Introdução e contextualização1
Este ensaio teórico tem por objetivo demonstrar como a descrição das línguas em África, concretamente em Moçambique, deve priorizar e tratar de forma crítica a heterogeneidade de língua e a heterogeneidade entre línguas, sobretudo no ensino de línguas. Para sustentar essa demonstração, tomamos como exemplo a situação linguística de Moçambique, a situação do ensino do português em Moçambique e a situação da educação bilíngue em Moçambique.
Tal como acontece com alguns países da África Subsahariana, além da língua oficial, resultante da colonização europeia, Moçambique tem as línguas bantu, doravante chamadas “línguas nacionais”. Com cerca de 28 milhões de habitantes, segundo um censo populacional realizado em 2017, 70% desse universo vivem em zonas consideradas rurais e 30% em zonas urbanas. Embora o português seja a língua oficial, a maioria da população tem como língua materna uma das línguas nacionais. Nas áreas rurais, as línguas nacionais são quase completamente predominantes (INE, 2007, apud SAGUATE, 2012; SAGUATE, 2017).
Numa perspectiva histórica, a presença do português no repertório linguístico moçambicano remonta ao período da expansão portuguesa nos anos de 1490. Embora não seja um período efetivamente de ocupação colonial, o primeiro contato que se estabeleceu entre os portugueses e os povos que habitavam parte do atual território denominado Moçambique representou um marco bastante importante nos períodos subsequentes, particularmente na subalternização das relações de poder entre as línguas. Atualmente, essa imagem continua sendo reproduzida, implícita ou explicitamente. Passa a ser distintivo, portanto, não o fato de o indivíduo saber várias línguas nacionais, mas o de saber aquela que não sabia no grupo dos iguais, caracterizando-se esse saber do português como um salto na direção de prestígio social e de uma cultura tida como superior.
O ano de 1962 ficou marcado pela criação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) – movimento nacionalista que lutou pela independência do País. No âmbito linguístico, o movimento inaugurou discursos oficiais de apropriação do português (SAGUATE, 2017). Como mostram os estudos classificatórios de Guthrie (1967), a situação linguística moçambicana configura-se em plurilinguismo. Esse fato determinou sobejamente a opção da política linguística pela FRELIMO. Sendo um movimento que envolvia moçambicanos de todos os quadrantes do País, acreditava-se que a opção por qualquer uma das línguas nacionais como língua oficial criaria conflitos no seu seio. Para preservar a unidade interna, era necessário encontrar uma língua neutra – no caso, o português. Tratou-se, na verdade, de uma neutralidade relativa, dado que, no movimento, integravam também descendentes de portugueses, cuja língua materna era o português. Também determinou a opção pelo português a comunhão dessa língua entre Moçambique e alguns países.
O ano de 1975 foi marcado pela proclamação da Independência em Moçambique. Os desafios para a construção de um “estado-nação” eram diversos. No campo linguístico, foram tomadas algumas medidas. Sem surpresa, o português tornou-se a língua oficial. Em termos normativos desta língua, foram mantidos os parâmetros gramaticais do português europeu. A instituição da norma europeia como orientadora no uso dessa língua em nível institucional pode ter sido determinada tanto por fatores ideológicos quanto por fatores técnicos. No âmbito ideológico, a norma europeia se mostrava a mais adequada para se evitar a dispersão da prática no ensino-aprendizagem dessa língua. No âmbito técnico, o país estava ainda longe de criar condições imediatas que permitissem a descrição e legitimação das variantes do português praticado no País. Esses fatores contribuíram ainda mais para a consolidação do prestígio do português. E essa consolidação foi marcada, de certa maneira, pela reprodução do preconceito sobre as línguas nacionais. Isto significa que a pesada herança colonial de marginalização das línguas nacionais teve, em parte, réplicas no pós-colonial. Em alguns casos, o uso das línguas nacionais pelos alunos em recintos escolares era interdito. Porém, nos finais da década de 1970, ocorreram algumas ações favoráveis às línguas nacionais. A Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane introduziu, em alguns cursos, disciplinas de linguística bantu. Mais tarde, foi criado o NELIMO (Núcleo de Estudos de Línguas Moçambicanas), atualmente designado Centro de Estudos de Línguas Moçambicanas, cuja missão é investigação, promoção e desenvolvimento das línguas nacionais. Entre os eventos realizados pelo NELIMO, conforme escreve o professor Armindo Ngunga, da Universidade Eduardo Mondlane, destacam-se três seminários sobre a padronização da ortografia das línguas nacionais. O primeiro, realizado em 1988, lançou bases sobre tal padronização. O segundo, realizado em 1999, retomou parte das discussões e melhorou alguns aspectos do primeiro seminário. O terceiro, realizado em 2008, discutiu, entre outros aspectos, a problemática da escrita de línguas nacionais e propôs um sistema de escrita dessas línguas (NGUNGA e FAQUIR, 2012). Por outro lado, em 1983, Moçambique havia introduzido o “Sistema Nacional de Educação” (SNE), como marco de “ruptura” com o sistema colonial. Um dos termos de seus objetivos gerais era “erradicar” o analfabetismo, de modo a proporcionar a todo o cidadão o acesso ao conhecimento científico e o desenvolvimento pleno das suas capacidades.
