Introdução
Este artigo decorre de minha apresentação a convite do projeto ABRALIN AO VIVO – Linguistas Online de conferência à Mesa Redonda, em 20/06/2020, às 19h. Nele abordarei meus novos olhares para o processamento da leitura e da alfabetização, iluminados pelas contribuições da neurociência da leitura, da linguística, da psicolinguística e da neuropsicologia.
Começarei abordando os processos que precedem os da leitura propriamente dita, tais como a captação dos minúsculos sinais pelos fotorreceptores ou cones, que ocupam a fóvea, no momento da fixação, sinais esses enviados às áreas primárias da região occipital em ambos os hemisférios cerebrais para, depois de sucessivos processamentos convergirem para os neurônios especializados da área occipital-temporal ventral esquerda (OTVE).
No tópico seguinte, tratarei do que há de comum no processamento visual dos primatas e do que os diferencia no processamento humano, decorrente de como está estruturado e de como funciona o cérebro humano: seus neurônios são capazes de aprender coisas novas, o ser humano é o único capaz de produzir cultura e de se comunicar através de signos e não apenas de sinais. Tudo isto acaba retroagindo sobre o funcionamento cerebral (efeito epigenético).
A seguir, detalharei as unidades iniciais no processamento da leitura, ou seja, os traços e letras invariantes do alfabeto latino, adotado pelo português escrito, enquanto no tópico subsequente, tratarei da reciclagem neuronal necessária para que o indivíduo automatize o reconhecimento das letras, uma vez que nos sistemas de escrita, uma invenção cultural, particularmente nos sistemas alfabéticos, o reconhecimento de muitos dos traços que constituem as letras vai de encontro a como os neurônios humanos da visão foram programados.
Outra inovação exposta no artigo é como identificar os vocábulos átonos (clíticos) no texto escrito, já que sua apresentação discrepa totalmente de como sucede na cadeia da fala, onde vêm grudados ao vocábulo com sílaba de intensidade, tornando opacas suas fronteiras. Abordo, nesse passo, em contraste, como atribuir, na leitura, o acento de intensidade às palavras que o possuem mais frequentes no português brasileiro escrito. Tais aspectos trazem à baila a questão epistemológica básica para explanar o processamento da leitura, o de sua origem: ele é bottom-up, dos sentidos em direção à cognição, é top-down, no sentido inverso, ou misto, conforme os modelos interativos?
O último tópico tratado é o do processamento do grafema em que esclareço a diferença entre letra e grafema e descrevo sucintamente as regras de conversão dos grafemas em fonemas independente do contexto grafêmico e a dele dependente, bem como a dependente da metalinguagem e/ou do contexto morfossintático e semântico.
1. Processos que precedem os da leitura propriamente dita
As da neurociência da leitura tiveram origem quando traduzi para o português o livro de Stanislas Dehaene (2007, 2012), Les neurones de la lecture.
O primeiro momento da leitura ocorre quando os fotorreceptores ou cones, que ocupam o centro da retina, a fóvea, captam as informações diminutas, contidas nos traços das letras dispostas na página (“esta região, que ocupa cerca de 1,5º do campo visual, é a única zona da retina realmente útil para a leitura” (Dehaene, 2012, p. 26)), preferindo ver uma pequena barra mais que qualquer outro estímulo. Os cones não reconhecem, contudo, que se trata de traços de letras e se tornam cada vez mais raros, à medida que se afastam do centro da fixação, causando uma degradação na capacidade de captar informação.
Os olhos são, então, obrigados a efetuar movimentos de sacada, a cada dois ou três décimos de segundo, durante os quais os cones não captam absolutamente nada, pois só captam no momento da fixação, a partir do centro, em sistemas de escrita com direção da esquerda para a direita, como o português, três ou quatro caracteres, inclusive espaços em branco, à esquerda do centro do olhar e sete ou oito à direita, ou seja, seu span.
