Share

Editorial

Introduction

Bruna Franchetto

Federal University of Rio de Janeiro image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0001-7158-3838

Marcus Maia

Federal University of Rio de Janeiro image/svg+xml


Keywords

Introduction

Abstract

Introduction to the third number of the first issue of Cadernos de Linguística.

Apresentação

O intuito e a vontade que nos levaram a organizar o presente número de Cadernos de Linguística foram os de permitir acesso amplo e público aos trabalhos apresentados no primeiro seminário internacional Viva Língua Viva, que se estendeu por quatro dias, de 11 a 14 de novembro 2019, iniciativa da Associação Brasileira de Linguística. Foi um evento único e inédito com 21 comunicações orais, 30 pôsteres, 2 Oficinas, 2 Mesas, 2 conferências (http://vlv19.abralin.org/). Como foi no evento, o tema dominante e transversal deste número de Cadernos de Linguística é a revitalização, ou melhor, a retomada das línguas adormecidas dos povos originários e, além disso, a preservação e fortalecimento das que existem e resistem, em graus variados de vitalidade. A riqueza e a diversidade das contribuições que vieram dos participantes não poderiam permanecer sem um registro definitivo e com difusa divulgação.

Não teríamos conseguido realizar uma ideia e um encontro que muito desejávamos sem o apoio de várias outras instituições, que precisam ser lembradas: Museu do Índio (FUNAI-RJ), UNESCO, Museu Nacional-UFRJ, Associação Brasileira de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Linguística-UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional-UFRJ, o Museu Paraense Emílio Goeldi, Universidade Massey (Nova Zelândia), Universidade de Leeds (Reino Unido), NAMA da Universidade de Arizona/Tucson.

A participação dos povos originários, não apenas do Brasil, foi impactante e esteve em primeiro plano: Apyãwa, Baniwa-Koripako, Fulniô, Guarani, Kaingang, Karajá, Kariri-Xocó, Kiriri, Klamath, Kokama, Kotiria, Manoki, Māori, Maxakali, Pankararu, Paumari, Pataxó, Pataxo Hãhãhãe, Puruborá, Sakurabiat, Tikuna, Yawanawa, Wapichana, Xerente. Todos e tudo convergiram na afirmação forte e definitiva: as línguas dos povos originários existem e resistem, retomam sua força, se reinventam, contra toda violência, toda repressão, todo silenciamento. Foi também um evento político. Defender a vitalidade das línguas indígenas envolve integridade de territórios, saúde, eliminação de preconceitos, manutenção de tradições rituais com seus cantos, valorização e apoio às iniciativas de revitalização ou retomada linguística conduzidas pelos povos originários, autonomamente e sob o princípio da autodeterminação.

Outros Viva Língua Viva virão, já que é agora um evento permanente da agenda da ABRALIN. O próximo será em 2021, em Belém do Pará, sob a responsabilidade dos colegas linguistas do Museu Paraense Emílio Goeldi e o site é agora também um lugar de registros, trocas de experiências e informações.

Figure 1. Figura 1. Indígenas participantes do Viva Língua Viva 2019 (foto Paulo Múmia, Museu do Índio)

Este número dos Cadernos da Abralin documenta o Viva Língua Viva 2019, reunindo uma seleção de 25 artigos dos mais de cinquenta trabalhos apresentados no evento como comunicação oral ou como pôster.

Figure 2. Figura 2. Luiz Amaral conduz oficina no VLV 2019, no Museu Nacional/UFRJ

Luiz Amaral, em artigo programático, conduz uma cuidadosa reflexão sobre o tema da revitalização de línguas e resenha diversas ações realizadas ou em curso, construindo um amplo painel ilustrativo de como a área vem se organizando no Brasil e em outras partes do mundo. Apresenta-se uma tipologia preliminar das diferentes metodologias de revitalização linguística, tais como os programas de imersão total e parcial, de ensino bilíngue, de língua indígena como segunda língua, do tipo mestre/aprendiz, além de práticas familiares e comunitárias, bem como os modelos de retomada de línguas adormecidas. O artigo sugere ainda alguns subtemas que podem servir como objeto de pesquisa em programas de linguística, antropologia e educação. Assim, o artigo reúne ideias e referências fundamentais para a construção do campo da revitalização linguística, com potencial para contribuir, nas palavras do autor, “para aproximar, cada vez mais o trabalho acadêmico das demandas de professores, ativistas e defensores das línguas indígenas e das suas comunidades de fala”.