Em 1990, foi aprovada nova Constituição da República. Em dois de seus Artigos (nono e décimo), considera, por um lado, que: “O Estado valoriza as línguas nacionais como patrimônio cultural e educacional e promove o seu desenvolvimento e utilização crescentes como línguas veiculares da nossa identidade”; e, por outro, “Na República de Moçambique a Língua Portuguesa é a língua oficial”. Como se pode depreender, essa Constituição abriu caminhos para maior consideração das línguas nacionais na educação formal. Em 2003, foi introduzido um novo currículo escolar, com alterações significativas em relação ao tratamento a ser dado às línguas nacionais no ensino básico. Em termos práticos, esse currículo contemplou a educação bilíngue, isto é, uma educação das crianças que envolve o português e as línguas nacionais. A nova política espera(va) aproveitar as habilidades comunicativas dos alunos em línguas nacionais, para aprendizagem do português, uma vez que grosso número de alunos tem o português como língua segunda. Contudo, o ensino-aprendizagem do português continua se baseando em parâmetros da norma europeia. E, apesar da introdução da educação bilíngue, a qualidade do ensino-aprendizagem do português em Moçambique não tem atingido níveis satisfatórios (SAGUATE, 2017).
Para se ter alguma ideia sobre a prática didática na educação bilíngue, importa trazer uma breve observação sobre dois elementos: a gramática adotada e os métodos de ensino. Como disse anteriormente, a política linguística escolar consiste no uso da norma do português europeu como parâmetro orientador do ensino-aprendizagem do próprio português – que é um português moçambicano, por assim dizer. Para viabilizar esse ensino, têm sido adotadas gramáticas prescritivas. Trata-se, portanto, de gramáticas que retratam regras consideradas “corretas” no português falado em Portugal e de seu funcionamento naquele contexto europeu. Entretanto, ao depender de um ideal gramatical distante de si, a fala e/ou a escrita do português em Moçambique tem sido um dos campos de insegurança linguística. Essa insegurança impede a expressão livre, pois está sempre policiada; isto é, à semelhança do que observa o professor Marcos Bagno na escola brasileira, “interrompe o fluxo natural da expressão e da comunicação com a atitude corretiva (e muitas vezes punitiva), cuja consequência inevitável é a criação de um sentimento de incapacidade, de incompetência” (BAGNO, 1999, p. 108).
Em consequência do uso das gramáticas prescritivas, nas práticas do ensino-aprendizagem do português em Moçambique, há tendência exacerbada de se fazer um retrato fiel dessas gramáticas, esforçando-se em ensinar o “português puro” e evitando-se tudo o que se considera estranho a essas gramáticas prescritivas. Isto significa que a língua tem sido tratada como algo estático e morto (e não dinâmico e vivo), desconsiderando “as pessoas vivas que a falam” (BAGNO, 1999, p. 9). Esse espírito de retrato fiel da gramática do português praticado em Portugal acaba afetando negativamente o próprio ensino das línguas; ou, melhor, do próprio português moçambicano, porque submete o aluno a uma situação de combate contra o que lhe é intrínseco: a sua própria matriz linguística, que é, basicamente, uma matriz das línguas nacionais. Não raras vezes, o aluno tem sido culpabilizado pelo fracasso escolar em português, advendo do seu “mau” desempenho nessa gramática prescritiva. Por outro lado, essa culpabilização do fracasso advém do equívoco bastante difundido no ensino de que o português praticado em Moçambique é “errado” em comparação ao português praticado em Portugal. Com essa concepção, deixa-se de lado o fato de que se tratam de contextos diferentes e, por isso, modos de uso de língua igualmente diferentes.
1. Aspectos teórico-metodológicos
Em Moçambique, o português constitui a língua oficial, conforme já mencionado. Aprendido majoritariamente como língua segunda, ele é regido oficialmente pela norma padrão europeia (norma do português europeu), apesar de, na prática, mostrar marcas substanciais que lhe configurem em uma variadede distintivamente relevante. Mesmo dentro do país, é possível observar diferenças no próprio português, conforme a língua nacional em contato. É o que se verifica nas seguintes marcas fonético-fonológicas, sistematizadas (e adaptadas) com base no estudo de Ngunga (2012):
- em contato com o xishangana, ocorre a inserção de nasal em vocábulos como: convite para “convi[n]te”, economia para “e[n]conomia”, exame para “e[n]xame”; e a fricativização do som líquido palatal em vocábulos como falha para “fa[hl]a”, mulher para “mu[hl]eri”, trabalho para “traba[hl]o”; ou alveolarização do mesmo nos mesmos vocábulos: falha para “fa[l]a”, mulher para “mu[l]er”, trabalho para “traba[l]o”;
- em contato com o ciyao, ocorre a “desvibração” do som líquido em vocábulos como: rapaz para “[l]apaz”, rua para “[l]ua”, carro para “ca[l]o”, raro para [l]a[l]o;
- em contato com o shimakonde, ocorre a “desvibração” do som líquido em vocábulos como: Maria para “Ma[l]iya”, Marcos para “Ma[l]ucos”, tiro para “ti[l]u”; e a palatalização do som fricativo não vozeado /s/ para /ʃ/ em vocábulos como: saúde para [ʃ]aúde, cigarro para [ʃ]igarro, máximo para má[ʃ]imo;
- em contato com o gitonga, ocorre a desnasalização das vogais em vocáculos como: cinquenta para ci[Ø]que[Ø]ta, contas para co[Ø]tas, cansar para ca[Ø]sar;
- em contato com o cindau, ocorre a “metátese dos sons líquidos ou lateralização do som vibrante?” em vocábulos como: problema para p[l]obrema, esclarecimento para esc[r]alecimento, explicar para exp[r]icar;
- em contato com o emakhuwa, o que me interessa neste estudo, ocorre o não vozeamento de consoantes em vocábulos como: batata para [p]atata, dedo para [t]e[t]o, jogo para [ʃ]o[k]o, Gaza para [k]a[s]a.
