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Pilot Study

Fake News, information disorder and moral panic: exploring discursive strategies

Paulo Roberto Gonçalves-Segundo

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https://orcid.org/0000-0002-5592-8098


Keywords

Fake news
Information disorder
Moral panic
Discursive Strategy
Polarization

Abstract

My aim, in this paper, is to discuss the sociosemiotic operation of fake news that reproduce moral panics, taking into account the context of sociopolitical polarization in contemporary Brazil. To do so, I will, first, establish a dialogue with the vast multidisciplinary literature on the theme, directing special attention to the notion of information disorder. Second, I will discuss, from a sociosemiotic standpoint, the hypothesis that this sort of fake news is a point of tension between the absurd and the evident. In order to qualify this proposal and systematize a set of discursive strategies that seem relevant to the characterization of different kinds of information disorder, in special, leaks, false context and manipulated content, I will analyze a video produced and published by a conservative youtuber, supporter of Bolsonaro’s administration, which denounces a pedagogical material allegedly elaborated by the Secretary of Education from the city of Fortaleza, Brazil, a city governed by a left-wing party. It is said, in the video, that the material aims at naturalizing intimate and sexual contact among children and adults, at stimulating child’s masturbation and to ridicule the current Minister Damares Ales, who was herself a victim of sexual violence. As a result, I can point the ‘ubiquity of the exogroup’ as a general discursive strategy, plausibly fundamental to the functioning of this sort of fake news; the ‘simulation of dialogue with the endogroup’ and the ‘use of image as evidence’ as part of the construal of leaks; the processes of ‘spatiotemporal detachment’, ‘transference of enunciative responsibility’ and ‘situational reconfiguration’ as discursive strategies pertaining to false context; and, finally, the ‘dilution of spatial borders’ and the ‘addition of immoral/criminal objectives’ as strategies of manipulated content.

Introdução

As últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos e no Brasil, bem como a recente pandemia de Covid-19 têm despertado cada vez mais atenção de pesquisadores mundo afora acerca do processo de produção, distribuição, consumo e interpretação de fake news. Não raro a partir de abordagens multi ou interdisciplinares que congregam Linguística, Semiótica, Análise do Discurso, Psicologia, Sociologia, Ciência Política, Ciências da Comunicação, Ciências da Computação, dentre outras, os estudos têm buscado:

(i) elucidar e refinar a noção de fake news (Rini, 2017; Tandoc et al., 2018; Wardle; Derakhshan, 2018; Gelfert, 2018; Gomes; Dourado, 2019), de forma a buscar compreender o que as diferenciam de fenômenos similares, como boatos; o que as caracterizam, considerando a diversidade de possibilidades de construção e de manipulação que experienciamos cotidianamente; e quais são os seus efeitos, levando em consideração as dimensões econômica, sociopolítica, cultural – e, mais recentemente, até em termos de saúde pública. Nesse processo, há pesquisadores que abandonaram o termo, visto considerá-lo pouco produtivo para abarcar tantos fenômenos distintos, preferindo falar em desordem informacional (Wardle; Derakhshan, 2018); outros autores, por sua vez, preferiram mantê-lo, reiterando a emulação deliberada das práticas jornalísticas como constitutiva do fenômeno e reforçando, assim, sua vinculação aos padrões e às estratégias multimodais típicas de notícias e reportagens (Gelfert, 2018); por fim, há ainda pesquisadores que, mesmo mantendo o núcleo news, assumem que o vínculo com o jornalismo não é constitutivo, discutindo que elas são, na verdade, fruto da polarização e da construção de uma ecologia midiática alternativa que produz textos orientados a se conformar às crenças e aos valores do grupo-alvo, com distribuição preferencial pelas mídias digitais (Gomes; Dourado, 2019)1;

(ii) compreender os fatores responsáveis por seu sucesso, considerando características culturais, sociais, políticas, econômicas, comunicativas e discursivas. No Brasil, há explicações que envolvem o uso do WhatsApp (Baptista et al. 2019) para a distribuição textual, tendo em vista ser uma rede em que os laços sociais tendem a ser mais próximos, o que amplia a confiabilidade no que é distribuído; o uso do YouTube como uma fonte de textos multimodais (Mont’Alverne; Mitozo, 2019), uma vez que a visualidade parece ter um papel importante para vencer o possível ceticismo do espectador (Gonçalves-Segundo, submetido); a falta de confiança do brasileiro em instituições políticas e empresas de comunicação (Piccinin et al., 2019), o que favorece a emergência de fontes alternativas de informação; a vigente polarização política com o consequente enviesamento perante atores políticos e agência de verificação de fatos (Lelo, 2019), processo que pode favorecer que enviesamentos cognitivos superem o pensamento crítico (GELFERT, 2018; GONÇALVES-SEGUNDO, submetido); a não rara tematização de eventos e situações que constroem e reproduzem pânicos morais (Critcher, 2017), despertando emoção (Bakir; McStay, 2017) e dicotomização identitária (Amossy, 2017; van Dijk, 2014), especialmente no que tange a grupos conservadores (Gonçalves-Segundo, submetido).

A despeito de todo esse volume de reflexões, parece-me fundamental, contudo, que novos estudos sejam desenvolvidos no sentido de depreender as características sociossemióticas do fenômeno, considerando sua diversidade temática, seus distintos grupos-alvo, seus contextos de operacionalização (em eleições ou em pandemias, para citar exemplos que saltam aos olhos) e sua instanciação em modalidade verbal e imagética, buscando detectar padrões de funcionamento. Além disso, também seria relevante comparar esse funcionamento em distintos países e/ou grupos ideológicos, levando em conta aspectos não só computacionais (que envolvem bots e algoritmos), mas também aspectos linguísticos, discursivos, pictóricos, interacionais e argumentativos. Dentre esses, destaco, por exemplo, a importância de se estudar o debate público, situado física ou virtualmente, acerca das fake news, bem como o modo como elas têm sido apropriadas nesse debate como teses ou como argumentos.

Neste artigo, proponho apresentar contribuições para duas dessas novas empreitadas: (i) a depreensão das estratégias discursivas que subjazem às diversas formas de constituição das fake news – ou da desordem informacional –, buscando detectar padrões linguísticos (ou imagéticos) que constituem dadas modalidades de desordem informacional, a saber o vazamento, o contexto falso e o conteúdo manipulado; (ii) a caracterização, de um ponto de vista teórico, das fake news que bebem em pânicos morais em contextos políticos polarizados, como é o caso do texto sob análise. Com isso, intenciono fornecer mais algumas evidências em prol de nossa hipótese de que tais fake news se constituem em um ponto de tensão entre o absurdo e o evidente, decorrente de diferentes efeitos perlocutórios visados para seu acesso e consumo por membros do endogrupo (nós, os conservadores) e do exogrupo (eles, os progressistas).

O texto sob análise consiste em um vídeo produzido e publicado pela YouTuber RV2 em setembro de 2019, no qual se denuncia uma apostila, supostamente elaborada pela Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza, cujo conteúdo estaria orientado não só a atacar a ministra Damares Alves, mas principalmente a naturalizar o contato íntimo entre adultos e crianças e a incentivar a masturbação infantil. Segundo o texto, tal material estaria sendo utilizado no treinamento e na capacitação de professores e funcionários de creches, instituições essas que estariam sendo coagidas a participar de tal treinamento – no caso das conveniadas, sob pena de não receberem verbas da prefeitura, administrada por um partido de esquerda, o PDT.