Isso foi comprovado em um experimento de McConkie e Rayner (1975): um aparelho de eye-tracking, acoplado a um computador, detecta o trecho do texto em que ocorre a fixação que abarca os 8 a 10 caracteres; de imediato, ele substitui as letras seguintes por vários xxx, mantendo os espaços em branco, até que ocorra a nova fixação e assim em sucessão. O leitor não se dá conta dos xxx e lê o texto como se estivesse normal. Adaptei o texto, como fica, a trecho de Os Maias, de Eça de Queiroz:
“Por que esta surpreendente cegueira periférica? No momento em que é produzida, a mudança das letras não é visível porque ocorre um pico de velocidade do olho, no momento em que a imagem da retina se torna imprecisa pelo deslocamento. Assim que o olhar pousa, tudo adquire o ar normal:” (Dehaene, 2012, p. 29).
Essas evidências demonstram a ineficácia dos métodos globais de alfabetização por sentenças ou textuais, assim como a chamada ‘leitura dinâmica’ (nesta última, o autor acena com uma miraculosa metodologia que ‘aumenta o campo visual’, isto é, o span’ (ALVES, online).
O que ocorre com a informação captada pelos cones, que apenas detectam a “luz emitida por cada fragmento de imagem” (Dehaene, 2012, p. 148) no momento da fixação? Ela será transmitida às áreas primárias da região occipital, “explodindo num mosaico de manchas de luz”, onde “a maior parte dos neurônios responderia a traços simples”... “para ser progressivamente recomposta por uma pirâmide hierárquica de neurônios” (ib., p. 151), primeiro, na área V2 (detectores elementares de contornos) e, depois, na área V4.
Mas, como explica Dehaene, as projeções visuais são cruzadas: as palavras apresentadas à esquerda da tela se projetam sobre a metade direita da retina de cada olho, de onde a informação é enviada em direção às áreas visuais do hemisfério direito; e, do mesmo modo, as palavras apresentadas à direita da tela são tratadas inicialmente pelo hemisfério esquerdo (DEHAENE, 2012, p. 98).
Para onde se dirige o output do que foi processado nas áreas primárias, na região occipital, quer no HD ou HE, sejam quais forem os sistemas de escrita? Há uma convergência universal para a área occipital-temporal ventral esquerda (OTVE) (a informação provinda do HD vai consumir mais milissegundos para chegar até o HE, pois deverá cruzar o corpo caloso, conduzida pelas fibras de associação inter-hemisféricas).
Por que essa preferência pelo HE? Somente na espécie humana, ocorre uma divisão de trabalho entre os dois hemisférios cerebrais, sendo o HE o dominante, na maioria das pessoas. Grosso modo, as áreas secundárias do HE vão se especializar para o processamento sequencial no tempo, como a linguagem verbal (contudo, para a execução de comandos motores muito simples, como na digitação, não há exclusividade do HE).
2. Base comum no processamento visual dos primatas e diferenças essenciais com o dos humanos
Os processamentos para o reconhecimento dos traços e letras invariantes que foram convencionados no alfabeto latino; para o reconhecimento dos grafemas e seus respectivos valores (os fonemas) e para a atribuição do acento de intensidade maior, nos vocábulos que o possuem confirmam alguns dos fundamentos essenciais à linguística, a partir do séc. XX, como o de invariância, de níveis hierárquicos de complexidade crescente, de articulações, de economia e de distribuição contextual e ressaltam a necessidade da mudança epigenética, determinada pelos fatores culturais: os neurônios da área occipital-temporal ventral esquerda precisam ser reciclados, através da aprendizagem, para que ocorra o reconhecimento rápido e fluente da palavra escrita com vistas a uma leitura compreensível e, em consequência, crítica dos textos que circulam em sociedade.
Você sabe qual a base comum no sistema visual dos primatas? Todos eles devem reconhecer as formas básicas do que se encontra na natureza. Isso independe do que o olhar capta, conforme a distância, o ângulo de visão, onde a luz e a sombra incidem e de qual a parte captada em relação ao todo, etc. Deve-se, porém, fazer uma distinção essencial: somente o ser humano, espécie semiótica, além do reconhecimento em nível do sinal, opera com signos, cujas relações entre significantes e suas respectivas significações básicas são tacitamente convencionadas pelos membros de um mesmo grupo social.
