Introdução
Este artigo apresenta parte do resultado de uma pesquisa cujo objetivo foi compreender a relação entre a formação da ecologia sociocultural do Alto Rio Negro e o mito da Cobra-canoa, um mito cosmogônico parcialmente compartilhado por diversas etnias da região. De saída, é preciso esclarecer que, para os fins desta análise, o termo mito não está associado ao âmbito da fantasia ou do irreal. O mito da Cobra-canoa é assim referido tendo em vista uma tradição antropológica na qual o mito é visto enquanto um sistema temporal que se refere ao passado, mas cujo valor intrínseco está no fato de que os fatos narrados configuram uma estrutura permanente, que se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro (LÉVI-STRAUSS, 2014, p. 376). Dito de outra maneira, “os momentos sucessivos de um enunciado diacrônico que pretende abarcar séculos, ou mesmo milênios, projetam-se em grupo na tela de ordem social hierárquica que existe inteira, no ato, no presente.” (LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 151). Como deve ficar claro no desenvolvimento da análise aqui proposta, o mito da Cobra-canoa se encaixa precisamente nesta definição. Ainda a esse respeito, Andrello et al. (2015, p. 703) chamam atenção para o fato de que no processo de instanciação progressiva tipicamente observado nos mitos, e do qual a narrativa da Cobra-canoa não é uma exceção, há uma continuidade entre mito e História.
Ao longo deste texto, será apresentada apenas uma parte dos resultados obtidos na pesquisa, que diz respeito especificamente às relações de parentesco entre os Tukano e outras etnias do Alto Rio Negro. Essa análise é empreendida a partir da teoria de integração de espaços mentais (FAUCONNIER; TURNER, 2002), uma escolha que se deve ao fato de que a noção de integração conceitual, um dos cernes da teoria previamente aludida, permite compreender de maneira clara como os fatos narrativos se associam à ecologia rio-negrina. Nesse sentido, a relevância do estudo aqui desenvolvido se dá na medida em que ressalta a importância da língua e da mitologia de um determinado grupo étnico – neste caso, os Tukano – para a preservação de outros aspectos culturais relativos a essa etnia.
Os Tukano integram a ecologia linguístico-cultural e sociopolítica do Alto Rio Negro, no noroeste do Estado do Amazonas, na fronteira com a Colômbia, região conhecida como “Cabeça de Cachorro”. O maior centro urbano dessa área é a cidade de São Gabriel da Cachoeira, localizada a 852 quilômetros de Manaus. Essa ecologia congrega cerca de trinta povos indígenas diferentes, que falam línguas pertencentes a pelo menos três famílias linguísticas distintas – Tukano Oriental, Arawak e Nadëhup –, além da família tupi-guarani, representada pelo uso da língua geral amazônica, conhecida como nheengatu. Toda essa região é considerada uma área de extenso e intenso multilinguismo, o que se deve, em grande medida, ao fato de que tradicionalmente os grupos locais, com exceção daqueles pertencentes à família Nadehüp, praticam a exogamia linguística. Isto é, os membros de um determinado grupo casam-se apenas com membros de outras etnias (falantes de outras línguas) (HUGH-JONES, 1979; JACKSON, 1983). Assim, em um núcleo familiar haverá falantes de pelo menos duas línguas distintas, e em uma mesma comunidade esse número se multiplica, criando ambientes de grande diversidade linguística.
Um grupo exogâmico se define pela língua que fala, criando uma associação muito próxima entre linguagem e identidade étnica (EPPS; STENZEL, 2013). Configura-se, assim, um cenário complexo, de línguas distintas e de uma cultura parcialmente compartilhada – esta sustentada em grande medida pelo fato de que há entre muitos desses povos um mito de criação comum, o mito da Cobra-canoa. Essa narrativa parte do surgimento do Avô do Mundo e da Avó do mundo, e progride em um movimento de especiação e bipartições (ANDRELLO et al., 2015) que se dá durante o longo percurso percorrido pela Cobra-canoa de Leste a oeste por rios subterrâneos, até chegar à região dos rios Vaupés, Tiquié e Papuri, afluentes do Rio Negro. Durante esse trajeto, foram criados os diferentes ancestrais de cada grupo, assim como foram estabelecidos seus respectivos objetos ritualísticos, enfeites cerimoniais, canções, práticas e o lugar geográfico que seus descendentes viriam a ocupar.
