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Research Report

Friend or foe: the morphological kinship between words

Julia Cataldo

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https://orcid.org/0000-0001-5676-6636

Aniela França

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Keywords

Lexical access
Semantic opacity
Distributed Morphology
Psycholinguistic priming test

Abstract

One of the inevitable linguistic operations is that of lexical access, which easily allows us to understand and/or produce words. However, behind the apparent simplicity of the relationship between form and meaning in the context of the word, there are mechanisms that are far from being fully understood and that have been generating a lot of discussion in recent years. In this psycholinguistic crossmodal priming study, we seek to understand how we represent and access a target word that, despite sharing the root with the prime, is foreign to its semantic meaning. These are pairs of words that have a morphological and a semantically diachronic relationship with each other, but that do not have a semantically synchronic one. For example, do we see refrigerante (meaning “soda” in Portuguese) in refrigerar (“to chill” in Portuguese)? Also, how do we represent refrigerante (soda) in our mental lexicon? Finally, does the refrigerar-refrigerante (to chill/soda) processing route differ from a purely semantic route, as in refrigerar-esfriar (morphologically entirely different words but both meaning “to chill”), and a compositional route with transparent semantics, as in refrigerar-refrigerador (to chill-fridge)? The results point to the confirmation of the hypothesis of decompositional models, suggesting: i) new entries in the mental lexicon for words like refrigerante (soda); ii) an identity relationship between compositionally related words, a weaker referential relationship between opaque related words and a variable joint use relationship between semantically-only related words.

O processamento e o acesso a palavras

Ao ler Depois do surto, a maioria das lojas vai entrar em liquidação, será que se percebe que existe o nome líquido aninhado dentro de liquidação? Será que líquido também é ativado no cérebro?

É claro que enquanto análise superficial e off-line da língua, a palavra líquido é bem visível em liquidação, que também carrega o morfema -ção, muito recorrente no português. No entanto, líquido e liquidação podem parecer não-relacionáveis semanticamente, especialmente porque, durante o uso, raramente nos damos conta de que se trata de um processo de idiomatização pelo qual passa o verbo liquidar, cuja negociação semântica é, em seguida, herdada pelo nome derivado liquidação. A despeito de tal análise off-line1, a questão fundamental aqui é outra: realmente nos átimos de segundo de que dispomos para fazer sentido das frases que produzimos2 e que nos chegam, seja por via escrita, falada ou sinalizada, não computamos uma análise consciente do que percebemos, pensamos ou fazemos.

A idiomatização é uma leitura que se aparta da leitura composicional. A leitura composicional de uma estrutura morfologicamente complexa oferece previsibilidade a cada instante em que uma nova camada morfológica é inserida. Por exemplo, em liquid-ifica-d-or, temos o conceito básico negociado na primeira vez que a raiz liquid- se combina com o nominalizador Ø e com a vogal temática o. Depois desse ponto, as camadas subsequentes de verbalizador e adjetivador se compõem composicionalmente, assim como o nominalizador -or, que fecha o ciclo de derivação dessa palavra: liquidificador = aquele que torna alguma coisa líquida. Contudo, a rota morfológica composicional não impede que haja uma rota paralela não-composicional. Esse é o caso de liquidação, em que o nome líquido se combina com um verbalizador e se torna liquidar, que negocia seu significado não a partir de líquido com um todo, mas a partir de uma propriedade dos líquidos que é a propensão para a evasão. Assim, tornar líquido alguma coisa sólida é restringido para assumir o significado idiomático de se esvair, terminar. Depois desse ponto, as camadas subsequentes herdam tal significado idiomático de base e passam a compor composicionalmente os derivados. Existe uma ligeira coerção nesse processo no contexto de venda, muito produtivo por sinal, em que liquidação assume o sentido de uma ação em que o estoque da loja está no processo de término e o ajuste pragmático nos faz entender que deva ser em relação à remarcação de preços. Note que também há um certo ajuste desse tipo com a própria palavra liquidificador, já que ele não necessariamente liquidifica alimentos (cf. LEMLE; FRANÇA, 2006 e PEDERNEIRA; LEMLE, 2015 para um maior detalhamento dos casos e do funcionamento morfológico da idiomatização no Português Brasileiro).

