia, mas a comunidade nunca desistiu de reconquistar seu território.

Muitas vidas de nossos anciões foram ceifadas, assim como a trágica morte de nosso parente Galdino Pataxó Hãhãhãe, que pertencia à família kariri-sapuyá: foi queimado vivo em Brasília no ano de 1997 por cinco jovens de famílias ricas e influentes na política e na justiça da capital brasileira, enquanto dormia num ponto de ônibus, morrendo após alguns dias agonizando no hospital em consequência da gravidade das queimaduras em seu corpo. No ano de 1997, com a morte do líder Galdino em Brasília, avançamos mais uma vez, fazendo retomadas em memória do nosso líder que estava na capital buscando defender nossos direitos, obtendo mais tarde a grande conquista do nosso território em 2012.

1. A lingua Pataxó Hãhãhãe e a busca pelo seu reavivamento

Depois de 2012, já com o território em mãos, os Pataxó Hãhãhãe agora enfrentam uma nova luta dentro do processo linguístico. A língua indígena pataxó hãhãhãe era falada, conforme registro de 1938, quando Curt Nimuendaju encontrou falantes estabelecidos no Território Caramuru Catarina Paraguaçu; Tamaní e Bekoi forneceram uma lista de palavras nomes a Curt Nimuendajú. Essa língua era falada com intensidade pelos indígenas que foram aldeados de forma forçada no posto de concentração criado pelo SPI, no município de Itajú da Colônia nos meados de 1910 e que deixou de existir em 1967, quando a FUNAI passou a atuar como órgão responsável em proteger os direitos indígenas no país.

Diante de uma política perversa e danosa contra meu povo, o SPI teve um papel inverso: o órgão que deveria proteger os direitos dos indígenas contra a ambição dos latifundiários que almejavam tomar as terras habitadas pelos nativos, em poucos anos quase aniquilou toda uma cultura. Ao invés de proteger, causou danos irreversíveis a nossa cultura com um violento contato a que os meus ancestrais foram submetidos. Entre muitos dos indígenas que foram pegos no mato, somente Bahetá sobreviveu aos tempos ruins para deixar como herança uma cartilha contendo 129 palavras e duas frases, publicada no ano de 1982, através de um trabalho árduo e quase desumano para essa saudosa guerreira que muito nos ensinou através de sua coragem e bravura. Txitxiáh também foi uma fonte relevante da língua pataxó hãhãhãe para o linguista missionário Wilbur Pickering; foi, assim, publicado o livro de Robert Meader em 1978.

Segundo Maura Tsitsiáh, em entrevista ao ‘Mapeando Parentes’, no ano de 2012, os índios considerados “puros” inclusive seu pai e mãe (Tsitsiáh e Rosalina) foram obrigados a falar a língua portuguesa, seus filhos eram proibidos de aprender a língua originária e de serem batizados com nome indígena. Além disso, depois que as crianças cresciam, elas eram tiradas de seus pais para trabalhar na casa das parteiras, rezadeiras e com a mulher do chefe de posto ou mandadas para morar com outras famílias ricas das grandes capitais brasileiras.

Eu não fui criada com uma mãe só, eu fui criada através do chefe de posto, parteira que veio antigamente, rezadeira de antigamente, minha criação, minha cultura foi toda confundida, com muita coisa. Eu não sabia se eu pegava a minha linguagem, eu tinha vergonha, que eles diziam que era língua de bicho, eu não sabia se eu pegava a língua da parteira, que era uma negra, eu não sabia se eu pegava a cultura da rezadeira, da parteira, então nosso povo lá da Bahetá foi criado assim dessa maneira. Chefe do posto orientando pra outro jeito, mulher de chefe do posto dizia: “Vocês têm que aprender a falar o português, saber trabalhar, que vocês não têm mais terra, e o governo não vai sustentar índio mais não, índio vai ter que trabalhar no Estado”. Maura Titiá, Baenã. (CARVALHO et al, Relatório de Pesquisa, 2012[1])