Sob a ótica do processamento, enquanto na cadeia sinal-resposta ocorre uma contiguidade espaço-temporal, o signo exige uma sucessão de níveis de processamento, exemplificados a seguir, com os da leitura, no português escrito, ocasionando um distanciamento espaço-temporal entre o reconhecimento do significante e sua compreensão (D’AQUILI, 1972).
3. Unidades iniciais no processamento da leitura: traços e letras invariantes
(Atenção, Sr. Diagramador: usar para as letras em destaque a fonte ARIAL)
Nos primeiros níveis do processamento da linguagem verbal, os paradigmas são fechados à entrada de novas unidades, começando no nível mais baixo, com um número muito pequeno de unidades, aqui exemplificadas com os traços invariantes primários das letras de imprensa, no sistema latino. São 8 traços de natureza abstrata que comporão as letras: | O ɿ c U ﬤ ~ . Acrescem-se os seguintes traços, aplicando de forma ótima o princípio da economia, para facilitar a automatização do processamento:
9. Posição da reta: vertical, horizontal ou inclinada; ou da bengalinha, que aparece além de reta, inclinada, só na letra y: | \ - (I V A Á À); ɿ (n y).
10. Quantidade de cada traço: um, dois, três, quatro, cinco ou seis, às vezes, em espelho (I S L X Z F H B N E M W É Ê s x n m k z w).
11. Tamanho diferente na mesma fonte: a reta (n h L Z F H k z).
12. Ultrapassagem da linha de base imaginária (só nas minúsculas): g j p q y.
13. Direção e como se combinam: à direita do eixo (B D E F K L P R b h k m n p); à esquerda do eixo (d q); vértice para baixo (V v W w Y y); vértice para cima: (A M); bengalinha com abertura no topo, voltada para a esquerda: (a h m n); bengalinha com abertura no topo, voltada para a direita: (f); bengalinha com abertura na base, voltada para a direita: (t u); bengalinha com abertura na base, voltada para a esquerda: (g j y J); semicírculo com abertura voltada para a direita: (a c d e g q C G); semicírculo ou metade de elipse com abertura voltada para a esquerda: (b p B D P R);
14. Combinações topológicas: pequeno traço no topo, ou cortando um terço da bengalinha, ou a base do círculo, ou fazendo ângulo com o semicírculo: (r f t Q G).
Nenhum dos traços gráficos tem função de distinguir significados (ao contrário dos traços acústicos invariantes que compõem os fonemas).
E assim chegamos às 26 letras invariantes maiúsculas e minúsculas do sistema latino que, como templates ou protótipos, estão disponíveis na área occipital-temporal ventral esquerda para serem pareadas com a letra extraída das manchas de luz se o indivíduo tiver aprendido a reconhecer quais são, quantos são, mas, sobretudo, como se combinam tais traços invariantes, para diferenciar uma letra das demais:
A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z
a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t u v w x y z
O reconhecimento dos traços invariantes das letras e suas combinações independe das infinitas variantes em sua execução, tais como tamanho, caixa (MAIÚSCULA ou minúscula), fonte e estilo (imprensa, manuscrita, itálico, negrito ou sublinhado, etc.), ou da posição que ocupam na palavra (DEHAENE, 2012, p. 33-34), detalhes que são descartados para reconhecer de que letra se trata.
Veja a diferença entre d/b (ambas as letras possuem dois traços idênticos, isto é, um semicírculo e uma reta vertical): a diferença reside no traço da direção, num caso, o semicírculo está à esquerda da reta vertical (d); noutro, está à direita (b).