Esta pesquisa tomou por objeto o mito da Cobra-canoa em sua versão tal qual contada pelo clã tukano Ye’Pârã-Oyé Põ’rã,1 do Alto Rio Negro, que consiste no sexto volume da coleção “Narradores indígenas do Rio Negro”, editada pela FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) a partir de 1995. O livro é fruto de um processo de gravação, tradução e transcrição da história contada originalmente em língua Tukano, em 2001, por Moisés Maia, membro do clã tukano Ye’pârã-Oyé põ’ra – e, portanto, dos Ye’pâ-masa.2 A narrativa foi gravada em fitas K-7 para então ser transcrita e traduzida para o português pelo filho de Moisés, Arlindo Maia, com o auxílio do antropólogo Geraldo Andrello. A análise do mito elucida a força de sua agência no que concerne à criação e estabilização dos hábitos sociais e culturais parcialmente partilhados entre algumas das etnias rio-negrinas.
1. Espaços mentais e integrações conceituais
A análise que se buscou realizar observa os fatos narrados no mito da Cobra-canoa à luz da teoria de integração de espaços mentais, elaborada principalmente por Mark Turner e Gilles Fauconnier (2002) enquanto um desenvolvimento da noção espaços mentais, já concebida anteriormente por Fauconnier (1994 [1985]), integrada então a outros esboços teóricos delineados em The Literary Mind (TURNER, 1996). Nesse livro, a tese central defendida por Turner diz respeito à narrativa enquanto um instrumento mental indispensável à cognição humana. Qualquer processo racional depende da criação de narrativas; das mais elementares às mais elaboradas, as narrativas são o recurso cognitivo que nos permite concatenar duas ou mais partes (e.g., palavras) dentro de um segmento maior dotado de sentido (e.g., sentença). São, portanto, fundamentais para a constituição do pensamento e, se apenas a partir de narrativas é possível construir sentido, elas constituem uma forma básica de conhecimento. É nesse sentido que se pode dizer que “a mente é essencialmente literária” (TURNER, 1996, p. 8).
A ideia de um processo cognitivo caracterizadamente literário se dá pela possibilidade, observada tão comumente nas narrativas, de criarmos sentidos a partir da projeção de elementos de um certo domínio para um novo contexto. Essa característica será crucial para o desenvolvimento posterior da teoria de integração de espaços mentais, cuja proposta central é a de que a mente humana se estrutura através de diversos espaços – os espaços mentais outrora concebidos por Fauconnier (1994 [1985]). Estes são conjuntos construídos enquanto pensamos e falamos, visando ao entendimento e à ação locais e respondendo ao contexto em que emergem. Assim, a enunciação de uma palavra – “livro”, por exemplo –, pode levar à formação de um espaço mental que compreenda todas as características do objeto que ela designa. Ao mesmo tempo, os espaços mentais podem ser mais elaborados, configurando-se a partir de ideias ou eventos mais complexos, como ficará claro adiante. Cognitivamente, os espaços mentais correlacionam-se à co-ativação de conjuntos neurais (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 40).
Esses espaços mentais podem ser conectados uns aos outros de acordo com o contexto, servindo como inputs em um processo no qual parte de suas características são integradas. Dessa maneira, elementos específicos de cada um deles será projetado para um espaço em que essas informações se integram (FAUCONNIER; TURNER, 2002). Aqui, será apresentada apenas uma breve introdução ao tema, que visa a tornar compreensível a análise que se pretende levar a cabo a respeito do mito da Cobra-canoa. Trata-se, então, de compreender e descrever o papel central dos espaços mentais e das integrações conceituais enquanto forma básica de estruturação do pensamento.