A cultura indígena sofreu um impacto meteórico com a repugnante invasão do território brasileiro pelos europeus, principalmente os portugueses, que de maneira criminosa e planejada causou danos irreversíveis, que como uma flecha certeira atingiu em cheio os vários idiomas dos nativos de várias etnias e troncos linguísticos. A língua indígena pataxó hãhãhãe foi uma delas. Através dos estudos e registros feitos pelos etnólogos, antropólogos, como Curt Nimuendaju, Maria Hilda Paraiso, Maria Aracy Lopes da Silva e Greg Urban, a língua do povo pataxó hãhãhãe não caiu de vez no esquecimento, pois esses pesquisadores fizeram um belíssimo trabalho de registro com a indígena Bahetá, que sobreviveu até a década de 90 e que ficou bastante conhecida por ser a última falante da língua pataxó hãhãhãe. O resultado desse trabalho foi a publicação da cartilha Lições de Bahetá sobre a Língua Pataxó Hãhãhãe (1982), contendo um vocabulário com 129 palavras e duas frases, uma delas sendo "Kuin Kahab Mikahab", ‘quero comer, quero viver’, escolhida para este título. Essa pequena frase deixada por Bahetá é de grande valor para nós, ao mesmo tempo um clamor de vida em meio aos sofrimentos enfrentados por Bahetá e, também, representa a história, luta e memória do nosso povo, a resistência da nossa língua. Contudo, é importante que haja uma atenção especial direcionada à língua para que a mesma não caia de novo no esquecimento. Com esse propósito, venho somando ao meu povo para fortalecer o processo de reavivamento da língua pataxó hãhãhãe.

No Brasil, temos visto as mobilizações de outros povos no sentido de retomar e fortalecer suas línguas (BOMFIM, 2012), assim como os Pataxó do extremo sul da Bahia, os Tupinambá, os Kiriri, os Kariri, os Xokó em Alagoas, entre outros. É importante ressaltar que cada povo escolheu caminhos diferentes para essa busca, mas com propósitos comuns, que são os da resistência. Nesse trabalho trago um pouco da minha experiência como professor e liderança no sentido de contribuir com o reavivamento da língua indígena pataxó hãhãhãe, podendo assim, devolver um pouco do nosso vocabulário aos nossos estudantes e comunidade, para que se fortaleça em nós e não caia no esquecimento. O reavivamento dentro do processo linguístico pataxó hãhãhãe refere-se ao fato que a nossa língua não estava morta, apenas adormecida; a partir do momento que nós começamos a retomar, é como se pudéssemos ressuscitar a língua, dar vida a ela novamente. Assim a nossa língua é como uma árvore cortada que depois germina novamente, como descreve Uilding Braz (2016[2]):

Para nós a língua nunca deixou de ser materna, ou ancestral-materna como tenho usado, pois, ela é como uma semente germinada, uma árvore nova que nasceu de um tronco velho cortado pelos seres humanos. Ela é uma árvore que foi cortada, onde os seres que a cortaram deixaram apenas um toco velho, esse toco velho resistiu por muito tempo, e depois começa a sair de baixo da terra pequenas folhinhas verdes, vai ganhando vida e cresce.

Sempre busquei dar continuidade na luta de reavivamento da língua de meu povo, desde pequeno, quando minha mãe contava que conversava com seu pai na língua indígena, mas que, ao ser mandada para São Paulo, foi obrigada a parar de falar sua própria língua. Assim aconteceu com outros jovens indígenas na época. Meu sonho sempre foi de um dia dar continuidade a essa luta pela reafirmação da presença da língua pataxó hãhãhãe, luta essa começada por Bahetá, Txitxiáh, Tamaní, Bekoi, entre outros guerreiros. No ano de 1999 ajudei a comunidade da aldeia Bahetá a criar a Escola Municipal Indígena Bahetá, na qual fui o primeiro professor. Meu objetivo estava se concretizando, pois eu tinha certeza de que seria na escola que eu iria alcançar o público almejado na busca pela retomada da nossa língua.