4. A escrita, uma invenção cultural: reciclagem neuronal e sua aplicação ao ensino-aprendizagem
Por serem uma invenção cultural, os sistemas de escrita, no início, em seu nível mais baixo de processamento, o do reconhecimento do logograma, exigiam um custo de memorização de milhares e milhares de unidades. Os sistemas que persistiram logográficos, como o mandarim, ainda exigem tal custo: seu dicionário mais recente de tais logogramas lista cerca de 60.000 (MAIR, 1996, p. 200).
Regidos pelo princípio da economia, isto é, dizer o máximo com o mínimo de significantes, esses últimos foram sofrendo podas metonímicas até reduzi-los aos pouquíssimos traços invariantes que, combinados, formam as letras, nos sistemas alfabéticos, além da introdução de novos níveis de processamento.
Para obter o menor número possível de traços básicos, foi introduzido o traço de direção. Um só traço, conforme esteja à direita, ou à esquerda, para cima, ou para baixo indica letras diferentes, como é o caso das quatro letras: b d p q , que só se diferenciam entre si pelo traço da direção (e não é pouca coisa porque, acrescidas da letra c, vão realizar grafemas que representam 4 das 6 consoantes oclusivas do português brasileiro (PB)).
Mas como foi possível introduzir um traço que vai de encontro a como os neurônios da visão foram geneticamente programados para simetrizar a informação? A explicação quem nos dá é Dehaene (2012, p. 166): “a criação de novos objetos culturais repousa sobre mecanismos neuronais de aprendizagem que não necessitam nenhuma mudança de genoma” e introduz a expressão ‘Reciclagem neuronal’: “a invasão parcial ou total de territórios corticais inicialmente destinados a uma função diferente, por um objeto cultural novo.” (ib., p. 166).
As aplicações de tais achados à metodologia da alfabetização são inúmeras. A mais importante é a de que não podemos esperar que a maioria das crianças depreenda o traço da direção, intuitivamente, sem um trabalho sistemático e contínuo para que seus neurônios da área OTVE sejam reciclados. Do contrário, elas persistirão com leitura e escrita espelhadas, como se verifica no início da aprendizagem. Vide a narrativa de uma criança de 7 anos, do 2º ano do EF, de S. José da Laje, Al, que redige muito bem, do ponto de vista da textualidade, porém, sistematicamente, substitui ‘d’ por ‘b’, na manuscrita (a Secretaria Municipal de Educação de S. José da Laje adotou o Sistema Scliar de Alfabetização):
A seguir, a versão por mim transcrita ipsis litteris, para facilitar a legibilidade para o leitor:
Era uma vez um cachorro
chamabo Lulu que queria fazer
uma festa na casa bele.
Lulu se arruma fica boni-
to. Pegou seu violino e foi
para sala tocar e espera seus
amigos.
Mais eles não chegaram esta-
tavam be quarentena com me-
bo bo Corona virus.
autor - arthur
5. Identificação dos vocábulos átonos (clíticos) no texto escrito
Os sistemas de escrita alfabéticos podem tornar transparentes, às vezes, o que na comunicação oral é opaco. Isto diz respeito a homófonos não homógrafos, por exemplo, ‘imigrante’/ ‘emigrante’; ‘caçar’ / ‘cassar’, mas, principalmente, à identificação dos vocábulos átonos (clíticos) que, na cadeia da fala vêm grudados ao vocábulo tônico do qual são dependentes, no nível fonológico, sofrendo alterações de monta, assimilações, ressilabações, como no exemplo (adaptado, para legibilidade): os + olhos à zoio.
No português escrito, os vocábulos átonos que terminarem por vogal oral, além de delimitados por espaços em branco ou por hífen (no caso da mesóclise e ênclise dos pronomes pessoais oblíquos) somente ocorrerão com as letras ‘a’, ‘e’, ‘o’, seguidas ou não da letra ‘s’. Se, ao invés das letras ‘e’, ‘o’, ocorrerem as letras ‘i’, ‘u’ (s), o vocábulo é tônico. Ex. “João te ama”. “João gosta de ti”.