Isso posto, exponho, na sequência, a forma pela qual organizei o artigo: na próxima seção – a segunda –, faço uma discussão sintética acerca da teorização sobre fake news, com destaque à tipologia de Wardle e Derakhshan (2018), e um debate sobre os fatores que influem em sua disseminação e em seu potencial de sucesso na sociedade brasileira; na terceira seção, apresento brevemente o aporte sociossemiótico3 que embasa a pesquisa e discuto a articulação entre polarização política, pânico moral e ordens do discurso, que subjaz à hipótese de que fake news que se fundamentam em pânicos morais operam na tensão entre o absurdo e o evidente; na quarta, analiso as estratégias discursivas empregadas no vídeo em questão, articulando-as às categorias vazamento, contexto falso e conteúdo manipulado de Wardle e Derakhshan (2018), e relaciono essa discussão à hipótese supracitada; por fim, nas considerações finais, retomo e sistematizo os resultados alcançados.

1. Fake news: apontamentos teóricos

A grande dificuldade em definir o que é fake news parece decorrer, de um lado, do caráter multifacetado do objeto, que envolve fatores sociais, comunicativos, discursivos, linguísticos, interacionais, computacionais, econômicos, políticos e legais e, de outro, da volatilidade do fenômeno, uma vez que as tentativas de conceituá-lo, bem como de construir ferramentas para analisá-lo ou instrumentos para combatê-lo esbarram no fato de que a máquina de produção e de distribuição de fake news encontra-se em pleno desenvolvimento, constantemente adaptando-se aos cerceamentos e às conjunturas, com reflexos na linguagem que não podem ser pensados sem se levar em conta que tais textos também se constituem em dados de um ambiente computacional.

Tandoc et al. (2018), em um artigo de revisão de literatura, examinaram 34 publicações acadêmicas entre 2003 e 2017 e concluíram que, apesar da diversidade de definições, dois critérios pareciam prevalecer nas investigações sobre as fake news: nível de facticidade (o quanto uma fake news se ancora em fatos) e intenção imediata do autor (o quanto uma fake news é produzida objetivando iludir). Ao cruzarem as variáveis de cada uma dessas dimensões, os autores chegaram à tipologia abaixo, no âmbito da qual destacaram que a definição mais usual se vinculava à noção de fabricação. Segue o quadro:

Figure 1. Quadro 1. Tipologia de fake news (Tandoc et al., 2018, p. 148).

Para Wardle e Derakhshan (2018), a fabricação é apenas uma modalidade de fake news. Para ser mais exato, uma modalidade de desinformação. Os autores defendem que o termo fake news “é inerentemente vulnerável a ser politizado e empregado como uma arma contra o jornalismo, como um modo de minar os relatos que desagradam as pessoas no poder” (Wardle; Derakhshan, 2018, p. 44)4. Por conta disso, desenvolvem o conceito de desordem informacional.

Na leitura que faço da proposta dos autores, são três critérios relevantes para a categorização: nível de facticidade (a informação é verdadeira ou falsa?), intenção de prejudicar (o texto é orientado a atacar a imagem de um ator social, grupo ou instituição?) e consciência sobre a falsidade (o distribuidor sabe que a informação é verdadeira ou falsa?). A partir disso, apresento o seguinte quadro-síntese5:

Figure 2. Quadro 2. Tipologia de desordem informacional (adaptado de Wardle; Derakhshan, 2018, p. 44).

A instância textual que analisarei neste artigo constitui um híbrido entre disinformation e mal-information, na medida em que pode ser interpretada como contendo traços de vazamento, contexto falso e conteúdo manipulado. Farei um detalhamento acerca desse hibridismo na seção de análise, o que inclui as estratégias discursivas mobilizadas; por ora, no entanto, vale a pena definir, ainda que brevemente, cada uma dessas subcategorias.

Os autores denominam vazamento as informações que são baseadas na realidade e que, portanto, possui um nível alto de facticidade, mas que são produzidas – e não raro distribuídas – com a intenção de prejudicar a imagem de um ator social ou de uma instituição. Já o contexto falso se manifesta nos textos em que o conteúdo informacional tem um nível de facticidade que tende ao baixo, por conta do deslocamento contextual do evento reportado; ou seja, os agentes produtores da fake news recontextualizam os fatos narrados de forma a gerar ressignificações que comprometem (ou, mais raramente, exaltam) os envolvidos. Por fim, o conteúdo manipulado se efetiva em textos nos quais operações predicativas e referenciais são realizadas com o objetivo de aumentar a distância entre o que, de fato, ocorreu e a narrativa construída textualmente. Em geral, as alterações não são completas, de modo que é possível atestar algum grau de facticidade, o que pode reduzir o ceticismo do público em relação ao evento reportado6.

A questão do ataque à imagem de dados atores sociais ou instituições está diretamente associado ao que Gomes e Dourado (2019) denominam guerrilha informacional. De acordo com esses autores, contextos sociopolíticos de polarização podem levar os grupos antagônicos a entrar em disputas informativas calcadas em distorções e narrativas desancoradas de facticidade com o objetivo de direcionar a atenção coletiva para dadas perspectivações do real. Tais perspectivações, que refratam posições ideológicas, constituem uma ecologia midiática alternativa na qual fatos e opiniões devem estar em conformidade com as crenças, os conhecimentos e os valores do grupo-alvo, reforçando sua coesão.

Gelfert (2018, p. 108, itálico do autor, tradução minha) chama a atenção, nesse sentido, para o fato de que as fake news são “apresentações deliberadas de alegações (tipicamente) falsas ou ilusórias como notícias, de forma que as alegações são ilusórias por design7. Ao dizer por design, o autor visa a clarificar que o que distingue o fenômeno de usos anteriores de manipulação informativa na mídia são suas características sistêmicas, que garantem a distribuição de tais textos por conta da exploração de nossos vieses cognitivos, tais como o viés de confirmação8, a excitação emocional9 e os efeitos de repetição10. Em consequência disso, pode haver uma supressão do pensamento crítico, marcado pela incapacidade de avaliar a consistência das alegações e das argumentações desenvolvidas em sua defesa, bem como a verossimilhança das narrativas construídas como factuais.

Bakir e McStay (2017) chamam atenção para o fato de que as fake news giram em torno de uma “economia da emoção”, orientada a angariar atenção e tempo de visualização, os quais se convertem em dinheiro. No caso das últimas eleições brasileiras e do texto que selecionei para a análise neste artigo, torna-se possível expandir o conceito para também falar da indução a uma adesão passional a dadas agendas políticas. Ao produzir cidadãos desinformados, que tendem a distribuir e reproduzir fake news de forma a gerar uma câmera de eco (ou uma bolha ideológica) em que se compartilham o antagonismo e a indignação ao exogrupo, por um lado, ou a empatia e o louvor ao endogrupo, por outro, o debate público e a saúde democrática acabam prejudicados, com prováveis consequências negativas para a gestão do desacordo, especialmente no que tange a aprovação de políticas públicas.