No ano de 1999, dei início ao novo processo de retomada da língua de meu povo na função de professor na aldeia Bahetá, através do vocabulário da cartilha de Bahetá e alguns cantos pataxó hãhãhãe. Já no ano de 2014 comecei a lecionar no Colégio Estadual da Aldeia Indígena Caramuru, onde reiniciei o ensino da língua indígena. Muitos professores já aplicavam o ensinamento da língua usando apenas a cartilha Lições de Bahetá, que continha apenas um vocabulário da língua hãhãhãe. No entanto, somente a língua hãhãhãe não supria às necessidades linguística das outras etnias e assim não despertava o interesse do aprendizado de alunos pertencentes aos outros grupos étnicos. Mesmo assim os professores não desistiram.

No ano de 2000, período em que acontecia o magistério indígena na aldeia Barra Velha, Município de Porto Seguro, conheci alguns parentes pataxó do Extremo Sul da Bahia que já faziam parte do grupo de estudo do patxohã. Momento muito importante para mim, pois eu tive ali grande incentivo para continuar na luta pela retomada da língua do meu povo. Anos depois foi inserido na educação escolar de meu povo o ensinamento da língua usando o Patxohã, o que foi bem aceito, pois a comunidade entendeu que era hora de retomar o processo de retomada linguística.

Em 2007 começou a construção de um dicionário Pataxó, que foi publicado em 2017, dessa vez com listas das línguas hãhãhãe/baenã, kamakã e kariri-sapuyá e com a contribuição de professores pataxó hãhãhãe e o apoio da pesquisadora Jéssica Nelson, que desenvolveu sua tese sobre a língua pataxó hãhãhãe, publicada em 2017. A partir desse momento comecei a lecionar a língua pataxó hãhãhãe, usando esse dicionário e, também, alguns vocabulários Tupinambá, considerando as famílias pertencentes a esta etnia que historicamente também constituem o povo pataxó hãhãhãe. Durante meu trabalho considerei importante aprofundar cada vez meu conhecimento de fontes seguras, como o dicionário organizado em 2017: lista de palavras colhidas por Paulo Scheibe e publicada por Loukotka(1963), lista de Bahetá (1982), gravações feitas em 1979 e 1982 com Bahetá, por Araci Lopes da Silva, Maria Hilda Paraíso, e Greg Urban, o estudo de Jessica Nelson (2017), lista de palavras coletadas por Curt Nimuendajú em 1938 através dos indígenas Tamani e Bekoy, Glossário Pataxó hãhãhãe por Karl Friedrich Philipp von Martius (1867), lista Patxohã (2015), organizada pelo Grupo de Pesquisadores Pataxó.

2. O desafio do ensino da língua pataxó hãhãhãe

Diante dos muitos desafios encontrados na busca pelo reavivamento da língua pataxó hãhãhãe, há muitos caminhos. Entendemos que para a retomada de uma língua seja necessário que a língua ganhe vida em todos os espaços da comunidade. Como o espaço escolar é um dos pontos de referência, busquei dar início a esse processo de reavivamento da língua indígena do meu povo através do meu trabalho como professor, assim como outros professores também vêm fazendo. Reunir e dialogar são atividades essenciais para retomar a língua. Na função de professor indígena, dezenas de crianças passam por mim na matéria “língua indígena” e, assim, considerei um ponto positivo utilizar dessa prerrogativa para auxiliar e reforçar o projeto nesse espaço. O desafio foi realizar reuniões com a direção do Colégio Estadual da Aldeia Indígena Caramuru e nessas reuniões acentuar planos detalhados de como desenvolver estratégia e metodologia para o ensino da língua indígena em nossa escola, pois a dificuldade de ensino e aprendizagem é enorme. Na verdade, trata-se de um processo complexo para nós Pataxó Hãhãhãe, por tratar-se de muitas línguas, de várias etnias, que formam o meu povo. A direção do Colégio Estadual da Aldeia Indígena Caramuru tem ofertado total apoio e interesse no projeto por ser uma necessidade extrema que exige certa. Outras pequenas reuniões deverão ser realizadas com alguns jovens da aldeia Bahetá em que deverá ser abordado o tema e o projeto. O trabalho está sendo elaborado de acordo com os dados de fontes existentes sobre a língua pataxó hãhãhãe, com consultas de alguma bibliografia que falam sobre a língua indígena de meu povo e de outros povos. Dentre esses nomes estão: Anari Braz Bomfim, pertencente ao povo pataxó do extremo sul da Bahia e que tem grande experiência na questão em pauta; Greg Urban, professor antropólogo dos Estados Unidos que pesquisou Bahetá nas décadas de 70 e 80; Jurema Machado, Jessica Nelson, Lux Vidal, Maria Hilda Barqueiro Paraíso, Eni Orlandi, Uilding Braz.