Entretanto, para mostrar a heterogeneidade da língua na educação bilíngue no presente ensaio, considero ocorrências da área fonético-fonológica que se observam no contato entre o português e o emakhuwa. As ocorrências foram extraídas a partir de textos escritos, coletados junto dos alunos da sétima classe (sétima série) de duas escolas da província de Nampula, no âmbito de elaboração de tese de doutorado, defendida por Saguate (2017). Vale observar que, segundo o Censo Geral da População e Habitação, realizado pelo Instituto Nacional de Estatísticas de Moçambique, em 2007, o emakhuwa é praticado por cerca de cinco milhões de pessoas e constitui a língua nacional mais falada em Moçambique, abrangindo as províncias de Nampula, Cabo-Delgado, Niassa e Zambézia. A análise das ocorrências é orientada pela teoria da variação linguística (LABOV, 1972), concretamente nos moldes em que o contato entre línguas em um contexto bilíngue ou multilíngue pode originar influências mútuas na forma das línguas envolvidas. Importa observar que, apesar de abordar a heterogeneidade entre o português e as línguas nacionais, sua análise foi feita em sentido unidirecional, isto é, a marcação do emakhuwa sobre o português. Esse fato deveu-se ao próprio interesse de, numa primeira fase, contribuir para o ensino-aprendizagem do português.
1.2. Alguns princípios sociolinguísticos
Um dos princípios mais importantes postulados pela sociolinguística é entender a língua em uso no contexto social, uso no qual se mostra a heterogeneidade do próprio sistema. De acordo com Labov (1972), a linguagem humana é sensível a muitos processos extralinguísticos e, em decorrência dessa sensibilidade, também fornece indícios desses processos na forma de expressão. Um dos aspectos mais relevantes da sociolinguística como disciplina científica é mostrar que a linguagem humana varia, e essa variação se manifesta como uma heterogeneidade ordenada, isto é, controlada por fatores diversos: estruturais e sociais. Desse modo, em sociolinguística, toda língua é heterogênea, o que significa que “toda língua comporta no seu interior formas em variação e, é o fato de comportar variação que faz com que a língua seja capaz de expressar, no próprio interior do sistema em si, a estrutura social, valores sociais que a ele são externos” (PAGOTTO, 2006, p. 54). A investigação na sociolinguística costuma operar, inicialmente, com duas dimensões: a linguística e a não linguística (ou extralinguística). Assim, um estudo da variação linguística deve partir do pressuposto de que as alternâncias de uso são influenciadas por fatores estruturais e sociais. Tais fatores, segundo Mollica (2010, apud SAGUATE, 2012), são considerados no sentido em que os usos de estruturas linguísticas são motivados, e as alternâncias se configuram, por isso, como sistemática e estatisticamente previsíveis.
1.2. Motivações linguísticas e extralinguísticas da variação
As motivações linguísticas e as extralinguísticas que regem a variação constituem referência obrigatória para o enfoque sociolinguístico. Obviamente que, numericamente, é muito extensa a possibilidade que as motivações extralinguísticas têm na variação da língua. Na dimensão linguística, vale mencionar o contato entre línguas. Em comunidades multilíngues como o caso de Moçambique, o contato entre línguas, além de se mostrar inevitável, constitui um dos fatores mais propícios à variação linguística e, portanto, metodologicamente relevante. Assim, um dos efeitos mais conhecidos, resultantes do contato entre línguas, são as interferências. Segundo afirma Calvet (2007, apud SAGUATE, 2012), a palavra interferência designa um remanejamento de estruturas resultante da introdução de elementos estrangeiros mais fortemente estruturados da língua. Assim, para Gonçalves (1997), a interferência é, muitas vezes, consequência não intencional de um falante que não domina convenientemente a língua recipiente, e é facilmente reconhecida como uso de elementos de uma língua em contextos gramaticais de outra.
Labov (1963), no seu trabalho sobre a comunidade da ilha de Martha´s Vineyard, no litoral de Massachusetts, sublinha o papel decisivo dos fatores sociais daquela Ilha na explicação da variação do inglês. O autor relaciona a variação dessa língua com variáveis como idade, sexo, ocupação e origem étnica. Dentro dos fatores sociais, Labov (1963) destaca também a questão da atitude dos vineyardenses com relação ao uso da língua. O autor observou que algumas formas de fala pertencentes a grupos situados abaixo na escala social mudam rapidamente à medida que muda a posição social do falante. Essa atitude foi também constatada por Labov (1972) com relação a falantes nova-iorquinos do inglês. Segundo o autor, os falantes da classe média baixa têm a maior propensão à insegurança linguística e, por conseguinte, tendem a adotar as formas de prestígio usadas pelos membros da classe de status mais elevado. Uma das causas que motivam a adoção das formas de prestígio, segundo Labov (1972), é a aspiração à ascensão social, à mobilidade social, com mudanças possíveis na posição que se ocupa na estrutura da comunidade social.
Sankoff e Leberge (1978, apud SAGUATE, 2012), na esteira de Bourdieu e Boltanski (1975), usam o conceito de “mercado linguístico” (linguistic market) para mostrarem que algumas posições ocupacionais na sociedade ou no mercado do trabalho exigem certo grau de atenção ao uso da variante culta, o que constitui um desafio para quem aspira a uma nova posição no mercado ocupacional. A questão é que essa tendência que os membros das classes tidas como inferiores mostram para a mobilidade social ascendente e a consequente adoção das formas de prestígio, próprias dos membros das classes tidas como superiores, pode levar a um forte sentimento de insegurança linguística, que se identifica com as noções de hipercorreção estrutural e estatística. A noção de hipercorreção estrutural tem natureza especificamente linguística. Revela-se na tendência de generalizar uma regra nova a contextos onde ela não seria aplicável, como quando quem fala farta aprende a falar falta, generalizando a regra da lateralização a outras formas a que o processo não se aplica, como em garfo>galfo. Já a hipercorreção estatística tem a ver com a tendência, detectada por Labov (1972), da classe média baixa de usar variantes de prestígio numa frequência mais elevada que a classe média alta. Tanto um caso quanto o outro refletem processos de adesão à norma de outro grupo social, com algum grau de insegurança linguística, motivada pelo uso de novas regras de expressão.