O seminário Viva Língua Viva foi um evento internacional. Assim, autores provenientes de diferentes partes do mundo, além Brasil, estão presentes neste número dos Cadernos de Linguística.

Em 1959, só sobreviviam 25 Iskonawa, os últimos falantes de sua língua, no território fronteiriço entre os estados de Ucayali (Peru) e Acre (Brasil). Carolina Rodriguez Alzza, linguista e antropóloga peruana discute a situação da língua iskonawa, hoje, para além de rótulos que possam definí-la como “quase extinta”. Dando voz aos próprios Iskonawa, é desvendada a história de sua língua e podemos conhecer os esforços que velhas e novas gerações estão fazendo para retomá-la.

Joseph Dupris e Wilson de Lima Silva, vinculados à Universidade de Arizona (EUA), trazem a experiência de revitalização da língua do povo Klamath-Modoc, nos Estados Unidos, do qual Joseph Dupris é membro, enfatizando o enlace entre revitalização e documentação. Os autores afirmam que iniciativas centradas nas comunidades indígenas, suas necessidades, seus saberes e seus valores levam à descolonização da própria investigação linguística.

Suzi Lima, da Universidade de Toronto, nos apresenta algumas das iniciativas de resgate das cerca de setenta línguas das First Nations do Canadá, quase todas ameaçadas por causa da baixa transmissão entre gerações, com foco nas escolas de imersão Kanien’kéha (Mohawk). Graças a programas de revitalização, registra-se um aumento de aprendizes de línguas indígenas como segunda língua, que, por sua vez, se tornam formadores de novas gerações de falantes tanto na comunidade como no contexto acadêmico. Suzi Lima enfatiza que trazer questões de linguística para o interior das comunidades pode contribuir positivamente para a valorização e preservação de suas línguas. Trata-se de atividades que não devem ser consideradas apenas como transferência unilateral de conhecimentos acadêmicos, mas como oportunidades de “trocas de olhares”, sendo o linguista exposto a outras formas de pensar a documentação e o ensino de línguas.

Figure 3. Figura 3. Mari Ropata Māori canta na abertura do evento na FL/UFRJ

A presença internacional foi marcada também pelos intelectuais do povo Māori, vindo de seu país Aotearoa - que os pakeha, os neoeuropeus colonizadores convencionaram chamar de Nova Zelândia. Estiveram conosco Mari Ropata, Hone Waengaranga Morris e Sally Akevai Nicholas, da Universidade Massey. Mari Ropata nos fez conhecer os Kōhanga Reo, “ninho de língua”, através da filosofia incorporada na metáfora do trançado Te Whariki. O “ninho” é o local onde se acolhem as crianças, envolvendo-as desde pequenas com a língua e a cultura do povo māori. O programa já foi reconhecido como o de maior sucesso quanto à revitalização linguística. O movimento de revitalização começou em 1972, quando o grupo Ngā Tamatoa, formado por Māori urbanos e escolarizados reivindicaram ações para a sobrevivência de sua língua originária, considerada como taonga, um tesouro de relevância cultural.

Figure 4. Figura 4. Hone Waengaranga Morris fala sobre a vitalidade da língua, do corpo e do espírito

Hone mostrou-nos como a própria ideia de língua se relaciona com a energia vital de uma pessoa, sua passagem pelo corpo. A vitalidade da língua também é a vitalidade do corpo e do espírito. Tanto Hone, quanto Mari, dois pensadores Māori, mostraram o poder de suas filosofias e de sua luta. Hone apresentou-nos, junto com Arianna Berardi-Wiltshire, o projeto de ensino de māori na universidade e a vontade de neozelandeses sem ascendência māori se tornarem aprendizes e usuários, pensando o Aotearoa do futuro como um país de língua māori. Sally Akevai Nicholas Kia nos levou ainda mais longe para que pudéssemos conhecer a história da língua māori das Ilhas Cook, na Polínésia. Maria Celina Bortolotto e Arianna Berardi-Witshire da Massey University, NZ, refletem sobre três princípios fundamentais do povo maori utilizados com sucesso em um curso da língua na universidade, a saber, Whanaungatanga - aprendizagem baseada no relacionamento; Koakoa - alegria, humor; Kaupapa Māori - princípios e visão de mundo Māori),

O intercâmbio entre o povo Māori e o Brasil indígena já começou há algum tempo. Esta colaboração, já rendeu frutos através do trabalho de Marcia Gojten Nascimento, do povo Kaingang, e de pesquisadores da UFRJ. Márcia foi para Aotearoa (Nova Zelândia) e começou a implementação de um ninho de língua. Ela falou e presenteou-nos com sua própria trajetória, como indígena, como professora em escola, como linguista e como incentivadora da documentação e revitalização da língua e da cultura Kaingang.