A situação linguística do nosso povo é bem complexa, é difícil de entender até mesmo por nós Pataxó Hãhãhãe. A mistura de etnias torna um vocabulário rico, chegando a ser um baú de tesouros a serem descobertos e que devem ser bem explorados. A cada dia, surgem novos temas que devem ser inseridos nas ações do ensino-aprendizado da língua indígena. Sabemos das dificuldades por ser uma língua que caiu em desuso de maneira forçada. É um desafio necessário e mais do que nunca precisamos nos alimentar da sabedoria deixada pelos nossos ancestrais. Com tanta variedade linguística a ser tratada nas escolas do nosso território, alguns professores terão com certeza dificuldades em aplicar na sala de aula os conteúdos sobre a língua indígena.

Em 1982, ano da publicação da cartilha Lições de Bahetá, surgiu uma grande alegria no território, todos entenderam que ali nascia uma oportunidade de recuperar a língua que foi tirada de nós de forma brutal. Dentro do contexto e processo linguístico pataxó hãhãhãe, sou o primeiro do meu povo a dar início a um trabalho investigativo com possibilidades de atividades que possam no futuro contribuir no ensino-aprendizagem da nossa língua, tanto na escola quanto nas comunidades do Território Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu. Este trabalho é apenas o começo de uma proposta de reavivamento de nossa língua, considerando a diversidade étnica existente em nosso território.

Abaixo segue um texto produzido a partir do Dicionário Pataxó Hãhãhãe, Pataxó e Tupinambá:

Hõtxomã honãg hõtö tarakwatê motxê atuhiabá’xó taba dxá’á pytá pakó txó îandé hãhãm Pataxó Hãhãhãe, iẽp euhmã’txẽ hũbáp jiráp’xó uĩtãĩ unputxay kâi’aô, pahogtabm, hi patä mionã txihihãe aió txaköu naãhã taygá txaygã desequilíbrio ũxé napinotô tekó ũg pohẽhaw, jiráp uĩ apirãb ũpú ngà̃hà̃ng ũg pêãgõ’irá iẽ lupisxü nakupa dxá’á txanẽ nãptxê. Hi âksa’rai apirãb ngà̃hà̃ng uĩ kijẽtxawê ũg iõ semembo'e ihãyré’xó iẽ maroxĩ hũ iõ piátá hanyeheh. Kahab’irá ahmônẽ okená honãg haptxôy honãg, îandé daú kasiaká kanuytá ihãyré’irá héré ũg tohê, kabahai, kab, juktã, daú bakirá amohoi ikô ahmônẽ unputxay dxá’á okehôy’xó ser tuêrú’txẽ.

Tradução: Todo ano uma forte seca castiga muitas aldeias que ficam dentro do nosso território Pataxó Hãhãhãe, as alterações climáticas ajudam nesse processo fenomenal, além disso, muitas famílias indígenas colocam fogo sem controle provocando desequilíbrio em nossa fauna e flora, ajudando na escassez de água e matando as poucas nascentes que ainda existem. Muitas vezes falta água na escola e os estudantes passam a estudar com o tempo reduzido. “Vivemos essa lamentável situação anos após anos, nossos animais também sofrem passando fome e sede, cavalo, boi, vaca, animais silvestres morrem por essa situação que pode ser evitada.”