De acordo com Alkmin (2001, apud SAGUATE, 2012), uma definição desse tipo possibilita descrever os padrões de uma determinada sociedade com respeito ao uso das variedades linguísticas. Ou seja, que comportamento linguístico é mais adequado às situações em que se encontram os falantes. Desse modo, as variantes linguísticas utilizadas pelos participantes da interação devem corresponder às expectativas sociais convencionais: o falante que não atender às convenções pode receber algum tipo de “punição”, socialmente regulamentada. No seu estudo sobre a classe média baixa em Nova Iorque, Labov (1972) observa o grau de formalidade dos falantes. Usando como critério o grau de atenção do falante às formas linguísticas, o autor constata que, quanto maior é a atenção dirigida à forma, tanto maior é o grau de formalidade do registro e vice-versa. Nesse estudo, o autor examina a pronúncia variável do fonema /r/, em posição pós-vocálica, constatando que a presença de /r/ funciona como marcador de prestígio, e é empregado pelo grupo social de status mais elevado, como forma inovadora. O autor observa que, em contextos informais, a classe média baixa exibe um valor baixo de pronúncia em relação à classe média alta. Entretanto, no estilo formal, a classe média baixa exibe um grau elevado de pronúncia do som [r], ultrapassando a classe média alta, o que, como vimos anteriormente, é tratado como hipercorreção estatística.
Segundo Labov (1972), é o fato de os falantes da classe média baixa ultrapassarem, em frequência, o comportamento do grupo de status mais elevado, em sua tendência a usar formas consideradas corretas e apropriadas para estilos formais, que representa um caso de hipercorreção estatística, embora o termo “hipercorreção” seja mais bem aplicado ao uso equivocado de uma regra aprendida imperfeitamente. Dessa maneira, não é qualquer pessoa que comete erros descritos como hipercorreção, mas sim, quem aspira à ascensão social, preocupado com a norma do idioma. De acordo com Calvet (2002, apud SAGUATE, 2012), a hipercorreção pode corresponder a estratégias diferentes para o falante dentro do contexto em que se encontra: fazer crer que ele domina as formas prestigiosas da língua, ou fazer esquecer a sua própria origem, o que pode parecer ridículo por aqueles que dominam a forma “legítima” e que, em contrapartida, acabam julgando de modo desvalorizador os que tentam imitar uma prática linguística valorizada.
1.3. Sobre a heterogeneidade linguística: considerações gerais
Nesta parte, vale considerar a heterogeneidade do português e do emakhuwa e a heterogenidade da relação entre o português e o emakhuwa. Em primeiro lugar, trata-se, portanto, de considerar a heterogeneidade da língua. A heterogeneidade da língua, considerada cada língua particular (o português, o emakhuwa etc.), caracteriza-se, no entendimento de Labov (1972, apud SAGUATE, 2017), pelo uso das formas linguísticas, que se correlaciona com fatores extralinguísticos. Em segundo lugar, trata-se de considerar a heterogeneidade entre línguas, em que na coexistência de duas ou mais línguas transparecem, em cada uma das línguas, ou em uma delas, certos elementos, certas normas, certos usos, certas características de outra língua em contato. Assim, uma análise da representação das formas linguísticas do português, ou de uma língua nacional, em Moçambique deve ser considerada com base no fato de que cada uma dessas línguas não funciona em um campo isolado, mas, conforme já avançado, em um campo de contato, o que configura uma heterogeneidade entre línguas. Por conta dessa heterogeneidade, formas linguísticas de cada uma das línguas em contato estão em contato umas com outras.
2. Dados e análise
Nos textos escritos pelos alunos, foi possível constatar os seguintes casos de representação gráfica envolvendo aspectos fonético-fonológicos:
- /b/ versus /p/
(1) otros sapem otros nausapen (outros sabem outros não sabem) (EBM4.1, grifos nossos).
(2) A importancia do ensino pilingue é estutar (A importância do ensino bilíngue é estudar) (EBA9.1, grifos nossos).
(3) Epo saber estutare português (É bom saber estudar português) (EBM5.1, grifos nossos).
(4) Ensino bilingue é uma tísiplina da língua moçambicana punita [...] (Ensino bilíngue é uma disciplina da língua moçambicana bonita) (EBA9.1, grifos nossos).
- /d/ verus /t/
(1) [...] Quando uma pessoa estuda lingua protuguês aprente lér, escrever (Quando uma
pessoa estuda língua português aprende ler, escrever) (EBM1.1, grifos nossos).
(2) [...] não custa nata [...] (não custa nada) (EBM5.1, grifos nossos).
(3) Eu gosto ti português falar [...] (Eu gosto de português falar) (EBM6.1, grifos nossos).
(4) [...] esa elingua primeira secunta. (essa língua primeira secunda) (EBA3.1, grifos nossos).
(5) [...] não quero texar [...] (não quero deixar) (EBA3.1, grifos nossos).