A grande questão parece ser, portanto, que as fake news visam, em primeira instância, ao compartilhamento. Seu sucesso é especialmente uma questão de distribuição – seja porque algum ator social acredita em seu conteúdo e julga relevante repassá-lo para alertar ou conscientizar membros do endogrupo ou ainda para provocar ou converter membros do exogrupo, seja porque algum ator rejeita completamente seu conteúdo, repassando-o para mostrar a inverossimilhança ou as táticas do discurso outro para o seu círculo familiar ou profissional, dentre outras possibilidades –, uma vez que isso (i) reorienta o debate público, chamando atenção para aquilo que a máquina midiática alternativa almeja, (ii) gera dados que permitem compreender quem são os grupos mais permeáveis (e de que forma se constitui tal permeabilidade) a dados tipos de manipulação informacional e (iii) segmenta a heterogeneidade populacional em grupos que podem ser mais facilmente visados por táticas de click-bait, que geram dinheiro pela atração de público a dadas páginas ou plataformas, financiadas pela publicidade segmentada (Bakir; McStay, 2017).

É claro – conforme já dei a entender – que distribuir não é sinônimo de crer e/ou de aderir a uma dada concepção de realidade, ideologicamente constituída. Contudo, creio ser relevante buscar entender o que subjaz ao aparente sucesso de tal fenômeno, que, não raro, desemboca em crença no que tange ao grupo-alvo.

Gomes e Dourado (2019) atribuem a consolidação do fenômeno à emergência da nova direita – no Brasil, caracterizada pela articulação entre conservadores e liberais, que se materializou na eleição do atual presidente Jair Bolsonaro –, que teria escolhido dentre seus alvos intelectuais, cientistas, professores e jornalistas como forma de alterar a atitude da sociedade diante dessas fontes já autorizadas de informação e de saber, construindo, assim, uma nova “epistemologia tribal” (GOMES; DOURADO, 2019, p. 37), com consequências potencialmente graves para o debate público e para a democracia.

Em uma pesquisa acerca da confiabilidade dos brasileiros sobre fontes de informação, Piccinin et al. (2019) mostram que os brasileiros confiam mais em informações cuja fonte seja um familiar, um vizinho ou um amigo do que em empresas de comunicação ou em instituições políticas. Isso se constitui em dado importante, na medida em que, pelo menos no que tange ao contexto das últimas eleições presidenciais, o WhatsApp despontou como a plataforma digital de maior utilização para a distribuição de fake news (MONT’ALVERNE; MITOZO, 2019). Segundo Baptista et al. (2019), a forma pela qual as conexões são formadas no WhatsApp – rede que se estrutura a partir de pessoas com laços sociais mais fortes, como amigos, família e colegas de trabalho – favorece julgamentos de aceitabilidade em relação ao que lá é distribuído, visto que as conexões construídas ao longo de anos aumentam a confiança na fonte da (distribuição) da informação, reduzindo o potencial ceticismo, bem como a postura crítica.

Mont’Alverne e Mitozo (2019) também destacam o papel do YouTube nesse processo. Em sua pesquisa, que investigou 213 grupos ativos no WhatsApp durante a corrida eleitoral presidencial, as autoras detectaram que os 15 links mais compartilhados no WhatsApp conectavam os usuários mais ao YouTube do que à soma de todas as outras principais plataformas. Isso é relevante, na medida em que se trata de uma plataforma de vídeos, textos intrinsecamente multimodais, que exploram intensamente a modalidade imagética. Nesse sentido – e discutirei isso durante a análise –, é possível hipotetizar que o imagético pode atuar no sentido tanto de reduzir ceticismo, levando à minimização de possíveis dúvidas em relação ao conteúdo, muitas vezes, demandando do leitor mais crítico a busca pela veracidade da informação, quanto de ampliar a confiabilidade e atestar a veracidade do que se enuncia verbalmente, comprovando o que um dado enunciador já constrói como factual. É como se operasse a máxima: “vejo; logo é verdade”.

Por fim, julgo relevante destacar que, no Brasil, o fenômeno das fake news – ou da desordem informacional, nos termos de Wardle e Derakhshan (2018) – não se restringe à emulação do jornalismo, como já apontam Gomes e Dourado (2019). Conforme qualquer um de nós já pôde testemunhar, conteúdos fabricados e ilusórios, bem como descontextualizações e vazamentos perniciosos ocorrem por vídeos construídos por youtubers de diversas agendas político-partidárias, em sermões religiosos online, em “textões” do Facebook, em lives políticas, em memes, em áudios; todos partilhados vorazmente pelas mídias digitais. Os formatos e os gêneros são muito diversos; de fato, é uma guerrilha informacional (Gomes; Dourado, 2019). Contudo, gostaria de destacar um outro traço: é também uma guerrilha opinativa, que atravessa o tecido do dissenso na sociedade, tentando suprimir a complexidade dos discursos e dos contradiscursos, simplificando-os e reduzindo-os com base na oposição, construída como real e radical, entre os dizeres e os fazeres do outro (membro exemplar do exogrupo) e os dizeres e fazeres do grupo de referência (o endogrupo), cujos valores são praticamente sacrossantos (e, portanto, não passíveis de problematização). É a contração do espaço dialético em última instância, de forma que, em muitos casos, as fake news acabam operando justamente na tensão entre o absurdo (associado à avaliação de que “é impossível que algum ser humano razoável acredite nisso”) e o evidente (associado à avaliação de que “é impossível que algum ser humano razoável não acredite nisso”). Voltarei a esse ponto na seção de análise.

2. Fake news, pânicos morais e ordens do discurso

Perspectivas sociossemióticas sobre a linguagem partem do pressuposto de que o processo de construção do significado é constrangido por padrões interdiscursivos (FAIRCLOUGH, 2003; REISIGL; WODAK, 2009). Para Fairclough (2003), são três os padrões interdiscursivos que permitem explicar a reprodução discursiva em práticas sociais, ancoradas em esferas de atividade humana (VOLÓCHINOV, 2017): os discursos, compreendidos como modos sociossemióticos de representar; os gêneros, entendidos como modos sociossemióticos de (inter)agir; e os estilos, concebidos como modos sociossemióticos de ser, ligados, portanto, a performances identitárias. Tais padrões são articulados de forma dialética, o que significa que, por um lado, as fronteiras que os separam não são nítidas e os seus contornos se confundem e, por outro, eles podem ratificar-se mutuamente, na medida em que discursos podem ser engendrados em gêneros e inculcados em estilos. Por conseguinte, eles podem adquirir alta coesão em uma dada instituição, tornando-se hegemônicos. Isso não significa, contudo, que a alternatividade não exista, uma vez que todo espaço institucional estabelece oposições entre categorias sociais, com acesso distinto a recursos e a diferentes possibilidades decisórias, reveladas por camadas de oposição entre endogrupos (nós) e exogrupos (eles), o que dá origem a processos de resistência e a conflitos sociais. Nessa concepção, portanto, vê-se a inscrição da alternatividade como intrínseca à constituição das ordens do discurso, compreendidas como formações sociossemióticas ancoradas em espaços institucionais, espaços esses que se encontram articulados a redes de práticas sociais subordinadas a esferas de atividade humana (GONÇALVES-SEGUNDO, 2014; LEMKE, 2005). Tais formações são constituídas por redes de padrões interdiscursivos hegemônicos e contra-hegemônicos, caracterizados pela articulação entre discursos, gêneros e estilos, em função dos agrupamentos sociais relevantes, que hierarquizam comportamentos, crenças e valores em termos deontológicos, diferenciando o que é necessário, preferido, permitido e interdito (GONÇALVES-SEGUNDO, 2011; GONÇALVES-SEGUNDO, 2018).