Tomando como base a teoria da Morfologia Distribuída (HALLE; MARANTZ, 1993), que propõe que exista sintaxe até dentro das palavras, podemos interpretar as proposições de Pylkkänen (2019) – um texto novo, porém já seminal – pensando na relação entre forma e conteúdo no estudo do processamento lexical. Nesse texto (PYLKKÄNEN, 2019, p. 65), a autora mostra que, apesar de tomarmos como verdade que a sintaxe opera independentemente da semântica – como Chomsky (1957, p.15) provou com seu célebre exemplo Colorless green ideas sleep furiously –, até hoje não conseguimos decifrar completamente seu funcionamento. Por exemplo, não sabemos como a sintaxe é computada em nosso cérebro, nem como ela atravessa as interfaces. Assim, dissociá-la da semântica, no acesso lexical e no processamento de sentença nas línguas naturais, continua sendo um grande desafio da pesquisa linguística.

Dessa forma, na área do processamento e representação lexical, concordamos que o falante-ouvinte não consegue ter uma percepção clara sobre a forma com a qual acessou uma palavra, isto é, se ela foi: i) fisgada inteira de dentro de um pequeno reino de palavras independentes no cérebro; ou ii) se suas partes foram escolhidas dentre várias já estocadas para serem, então, compostas em uma linha de montagem de palavras que estariam em vias de serem faladas ou interpretadas.

O presente trabalho enfoca o acesso a palavras formadas por relação semântica que se dá apenas diacronicamente. Melhor dizendo, nos interessamos por palavras derivadas que, apesar de não apresentarem mais relação semântica transparente com suas palavras primitivas, mantêm a estrutura morfológica das mesmas. É o caso da já apresentada liquidação, que vem de líquido, mas também de refrigerante, que vem de refrigerar, e de professor, que vem de professar. Ao pedirmos um copo de Coca-Cola ou de Guaraná, estamos pensando que, se seguíssemos a semântica original de refrigerar, a função do refrigerante seria a de nos refrescar? Ao nos dirigirmos a um professor, temos consciência ativa de que ele professa um saber durante suas aulas?

Pretendemos responder tais perguntas ao observar as diferenças de processamento entre três grupos de palavras: i) palavras morfologicamente relacionadas cuja relação semântica é sincronicamente transparente (como líquido-liquidificar); ii) palavras morfologicamente relacionadas cuja relação semântica é sincronicamente opaca (como líquido-liquidação); e iii) palavras que não apresentam relacionamento morfológico entre si, mas cuja relação semântica é transparente (como líquido-aquoso).

Assim, realizamos um experimento psicolinguístico, através do qual nos lançamos a entender: i) como se dá o processamento das palavras (se são acessadas inteiras ou por suas partes); ii) se o processamento de palavras que são morfologicamente relacionadas, mas semanticamente opacas às que as originaram é, de alguma maneira, diferente do de palavras com significado sincrônico transparente; e iii) se a rota morfológica de processamento difere da rota semântica, analisando de que maneira elas podem favorecer/acelerar ou desfavorecer/desacelerar o acesso lexical.

A todos esses três pontos subjazem mecanismos que todo falante realiza para associar forma e conteúdo em uma palavra. Dessa maneira, esperamos, com esse estudo, ter dado um passo adiante no estudo da sintaxe e da semântica dentro das palavras.

1. Hipóteses psicolinguísticas: as três abordagens

As questões postas pelo acesso lexical vêm gerando há muitas décadas uma enorme gama de testes sofisticados de comportamento, de neurofisiologia e de hemodinâmica, os quais permitem um acompanhamento online preciso do processamento. Em geral, esses experimentos têm um desenho metodológico especialmente moldado para testar hipóteses formuladas a partir de questões legítimas, oriundas, simplificadamente, de três tipos diferentes de abordagens linguísticas.

A hipótese da primeira dessas abordagens é a de que o cérebro tem uma capacidade de armazenamento virtualmente ilimitada e, em decorrência desse estado de coisas, existiria acesso lexical direto às palavras, sem a necessidade de estoque e remontagem de suas partes. Assim, em tais modelos de listagem plena, a memória é essencial, porque não só o item é memorizado de maneira independente e em todas as suas possíveis formas, como também seriam memorizadas todas as situações de seu uso conjunto a outras palavras. Seria, então, formada uma rede de itens – menos ou mais reforçados pela frequência de cada um e pela frequência de suas famílias – que poderiam ser acessados diretamente em qualquer acepção. Portanto, o caminho tomado nessa abordagem começa pela semântica e vai na direção de cima para baixo (top-down), supostamente garantindo a eficiência necessária ao uso online imediato e plenamente contextualizado da linguagem (BUTTERWORTH, 1983; HAY; BAAYEN, 2005; JACKENDOFF, 1983).