Muita atenção: trata-se da letra e não de como é pronunciado na maioria das variedades sociolinguísticas! Mas há uma contradição: um mesmo traço, às vezes, é usado para identificar letras diferentes, sendo necessário desmanchar a ambiguidade. O exemplo é o do traço vertical I que, isolado, tanto pode ser uma letra maiúscula como em ‘Ivo’, quanto a minúscula, como em ‘mala’.
É necessário, pois, o contexto, ou o conhecimento prévio de que se trata de um nome próprio, para esclarecer qual é a letra. Inferimos que não basta o reconhecimento dos traços para identificar de que letra se trata, trazendo à discussão uma questão chave no debate sobre o processamento da leitura: ele é bottom-up, dos sentidos em direção à cognição, na esteira da epistemologia aristotélica? Ele é top-down, no sentido inverso, na esteira da epistemologia platônica? Ou ele é misto, conforme o modelo interativo, em que os vários níveis de processamento interagem uns com os outros (STANOVITCH, 1980, p. 57)?
A neurociência da leitura fornece dados de que há processos paralelos, mas, sobretudo, intra e inter-hemisféricos, conectados através de fascículos ou feixes, formados pelas fibras associativas dos axônios (DEHAENE, 2012, p. 74), portanto, comprova-se que o processamento é misto, conforme o modelo interativo de Stanovitch e não só bottom-up ou top-down.
Ainda, aplicando o princípio da economia à comunicação linguística, zero ou ausência também valem, desde que opostos à presença de um signo, no mesmo contexto. Essa concepção remonta a Saussure (1972, p. 164), coerente com a teoria de valor que embasa sua proposta, ao definir o fonema como uma unidade opositiva, relativa e negativa e, nos manuscritos, descobertos em 1996, quando afirma: “o nada também vale” (SAUSSURE, 2002, P. 68).
Exemplificarei com a regra de ouro de atribuição do acento de intensidade, quando se lê um texto em português, ao padrão vocabular escrito, isto é, as palavras paroxítonas terminadas pelas letras ‘a’, ‘e’, ‘o’, seguidas ou não da letra ‘s’, ou terminadas por ‘em’, ‘ens’, ‘am ’, graças ao gênio de Viana (1904): ao aplicar o princípio da economia, isentou tais palavras tônicas, mais frequentes do português, de portarem acento gráfico. Por exemplo, ‘casa’, ‘nomes’, ‘livro’, ‘jovem’, ‘homens’ e todo o presente do indicativo, salvo a 2ª pess. do plural e as formas oxítonas ou monossílabos tônicos.
6. O nível de processamento do grafema
Tratarei agora, do nível seguinte, de natureza mais complexa, o nível de processamento do grafema, a unidade que, numa dada língua escrita, tem a função de distinguir significados e de representar os fonemas desta mesma língua oral. É neste nível que podemos detectar o grau de transparência de uma dada língua escrita.
Deve ficar clara a diferença entre letra e grafema. Veja-se o exemplo a seguir: em <date>, as letras são as mesmas para o português e o inglês, mas os grafemas, não. No PB, <d> → /´d/; <a> → /a/; <t> → /t/; <e> → /I/; no inglês, <d> → /´d/; <a> → /ei/; <t> → /t/; <e> → /0/ (zero). As letras são exatamente as mesmas, pois ambas as línguas escritas adotam o alfabeto latino, porém os grafemas, que representam os fonemas, não, já que o sistema fonológico é exclusivo de cada língua oral.
O processamento dos grafemas é possível, em primeiro lugar, em virtude da conexão, via fascículos, entre uma porção da área occipital ventral esquerda com o plano temporal esquerdo e, a seguir, em cadeia, com parte da área de Broca (a região opercular), parietal inferior e plano temporal, todas elas no HE.