Tal concepção tem como consequência a visão de que a produção e a interpretação textuais não são livres, uma vez que todo ator social é constrangido, no âmbito dessas duas atividades, pelos padrões multimodais de composição textual pertinentes, pelos conceitos e pelas relações entre conceitos pré-legitimadas por dados discursos e pelas expectativas de comportamento semióticos que estruturam o papel assumido pelo produtor ou pelo interpretante no âmbito da prática social em que ele se envolve. A despeito disso, há espaços para deslocamentos estratégicos, na medida em que atores sociais podem muito bem simular outros padrões interdiscursivos, processo que parece estar na base das fake news politicamente orientadas, em especial, daquelas que envolvem pânicos morais: o discurso outro, com seus valores e avaliações, pode ser textualmente inscrito ou invocado, de forma a não só captar a atenção, como também provocar reações emotivas no leitor-espectador, em um processo orientado tanto a gerar antagonismo em relação a tal discurso e ao grupo que a ele se filia quanto a ampliar a coesão do grupo-alvo, que se filia a outra discursividade.

Segundo Critcher (2017), pânicos morais envolvem reações exacerbadas a formas de comportamento e de pensamentos consideradas “desviantes”, por serem avaliadas como ameaças concretas à ordem moral vigente de uma sociedade. Revisando uma vasta bibliografia sobre o assunto, o autor conclui que elas parecem endêmicas a sociedades capitalistas e tendem a ser alimentadas por grupos conversadores, uma vez que estão associadas à manutenção de valores morais hegemônicos, não raro – a meu ver – ligados a posturas religiosas fundamentalistas. Certas estratégias discursivas parecem estar ligadas às atitudes de combate aos grupos cujos comportamentos são considerados ameaçadores: exagero e distorção do que é enunciado pelo outro; fabricação de conteúdos que atinjam a imagem desse(s) outro(s); previsão de consequências negativas nefastas ligadas à inação contra a expansão desse novo discurso; e a construção do outro como um inimigo cujos valores são concebidos de forma dicotômica em relação aos valores do grupo de referência (CRITCHER, 2017). Ademais, o autor também destaca o uso político de pânicos morais para angariar apoio a candidaturas e/ou a propostas de políticas públicas no âmbito do poder legislativo.

Minha hipótese é a de que a fake news sob análise hibridiza modalidades de desordem informacional, valendo-se de estratégias verbo-imagéticas variadas (a serem descritas na próxima seção), para ratificar pânicos morais política e ideologicamente orientados. Dessa maneira, mantém-se mobilizado e engajado o endogrupo (cuja reação ideal é a de assumir o conteúdo como “evidente”, ainda que isso não esteja, em princípio, garantido) e geram-se continuamente dados e atenção, tanto da parte do endo quanto do exogrupo (ainda que, neste último caso, a reação ideal seja a resposta afetiva, indignada, que lê o texto como “absurdo” e o compartilha como índice de revolta contra as táticas “sujas” do “outro lado”), de forma a controlar, localmente, o direcionamento do debate público em variadas instâncias11; no caso, em uma grande cidade do nordeste, Fortaleza, cujo governo se alinha a uma agenda progressista, mais à esquerda. Nesse processo, as fronteiras entre grupos provavelmente acabam se distanciando cada vez mais, mantendo a aparentemente útil polarização, com posições dicotomizadas (AMOSSY, 2017).

3. Desordem informacional e a instanciação de estratégias discursivas: análise textual

O texto que analisarei neste trabalho consiste no vídeo produzido pela jornalista e youtuber conservadora RV, apoiadora da atual gestão Bolsonaro, publicado em setembro de 2019, no qual denuncia uma apostila, supostamente produzida pela Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza, cujo conteúdo estaria orientado não só a atacar a ministra Damares Alves, mas principalmente a naturalizar o contato íntimo entre adultos e crianças e a estimular masturbação infantil. Ainda que se trate de um texto multimodal, direcionarei a minha atenção, primariamente, aos enunciados verbais; apenas focalizarei os elementos imagéticos pontualmente quando relevantes para a nossa argumentação no âmbito das estratégias discursivas associadas à tipologia de Wardle e Derakhshan (2018)12. Segue abaixo a transcrição do vídeo:

Bom pessoal o que eu vou mostrar aqui pra vocês hoje... é principalmente pra ser divulgado... entre quem tem filhos... especialmente crianças pequenas... em creches públicas... sabe o que tá acontecendo nas creches aqui do Ceará... especialmente na capital Fortaleza? e não duvido que isso também esteja acontecendo em todo o Brasil tá pessoal?... eh:: a secretaria de educação... preste bem atenção... a secretaria municipal de educação de Fortaleza está investindo pesado... ((slide 1)) no treinamento e capacitação de professores e ((slide 2)) funcionários de creches... isso seria ótimo se o tipo de material pedagógico não afirmasse ((slide 3)) que é muito natural aBRAços caRÍcias e::... masturbação infantil para acalmar as crianças... isso mesmo... isso não é fake news... ((slide 5)) olha aí a apostila... ((slide 6)) na mesma apostila ((slide 7)) uma charge depreciando a ministra Damares Alves... charge que claro pode ser feita e publicada em qualquer veículo de imprensa... mas não numa apostila que ((slide 8)) ensina os professores a trabalhar a sexualização infantil ((slide 9)) na priMEIra inFÂNcia... você não acha isso estranho não pessoal?... a ministra Damares Alves foi vítima desse tipo de ataque a vida toda... desde criança quando foi molestada por um adulto... mas a apostila da prefeitura de Fortaleza menosPREza isso... RI da ministra... e afirma que carícias e toques são normais entre adultos e crianças... até agora como a ministra vem trabalhando incansavelmente contra esse tipo de abuso para proteger essas crianças... eh:::... ela tem enfrenTAdo essa batalha esse tipo de escárnio... mas olha só pessoal esse aviso é muito mais importante do que apenas... o nosso::: repúdio a esse tipo de material... né?... é muito importante a gente saber que TOdas as creches estão passando pelo mesmo treinamento e principalmente aquelas que são conveniadas... e que::: a prefeitura diz “quem não fizer os cursos perde a verba para manter a creche”... entendeu ou quer que eu desenhe como funciona o modo socialista de governar?
Table 1. Texto 1. Fake News sobre apostila que incentivaria pedofilia.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=QNOv9asjgH013

Antes de iniciar as análises, considero fundamental fazer dois esclarecimentos. Em primeiro lugar, cabe dizer que o vídeo foi analisado por, pelo menos, cinco agências de checagem de fatos, e seu conteúdo foi categorizado por todas como fake/falso. Os links para as análises seguem em nota de rodapé14. Logo, toda vez que me referir a essas verificações, o leitor pode fazer a sua própria checagem nas referidas páginas.

Em segundo lugar, creio ser fundamental expor o procedimento metodológico. Primeiramente, buscarei mostrar como o texto em discussão constitui um exemplar híbrido de desordem informacional. Para isso, discutirei em que medida ele engendra traços de vazamento (ainda que fique nublada a fronteira entre ser um vazamento real ou apenas a simulação de um vazamento), de contexto falso e de conteúdo manipulado (em alguns pontos, tangenciando a fabricação de conteúdo), a partir tanto do arcabouço de Wardle e Derakhshan (2018) quanto da depreensão das estratégias discursivas que parecem caracterizar o funcionamento sociossemiótico de cada um desses tipos. Durante o procedimento e, especialmente ao final, faço um diálogo entre as estratégias mobilizadas em face de tal prática discursiva, considerando o contexto de polarização entre o endogrupo conservador (à direita no espectro político) e o exogrupo progressista (à esquerda no espectro político), a mobilização de pânicos morais e a tensão entre uma leitura dos eventos narrados como absurda e como evidente.