Na segunda abordagem, a hipótese entretida é a decomposicional. O cérebro humano teria uma capacidade de decompor as palavras que processa e também de juntar morfemas para produzir novos compostos. Essa capacidade, determinada pela genética da espécie, seria minimamente necessária à linguagem e, por isso, a operação básica de merge – ou concatenação, em português – de morfemas (CHOMSKY, 1995) não apresentaria custo para a computação e poderia ser eficientemente utilizada todo tempo: it’s syntax all the way down (sintaxe todo tempo; MARANTZ, 1997). Portanto, a aposta desses modelos é na computação morfossintática plena. Eles preveem a decomposição completa das partes na direção de baixo para cima (bottom-up), indo da sintaxe à semântica através de regras computacionais explícitas. É costume nesses modelos decomposicionais acreditar-se que guardamos o menos possível de léxico na mente, submetendo os morfemas à atuação de algumas regras, que nos permitiriam formar diversas palavras com aqueles pareamentos de forma e significado já estocados. Os pesquisadores que reforçam esses modelos defendem que eles seriam menos custosos do que os não-decomposicionais (TAFT, FORSTER, 1975; 1976; FORSTER, 1979; TAFT, 1979; PYLKÄNNEN et al., 2000; STOCKALL, MARANTZ, 2006; EMBICK et al., 2001; PYLKÄNNEN et al., 2002; PYLKKÄNEN, MARANTZ, 2003; PYLKÄNNEN et al., 2003).

Também há pesquisadores que acreditam que, uma vez que existem no cérebro córtices para processamento e também áreas para armazenamento, um processo não necessariamente excluiria o outro. Esses perfazem, portanto, um terceiro tipo de abordagem teórica: a dos modelos mistos. Eles propõem que o cérebro esteja pronto tanto ao acesso bottom-up quanto ao top-down, de maneira que a forma utilizada seria sempre a mais eficiente, a depender da palavra que se quer acessar: palavras mais transparentes e/ou regulares seriam acessadas por decomposição e, palavras mais opacas e/ou irregulares, por acesso às redes (CARAMAZZA et al., 1988; MARSLEN-WILSON et al., 1994; PINKER, 1991).

Nossas previsões para este trabalho, contudo, lidam com estímulos diferentes dos que foram relatados aqui. Acreditamos que haja decomposição bottom-up não só em palavras com vínculos vivos e sincrônicos, mas também em palavras como refrigerante, cujas fronteiras morfêmicas parecem ter sido refeitas a ponto de não negociarem sentido sincrônico com refrigerar.

2. Estudos motivadores

Diversos estudos tentam oferecer uma contribuição ao desempate entre as três propostas apresentadas anteriormente. Os resultados de quatro, em particular, motivaram as perguntas experimentais do presente trabalho.

Em primeiro lugar, Garcia (2009) realizou um teste de priming3 monomodal4 encoberto5 com quatro condições de relacionamento de palavras: morfológico (pares como FILA-fileira), apenas semântico (pares como ORDEM-fileira), apenas fonológico/ortográfico (pares como FILÉ-fileira) e nulo (pares como MATO-fileira). Os tempos de resposta foram significativamente menores para os pares da condição morfológica e, para os da condição fonológica, foram até maiores que para os da condição de relacionamento nulo. Apesar de essa última diferença não ter sido estatisticamente relevante, a autora sugere a interpretação de que a semelhança fonológica entre prime e alvo possa inibir o processamento lexical. Ainda, os baixos tempos de resposta para os pares da condição morfológica estimularam Garcia a defender o modelo decomposicional (a segunda abordagem apresentada na sessão anterior), no qual o léxico mental seria estruturado morfologicamente, morfema a morfema, de maneira que fatores semânticos tardios não seriam relevantes para os momentos iniciais do processamento.