Te Kōhanga Reo: https://www.kohanga.ac.nz/
Mais informações sobre o ninho Kaingang: https://revistas.ufrj.br/index.php/rl/article/view/10436
Yandê Connection - Marcia Kaingáng & Mari Ropata live from New Zealand URL: https://youtu.be/VbQymLDId34
Table 1.

Figure 5. Figura 5. Marcia Nascimento Kaingang apresenta o ninho de língua Kaingang

O artigo de Márcia Nascimento junta-se ao conjunto das importantíssimas contribuições de autores e coautores indígenas.

Márcia, que durante parte de seu estágio pós-doutoral (CNPq) teve a oportunidade de conhecer in loco a experiência dos ninhos de língua criados pelo povo Māori, resenha, inicialmente, os fundamentos do projeto Kohanga Reo, que permitiu às crianças Māori, cujas famílias já não utilizavam ativamente a sua língua nativa, readquirirem, efetivamente, a língua de seu povo. Marcia passa, então, a historiar e a discutir o projeto Kanhgág vĩ mré ẽg jykre pẽ jagfe - Ninho de língua e cultura Kaingang que, inspirado na experiência Māori, foi iniciado por ela e por outros Kaingang da Terra Indígena Nonoai (RS), em 2018. Marcia reflete sobre as fases da implementação do projeto, desde o engajamento inicial da comunidade, através do que chama de vivências com grupos de anciãos, até a criação do espaço físico e da elaboração do currículo e de metodologias de testagem e avaliação. Ainda que fundamentado em aspectos muito específicos da cultura Kaingang, que Marcia revisa no artigo, tais como as metades clânicas e mesmo propriedades da língua que já não estão ativas no dia a dia da comunidade, o artigo projeta o empreendimento no âmbito mais amplo da problemática da revitalização linguística e cultural, podendo mesmo servir de inspiração e guia prático para novas ações de preservação e revitalização de línguas e culturas indígenas no Brasil.

Figure 6. Figura 6. Altaci Corrêa Rubim introduz a sua fala com um canto Kokama

Altaci Corrêa Rubim, docente da Universidade de Brasília, nos arrebata com o processo de vitalização cultural e linguístico do seu povo, os Kokama, do norte amazônico entre Brasil e Peru. O uso do termo “vitalização”, no lugar de “revitalização”, tem consequências conceituais e políticas. Como diz Altaci: “vitalizar uma língua é dar força ou vigor à sua dinâmica de existência”. Para atrair a atenção dos jovens, incentivadores culturais kokama criaram aplicativos, jogos, uma marca étnica, museus locais, publicações, encontros, sempre com metodologias inovadoras e desafiando dificuldades de todo tipo, ocupando espaços físicos e virtuais e criando pontes entre gerações.

Dois professores kotiria - José Galves Trindade (Diane) e Miguel Cabral (Wahcho) – junto com Kristine Stenzel, docente da UFRJ, nos fazem conhecer o trabalho de vinte anos realizado por duas associações indígenas kotiria, no Alto Rio Negro (AM), pelo fortalecimento e manutenção de sua língua e cultura: a Associação da Escola Indígena Khumuno Wʉ’ʉ Kotiria, na comunidade de Caruru-Cachoeira, e a Associação do Povo Kotiria. que atua na cidade de São Gabriel da Cachoeira, o município “mais indígena do Brasil”. O relato inclui ações, resultados, desafios e conquistas de iniciativas em pleno andamento.

A língua sakurabiat (RO) tem, hoje, apenas doze falantes, todos acima dos 50 anos, o que a coloca em sério risco de desaparecer. Silvana da Silva Cunha Guaratira, professora sakurabiat, e Carla Daniele Nascimento da Costa relatam experiências de resgate desta língua e cultura, com base no ensino da língua no contexto da educação escolar indígena e das reflexões e conhecimentos adquiridos a partir do ingresso de jovens sakurabiat em curso de formação de professores indígenas. As experiências educacionais sakurabiat apontam para a importância de uma educação escolar indígena pautada na diversidade e capaz de motivar ações efetivas de valorização e resgate.