Inicio a análise, de fato, pela discussão do suposto vazamento. O caráter de vazamento pode ser justificado pelo fato de a youtuber estar compartilhando com o grande público um documento que estaria supostamente circulando apenas entre professores e funcionários de creches, documento este que, em tese, não deveria estar acessível aos olhos do grande público. De fato, parece-me bem improvável que o material fosse disponibilizado tão abertamente se os vídeos de RV e de outros atores sociais – dentre os quais está incluído um deputado estadual do PSL-CE – não fossem tão largamente distribuídos, com uma série de afirmações graves, que soam como denúncias, ainda que tenham sido diagnosticadas como falsas. Tal especificidade aponta para uma leitura de que se trata de um vazamento real.

Por outro lado, não se trata de informações secretas ou que não sejam de interesse público; trata-se de documento com ampla divulgação em uma das maiores cidades do país, elaborado pela educadora Elisabete Cabral (segundo informações da agência Aos Fatos) para uma atividade de estudos dentre os formadores de professores da capital cearense. Nesse sentido, o que a youtuber faz é construir o vídeo como se estivesse dando um “furo”, revelando um grande vazamento, algo que a esquerda (ou o progressismo) não gostaria de ver exposto à luz do sol. Logo, há também elementos para se pensar que se trata apenas de uma simulação de vazamento. Não obstante – e especialmente ao se considerar que tal simulação foi bem sucedida para muitos espectadores, que acreditaram na revelação, conforme se pode observar nos comentários à nota da prefeitura sobre o assunto15 –, a produção desse vídeo pode acabar valorizando a atuação de RV em relação ao seu auditório cativo, o endogrupo (nós) conservador, na medida em que ela sinaliza uma reação afetiva de indignação que a leva a revelar os supostos planos de desmoralização institucionalizada da gestão esquerdista na cidade de Fortaleza.

Tal indignação vem marcada explicitamente, quando convoca seu auditório a uma atitude de repúdio a esse tipo de material, que menospreza e ri da ministra que sofreu violência sexual e quando associa a atitude de sexualizar a primeira infância, obrigando as creches a passar por tal treinamento, ao governo do PDT, de esquerda – entendeu ou quer que eu desenhe como funciona o modo socialista de governar? O uso do termo socialista é, nesse ponto, estratégico para congregar antagonismos potencialmente já vigentes e pré-concepções possivelmente enviesadas sobre essa forma de organização socioeconômica e política. Como consequência, deixa no ar que algo precisa ser feito para impedir tamanha afronta à integridade das crianças. Vazar essa “tática” é, portanto, de extrema importância no âmbito desse discurso e dessa agenda política conservadora.

Trata-se, nesse sentido, de uma estratégia de preservação de pânico moral relativo à “sexualização da infância”, dimensão que se sobrepõe, em alguma medida, ao pânico da “intervenção na sexualidade e na identidade de gênero na infância e na adolescência”, que debato em Gonçalves-Segundo (submetido) e sobre o qual Balieiro (2018) se debruça; este último, com destaque ao impacto de tal atitude sobre a educação no país.

Linguisticamente, são variados os traços dessa simulação de vazamento. Em primeiro lugar, a youtuber se vale do verbo mostrar para assumir um papel pessoal de protagonismo como aquela que irá tornar visível aos olhos do espectador o que a Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza estaria escondendo, apresentando, para isso, provas materiais potencialmente verificáveis. O adjunto circunstancial de tempo hoje presentifica tal ação, buscando agregar efeitos de ineditismo e urgência. Seguindo o modus operandi da fake news, que discuti na segunda seção, a solicitação direta de distribuição – o que eu vou mostrar aqui pra vocês hoje... é principalmente pra ser divulgado... entre quem tem filhos... especialmente crianças pequenas... em creches públicas... – posiciona o interlocutor como coprotagonista da atividade de vazamento, ou seja, como aquele que colabora para expor a suposta verdade a todos os interessados: os pais de crianças de Educação Infantil. A pergunta semirretórica que segue – sabe o que tá acontecendo nas creches aqui do Ceará... especialmente na capital Fortaleza? – atua, nesse sentido, como um recurso para envolver o espectador, captando sua atenção e curiosidade, na medida em que a resposta esperada é a negativa; trata-se, pois, de estratégia que parece fulcral em termos de um vazamento: simular um diálogo com o outro, questionando-o sobre um conhecimento que se sabe não estar disponível, ao mesmo tempo que o coloca na posição de alguém que não sabe, mas deveria estar sabendo, por conta da suposta gravidade da revelação (seja ela fato ou fake). A estratégia é patêmica: a pergunta organiza o tópico, convoca a atenção do espectador, mobiliza suas emoções, especialmente porque a resposta envolve crianças pequenas. É a armadilha do pânico moral.

A exacerbação é a estratégia que se observa na sequência, na medida em que RV expande a suposta “denúncia” como algo que também possa estar atingindo o Brasil todo. Isso é realizado por meio da seguinte construção: não duvido que isso também esteja acontecendo em todo o Brasil. Trata-se de estratégia relevante, na medida em que a youtuber não se compromete com a veracidade da proposição – algo que poderia aumentar o grau de ceticismo diante do que enunciará, especialmente porque incluiria unidades federativas com governos conservadores, por exemplo –, mas deixa implícito que o que relatará pode não se restringir apenas a Fortaleza, o que aponta para uma possível mobilização coletiva desse discurso e dessa agenda do exogrupo (eles). O que se observa, portanto, é a instanciação de um discurso que constrói como reais a expansão do exogrupo pelos espaços geográficos e a disseminação de sua agenda pelo país, o que configura ameaça aos valores do endogrupo (nós) e requisita intervenção (CAP, 2013; FILARDO-LLAMAS; HART; KAAL, 2018; GONÇALVES-SEGUNDO, 2016)16.

Ademais, parece-me relevante para a construção de um quadro de vazamento o enunciado preste bem atenção, que atua como recurso metadiscursivo que dirige a atenção do espectador para a Secretaria de Educação de Fortaleza como o agente responsável pelo suposto treinamento e capacitação e professores e funcionários que incentivaria a masturbação infantil e normalizaria a pedofilia. Ao fazer isso, a youtuber consegue focalizar um inimigo intrínseco à gestão de esquerda da cidade, imputando responsabilidade institucional ao ocorrido e garantindo a associação desse espectro político a imoralidades e ao fantasma da “sexualização infantil” (o tal modo socialista de governar).

A essa estratégia geral de presentificação da capacidade de articulação do exogrupo, no sentido de tomar espaços geográficos e distribuir seus valores, construídos como errados e, inclusive, criminosos, que ferem a moralidade que supostamente caracteriza o endogrupo, de caráter conservador, denomino ubiquidade do exogrupo.

Em termos imagéticos, RV intercala à imagem de um ambiente doméstico, no qual ela fala diretamente à câmera, um conjunto de 9 imagens, que representam os slides da apresentação de PowerPoint que constitui a apostila para treinamento e capacitação de professores e funcionários de creches. Mostrar tais imagens no vídeo, ainda que em cortes rápidos, também consiste em fator relevante para a construção do ato de vazamento, podendo atuar, assim, como um mecanismo que reduz o ceticismo diante do relato ou, de forma complementar, que amplia a confiabilidade no que está sendo dito.