Esse texto foi construído com palavras de diversas línguas das etnias que formam o povo pataxó hãhãhãe. Certamente não é fácil lidar com esse processo, pois com toda essa diversidade cultural cria um complicador na hora de repassar aos estudantes as lições na língua indígena, mas também tem seu lado positivo, pois as palavras que faltam em uma língua poderão ser compensadas por outra. No caso da língua dos Kariri Sapuyá, da qual não foi encontrada, até o momento, nenhuma palavra referente a nomes de animais, esta falta pode ser suprida pelas línguas dos Baenã, Kamakã, Tupinambá, Pataxó, entre outros. Da mesma forma palavras da língua dos Kariri Sapuyá servirão para enriquecer o processo de reavivamento da língua pataxó hãhãhãe. Seguem aqui alguns exemplos de palavras das diversas línguas que aparecem no texto acima:

Língua Indígena Tradução em Português Etnia
txaköu fogo Kamakã
kabahai cavalo Baenã/Hãhãhãe
taba aldeia Tupinambá
Table 1. Tabela 1. Quadro separativo Pataxó Hãhãhãe 1. Fonte: Arquivo do Colégio Estadual da Aldeia Indígena Caramuru.

Ainda assim, com toda essa diversidade linguística, faltam muitas palavras em nosso vocabulário. Como se percebe, o texto acima foi completado com palavras da língua portuguesa; essa ação não deixa o texto empobrecido e sim enriquecido com mais uma língua e mais palavras. Mas, ao passar dos anos depois da publicação da Cartilha Lições de Bahetá, as outras etnias, como Kariri-Sapuyá e Kamakã, sentiram também uma forte necessidade de recuperar as suas línguas. Muitos indígenas dessas famílias passaram a não mais usar as palavras baenã e hãhãhãe. Essa ação gerou um problema sério dentro do nosso povo, pois passamos muitos anos estacionados em nosso próprio vocabulário, ou seja, parados sem nenhuma produção que pudesse avançar no ensino da língua. Tanto dentro da comunidade, como dentro das nossas escolas, passamos a usar os ensinamentos da língua patxohã do povo pataxó do extremo sul da Bahia. O colégio Estadual da Aldeia Indígena Caramuru tem um colégio com mais de 670 estudantes em três turnos. Muitas famílias têm seus filhos, de várias etnias, na escola e este é o meu caso; tenho quatro filhos e fica aqui uma boa explicação. Sou neto de Tsitsiáh, que era hãhãhãe, e de Rosalina, que era baenã, ambos com línguas diferentes; a mãe dos meus filhos é neta de Nático, que era hãhãhãe, e de Leonel Muniz, que era tupinambá, ambos com línguas diferentes. Fica aí um complicador que não ajuda muito na hora de ensinar nossos akô (filho). Porém, é uma fonte rica com um vocabulário incomparável que bem aproveitado poderá ajudar no reavivamento também do tupinambá ou do kariri-sapuyá, e tudo isso passa a ser a língua pataxó hãhãhãe, sem perder o valor linguístico e o sentido enquanto tronco ou etnia. Diante dessa situação, a direção do Colégio Estadual da Aldeia Indígena Caramuru tem apoiado e orientado para que, junto com a Coordenação Pedagógica, considerássemos todas as línguas existentes dentro do nosso povo. Assim, os professores poderão seguir as orientações com muita determinação, aplicando as lições do vocabulário linguístico com seus significados e ressignificações. Seguindo os exemplos na tabela abaixo, deve-se usar as várias formas que estão disponíveis para a língua hãhãhãe.

Português Tupinambá Baenã/Hãhãhãe Kamakã Pataxó Kariri Sapuya
cachorro iagwara bue txaẍke kuké -----------------
mulher kuîã beketxiá ĩerá jokana kütsi
noite pyntuna haguĩ huerá haãhí makayà
peixe pirá mãhãm huã mukusuy
lua jaci angoho txie mayõ-ῖhé gayakúh
Table 2. Tabela 2. Quadro separativo Pataxó Hãhãhãe 2. Fonte: Arquivo do Colégio Estadual da Aldeia Indígena Caramuru, 2018.