A criação de um espaço mental de integração conceitual requer pelo menos dois espaços mentais que servirão como inputs para que essa integração possa ocorrer. Geralmente – mas não necessariamente – há uma correspondência entre as instâncias de um e outro inputs. Nesse processo, cria-se um “espaço genérico” que contém os elementos comuns apresentados pelos dois (ou mais) inputs, abstraindo as suas especificidades. O produto desse processo será o espaço de integração conceitual, onde são projetados elementos específicos de cada input. É crucial notar que nesse novo espaço, o espaço integrado, ocorre a emergência de uma informação nova; um espaço integrado só se caracteriza enquanto tal na medida que promove o aparecimento de uma estrutura inédita em ambos os inputs. Nesse sentido, os espaços de integração conceitual podem levar ao surgimento de padrões de ação, de maneira que tais integrações podem servir a uma situação exterior aos espaços de input pelo qual é formada. Daí a imprescindibilidade dos espaços integrados para qualquer tipo de pensamento, e sua relevância enquanto uma característica essencial da linguagem. A produção de sentido a partir da junção de um sujeito e um predicado, por exemplo, necessariamente decorre de uma integração conceitual na qual se associa o espaço input do sujeito ao espaço input do evento descrito.
Se quase todos os processos relacionados ao ato de pensar ocorrem de forma inconsciente e são inacessíveis mesmo quando há uma tentativa de resgatá-los, é difícil identificar um espaço integrado isoladamente. O esquema abaixo é baseado em Fauconnier e Turner (2002, p. 46). Nele, os círculos representam os espaços mentais. As linhas sólidas indicam a conexão através desses espaços, mapeando os elementos de um input aos do outro. As linhas pontilhadas indicam as conexões entre os inputs e o espaço genérico e o espaço de integração conceitual (blended space). O quadrado representa a estrutura emergente – a informação nova. É importante notar que cada um dos inputs projeta para o espaço de integração conceitual elementos que não têm uma contraparte análoga no outro input e o espaço de integração conceitual é caracterizado pelo aparecimento de informações que não estavam presentes em um ou outro input (os círculos não preenchidos).
Uma integração conceitual deve apresentar uma estrutura que organiza seus elementos, uma vez que o processo de integração não se dá de maneira arbitrária, mas sim responde a um determinado contexto. Fauconnier e Turner (2002) retomam, então, a noção de frame (GOFFMAN, 1974). Este “enquadramento” traz consigo a informação contextual tipicamente relacionada a um evento. Isto é, em que lugar esse evento ocorre, quais os agentes e outros elementos envolvidos, qual o efeito esperado etc. Assim, os frames completam a informação que falta ao espaço de integração conceitual, de certa maneira “ambientando” o sentido ali construído.
Aqui, é necessário enfatizar a sua ligação dos espaços de integração conceitual ao contexto. Em grande medida, esses espaços surgem para servir a um contexto específico, onde a relação entre os dois espaços de input demanda a criação de um novo espaço visando à compreensão de uma dada situação e à possibilidade de ação sobre ela. Vale ressaltar que, enquanto dada integração conceitual está sendo processada, atualizada, sua relação com os espaços de input não se perde. Ao contrário, em muitos casos o espaço de integração conceitual pode servir justamente para projetar a nova informação de volta para um dos espaços de input, modificando-o e assim ajudando a compreendê-lo ou a agir a partir dele de maneira mais clara, efetiva.
Para fins da análise do mito da Cobra-canoa, nota-se ainda que há casos em que determinados espaços de integração mental se tornam tão comumente usados em certos contextos que acabam por tornar-se moldes (templates). Em outras palavras, “[i]ntegrações conceituais podem tornar-se arraigadas [...] gerando estruturas conceituais e formais compartilhadas pela comunidade.”3 (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 49). Ademais, os espaços integrados podem ser comprimidos, o que se dá de diferentes maneiras e em diferentes âmbitos. O exemplo mais simples é a concepção de uma identidade, que só pode se dar através de uma integração conceitual. Assim, ao observar um estojo, por exemplo, a noção de que as diferentes partes que compõem o objeto – o zíper, o espaço interno, suas divisórias etc. – constituem uma unidade – o estojo – requer a integração dessas partes a partir de uma operação mental, atribuindo assim uma identidade a esse objeto. De maneira similar, quando um adulto identifica, em uma foto antiga, uma criança como sendo a mesma pessoa que ele é ao olhar a foto, pode-se falar em uma compressão de tempo, visto que o tempo e as transformações transcorridos entre a criança do passado e o adulto do presente são comprimidos de forma a relacionar diretamente ambas as partes. Há muitos tipos de compressões; adiante serão tratadas algumas dessas relações na medida em que se adéquam ao objeto aqui estudado.