O segundo estudo que nos motivou foi o de França et al. (2008). Os autores se debruçaram sobre a hipótese da diferença derivacional entre o acesso semântico à parte arbitrária da palavra, isto é, à concatenação da raiz com o primeiro morfema categorizador, e à parte composicional da palavra. Para tanto, fizeram um teste de priming multimodal, dividindo seus estímulos em dois grupos, fonológico (GF) e morfológico (GM), cada um contendo 3 tamanhos diferentes de palavras: GF possuía estímulos com 3 quantidades diferentes de sílabas, enquanto GM possuía estímulos de 3 quantidades diferentes de camadas morfológicas. Eles acreditavam que essa diferença de tamanho os ajudaria a melhor entender a derivação lexical, uma vez que variava o ponto da arbitrariedade saussuriana em GF, mas não em GM.

Analisando os ERPs (Event Related Potentials)6 produzidos pelos participantes, os autores constataram que, enquanto em GF o acesso a alvos menores era mais rápido que o a maiores, em GM o tamanho dos alvos não gerou nenhuma diferença estatisticamente relevante nos tempos de processamento. Além disso, os resultados gerais de GM foram mais rápidos que os de GF. Os autores sugeriram, então, a morfologia como um fator de aceleração do reconhecimento de palavras e analisaram seus resultados à luz da Morfologia Distribuída (HALLE; MARANTZ, 1993), uma abordagem decomposicional que propõe que a derivação lexical passe por três fases. A concatenação da raiz com o primeiro morfema categorizador se daria na terceira fase, a Enciclopédia, em que um significado seria pareado com a forma da palavra, sendo esse o momento do acesso lexical por excelência. Após essa primeira computação, as demais camadas morfológicas da palavra seriam processadas composicionalmente.

França et al. (2008) terminam seu estudo se perguntando, no entanto, o que aconteceria com pares de palavras que suscitam dúvidas nos falantes quanto à sua relação semântica sincrônica. Por exemplo, parece que não se reconhece mais restaurar dentro de restaurante e refrigerar dentro de refrigerante, ambos exemplos dados pelos próprios autores. Nesses casos, em que há relacionamento semântico diacrônico, mas não sincrônico entre palavras pertencentes às mesmas famílias morfológicas, será que a morfologia também será um fator de aceleração no reconhecimento lexical?

Em Maia, Lemle e França (2007), foram aplicados dois testes utilizando rastreamento ocular em uma plataforma para medir o efeito stroop7. O primeiro teste verificou o nível de conhecimento intuitivo dos morfemas nas palavras. Os resultados apontaram para a existência de um processamento morfológico consciente tanto para morfemas que foram computados composicionalmente quanto para aqueles que geravam leituras arbitrárias. Portanto, os resultados do primeiro teste corroboram a existência do processamento bottom-up. Os resultados do segundo teste, no entanto, indicaram uma diferença de fixações oculares para, de um lado, morfemas com leitura composicional e, de outro, morfemas com leitura arbitrária e pseudomorfemas. Isso, por sua vez, advoga pela existência (simultânea) de um processamento top-down. Os autores ressaltaram que as diferenças de metodologia e tarefa experimental podem ter sido os responsáveis por tais contradições e sugeriram que mais estudos fossem feitos.

Em 2015, Maia e Ribeiro trabalharam com o acesso lexical a pseudopalavras mono e polimorfêmicas (como liboramima e norbalense, respectivamente), comparando-o com o de palavras também mono e polimorfêmicas (como jabuticaba e jornaleiro, respectivamente). O uso das pseudopalavras com sufixos comuns na língua estudada permite que se saiba qual curso segue o processamento linguístico de um participante, quando a ele é apresentada o que a princípio é uma nova palavra do português. Concluíram que o acesso a palavras e pseudopalavras polimorfêmicas segue um curso bottom-up, pela possibilidade de decomposição do lexema. Propuseram ser esse o mesmo motivo pelo qual as pseudopalavras e as palavras multimorfêmicas tiveram mais aceitação na tarefa de decisão lexical, quando comparadas às palavras e pseudopalavras monomorfêmicas. Não descartaram, no entanto, a possibilidade da existência de um processamento dupla rota.

Diante de um cenário ainda de muitas dúvidas sobre o curso do processamento lexical, o presente trabalho conta com um grupo seleto de palavras estímulos que manipula morfologia sob os recortes da sincronia e da diacronia. Acreditamos que, com ele, poderemos avançar em alguma medida no entendimento desse campo fundamental da linguagem que é o acesso lexical.

3. Os experimentos comportamentais

Elaboramos um teste comportamental offline e um online. O teste offline nos permitiu colher e validar estímulos que, posteriormente, foram utilizados no teste online, cujo objetivo era a observação do curso temporal do processamento lexical e, consequentemente, de seu custo.