(6) Apreti a ler Portogens através das folha i tocomento decalarasa (Aprendi a ler Portoguêns através das folha e documento declaração) (EBA10.1, grifos nossos).
- /g/ verus /k/
(1) Eu costu de português e Emakhuwa [...] (Eu gosto de português e emakhuwa) (EBM2.1, grifos nossos).
(2) Obricada sehor vocér equimada para escrever [...] (Obrigada senhor você é que manda para escrever) (EBM6.1, grifos nossos).
(3) Eo comesei a estudar porque meus amicos vio afalar portuguesa (Eu comecei a estudar porque meus amigos viu a falar portuguesa) (EBA6.1, grifos nossos).
(4) [...] quero gecar na escola da cengotaria [...] (quero chegar na escola da secundária) (EBM6.1, grifos nossos).
(5) [...] i mitornei caranti estutati na quarta classi [...] (e me tornei grande estudante na quarta classe) (EBA10.1, grifos nossos).
- /z/ verus /s/
(1) [...] na escola aperete-se muitas coisas [...] saber, cosinhar [...] (na escola aprende-se muitas coisas [...] saber, cozinhar) (EBA4.1, grifos nossos).
As palavras grifadas nos exemplos mostram a substituição de fonemas oclusivos /b/, /d/, /g/ e fricativo /z/ pelos seus respectivos correspondentes surdos /p/, /t/, /k/ e /s/. Trata-se, sem dúvida, de um desvio quanto à norma do português europeu. Naturalmente, esse desvio não ocorre ao acaso. Podem existir várias análises possíveis. Uma delas deve partir, inevitavelmente, do princípio de que, em primeiro lugar, o perfil sociolinguístico dos escreventes mostra que o emakhuwa constitui a sua L1, em oposição ao português, que constitui a L2, adquirida principalmente na escola. Em segundo lugar, o quadro consonântico do emakhuwa não apresenta fonemas /b/, /d/, /g/ e fricativo /z/, distintivamente sonoros. Desse modo, a substituição dos fonemas sonoros mencionados pelos correspondentes surdos sugeriria, por um lado, a exposição da identidade linguística do escrevente.
Sobre a identidade linguística do aluno – no sentido de (sua) língua materna (o emakhuwa) –, a exposição da mesma seria marcada pela presença dos fonemas surdos /p/, /t/, /k/ e /s/, como tentativa de fechar a lacuna dos fonemas sonoros correspondentes, ausentes nessa língua. Desse modo, essas ocorrências dão pistas sobre um dos modos de atuação da heterogeneidade linguística na prática dos escreventes. Ou seja, quando analisamos os dados sob o viés da heterogeneidade linguística, podemos observar que cada vez que se desloca do plano da língua emakhuwa para o da língua portuguesa, enfrenta-se a dificuldade de pronunciar e representar sons sonoros. E essa dificuldade se manifesta como uma lacuna cujo preenchimento é custoso, uma vez que ela está ligada a uma predisposição da língua de partida. Em consequência, essa lacuna tem sido preenchida pelos correspondentes sons surdos, que constituem a base da matriz geral do emakhuwa. Desse modo, essas ocorrências sugerem que, na heterogeneidade das línguas no contexto em apreço, se registra a forte presença do emakhuwa na prática do português.
É importante observar que o emakhuwa tem sido uma língua nacional – se não a única – que, em contato com o português, desencadeia a neutralização da oposição surdo/sonoro do português, prevalecendo a ocorrência de fonemas surdos (e grafemas correspondentes na escrita). Por conseguinte, essa neutralização tem sido avaliada de forma negativa e preconceituosa pelos falantes de outras línguas nacionais. Essa avaliação vai no sentido de estabelecer um juízo de valor de todas as variedades do português, observadas nos diferentes grupos etnolinguísticos, em relação à variedade do português dos falantes emakhuwa, representando-o como “provinciano”, “mal falado”, “de gente do mato”; não obstante existirem alguns meios de comunicação sociocultural que parecem se esforçar no sentido de incluir essa marcação no repertório do “português moçambicano” (juntamente com outras marcações possíveis existentes do contato entre o português e demais línguas nacionais) e promover, desse modo, sua consideração e respeito.
Paralelamente aos casos apresentados nos exemplos anteriores, registram-se os seguintes fenômenos que exigem outro tipo de entendimento:
(1) Em portugês dampe emakhuwa [...] (Em português também emakhuwa) (EBM2.1, grifos nossos).
(2) esduto bem [...] (estudo bem) (EBM5.1, grifos nossos).
(3) [...] quero gecar na escola da cengotaria [...] (quero chegar na escola da secundária) (EBM6.1, grifos nossos).
(4) [...] quero jecar na escola da cengotaria [...] (quero chegar na escola da secundária) (EBM6.1, grifos nossos).
Nesses casos, em que os alunos não são consistentes com a representação do português, pode-se partir do princípio de que eles estariam em processo de conscientização sobre, ao mesmo tempo, a ausência de consoantes sonoras em emakhuwa e a presença das mesmas no português. Estariam, também, evidenciando o processo de conscientização de suas limitações quanto a pronunciá-las na fala. Desse modo, o esforço em pronunciá-las ou representá-las (na escrita) de forma “correta” acabaria desembocando em hipercorreção na escrita, o que nos leva à hipótese de que, na fala do português por parte desses alunos, haja uma hipercorreção também na pronúncia.