2. Relações de parentesco: o mito da cobra-canoa
O mito da Cobra-canoa tal qual contado pelos Ye’pârã-Oyé põ’rã apresenta uma vasta quantidade de integrações, nas mais diversas instâncias. Aqui dedicamo-nos sobretudo às integrações conceituais promovidas narrativamente que atuam sobre as relações intragrupais e intergrupais do Alto Rio Negro. Azevedo (2006), não há metodologias bem definidas para a aplicação da teoria de espaços mentais a narrativas, no entanto, esse problema não é pertinente a este trabalho, posto que as integrações conceituais analisadas não se debruçam especificamente aos eventos narrativos – o que seria útil caso o objetivo fosse analisar aspectos temporais relacionados ao tempo da narrativa, ponto de vista do narrador e do leitor, por exemplo –, mas observa as integrações que se formam a partir das informações implícitas nas passagens textuais. Especificamente, serão abordados aspectos relacionados ao estabelecimento dos graus de parentesco entre alguns dos povos da região do Alto Rio Negro. As informações apresentadas foram obtidas com base em uma extensa revisão bibliográfica das etnografias de povos Tukano e do material etnológico referente à ecologia rio-negrina, de maneira geral (HUGH-JONES, 1979; ARHEM, 1981; JACKSON, 1983; BUCHILLET, 1990; ANDRELLO, 2006; BARRETO, 2018, etc.).
Entre os Tukano e algumas outras etnias rio-negrinas, o casamento com primos paralelos é considerado incestuoso, pois primos paralelos (ou primos-irmãos, como aparece na tradução do mito) são considerados irmãos – e não primos. O casamento com primos cruzados, por outro lado, é incentivado – especialmente à vista da situação de exogamia linguística a que previamente se aludiu. Primo cruzado é um filho do irmão de um progenitor do sexo oposto (ao do progenitor); primo paralelo é um filho do irmão de um progenitor do mesmo sexo. Isto é, são primos cruzados – em Tukano, basúki’ – de uma certa pessoa os filhos da irmã de seu pai ou do irmão de sua mãe. Já os filhos do irmão de seu pai ou da irmã de sua mãe são primos paralelos – em Tukano, pako-makí, que significa “filho de mãe”. A Figura 2 expressa essa relação de maneira esquemática:
Essa informação configura uma primeira integração conceitual, que diz respeito à permissividade de casamento com base nas relações de parentesco. A integração é formada de acordo com o esquema abaixo:
Na Figura 3, há dois espaços mentais. O Input 1 contém informações a respeito das relações de parentesco – por motivos didáticos, a totalidade de seus elementos não consta no esquema, apenas aqueles que são úteis à análise aqui empreendida. Já o Input 2 é referente à possibilidade de casamento ou não; em outras palavras, contém uma regra. Ambos esses espaços projetam algumas de suas características para um espaço de integração conceitual, em que a possibilidade de casamento entre duas pessoas é expressa de acordo com a relação de parentesco entre eles.
A partir daí, pode-se adentrar, enfim, ao mito da Cobra-canoa. Durante a narrativa, Ye’pâ-masí, o ancestral dos Tukano, encontra-se com os ancestrais de diversas outras etnias, à medida que vão sendo criados. Nesses encontros, define-se entre eles uma hierarquia com base na ordem de nascimento. Também é determinada a relação que deverá ser mantida entre seus descendentes, no que concerne à possibilidade de casamento. Os excertos abaixo trazem alguns exemplos dessas passagens:
Bipô-diro-masí e Bopokahá descem em seguida para Kaserô-wi’í, na cachoeira de Tunuí, para encontrar com os viajantes da Canoa dos Ancestrais. Os dois encontram-se ali com Ye’pâ-masí, e entre eles ficou acertado que viriam a ser basúki’, isto é, “primos cruzados”. Desse modo, ficou definido que os descendentes de Bipô-diro-masí e Ye’pâ-masí iriam a trocar suas irmãs em casamento. Bipô-diro-masí e Bopokahá são os ancestrais dos Tariano e daí iniciam sua história. Dizem que os Baniwa também ficaram lá, mas não sabemos em que lugar e como foi a sua história. (MAIA; MAIA, 2004, p. 55. Grifo meu.)