3.1. Experimento comportamental offline – Pré-teste

Uma vez escolhidos os primes, restava a árdua tarefa de elencar e validar seus alvos. O experimento comportamental offline teve, então, duas grandes razões de ser: i) colher possíveis alvos para as condições morfológicas do experimento online; e ii) validar a existência de relacionamento semântico entre primes e alvos que havíamos incialmente selecionado para a condição apenas semântica do experimento online. Tal revalidação é importante porque, apesar de ambas as autoras do presente trabalho serem falantes nativas de português, o nível de relação semântica atribuído a um par de palavras pode variar de falante para falante, de acordo com as idiossincrasias e particularidades dos meios interacionais em que se encontram.

Assim, tal teste comportamental offline serviu como um pré-teste de validação dos materiais experimentais do teste online. Optamos por realizá-lo na plataforma Google Formulários.

3.1.1. Participantes

No total, 30 pessoas (diferentes das que posteriormente participaram do experimento comportamental online) registraram suas repostas. Suas idades variavam entre 18 e 35 anos e todas aceitaram participar voluntariamente do teste. No grupo, havia indivíduos com nível superior completo e indivíduos que cursavam sua graduação. As áreas do saber de suas atividades eram variadas, perpassando as ciências humanas, as exatas, as biológicas, as linguísticas, as literárias e as educacionais. Todos moravam no estado do Rio de Janeiro.

3.1.2. Materiais e desenho experimental

Dividimos o formulário em dois grandes momentos. No primeiro, cujo objetivo era colher possíveis alvos para as condições morfológicas, utilizamos uma adaptação da técnica de cloze aberto8. Processos cognitivos como a percepção e a memória estão envolvidos nessa técnica experimental, que se mostrou interessante para nosso estudo por validar que o emissor (o participante) e o receptor (as autoras do teste) compartilhassem um mesmo conjunto de mensagens, isto é, uma mesma opinião sobre a existência de um relacionamento entre duas palavras (para uma revisão mais completa dessa metodologia, cf. ABREU et al., 2017).

Fornecíamos um prime escrito e pedíamos aos participantes que escrevessem a primeira palavra que lhes vinha à cabeça quando o liam (Figura 1). Cada participante avaliou 24 primes experimentais – exatamente os mesmos que, após essa validação, foram utilizados no experimento principal – e 6 primes distratores. Cada participante podia dar apenas uma palavra como resposta. Cada estímulo, acompanhado do espaço para a reação do participante, aparecia em um quadro. Cada quadro era separado dos demais.

Figure 1. Figura 1. Formulário Google com teste de cloze aberto adaptado, para colher possíveis novos alvos para as condições morfológicas. Fonte: elaborada pelas autoras.

Em uma segunda seção do mesmo formulário, formatamos a técnica de likert scale – ou escala likert, em português9 (JOSHI et al., 2015), para validar a existência de relacionamento semântico entre 48 pares de palavras, que planejávamos futuramente usar como estímulos das condições unicamente semânticas (Sm3 e Sm4, cf. quadro 1) do experimento comportamental online.

Nesse momento, os participantes viam duas palavras escritas na tela – respectivamente os primes e alvos das duas condições apenas semânticas do teste de priming principal – e classificavam o relacionamento dessas duas palavras de 1 a 5, sendo 1 atribuído a um relacionamento muito distante entre ambas e 5 a um relacionamento muito próximo (Figura 2).

Figure 2. Figura 2. Formulário Google com escala likert, para avaliar o nível de relacionamento entre os pares das condições apenas semânticas. Fonte: elaborada pelas autoras.

Cada participante avaliou 6 pares de distratores e 24 pares de palavras experimentais, os quais estavam distribuídos Within-Subjects: 12 eram provenientes da condição semântica com 3 sílabas (Sm3) e 12 eram provenientes da condição semântica com 4 sílabas (Sm4). Ambas serão melhor explicitadas na próxima seção, onde estão esquematizadas no quadro 1. Os distratores foram os mesmos em ambas as versões e as primeiras palavras de cada par eram as mesmas utilizadas previamente como estímulo no teste de cloze.

3.1.3. Hipóteses

Como respostas à parte 1 do experimento, esperávamos encontrar palavras que fossem morfologicamente relacionadas às disponibilizadas. Contudo, uma vez que o comando passado era muito aberto, tínhamos consciência de que essa operação poderia não ser tão frutífera.