Destaque-se que há desvios bastante variáveis na escrita dos alunos. Exemplos de desvio diretamente ligado à influência do emakhuwa na representação dos fonemas oclusivos sonoros /b/, /d/, /g/, /ʒ/ do português são os seguintes: dampe para “também” e esduto para “estudo”. Pode-se dizer, a esse respeito, que esses exemplos evidenciam um modo particular de ocorrência dessa representação em situação de bilinguismo. Nesse caso, a representação escrita recorre à pronúncia da língua emakhuwa, em que ocorrem apenas os correspondentes oclusivos surdos daqueles fonemas. A partir desses exemplos, pode-se verificar, ainda, outras desvios. É o caso de um jogo de hipercorreção (emulação do quadro de fonemas do português) – associada ou não com inconsistência no uso de grafemas hipercorrigidos. Quanto à hipercorreção associada à inconsistência no uso de grafemas hipercorrigidos, observe-se o exemplo gecar/jecar para “chegar”, em que duas ocorrências (de hipercorreção) constituem-se, ao mesmo tempo, em uso inconsistente, mas mesmo assim, desajustado de grafemas. Por seu turno, a hipercorreção não associada à inconsistência no uso de grafemas hipercorrigidos pode ser conferida nos exemplos dampe para “também”, esduto para “estudo”, cengotaria para ”secundária”. Essas hipercorreções chamam-nos a atenção sobre outro tipo de imagem do aluno: desta feita, a imagem é sobre a matriz fonológica das línguas. Analisemo-las (as hipercorreções) sob o ponto de vista da sonoridade dos fonemas nas palavras em que ocorrem:
- Fonemas sonoros e surdos em posições próximas
Observe-se que os segmentos hipercorrigidos (dampe; esduto; gecar/jecar; cegontaria) dizem respeito à sonorização de fonemas surdos ocorrendo em posições próximas de onde ocorrem fonemas surdos na língua-alvo. Porém, no momento imediato em que se opera a sonorização dos fonemas surdos, ocorre operação oposta em relação aos fonemas sonoros. Ou seja, esses são ensurdecidos. Ora vejamos:
i. em dampe e esduto, é sonorizado o fonema /t/: [d]ampe de “[t]ambém” e es[d]uto2 de “es[t]udo”. De imediato, é ensurdecido o fonema sonoro em posição próxima ao longo da estrutura da palavra, respectivamente: dam[p]e de “tam[b]ém” e esdu[t]o de “estu[d]o”;
ii. por seu turno, na pronúncia: gecar/jecar para “chegar”, é sonorizado o fonema /ʃ/ num momento imediatamente anterior ao ensurdecimento do fonema /g/, situado, portanto, em posição próxima do primeiro ao longo da estrutura da palavra: [g]e[c]ar/[j]e[c]ar de “[ch]e[g]ar”;
iii. finalmente, na pronúncia de cegontaria, é sonorizado o fonema /k/ e ensurdecido o fonema /d/: ce[g]on[t]aria de “se[c]undária”.
- Fonemas surdos em posições próximas
De forma similar – mas não igual – ao item anterior, observa-se a hipercorreção nos seguintes dados3:
(1) otros sapem esgrever otros nausapem esgrever (outros sabem escrever outros não sabem escrever) (EBM4.1, grifos nossos).
(2) [...] quato fala Éportuquês poti jégar nacequertaria ou nabibiliotega (quando fala português pode chegar na secretaria ou na biblioteca) (EBA4.1, grifos nossos).
(3) [...] na escola aperete-se muitas coisas [...] saber varer batio [...] (na escola aprende-se muitas coisas [...] saber varrer pátio) (EBA4.1, grifos nossos).
Em (1), temos hipercorreção do fonema negritado na palavra esgrever de “escrever”; em (2), a hipercorreção ocorre no fonema negritado da palavra bibiliotega de “biblioteca”; e em (3), a hipercorreção ocorre no fonema negritado da palavra batio de “pátio”. Nesses exemplos, temos palavras que, na língua-alvo, contêm fonemas surdos que ocorrem em posições imediatamente próximas. Contrariamente aos exemplos anteriores, em que se registra um jogo entre sonorização e ensurdecimento dos fonemas, aqui se registra a sonorização de apenas um dos fonemas surdos: /k/ em es[g]rever, /k/ em bibliote[g]a, e /p/ em [b]atio. Vale lembrar que os fonemas surdos fazem parte tanto da matriz fonológica do emakhuwa quanto da do português. Desse modo, sempre que eles ocorrem em posições próximas em uma estrutura de palavra da língua-alvo sem que ao menos um seja sonorizado, a ausência absoluta de sonorização parece desencadear alguma estranheza no aluno. Essa estranheza parece ter relação com o imaginário de que a natureza da matriz fonológica do próprio português é unicamente sonora, correlativamente à não distinção ocorrente na matriz do emakhuwa, que é unicamente surda. Em consequência, na tentativa de preservar esse suposto padrão sonoro do português (já que se aprende que não se deve contaminar o português com o padrão surdo dos fonemas do emakhuwa), tende-se a sonorizar todos ou quase todos os fonemas surdos. Contudo, parece custoso, em termos da referência à estrutura fonológica da língua de partida do escrevente, sonorizar, imediatamente, dois ou mais fonemas próximos em uma mesma estrutura de palavra, criando-se um desvio em certos contextos linguísticos e cumprindo a convenção, aparentemente de forma aleatória, noutros.