Mario de Oliveira Neto, do povo Puruborá (RO), nos conta uma história de perdas, lutas e resistência. Sobrevivem, hoje, uns poucos falantes idosos da língua puruborá. Mario enfatiza a importância da documentação linguística, realizada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, que devolveu a sua língua palavras, frases, pequenos textos. É só um começo, já que os Puruborá estão empenhados em resgatar sua língua, animando com isso as escolas indígenas das aldeias, resgatando, ao mesmo tempo, força cultural e política.

O binômio que articula fortemente retomada de línguas e de territórios está em primeiro plano no artigo de Bernat Bardagil e de dois professores manoki - Cledson Dário Kajoli, Edivaldo Lourival Mampuche. São apresentadas as iniciativas para a retomada da língua própria entre os Manoki, um povo indígena do vale do Juruena, no noroeste do estado de Mato Grosso, processo iniciado em 2019, junto com a criação do Coletivo Watjuho Ja’a “juntos pela língua”, que promove documentação, encontros de estudo e elaboração de materiais para aprender a língua. Para os jovens, a retomada do território é complementar à retomada da língua e da identidade manoki.

Figure 7. Figura 7. Nivaldo Korira’i Tapirapé apresenta no VLV 2019

Em seu artigo, Nivaldo Korira’i Tapirapé apresenta análises sobre diferentes rituais do povo apyãwa, alguns dos quais, segundo avalia “só as pessoas mais velhas que presenciaram a prática têm oportunidade de resgatar”. Considerando que “se não for recuperado, este conhecimento será extinto”, Nivaldo, que foi diretor da Escola Indígena Estadual Tapi’itãwa, caracteriza o papel da escola ao longo dos últimos anos como fundamental na recuperação e revitalização dos cantos. Nivaldo conclui o artigo avaliando que, por exemplo, cantos como os ka’o - cantos dos pássaros – em que há inúmeros vocábulos arcaicos já hoje pouco utilizados, foram objeto de estudo e pesquisa no ensino médio, tendo as atividades escolares conseguido impactar positivamente o conhecimento e prática desses cantos pela comunidade.

As contribuições vindas de povos originários do nordeste brasileiro foram impactantes no seminário de 2019 e se destacam neste número dos Cadernos de Linguística.

Figure 8. Figura 8. Anari Bonfim Pataxó fala na mesa de abertura do evento, na FL/UFRJ

Idiane, professora da língua kariri-xocó, abre o artigo, em coautoria com Nhenety Kariri-Xocó, Diane Nelson e Thea Pitman (estas duas últimas pesquisadoras da Universidade de Leeds, Reino Unido), com as seguinte palavras: “Eu estou aqui para dar conhecimento a todos vocês, brancos de bom coração e parentes aqui presentes. Tem branco que fala que nós Kariri-Xocó não temos língua. Nós temos língua, sim. Eu levarei esse conhecimento para todos vocês”. O processo de retomada desta língua adormecida se iniciou em 1989, junto com uma forte revitalização cultural. A recuperação da língua parte das memórias guardadas em músicas, histórias e rituais, para construir um vocabulário acessível por jovens e adultos via WhatsApp. A língua kariri-xokó é ensinada na escola e invade as mídias digitais, reforçando uma identidade outrora ameaçada.

Kuin kahab mikahab: Hãhãhãe Pataxó Hãhãhãe ũg iẽ ikhã ikô tâypâk anekö. Quero comer, quero viver: A luta pelo reavivamento da língua Pataxó Hãhãhãe”, é um texto em primeira pessoa, a história de vida e de luta de um professor indígena, Reginaldo Ramos dos Santos, empenhado na retomada de sua língua originária no sul

sul da Bahia. A perseguição contra os Pataxó Hãhãhãe causou o abandono de sua própria língua, mas um forte movimento de retomada nasceu e cresceu nos últimos vinte anos. O Dicionário do Povo Pataxó Hãhãhãe (2017) trouxe elementos, cuidadosamente pesquisados, de outras línguas com as quais os Hãhãhãe tiveram contato, como os Kamakã, os Kariri Sapuyá, os Tupinambá e os Pataxó. Reginaldo espera que este trabalho estimule as novas gerações a usar a língua valorizando memórias e saberes dos mais velhos, que, como ele diz, “vêm nos alimentando através da fala”.