Esses quadros separativos podem facilitar ao leitor uma possível explicação sobre as várias línguas existentes nas comunidades hãhãhãe. Não foi possível conseguir materiais ou arquivos contendo todo o vocabulário das respectivas etnias. As palavras contidas nos quadro acima foram extraídas da cartilha Lições de Bahetá sobre a língua pataxó hãhãhãe, publicada pela Universidade de São Paulo e pela Comissão Pró- índio de São Paulo (1982), do Dicionário Pataxó Hãhãhãe (2016), do Material Didático Preliminar da Língua Tupinambá de Olivença, da Revisão da Família Linguística Kamakã do Tronco Macro- Jê (2007) e do Dicionário Patxohã - Língua de Guerreiro (2017).

Para as palavras existentes das etnias que formam o povo pataxó hãhãhãe, com os mesmos significados, deve se analisar a possibilidade de ressignificá-las, valorizando o uso das mesmas como adjetivos e substantivos, de modo a enriquecer ainda mais o ensino-aprendizagem dos estudantes indígenas. A diversidade de etnias (Kamakã, Baenã, Hãhãhãe, Guerén, Kariri Sapuyá, Tupinambá, Fulni-ô, Guarani, Pataxó e Kiriri) possibilita o uso de várias línguas ao mesmo tempo, o que pode ser visto como uma vantagem, não somente como um empecilho. Sendo assim, seguem alguns exemplos de palavras retiradas dos materiais didáticos da língua pataxó hãhãhãe: em baenã/hãhãhãe a tradução para o nome mulher é beketxia; em kariri sapuyá é kütsi; em kamakã é ĩerá; em tupinambá é kuîã; em pataxó é jokana. Temos aí cinco opções para designar o nome mulher. Então a ideia é usar um desses nomes como substantivo e os demais com o mesmo significado modificado por aquilo que em português seria um adjetivo: beketxia - mulher; kütsi -mulher alta; kuîã - mulher pequena; ĩerá - mulher casada; jokana, mulher solteira.

A partir desse contexto, elaborei uma proposta de ensino da língua indígena considerando a diversidade linguística, fazendo uso de um caderno de atividades que foi desenvolvido com os alunos na minha comunidade para diferentes níveis de aprendizado.

Atividade 01:

Figure 1. Tabela 3. ÃTXÕHŨ PATAXÓ HÃHÃHÃE. Fonte: Reginaldo Ramos dos Santos.

Atividade 02:

O texto abaixo chama atenção para com o cuidado com a natureza, proteção dos animais e zelo com a vida e com a terra. Para criar o texto foram usadas as línguas indígenas das etnias que formam o povo pataxó hãhãhãe. Traduza em seu caderno o texto para a língua portuguesa:

Iõ tihi me’á ãkô upâ hãhãm, me’á niamitãg txó dáu ũg upâ ẽkâi tanara. Tupã me’á akoã ẽka, xe ãkô ũpú Tupã, xe tanara kahab’xó. Ũi kãnã pataxi xe ĩo akâiéko ũg ikhã epoxey akoã hãhãhãe ũg ikô kãnã hãhãm, ũg ikô kepây iketxak ihã amohoi ũg ũi hãhãm ser jetxiguí’txẽ, txayá akpây hô hié. Niamú kãpetô yatsammuh ikhã’ré ũg karnẽtú pakhê nipatxiõ, iẽ hãhãm me’á kãnã ẽkâi, iẽ ikhã ãhô dxahá, iẽ hãhãm me’á napinotô, iẽ hãhãm me’á upâ Tupã.

Atividade 03:

Leia o texto abaixo. Identifique quais são as palavras na língua indígena relacionadas ao meio ambiente e traduza para a língua portuguesa:

Uĩ oköá taba petõi porangaba naãhã phüh, petõi mihná, ngahã, anyú ũg sarãp dxá’á txobháp. Uĩ oköá taba Iõp ngahã ho petõi tsã, nãptxê pupü mihná iõre hoarú.

Atividade 04:

Imagine a seguinte situação: você foi catar cajá com seu pai e sua mãe. Na volta, vocês encontraram uma paca. Então, seu pai resolveu ir atrás dela e conseguiu pegar. Ao chegar à sua casa, você vai contar essa história para os seus avôs. Escreva um texto, utilizando pelo menos duas línguas indígenas para fazer esse relato. Tente escrever o máximo que conseguir na língua indígena. Se não conseguir, pode completar com língua portuguesa.