Essa imagem em relação às línguas, que é de ordem estrutural, se alia também a fatos de ordem sociolinguística, isto é, a inserção do falante/escrevente nas práticas sociolinguísticas. Fazendo uma analogia com a constatação de Labov (1972), de que os falantes/[escreventes] da classe média baixa têm maior propensão à insegurança linguística e, por conseguinte, tendem a adotar as formas de prestígio usadas pelos membros da classe de status mais elevado, pode-se afirmar que algumas das causas da hipercorreção (estrutural) nos exemplos são motivadas por essa necessidade de adoção das formas de prestígio no mercado linguístico de comunicação (SANKOFF e LEBERGE, 1978), particularmente quando há aspiração de se mostrar ascensão social ou domínio da língua-alvo. No caso da relação português/emakhuwa, essa tentativa de aplicar as formas fonológicas de prestígio da língua-alvo desencadeia hipercorreções na estrutura de certas formas (no caso, fonético-fonológicas). Esse aspecto social pode estar ligado, de todo modo, a uma determinação linguística da estrutura da língua de partida que intervém na imagem que o aluno faz sobre a estrutura fonético-fonológica da língua de chegada, o que caracteriza, portanto, um fenômeno sociolinguístico evidenciado na representação da escrita do português. A hipótese da determinação da estrutura da língua de partida sobre a estrutura fonético-fonológica da língua é reforçada por outro fenômeno verificado nos textos, o da substituição do grafema <f> pelo grafema <v> em [v]alar de “[f]alar”, conforme mostram os dados seguintes:
(1) [...] escutar porfessor que esta valar [...] (escutar professor que está falar) (EBM2.1, grifos nossos).
(2) Eu sei valari português (Eu sei falari português) (EBA1.1, grifos nossos).
(3) Eu [ilegível] valari para portugue (Eu falar para português) (EBA8.1, grifos nossos).
Em alguns momentos, observa-se a tendência de autocorreção, através de rasuras, dando pistas de que houve tentativas de representar o fonema /f/ pelo grafema <v>, conforme mostra o dado seguinte:
(1) [...] que estodão [estudam] tambem eu abreter [aprender] avfalar4 e ouvir (que estudam também eu aprender a falar e ouvir) (EBM6.1, grifos nossos).
Uma análise contrastiva desse fenômeno, baseada nas línguas em contato (emakhuwa/português), constata que, em língua emakhuwa, a palavra “fala” tem como tradução “olavula”. Essa palavra (“olavula”), morfologicamente, coincide com o verbo olavula (“falar”) no infinitivo. Porém, ela pode ser flexionada, a partir da posição anterior ou posterior em cujo radical seria “-lavula-”. Assim, temos, por exemplo, o-lavula = “falar”, oo-lavula = “falou”, on-lavula = “que fala”, on-lavul-iha = “que faz falar”. Vejam-se alguns dados retirados dos textos em emakhuwa:
(1) [...] Wajutharo Ekhunha [rasura] boodi oolavula niiperesidenti [...] (“Quando estudar português pode falar com presidente”) (EBA4.1, grifos nossos).
(2) Oolavula saana Ekhunheo [...] (“Falar bem o/esse português”) (EBA4.2, grifos nossos).
(3) [...] osuela olavula Em Emakhowa mu rationi olavula Enotisia (“saber falar em emakhuwa na rádio falar notícia”) (EBA18.1, grifos nossos).
Portanto, a presença do fonema /v/ em “-la[v]ul-“ parece influenciar a representação grafêmica do fonema /f/ da palavra “[f]alar”, do português. Desse modo, em tese, a substituição da palavra “falar” por “valar” mostra, por um lado, que a língua de enunciação primária dos alunos é o emakhuwa e, por outro, que é forte a marcação do emakhuwa sobre o português, sua língua segunda. Essa tese é sustentada também pelas rasuras, cujas autocorreções sugerem um duplo recuo: (a) de língua (emakhuwa) para língua (português); e (b) da fala/escrita da língua nativa (“olavula”) para a escrita da língua-alvo (“falar”).
Adicionalmente, nesses dados, é possível dizer que nem sempre o português em Moçambique consegue traduzir cabalmente o pensamento de um falante cuja língua primeira é uma das línguas nativas. Esse fato faz com que o ensino mecânico do português, que consiste em obrigar os alunos a decorar as regras gramaticais, não tenha sucesso em Moçambique. Isto porque as gramáticas prescritivas estão longe de tomar em consideração a realidade prática e de refletirem o lugar das línguas nacionais na aprendizagem e na prática do português. Lembre-se que o ensino mecânico do português através de gramáticas prescritivas resulta, dentre outros aspectos, da herança histórica e ideológica do colonialismo, que tentou aniquilar as línguas nativas em favor do português. Como se sabe, uma das missões do colonialismo era “civilizar” o povo moçambicano. Uma dessas formas de civilização consistia na imposição do português – língua de gente, do progresso –, em oposição às línguas nativas – línguas selvagens, do atraso. Apesar de essa ideologia não ter prosperado, em razão de não ter conseguido eliminar as línguas nativas, ainda persistem, em Moçambique, algumas formas de reproduzi-la. Essa reprodução se manifesta também no ensino-aprendizagem, em que algumas práticas didáticas se esforçam no sentido de combater a presença de traços linguísticos das línguas nacionais, por considerá-las como elementos contaminadores da prática do português. Essa concepção ignora, portanto, a presença inevitável das línguas nativas no português e vice-versa.
Fazendo uma aproximação dessas ocorrências com o conceito de “ruína”, proposto por Corrêa (2006), ao estudar vestígios de diferentes gêneros textuais (relações intergenéricas), deixados nos textos escritos, diria que, na prática linguística bilíngue, há sempre ruínas de uma língua que se manifestam noutra. A marcação dessas ruínas de uma língua noutra é variável e dependente de variados fatores, como, por exemplo, a intensidade de contato com cada uma das línguas. Assim, no caso do português-emakhuwa, observa-se a forte marcação do emakhuwa sobre o português. Os principais fatores que se podem aventar são que, primeiro, os alunos têm o emakhuwa como sua língua materna e, segundo, é o emakhuwa a língua de maior uso na sua vida cotidiana. Desse modo, sempre que se tenta praticar o português, sobressaem nessa língua marcas fossilizadas do emakhuwa. Como se pode depreender, o conceito de ruína se mostra adequado nesse contexto quando também pensado o conceito de “fossilização”, em situações em que se considera existirem marcas do emakhuwa já fossilizadas no falante/escrevente, que sempre sobressaem em práticas de uma segunda língua – no caso, o português (SAGUATE, 2017).