Pedro Daniel dos Santos Souza, Jardel Jesus Santos Rodrigues, Fernanda Lima Almeida e Élvia Martins Falcão Souza discutem, em um texto denso e rigoroso, o trabalho de documentação e revitalização, bem como as políticas linguísticas que envolveram e envolvem os Kiriri dos “sertões” da Bahia. Uma longa história é percorrida, desde a proibição do uso das línguas nativas que marca o período colonial, ainda não extinto, até os movimentos de revitalização, linguística e cultural. O povo kiriri, que deixou de falar a sua língua, o kipeá, demandou uma assessoria linguística à Universidade Federal da Bahia, com o objetivo de discutir o enfraquecimento e substituição das línguas indígenas pelas línguas nacionais dominantes e para definir políticas linguísticas, políticas que incluem a documentação e a retomada da língua dos Kiriri do sertão baiano.

A diversidade das contribuições presentes neste número dos Cadernos de Linguística é ainda maior, incluindo questões e experiências de ensino de línguas indígenas no contexto escolar, discussão de políticas linguísticas e resultados de novas pesquisas.

Rogério Vicente Ferreira trata dos problemas, essencialmente linguísticos, muitas vezes presentes nos materiais didáticos para línguas indígenas, enfocando as línguas ofaié (Tronco Macro-Jê) e terena (Família Aruak), no Território Etnoeducacional “Povos do Pantanal”, em Mato Grosso do Sul. O autor realça a importância dos estudos propriamente linguísticos para a elaboração de livros didáticos em línguas indígenas, para além de livros de alfabetização e enfatiza sua relevância para a manutenção da língua e, em alguns casos, o processo de revitalização. São apresentados alguns equívocos de análise da língua terena que ocorrem em ambiente escolar, bem como a urgência de avançar no estudo do ofaié, língua em perigo de desaparecimento.

Gean Nunes Damulakis relata atividades de produção textual com professores indígenas Kaingang, levadas a efeito por ele em escola na Terra Indígena Nonoai, em cursos de curta duração, nos anos de 2016 e 2018. Os cursos tiveram por objetivo estimular o letramento na língua Kaingang, desenvolvendo-se práticas de escrita que exploraram gêneros textuais tais como a redação de notícias, de atas, piadas, a elaboração de glossários sobre pesca e agricultura, bem como a confecção de placas e letreiros bilíngues que, como avalia o autor, tiveram impacto na paisagem linguística local e também motivaram discussões sobre temas como padronização linguística, neologismos e empréstimos.

Figure 9. Figura 9. Vilacy Galúcio (MPEG) apresenta no VLV2019

Em seu artigo, Vilacy Galúcio reflete sobre o silenciamento das línguas minoritárias faladas em Rondônia e os processos de retomada dessas línguas no âmbito da educação escolar indígena. São apresentados, inicialmente, resultados de levantamento sociolinguístico envolvendo 26 etnias, no âmbito do Inventário Nacional da Diversidade Linguística-INDL, demonstrando o grau de ameaça que essas línguas enfrentam. Em seguida, tecem-se reflexões sobre a experiência da autora com os povos sakurabiat e puruborá que envolvem iniciativas distintas de retomada linguística.

Ananda Machado relata atividades conduzidas por ela com professores Macuxi e Wapichana em curso de extensão da Universidade Federal de Roraima, em que se realizaram oficinas de teatro como metodologia de ensino de línguas indígenas. As oficinas iniciaram pela criação de palavras para designar “teatro”, nas duas línguas, a saber, esenumenkanto pata’se “lugar de assistir algo”, em Macuxi, e tamapykary “repetição”, em Wapichana. Machado relata os exercícios iniciais de contação de histórias que, então, eram roteirizadas, encenadas, improvisadas, tendo-se registrado em vídeo diferentes encenações, que vieram a compor um banco de textos dramáticos indígenas que tem sido de auxílio no ensino das línguas.

Jan Pöhlmann e Lisiane Aguiar comparam em seu artigo a experiência de implementação da Lei de cooficialização de línguas, de 2002, em dois municípios do Brasil, Bonfim – RR, em que se cooficializaram as línguas Macuxi e Wapichana, e Jequitibá – ES, em que se cooficializou o Pomerano. Os autores concluem que a lei de cooficialização seria um marco legal que torna possível amparar e estimular a diversidade linguística do Brasil, mas apontam que há um longo caminho a percorrer a partir daí para que os municípios multilíngues possam, de fato, vir a equiparem-se com as ferramentas adequadas para promoverem a vitalização de suas línguas e culturas.