Atividade 05:

Transcreva em seu caderno o cabeçalho completo do colégio na língua indígena pataxó hãhãhãe.

Atividade 06:

Galdino Pataxó era da etnia kariri-sapuyá e foi um grande líder sendo assassinado em Brasília por cinco jovens da alta classe no ano de 1997. Relate esse fato em versos, desenhos ou poemas com frases na língua kariri-sapuyá. Pode completar as frases com a língua portuguesa se for necessário.

Atividade 07:

Bahetá foi à última falante da língua indígena pataxó hãhãhãe chegando a falecer no ano de 1992. Descreva em seu caderno qual a importância dessa anciã para a reavivamento da língua pataxó hãhãhãe. Utilize o vocabulário das línguas indígenas que falamos no nosso território e a língua portuguesa, para completar, se for necessário.

3. Considerações finais

Durante o tempo em que me dediquei às pesquisas para o reavivamento da língua indígena pataxó hãhãhãe, percebi o quanto foi importante dar o primeiro passo para despertar em toda a comunidade a vontade de retomar o nosso vocabulário. A língua indígena tem em seu cerne os valores ancestrais deixados por nossos guerreiros anciões que tombaram nessa terra para proteger o que hoje herdamos dentro do território, valorizando sempre a terra e a cultura. Como já dizem os mais velhos, “onde tem fumaça, tem fogo”. Então, onde estiver um índio tem cultura viva, sempre estará presente o processo sociocultural e linguístico para a afirmação da nossa história e sobrevivência. Evidenciar a língua indígena pertencente aos Hãhãhãe é uma missão, é uma oportunidade que não pode deixar escapar, é um momento de dar vida à memória de nossos guerreiros, é momento de ir além e buscar superar todas as dificuldades encontradas em ensinar ou aprender a falar e escrever na língua indígena. É seguindo essa lógica que o reavivamento da língua indígena é hoje uma realidade dentro do território Caramuru Catarina Paraguaçu, a começar em nossas escolas. Espero que consigamos abraçar essa oportunidade e com muita união e trabalho alcançar o reavivamento da nossa língua e que esse projeto não fique somente nas escolas do território, que alcance outras unidades fora do espaço escolar, como as reuniões de saúde, território, agricultura e religião. O desafio não pode ser maior do que nossa vontade de retomar a reconstrução da nossa língua, objetivo que tanto almejamos alcançar. Foram muitas dificuldades encontradas durante o desenvolvimento deste trabalho, a língua do meu povo foi considerada uma língua morta por muitos anos, mas agora está mais do que na hora de declarar a sua vida com o vocabulário tão rico e relevante para a identidade cultural dos Pataxó Hãhãhãe.

4. Agradecimentos

Agradeço a Deus por ter concedido que eu realizasse cada parte do honrado trabalho aqui apresentado, que envolveu muita leitura, pesquisa bibliográfica e de campo. Em especial a minha mãe Maria Tsitsiáh (in memorian) que lutou de forma incansável para criar-me e me ver chegar a vencer na vida. A minha família nas pessoas de meus filhos e esposa que muito me apoiaram nos momentos em que eu mais precisei. Agradeço a ajuda dos parentes pataxó, pataxó hãhãhãe e tupinambá, e dos parentes e amigos, dos quais cito somente alguns: Itohã Kamakã (Edmar Batista,), Tupanã Kariri Sapuyá (Lucas Ferreira) e, em especial, Dehevehe Sapuyá (Wendeuslelei Alves de Souza).

How to Cite

SANTOS, R. R. dos. Kuin Kahab Mikahab: Hãhãhãe Pataxó Hãhãhãe Ũg Iẽ Ikhã Ikô Tâypâk Anekö: I want to eat, i want to live: the fight for bringing back the Pataxó Hãhãhãe language. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 3, p. 01–14, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n3.id253. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/253. Acesso em: 25 apr. 2024.

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