Ye’pâ-masí e Imîkoho-masí receberam então a semente do kapí, que era Kapêrinihi, e Imîkoho-masí ficou com uma parte chamada merê-kapiro [‘semente do kapí de ingá’] e Ye’pâ-masí ficou com outra parte, chamada ye’pâ-kapiro [‘semente do kapí de terra’]. [...] Foi então que Ye’pâ-masí e lmikoho-masa passaram a tratar-se mutuamente como basúki, o que significou que os dois poderiam passar a trocar suas irmãs para casar. E foi por isso que os Tukano e os Desana vieram a ser cunhados. (MAIA; MAIA, 2004, p. 63. Grifo meu.)
[...] Upî-miroa-masa [...] eram os ancestrais dos Akotíkãhara, mais conhecidos como Wanano. Rapidamente, Ye’pâ-masí chamou esses Wanano por pẽ’yagí [cunhado], indicando com isso sua vontade em tê-los como cunhados. Porém, os Wanano não aceitaram. Então Ye’pâ-masí os chamou por basúki’ e eles também não aceitaram. Então Ye’pâ-masí resolveu chamá-los por pako-makí, filho de mãe, e, com essa consideração, os Wanano aceitaram. É por este motivo que os Wanano são considerados “primos-irmãos” do Ye ’pâ-masa, de modo que, até hoje, não pode haver casamentos entre essas duas etnias. Com isso, os Ye’pâ-masa passariam a usar certo tipo de tratamento para os Wanano, considerados seus irmãos menores. (MAIA; MAIA, 2004, p. 76. Grifo meu.)4
As relações apresentadas nos excertos acima levam à criação de uma nova integração conceitual, que toma a Integração conceitual 1 agora como um de seus inputs.
A Figura 4 expõe a permissividade de casamento entre personagens da narrativa, de acordo com passagens do texto. Mais uma vez, o espaço de integração gerado servirá como input de outra integração conceitual, configurando o Input 5 na Figura 5. De modo a facilitar a legibilidade do esquema, o Espaço de integração mental 2 aparece de forma “reduzida” no Input 5, mas é importante deixar claro que todas as informações nele contidas estão presentes no Input 5. A Figura 5, então, traz as relações entre as personagens narrativas e os grupos que integram a ecologia do Alto Rio Negro nos dias de hoje, traçadas a partir do ancestral mítico e o respectivo grupo a que deu origem. Tem-se, por fim, a projeção dessas informações para um mesmo espaço de integração conceitual, que demonstra a permissividade de casamento entre grupos do Alto Rio Negro do ponto de vista dos Tukano.
Como já discutido brevemente, as integrações conceituais, através de compressões, criam unidades. Em relação à análise aqui proposta, isso permite visualizar a relação que está sendo estabelecida entre os seres mitológicos retratados na narrativa e os membros pertencentes ao povo Tukano de hoje em dia. Embora situados em lugares e tempos totalmente distintos, a integração dos dois inputs – um relativo aos Tukano de hoje em dia e outro relativo aos personagens da narrativa mítica – em um só espaço mental de integração possibilita a criação de uma unidade entre ambos. Assim, pode-se falar em uma compressão que coloca os membros atuais da etnia Tukano em uma relação de equivalência com seus ancestrais. Consequentemente os valores pertencentes a um dos espaços de input (a narrativa mitológica) é transferido para outro (a ecologia sociocultural do Alto Rio Negro).