Contudo, caso se pause o vídeo e se dirija a atenção com calma para o conteúdo dos slides, é possível chegar a conclusões diferentes das que estão sendo enunciadas pela youtuber. Quando ela diz que o material pedagógico, objeto de investimento pesado da secretaria de educação, afirma que é muito natural aBRAÇOS caRÍcias e::... masturbação infantil para acalmar as crianças, a youtuber não mostra (ou esclarece) que se trata de um excerto extraído de um artigo científico que debate como, historicamente, a relação entre adultos e crianças, no que tange à sexualidade – mais especificamente, ao contato íntimo –, se modifica ao longo do tempo e que, no passado (no caso, séculos XV e XVI), comportamentos que hoje são execrados e punidos pela lei eram, antes, considerados normais – e não que hoje, no Brasil, isso seja aceito ou pregado como se fosse normal, natural ou estimulável. Abaixo, mostro o referido slide:

Figure 3. Figura 1. Fake News sobre apostila que incentivaria pedofilia. Fonte: https://www.e-farsas.com/a-prefeitura-de-fortaleza-elaborou-uma-cartilha-de-masturbacao-em-bebes.html

Penso que há três dimensões importantes a serem destacadas na contraposição entre o conteúdo deste slide e a construção de RV no vídeo que me permitem categorizá-la como uma instância de contexto falso. A primeira consiste na descontextualização de um relato de seu entorno textual, entorno este responsável por conferir-lhe situacionalidade em termos intratextuais. Em outras palavras, é possível detectar um trabalho enunciativo de apagar pistas cotextuais que mostrariam aspectos espaço-temporais cruciais para a interpretação do que foi dito/escrito, em um processo de deslocamento que leva à reinterpretação do conteúdo proposicional como se fosse válido para o presente, e não circunscrito aos séculos XV e XVI (na Europa ainda). Creio que o fenômeno poderia ser designado como desancoragem espaço-temporal.

A segunda dimensão diz respeito ao apagamento da fonte e do modo de acesso ao relato, elementos que estão intimamente ligados ao campo linguístico da evidencialidade (BEDNAREK, 2006; CARIOCA, 2011; MARÍN-ARRESE, 2011; GONÇALVES-SEGUNDO, 2020). Em vez de enunciar que se trata de citações de artigos científicos que debatem historicamente a questão da sexualidade na infância, RV simplesmente ignora tal ancoragem e denuncia os comportamentos mencionados como se fossem assumidos pela Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza. Segue o excerto: isso seria ótimo se o tipo de material pedagógico não afirmasse ((slide 3)) que é muito natural aBRAços, caRÍcias e::... masturbação infantil para acalmar as crianças... isso mesmo... isso não é fake news... ((slide 5)) olha aí a apostila. O verbo afirmar sinaliza, claramente, esse desvio da atribuição de responsabilidade pelo conteúdo proposicional; a fonte se torna o material pedagógico quando, na verdade, ele é apenas o apud. Na sequência, a youtuber ainda se vale do imperativo para sugerir ao leitor que verifique, pela visão, o que ela está dizendo, valendo-se da percepção como um argumento para defender o seu ponto de vista – isso não é fake news –, estratégia que antecipa possíveis avaliações céticas em relação ao que enuncia. De alguma forma, ela parece contar que o leitor não se atentará ao cotexto, ao enquadramento do conteúdo proposicional e nem ao reconhecimento de citações e de seu papel na construção do conhecimento. RV, nesse sentido, parece construir um auditório, um espectador que não conhece o funcionamento da discursividade acadêmica. Independentemente disso, contudo, acredito que haja uma estratégia relevante dessa ecologia midiática alternativa no que tange ao apagamento da fonte e do modo de acesso aos relatos, deslocando responsabilidades enunciativas. Denominarei essa estratégia como transferência de responsabilidade enunciativa.

Por fim, uma última dimensão do contexto falso consiste na manipulação do contexto situacional que envolve um dado evento, ressignificando, assim, a forma de interpretar dadas produções textuais. No caso em pauta, segundo dados das agências de checagem, a apostila não fora apresentada para professores e funcionários de creches, mas a formadores de professores. Nesse sentido, a estratégia do vídeo parece ser a de aproximar, o máximo possível, o discurso e o comportamento “desviantes” do alvo do pânico moral; nesse caso, construir como público do curso o professor e o funcionário da creche, que estariam sendo formados para a sexualização infantil – voltarei a esse ponto posteriormente –, é tornar mais concreto e mais próximo o perigo da ameaça à infância, visto que são esses profissionais que, de fato, têm contato direto com as crianças. Acredito que posso designar tal estratégia de construção de contexto falso como reconfiguração situacional.

Passo a tratar agora da dimensão do conteúdo manipulado. Em primeiro lugar, há as manipulações pontuais que trabalham no âmbito do espaço. É possível observar que, inicialmente, a youtuber fala em creches aqui do Ceará para, na sequência, dizer especialmente na capital Fortaleza. A perspectivação induz o leitor a compreender que, embora o conteúdo da denúncia abranja Fortaleza, ele também se aplica a outras localidades do Ceará. Contudo, o texto passa a focar apenas Fortaleza; o material é parte de curso para formadores que atuarão na prefeitura; a responsabilidade pela apostila é atribuída à Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza; logo, esse tipo de ampliação de escopo espacial consiste em uma estratégia de gradação voltada a simular a ampla penetração do discurso e da agenda do exogrupo (eles), no caso, do discurso progressista e da agenda da esquerda política, marcados por uma suposta imoralidade que precisa ser combatida. Por conseguinte, não é de se estranhar que se lance a conjectura de que tal tipo de treinamento/capacitação possa estar acontecendo em todo o Brasil. Tal manipulação espacial, que, certamente, integra a estratégia de ubiquidade do exogrupo, parece voltar-se a manter o endogrupo em estado de prontidão, via ansiedade ou medo, para estar sempre fazendo frente aos avanços da dita imoralidade.

Ainda no campo desse tipo de manipulação de conteúdo, vê-se, ao final, que RV destaca que o referido treinamento está ocorrendo em Todas as creches para, posteriormente, chamar a atenção para principalmente aquelas que são conveniadas. Novamente, ocorre uma construção que, primeiro, foca na alta distribuição para depois reduzir o escopo da denúncia (não da presença do exogrupo). O modo de construção e o seu efeito são similares ao anterior, inclusive pelo uso de um operador de restrição, como especialmente e principalmente. A manipulação pode ser depreendida por leitores com distanciamento em relação ao texto, na medida em que as creches conveniadas estariam obviamente incluídas no conjunto das creches da cidade; assinalar sua especificidade parece servir apenas a atacar a imagem da prefeitura, do PDT, na medida em que introduz um suposto discurso relatado da atual gestão: “quem não fizer os cursos perde a verba para manter a creche”. Voltarei a esse ponto na sequência. Por ora, gostaria de ressaltar que a manipulação discursiva da distribuição do exogrupo em termos espaciais e, por conseguinte, axiológicos parece uma estratégia típica dessas fake news de polarização política que bebem em pânicos morais. Acredito que tal estratégia possa ser denominada diluição de fronteiras espaciais, procedimento este que se vincula à estratégia geral de ubiquidade do exogrupo.