3. Considerações finais
Da análise feita, podemos concluir que, para entendermos as ocorrências aqui apresentados, temos de deslocar o nosso foco em Moçambique, muitas vezes simplista – o de elencar essas ocorrências à simples “interferência” das línguas nacionais sobre o português –, e pensarmos na relação que o sujeito mantém com a linguagem; o seu pertencimento na linguagem, ou a história da sua linguagem; o seu imaginário sobre o funcionamento fonológico das línguas. No caso particular do plano fonético-fonológico das línguas em Moçambique, qualquer análise relativa à representação ortográfica deve considerar não somente os sons em sua constituição física, mas, também, em seu funcionamento junto do sujeito, como, por exemplo, os rastros do funcionamento das línguas e da sua aprendizagem institucional. Assim, metodologicamente, os sons físicos devem servir de ponte para o entendimento dos aspectos mais profundos, mais abstratos (o que eles representam na relação entre o sujeito e a linguagem). Podemos concluir também que as ocorrências aqui apresentadas permitem afirmar que:
i) a heterogeneidade linguística em Moçambique se manifesta como constitutiva na relação português-línguas nativas. Desse modo, não é exclusivamente uma língua a força fundadora da representação escrita do português makhuwa pelos alunos do ensino bilíngue, mas o diálogo entre línguas (entre o português e o emakhuwa).
ii) na heterogeneidade entre o português e o emakhuwa, é, essencialmente, em emakhuwa o lugar de enunciação dos alunos. Desse modo, questões de ordem linguística localizáveis nos textos se explicam, primordialmente, pelas características da língua nativa.
Assim, num contexto de contato entre línguas, a estratégia de ensino seria tirar proveito desse contacto linguístico, em lugar de ignorá-lo ou rejeitá-lo. Um dos modos é compreendendo os sistemas dos dois idiomas (é claro que, para professores de línguas, isso demanda políticas adequadas de sua formação inicial e contínua). Não se defende, porém, um método didático de substituição, isto é, ministrar necessariamente as aulas de português via língua nacional. Trata-se, portanto, de analisar em quais momentos a língua nacional pode ser uma aliada e, nessas condições, usá-la “seja como ponto de partida, seja como ponto de chegada, seja como fiel da balança” (FERNÁNDEZ, 2004, p. 6). Ou seja, trata-se de aproveitar um conhecimento que o aluno já possui em língua nacional para explicar o funcionamento de língua portuguesa. Desse modo, a preparação de um plano de aula para o ensino-aprendizagem num contexto de educação bilíngue requereria, primordialmente, uma análise contrastiva das línguas envolvidas. Esse exercício passa necessariamente pela descrição comparativa e/ou paralela das línguas em questão. O resultado dessa descrição pode ser capaz de determinar qual objeto de ensino-aprendizagem merece maior atenção. Nesse caso, é imprescindível que os professores da educação bilíngue (e não só) tenham conhecimento sobre a estrutura das línguas nacionais.
Portanto, a atividade de compreensão da estrutura da língua de chegada pode ser facilitada compreendendo-se, também e primordialmente, a estrutura da língua de partida. Esse fato passa ainda por levar os alunos a reconhecer as variedades da língua, isto é, o fato de que não se pode ensinar a variedade de referência como a única. Passa-se, ainda e necessariamente, por levar o aluno a reconhecer a existência de outras estruturas linguísticas que, por força da heterogeneidade da língua, ou da heterogeneidade entre línguas, ocorre certa marcação entre as estruturas ou as variedades. Isto porque, muitas vezes, os desvios que se observam na fala/escrita do português ocorrem não porque os praticantes não aprenderam necessária e adequadamente a variedade de referência, mas porque não puderam ser levados ao reconhecimento de outras estruturas ou variedades em uso. Isto é, enfrentar as estruturas que entram em jogo na produção linguística dos alunos no português passa, primordialmente, pela não consideração de todas as ocorrências linguísticas desviantes como erradas. Por outras palavras, o caminho de ensino-aprendizagem do português no contexto bilíngue seria, portanto, o de não explicar as ocorrências desviantes a partir da falsa ideia de que o português só se apresentaria numa única variedade e que, além disso, ela seria modelo de correção – seguir por esse caminho seria ignorar a existência da estrutura da língua de partida, a variação da língua de chegada (SAGUATE, 2017). E o processo de ensino-aprendizagem dessas outras estruturas ou variedades em uso passa necessariamente pela descrição, de modo a produzir um conhecimento capaz de levar o aluno da educação bilíngue em Moçambique a perceber a estrutura da sua língua e da língua de chegada e/ou das diferentes estruturas possíveis dentro de uma língua. Assim, para que um professor de português da Educação Bilíngue em Moçambique seja capaz de lecionar suas aulas e possa (re)conhecer as nuances que os alunos apresentam na sala de aula e, por conseguinte, seja capaz de intervir com competência, é imprescendívelo (re)conhecimento da estrutura e funcionamento, ao mesmo tempo, do português e das línguas nacionais; e esse (re)conhececimento só é possível a partir da descrição dessas línguas.