Em A web como ferramenta de suporte à preservação e à revitalização linguística, Evandro Cunha discute que a internet tem potencial ainda a ser melhor explorado para tornar-se, cada vez mais, justamente uma importante ferramenta no processo de documentação e preservação de línguas ameaçadas. O autor sustenta que o uso de uma língua em ambientes digitais pode ser fator de prestígio, impactando positivamente a auto-estima dos falantes.

Do Pantanal, os Guató afirmam: nossa língua existe! Soubemos da história de esfacelamento do povo Guató que levou a quase morte de sua língua, que reemerge das memórias dos últimos e esquecidos falantes - Eufrásia e Vicente – graças a um projeto de documentação emergencial e vislumbrando uma possibilidade de revitalização. O artigo de Gustavo Godoy e Kristina Balykova abordam um tema inédito: os processos históricos e sociais que levaram ao quase desaparecimento da língua guató.

Graças ao artigo de Tom Finbow, podemos conhecer os primeiros resultados de uma pesquisa realizada na paisagem multilíngue e de contato linguístico da região do Alto Rio Negro, mas com foco na variedade da língua Nheengatu falada como segunda língua pelos anciões da etnia Dâw (família Nadahup), variedade altamente ameaçada. A documentação do Nheengatu Dâw é urgente e para isso está sendo construído um acervo audiovisual para registrar o seu uso. A pergunta fundamental de Finbow diz respeito à influência sobre uma língua franca, como a Língua Geral Amazônica, quando não é a primeira língua de uma comunidade.

Figure 10. Figura 10. Professoras Miriam Lemle e Kristine Stenzel lançam livros no VLV19

No VLV 2019 foram também lançados livros pelas professoras Kristine Stenzel e Miriam Lemle. A professora Miriam Lemle, falecida alguns meses após o evento, falou sobre o livro Línguas Indígenas e Gramática Universal, de sua autoria com Bruna Franchetto, Marcia Dámaso Vieira e Marcus Maia. O livro é resenhado no presente número dos Cadernos de Linguística por Guillaume Thomas, que destaca tratar-se de “um excelente livro que não somente complementará livros introdutórios já existentes sobre as línguas indígenas brasileiras, como também contribuirá para o conhecimento da Gramática Gerativa no país”. A professora Kristine Stenzel, acompanhada pelos professores José Galves Trindade e Miguel Cabral, apresentou os livros Kotiria ti khatiro, ti hirida ya’urithu: Khumuno Wuu bu’eina ti da’rari. Livro de vida e fortalecimeto memorial do povo Kotiria e Wa’ikhana Ya’ulikihti: Mahsiñe Ohalituhu, admiráveis resultados do intenso trabalho das comunidades, escolas e pesquisadores Kotiria e Wa’ikhana do noroeste amazônico, publicados pelo Museu do Índio-FUNAI às vésperas do evento.

Figure 11. Figura 11. O VLV2019 contou também com sessões de pôsteres e stands multimídia

Por fim e para concluir, o sentimento compartilhado é de resiliência e esperança da vontade de ser, própria, que atravessa tempos sombrios. Viva a vida das línguas dos povos originários!

“Vamos existir, resistir e vamos continuar resistindo e existindo futuramente”

Nivaldo Paroo´i Apyâwa

“Quando se diz que uma língua está extinta, estamos matando com a nossa escrita...vamos descolonizar começando pela escrita”

Anari, Pataxó

“Vou falar para meus parentes aqui, vamos falar para nossos filhos continuarem aprendendo a nossa língua”

Wendi, Wapichana

“Cada vez que morre um parente, a língua more, gradativamente; a língua fica viva quando tem falantes”

Adriana, Karajá

“Meu sonho, meu pensamento, é que o povo Puruborá volte a falar nossa língua...os Puruborá resistiram para existir”

Mario, Puruborá

“Este é o meu sonho, ver todo um povo Kariri-Xocó falando nossa língua de tradição”

Idiane, Kariri-Xocó

“Tudo para nós é educação”

José Galvez, Kotiria

“Obrigada por compartilhar conosco os cantos do seu coração”

Mari Ropata

How to Cite

FRANCHETTO, B.; MAIA, M. Introduction. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 3, p. 01–16, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n3.id346. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/346. Acesso em: 26 apr. 2024.

Statistics

Copyright

© All Rights Reserved to the Authors

Cadernos de Linguística supports the Opens Science movement

Collaborate with the journal.

Submit your paper