Passo, então, a tratar do relato. O suposto discurso citado da prefeitura no vídeo não é mencionado pelas agências de checagem nem consta no material; logo, não há como saber se possui algum nível de facticidade ou não. Contudo, caso se considere que o curso foi para formadores e não para professores e funcionários de creche e que o conteúdo da apostila foi reenquadrado com alta manipulação co(n)textual, fica pouco plausível que o enunciado anterior tenha sido, de fato, proferido pela prefeitura. Nesse caso, o vídeo atravessaria a fronteira da manipulação de conteúdo para a fabricação de conteúdo. O que importa, contudo, no âmbito da discussão sobre as estratégias discursivas, é que o enunciado relatado consiste em um ato ilocutório de ameaça, na medida em que fica implícito que as creches conveniadas que não aderissem a tal treinamento não receberiam verbas e, portanto, dificilmente teriam condições de continuar funcionando, o que geraria, inclusive, problemas graves não só para a formação escolar das crianças, quanto para gerenciamento da vida profissional dos pais – isso, contudo, é negligenciado no vídeo. A construção parece visar a induzir o leitor a ver a atual gestão municipal como chantagista e “pervertida”, uma gestão que abusa de seu poder político e econômico para impor sua ideologia imoral e potencialmente criminosa (na medida em que os atos normalizados se enquadram como pedofilia), com impactos sérios à integridade da criança.

Ainda no que diz respeito à manipulação de conteúdo, há a charge, de autoria de Jota Camelo, que apresenta a ministra Damares Alves. Insiro-a na sequência:

Figure 4. Figura 2. Charge de Jota Camelo. Fonte: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/e-motorista-laranja-por-renato-aroeira/

Ainda que insira uma caricatura da ministra Damares Alves, que pode ser interpretada, sim, como um gesto de depreciação, acredito que o foco do texto não é esse: a ideia é aproveitar a fala da ministra, de cunho conservador, uma vez que defende performances de gênero hegemônicas e, basicamente, essencializa a relação entre gênero e sexo, figurativizada na associação de gêneros/sexos com cores, para, então, criticar a gestão Bolsonaro por conta dos escândalos envolvendo Fabrício Queiroz, ex-motorista e ex-assessor de Flávio Bolsonaro, que teria realizado movimentações financeiras altas atípicas17, sendo, portanto, interpretado como um possível “laranja”. Tendo isso em vista, é até estranho que tal charge conste no material.

Segundo a apuração da agência Aos Fatos, a criadora da apostila, a educadora Elisabete Cabral, admitiu que a charge constava no material; alegou, contudo, que seu propósito era debater questões de gênero na Educação Infantil, relacionadas, por exemplo, à separação de brinquedos em categorias específicas para meninos e meninas. Confesso que tal alegação me parece plausível; mas contrapor esse suposto objetivo à interpretação de depreciação, realizada pela youtuber, seria suficiente para falar de alguma forma de manipulação no vídeo? Reproduzo na sequência o excerto relevante:

na mesma apostila ((slide 7)) uma charge depreciando a ministra Damares Alves... charge que claro pode ser feita e publicada em qualquer veículo de imprensa... mas não numa apostila que ((slide 8)) ensina os professores a trabalhar a sexualização infantil ((slide 9)) na priMEIra inFÂNcia... você não acha isso estranho não pessoal?... a ministra Damares Alves foi vítima desse tipo de ataque a vida toda... desde criança quando foi molestada por um adulto... mas a apostila da prefeitura de Fortaleza menosPREza isso... RI da ministra... e afirma que carícias e toques são normais entre adultos e crianças... até agora como a ministra vem trabalhando incansavelmente contra esse tipo de abuso para proteger essas crianças... eh:::... ela tem enfrenTAdo essa batalha esse tipo de escárnio...
Table 2. Texto 2. Excerto da fake News sobre apostila que incentivaria pedofilia. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=QNOv9asjgH0

Salta aos olhos, no excerto, a afirmação de que a apostila ensina os professores a trabalhar a sexualização infantil na priMEIra inFÂNcia. Além da distorção de público-alvo, que já assinalei anteriormente e, por conta disso, ignorarei neste momento, gostaria de destacar o uso do nome sexualização, palavra cujo sufixo denota transformação, processo. Ao se valer de tal nominalização, a youtuber incita uma interpretação de que a apostila treinará os professores para sexualizar as crianças pré-escolares, rompendo, no âmbito de tal discursividade, com sua tendência de não apresentar tal comportamento, mais uma reiteração de pânico moral.

Na sequência, relata a história da ministra Damares Alves, vítima de violência sexual quando criança, e exalta sua atuação no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos: a ministra vem trabalhando incansavelmente contra esse tipo de abuso para proteger essas crianças. Sob esse fundo, RV destaca que a apostila menospreza a violência sexual sofrida pela ministra e RI dela, afirmando que carícias e toques são normais entre adultos e crianças, como se o discurso outro, de caráter progressista, concebesse a violência sexual como algo banal, corriqueiro e de menor importância, validando esse tipo de abuso, assédio ou violência.

Nesse conjunto como um todo – e não na interpretação de depreciação da charge –, é possível observar a manipulação de conteúdo. De uma apostila de formação intelectual, que discute a história da sexualidade e da intimidade relativa à infância, o material é reenquadrado como um treinamento que visa a incitar sexualização infantil, normalizar abusos e violências, ridicularizar vítimas de violência sexual; em outros termos, construir a pedofilia como se fosse algo socialmente aceitável. Acredito que posso denominar tal estratégia, com base em van Leeuwen (2008), como adição de propósito imoral/criminoso.

Chego, então, a um ponto fundamental. O vídeo como um todo parece basear-se em um evento que de fato ocorreu – o treinamento de formadores de professores – para, então, reconfigurar o contexto situacional, alterando o público-alvo do curso; desancorar em termos espaço-temporais o conteúdo ministrado, bem como transferir a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo proposicional à prefeitura; reconstituir seus objetivos, de forma a incitar a conceptualização de que são imorais/criminosos, atacando, assim, o discurso progressista e sua agenda político-educacional, por manter acesa a chama dos pânicos morais relativos à sexualidade infantil. Tal combinação pode despertar emoções como indignação e atitudes como antagonismo, que servindo como mecanismo de coesão do endogrupo conservador, que pode, muitas vezes, nem chegar a questionar se o que se denuncia é, de fato, real18, uma vez que “é sabido” que o exogrupo progressista e a esquerda estão tomando os espaços e distribuindo sem controle os seus valores desviantes (a ubiquidade do exogrupo).