Fauconnier e Turner (2002) identificam quatro maneiras através das quais se dão os processos de integração conceitual, o que depende do fim com que são construídas. Há redes simples (simplex networks), redes espelhadas (mirror networks), redes de um escopo (single-scope network) e redes de escopo duplo (double-scope network). Como aqui a preocupação é apenas com a compreensão da narrativa à luz da teoria de espaços mentais, será descrita em detalhes apenas a rede simples, que mais bem descreve os processos ocorridos entre a narrativa e organização das relações de exogamia linguística do Alto Rio Negro:
Em uma rede simples, a parte relevante do frame de um input é projetada com seus papéis e os elementos são projetados de outro input como valores desses papéis dentro da integração conceitual. [...] O frame de um input é compatível com os elementos do outro.5 (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 120)
As redes simples diferem das redes de escopo único, porque essas propõem a existência de dois frames incompatíveis, um em cada espaço de input, o que leva à transferência de apenas um deles para o espaço da integração conceitual. No caso analisado, entende-se que a narrativa é buscada como forma de estruturar a relação entre os povos habitantes da ecologia do Alto Rio Negro. O que está colocado na Figura 5 é justamente a importação de um frame organizacional constituído narrativamente para a realidade social do Alto Rio Negro, tal qual experienciada pelos Ye’pâ-masa, caracterizando, portanto, uma rede simples. A noção de rede está presente na medida em que os processos de criação de sentido são formados a partir de integrações conceituais, que subsequentemente servem de input a outras integrações, tal qual observado nas figuras acima. A partir disso, a estrutura emergente na integração conceitual contida na Figura 5 modifica o espaço de Input 5, pois interfere ativamente no comportamento intergrupal dos clãs relacionados. Esse processo exemplifica de forma clara a emergência de padrões de ação a partir de integrações conceituais.
Tendo isso em vista, é possível conceber a possibilidade de arraigamento dos espaços de integração mental, assim como das redes entre eles (cf. FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 103). Quanto mais frequente é a ativação de uma certa integração – ou rede de integrações –, mais imediato se torna seu processamento. Isto é, requer menos esforço cognitivo, pois os vínculos a serem criados entre os elementos de input e as informações que devem ser projetadas na integração conceitual já estão, de certa maneira, determinados. O uso de uma integração conceitual para estruturar uma sociedade com certeza apresenta alto grau de enraizamento, pois a estrutura produzida subjaz todas as ações do grupo. Em outras palavras, qualquer ação ocorre em consonância com os códigos sociais, que se apresentam como fruto da integração conceitual – o que significa dizer que a estrutura emergente dessa integração está em certo nível presente em todas as práticas cotidianas. A esse respeito, interessa a colocação de Fauconnier e Turner (2002, p. 72):
Mas as integrações conceituais não acontecem online a partir do zero. Culturas empenham-se arduamente para desenvolver recursos de integração com os quais se pode lidar com relativa facilidade. [...] Com esses moldes, a forma geral da projeção e da complementação são especificadas com antecedência e não tem de ser inventada novamente. A parte criativa se dá no processamento da integração mental para casos específicos. Em práticas culturais, a cultura talvez já tenha processado uma integração em um nível de especificação tão alto, que toda a rede de integração está disponível, com todas as suas projeções e elaborações. [...] Os princípios da otimalidade que governam os cérebros individuais que operam online também se aplica a comunidades de cérebros trabalhando juntos de modo distribuído para chegar a redes compartilhadas apropriadas.6 (Fauconnier e Turner, 2002, p. 72).
Além do que já foi discutido, os autores chamam a atenção para o fato de haver, em todos os processos de emprego de uma rede conceitual, uma parte criativa. De fato, a utilização da rede significa sua atualização em um novo contexto – tempo, pessoas, lugar específicos – e assim tem-se uma nova instância do mesmo frame – o que leva, ao mesmo tempo, a um enraizamento mais profundo desse frame.
Ainda, é particularmente intrigante a ideia de uma rede que se estenda por toda a comunidade, trazendo a noção de que as categorias e as integrações criadas pertencem a um grupo, não se restringindo à mente de apenas um indivíduo. Relacionado a esse assunto, Epps e Stenzel (2013, p. 36) mencionam a necessidade de que as categorias compartilhadas culturalmente apresentem uma semântica transparente dessas categorias, para que seu uso possa ser mantido através dos diferentes grupos que falam diferentes línguas, mas que integram uma mesma ecologia social. Assim, as categorias compartilhadas culturalmente apresentam formas fonológicas distintas, mas conotam um mesmo significado.