Com efeito, quando lemos, transformamos o que lemos em ‘fala interior’. Mas, para tal acontecer, é necessária a aprendizagem: na maioria dos indivíduos, ela ocorre com a alfabetização a fim de se obter o alvo, que é compreender o que se lê para uma interpretação crítica. O reconhecimento dos grafemas (tal como o dos traços e das letras) necessita ser automatizado, a fim de liberar a mente para os processamentos mais criativos, como, de qual radical se trata, qual sua significação básica? Mas, sobretudo, para poder construir o sentido novo das palavras, frases, orações, períodos, parágrafos e texto (macro-estrutura). O indivíduo, ao ler, não pode titubear ou soletrar cê-a-sa; cê-ó-só, diante da palavra escrita ‘caco’!
No português, cada grafema pode ser realizado por uma ou duas letras, como em <onça>, em que temos quatro letras, mas três grafemas <on> → /õ/; <ç> → /s/; <a> → /a/. No PB escrito, a conversão dos grafemas em fonemas foi exaustivamente formalizada por Scliar-Cabral (2003), que a classificou em:
1. Independente do contexto grafêmico, como em, <p> → /p/; <b> → /b/; <t> à /t/; <d> → /d/; <f> → /f/; <v> → /v/; <á> → /´a/; <ss> → /s/.
2. Dependente do contexto grafêmico: os grafemas <m>, <n>, em início de sílaba, portanto, também de palavra, se convertem, respectivamente, nas consoantes /m/, /n/. Exemplos: <mala> → /´mala/, <cena> → /´sena/.
3. Dependente da metalinguagem e/ou do contexto morfossintático e semântico.
Você vai ler a primeira vogal no enunciado “- Gosto de você.”, como mais baixa, porque reconhece que a palavra é um verbo, enquanto na frase “Gosto não se discute”, trata-se da vogal que não é baixa, porque é um substantivo. Já nos exemplos a seguir, a decisão em converter a primeira vogal da palavra nos enunciados “Efetuaram cortes no orçamento” e “Cortes supremas salvaguardaram a Constituição” depende do contexto semântico, pois em ambos os enunciados, a palavra ‘cortes’ é um substantivo.
Após a conversão dos grafemas em fonemas em cada sílaba, segue-se a síntese silábica e das sílabas na palavra, com complexas transformações ditadas pelo fenômeno da coarticulação e/ou pela variedade sociolinguística e registros estilísticos praticados pelo leitor, uma vez que a unidade processada é a sílaba. Isso dá ensejo a muitos jogos humorísticos com as palavras, como no exemplo a seguir que eu adaptei em tradução para o português:
Palavras ditas pelo pedante Holoferne, personagem de Shakespeare: “Eu detesto estas fantasias fanáticas, estes companheiros antissociais e capciosos, estes carrascos da ortografia que, por exemplo, pronunciam cáquitu ao invés de cáctus; pisíku ao invés de psico; que leem fôru ao invés de foram; por que embora se torna simbora e por que não é fica abreviado em né? Isto é abominável, palavra que esses mascarados pronunciariam como abominávew. É levar um homem à insanidade” (DEHAENE, 2012, p. 44-45).
7. Considerações finais
Meu novo olhar sobre aprender, no contexto do processamento da leitura do PB escrito, significa automatizar o reconhecimento dos traços e letras invariantes do alfabeto latino; a partir do que foi convencionado pela comunidade linguística do português escrito, automatizar o reconhecimento dos grafemas e seus respectivos valores (os fonemas), bem como a atribuição do acento de intensidade maior, nos vocábulos que o possuem, sendo o padrão vocabular canônico, as palavras com duas sílabas ou mais que terminam por ‘a’, ‘e’, ‘o’, seguidas ou não por ‘s’, ou terminadas por ‘em’, ‘ens’, ‘am’, que não levam nenhum acento gráfico, lidas, portanto, como paroxítonas; automatizar a delimitação dos vocábulos átonos que, no PB escrito, se terminarem por vogais orais átonas, só podem ser registradas pelas letras ‘a’, ‘e’, ‘o’, seguidas ou não por ‘s’ e, por fim, automatizar o reconhecimento dos padrões de entoação.
Tudo isto possibilitará, sobretudo, a construção do sentido novo das palavras, frases, orações, períodos, parágrafos e texto (macroestrutura), formando leitores críticos e com gosto pela leitura.