É nesse sentido que defendo a tese de que essa modalidade de fake news, independentemente da sua categorização (conteúdo fabricado ou manipulado, contexto falso, vazamento, dentre outras), atua na tensão entre o evidente e o absurdo. Para membros do exogrupo, é absurda a ideia de que o discurso progressista validaria a naturalização do contato sexual entre adultos e crianças, ou seja, a pedofilia (termo não usado no vídeo, mas facilmente recuperável) ou mesmo ridicularizaria mulheres vítimas de violência sexual, quando uma de suas principais bandeiras é justamente contra o que se denomina “cultura do estupro” ou a “sexualização precoce de crianças” (vide as denúncias e as críticas vorazes ao concurso Miss Infantil promovido pelo SBT em 2019). Para membros do endogrupo, contudo, pode ser evidente tal naturalização, uma vez que se distorce a luta progressista pela igualdade de acesso e de oportunidades, bem como pela segurança de identidades alternativas de gênero e de sexualidade com o uso do termo “ideologia de gênero”, macrocategoria que inclui uma diversidade de comportamentos avaliados por eles como desviantes, que chegam a incluir, não raro, despropósitos, como o incentivo à pedofilia, por exemplo19. Nesse processo, conforme já bem destacou Gelfert (2018), citado nas seções iniciais, os enviesamentos cognitivos podem suplantar o pensamento crítico, levando muitos espectadores a se desarmarem, abandonando uma possível atitude de ceticismo diante de dados conteúdos, e outros a simplesmente consolidarem aquilo que já é sabido, mantendo, assim, uma atitude de enfrentamento diante de tal ideologia “desviante”. Contudo, parece que seria difícil sustentar essa tese para membros do exogrupo, que provavelmente depreenderiam os índices de manipulação com maior facilidade. Talvez seja uma hipótese interessante para se investigar com uma pesquisa experimental.

Dando continuidade a essa linha de raciocínio, chego à minha proposta final: se o exogrupo depreenderia os índices de desordem informacional com maior facilidade, esses textos não devem ser vistos como orientados a revisar suas crenças; em outros termos, a fazer crer. Pelo contrário. No que tange ao exogrupo, esses textos provavelmente são produzidos para serem distribuídos, para gerarem dados, subirem nas estatísticas das redes sociais e ganharem impulso, gerando indignação, reforçando antagonismos e ratificando as delimitações entre grupos e seus respectivos discursos e – por que não? – agendas políticas. No que tange ao endogrupo, a reiteração do pânico moral reforça a coesão social, delimita o conjunto de atores sociais a serem atingidos por um dado discurso, cimentando um grupo de apoio a dada agenda política, que distribuirá tais textos e defenderá tais posições com veemência. Um resultado possível desse jogo é o enfraquecimento do debate público real, que deveria ser marcado pelo dissenso ponderado e pela possibilidade de estabelecimento de concessões e de consensos, em uma arena na qual as ideias que mais resistem à crítica, tendo como base os direitos humanos, prevalecem. Nesse processo, quem perde são os subalternos e os marginalizados. Em que medida conseguiremos recuperar o diálogo democrático real – sem ceder no que tange ao avanço dos direitos humanos e à luta contra a desigualdade – quando o absurdo e o evidente colidem frontalmente?

4. Considerações finais

O objetivo deste artigo foi fazer avançar o conhecimento referente aos modos de construção das fake news ancoradas em pânicos morais, produzidas e distribuídas em contexto de polarização política nas mídias digitais. Para isso, busquei, inicialmente, a partir de um diálogo multidisciplinar, discutir a noção de fake news e discorrer sobre fatores relevantes relativos a seu funcionamento no Brasil contemporâneo. Nesse processo, destaquei as noções de desordem informacional (Wardle; Derakhshan, 2018), de ecologia midiática alternativa e de guerrilha informacional (GOMES; DOURADO, 2019) e de economia da atenção (BAKIR; MCSTAY, 2017), além de ter frisado a necessidade de considerar que, no meio digital, textos também são dados e que essa natureza híbrida é constitutiva do funcionamento das fake news.

Posteriormente, debati minha hipótese de que a modalidade de fake news em pauta consiste em um ponto de tensão entre o absurdo e o evidente, tomando como suporte a perspectiva sociossemiótica da linguagem, que entende a produção e a interpretação discursiva como filtradas e reguladas por ordens do discurso (FAIRCLOUGH, 2003), constituídas por relações dialéticas entre discursos, gêneros e estilos no âmbito de práticas sociais.

O núcleo do artigo, contudo, voltou-se ao debate sobre as estratégias discursivas instanciadas em um vídeo publicado no YouTube, produzido por RV, youtuber conservadora e apoiadora da gestão Bolsonaro, no qual se denunciava uma apostila supostamente produzida pela Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza que, além de depreciar a imagem da ministra Damares Alves, naturalizaria o contato íntimo entre adultos e crianças e incentivaria a sexualização infantil.

Partindo do caráter híbrido do vídeo, que apresenta traços de (simulação de) vazamento, contexto falso e conteúdo manipulado, busquei detectar estratégias discursivas pertinentes a cada um desses tipos, além de uma estratégia geral, que acredito ser potencialmente constitutiva das fake news calcadas em pânicos morais20.

Nesse sentido, tratei da estratégia geral de ubiquidade do exogrupo. Por meio de tal estratégia, exacerba-se a ameaça do exogrupo (eles), uma vez que ele é construído em atuação contínua e reiterada no presente, espalhando pelos espaços geográficos do país seus supostos valores imorais, capazes de colocar em risco os tradicionais valores da sociedade brasileira, considerados corretos e morais. Não raro, tal tipo de estratégia se associa à legitimação de intervenções (CAP, 2013).

Em termos de vazamento, depreendi estratégias pontuais, como (i) a simulação de diálogo com o espectador, que é indagado acerca de um saber que ele, em tese, não poderia ter para, assim, instigar sua curiosidade e despertar sua indignação, visto que, dada a gravidade do assunto, se supõe que ele já “deveria” ter algum conhecimento a respeito; além de (ii) o uso de imagem como evidência para reduzir o ceticismo ou ampliar a confiabilidade diante da denúncia realizada, de forma a tentar diminuir a chance de o texto ser interpretado como – curiosamente – uma instância de fake news.

No que se refere ao contexto falso, destaquei três estratégias: (i) a desancoragem espaço-temporal, que subtrai o conteúdo proposicional de seu enquadramento co(n)textual, o que permite manipular o espaço de aceitabilidade de dadas concepções de realidade; (ii) a transferência de responsabilidade enunciativa, que apaga a fonte e o modo de acesso efetivo de dadas proposições, construindo-as como assumidas por outras instâncias discursivas; e (iii) a reconfiguração situacional, que modifica o quadro de atores sociais que participam do evento tematizado na fake news, o que altera a maneira de avaliar o impacto do evento narrado.

No que concerne ao conteúdo manipulado, chamei atenção para (i) a estratégia de diluição de fronteiras espaciais, que ofusca onde, de fato, os eventos ocorrem e qual é o seu grau de amplitude real; e para (ii) a estratégia de adição de propósito imoral/criminoso, que reconceptualiza o objetivo dos eventos e dos textos tematizados na fake news com base em valores tidos como imorais e criminosos – no caso em pauta, para qualquer ator social razoável hodiernamente –, construindo o exogrupo como responsável por querer instaurar massivamente em uma dada unidade territorial tais padrões de comportamento e de pensamento desviantes.

Para finalizar, destaquei o funcionamento desse texto em face de dois diferentes públicos – o auditório constituído pelo endogrupo e pelo exogrupo –, mostrando como a questão da distribuição dos textos/dados é fundamental para o sucesso dessa modalidade de fake news e discutindo a pertinência da hipótese de que tais textos, de fato, se situam na tensão entre o evidente e o absurdo, conjecturando acerca do seu impacto para a saúde democrática.

How to Cite

GONÇALVES-SEGUNDO, P. R. Fake News, information disorder and moral panic: exploring discursive strategies. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 4, p. 01–26, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n4.id261. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/261. Acesso em: 29 mar. 2024.

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