3. Conclusões
A análise aqui desenvolvida parte da premissa da existência de operações mentais – nomeadamente, integrações conceituais – que têm um papel crucial na capacidade humana de raciocínio. O fato de que o ser humano pode amalgamar diferentes domínios a fim de produzir informações inéditas que têm um fim prático – ou não – é chamada por Turner (1996) de capacidade literária; a vinculação entre um e outro domínios é associada à articulação coerente de diferentes partes e levam à constituição de uma história. Essa capacidade, então, é observada de acordo com o mito cosmogônico da etnia Tukano, de modo a articular a realidade presente desse grupo aos eventos que sucedem narrativamente, em uma tentativa de compreender de que maneira os significados produzidos no mito se atualizam em uma esfera maior na ecologia do Alto Rio Negro. O argumento central é que os elementos contidos no mito produzem uma série de integrações mentais, ao se associarem aos grupos da referida região, que definem em grande medida como se dão as relações socioculturais nessa esfera.
A partir disso, é interessante pensar a força de ação das integrações conceituais advindas do mito ao gerar categorias estáveis – o que também deve ser considerado levando em conta de que o mito da Cobra-canoa é parcialmente compartilhado por todos os grupos do Alto Rio Negro. Possivelmente esse é um dos fatores que permitem assumir que “o Alto Rio Negro é estruturalmente similar ao que foi antes do século XVI [...], porque as dinâmicas da mudança social no Rio Negro foram estruturadas por categorias culturais indígenas antes e depois da conquista.” (NEVES, 1998, p. 363-364). Em outras palavras, as mudanças demográficas, sociais e culturais promovidas pelo processo de colonização não foram capazes de destruir absolutamente as relações estabelecidas entre os povos, porque os significados compartilhados se mantiveram através da atualização do mito da cobra canoa.
Por fim, a análise empreendida pode gerar um mau entendimento, que levaria à associação dos Tukano do clã Ye’pârã-Oyé, e outras tantas tribos indígenas que se utilizam de mitos para organizar a sua cosmologia, enquanto primitivos. Essa afirmação, porém, seria completamente equivocada. Um dos aspectos centrais levantados na teoria de espaços mentais de integração conceitual é justamente o fato de que eles são generalizados, aparecendo em todas as instâncias da vida cotidiana:
Nos casos da sensação e percepção, nossas experiências conscientes vêm dos espaços de integração conceitual – ‘vivemos nesse espaço’, por assim dizer.7 (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 83).
Nesse caso, os autores provavelmente se referem ao fato de que é preciso uma integração conceitual para conceber a unidade de qualquer objeto no mundo. Pensando em uma cadeira, por exemplo, é preciso integrar as partes que as constituem – encosto, assento, pernas, braços – e ao mesmo tempo dissociá-la das partes que julgamos não constituir essa unidade – os objetos ao seu entorno, como o tapete, a mesa etc. Assim, a percepção visual que temos do objeto perpassa por uma integração conceitual. Além disso, Fauconnier e Turner dão inúmeros exemplos que consistem em integrações conceituais e que são amplamente utilizados pela sociedade ocidental em geral, como a ideia de número imaginários, o argumento contra-factual (em que é preciso conceber a situação oposta, comparando-a com a situação presente para testar a validade dessa), entre outros.
Ampliando esse espectro, pode-se sugerir que qualquer cosmologia – indígena ou não – encontra correlatos no modo de vida do povo a que pertence e, portanto, o ato de viver em sociedade demanda a capacidade de operação de integrações conceituais. Na segunda parte de The Way We Think, Fauconnier e Turner propõem o papel essencial das integrações conceituais para a emergência da linguagem. A análise proposta neste artigo permite sugerir que talvez também seja possível pensá-lo em relação à emergência da vida social. Isto é, a vida social só poderia emergir a partir da capacidade cognitiva de integrações conceituais. Nota-se, contudo, que uma afirmação desse quilate demanda uma pesquisa mais extensiva, que não cabe no escopo deste projeto. Para isso, será necessário levantar dados acerca de outros animais que também se estruturam socialmente, assim como realizar uma exaustiva revisão acerca dos conhecimentos das áreas relacionadas.
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