Para a parte 2, por sua vez, almejávamos classificações de alto nível de relacionamento semântico entre o par de palavras, i.e., pelo menos 70% de marcações para um par estarem concentradas nos números 3, 4 e 5 (sendo esse último o correspondente a “palavras muito próximas”). Os pares em que essa situação fosse observada seriam validados como estímulo da condição unicamente semântica do experimento comportamental online. Caso algum par não fosse validado e as respostas do teste de cloze nos permitissem o aproveitamento de estímulos, assim procederíamos.

3.1.4. Resultados

Na tabela 1, é possível verificar as respostas dadas para 14 dos 30 estímulos apresentados. As respostas dadas aos outros 16 estímulos podem ser encontradas nos documentos suplementares. Todas as respostas registradas para cada um dos 14 estímulos foram transcritas na tabela, com o número de vezes que as constamos entre parênteses. Conforme dito anteriormente, cada participante podia dar apenas uma palavra como resposta ao estímulo experimental. Observamos que as repostas fornecidas foram apenas semanticamente relacionadas aos estímulos.

Estímulo apresentado Respostas registradas
Professor Aluno (10), aula (7), escola (6), estudante (3), ensino (2), educador (1), disciplina (1)
Animal Cachorro (13), zoológico (4), irracional (3), selvagem (3), estimação (2), vivo (2), ave (1), cavalo (1) vida (1)
Líquido Água (14), sólido (4), gasoso (4), fluido (2), molhado (2), bebida (2), leite (1), suco (1)
Militar Uniforme (5), farda (4), soldado (4), arma (4), ditadura (4), rigidez (2), patente (1), firmeza (1), golpe (1), hierarquia (1), corrupto (1), coxinha (1), colégio (1)
Palavra Letras (6), letra (5), escrever (4), texto (3), significado (2), frase (2), comunicação (2), cantada (1), escrita (1), expressão (1), alfabeto (1), verbo (1), conversa (1),
Concerto Música (11), abstrato (5), firme (2), show (2), cinza (2), consistente (2), chão (1), cimento (1), conserto (1), teatro (1), muro (1), instrumentos (1)
Coleta Lixo (18), seletiva (5), dados (3), coletor (1), entrega (1), morador de rua (1), recolher (1)
Título Texto (9), redação (5), livro (4), filme (3), prêmio (2), tema (2), eleitor (1), ideia (1), introdução (1), autor (1), parágrafo (1)
Estado Cidade (10), Rio de Janeiro (6), país (5), município (5), localidade (1), islâmico (1), lugar (1), local (1)
Carteira Dinheiro (23), motorista (2), couro (1), documentos (1), investimento (1), trabalho (1), assalto (1)
Sequência Ordem (7), linearidade (4), matemática (4), números (3), progressão (2), numérica (2), didática (2), série (2), padrão (1), lógica (1), continuar (1), Star Wars (1)
Concreto Cimento (6), chão (5), firme (3), construção (2), armadura (2), obra (2), cinza (2), engenharia (1), certo (1), matéria (1), armado (1), compósito (1), líquido (1), pedra (1), de novo? (1)
Óculos Lentes (7), sol (5), visão (4), olhos (3), miopia (3), armação (2), leitura (1), haste (1), míope (1), odeio (1), grau (1), lente (1)
Certeza Dúvida (9), absoluta (6), segurança (3), decisão (3), incerteza (3), tranquilidade (1), afirmação (1), verdade (1), teimosia (1), fato (1), firmeza (1)
Table 1. Tabela 1. Respostas recebidas para cada um dos estímulos do teste de cloze, junto a sua frequência. Entre parênteses encontra-se a quantidade de vezes que a resposta foi registrada, sendo que cada participante dava apenas uma palavra como resposta para cada estímulo.

Já na tabela 2, é possível conferir a força do relacionamento semântico entre os pares de palavras apresentados aos voluntários, isto é, o quanto os sentidos veiculados por essas duas palavras estão ligados. Para cada par de palavras, fornecemos a porcentagem de classificações em 3, 4, 5 (sendo esse último o correspondente a “palavras muito próximas”). Assim, se a tabela apresenta 100% como porcentagem para algum par, isso significa que todos os voluntários marcaram ou 3, ou 4 ou 5 como classificação do nível de relacionamento entre o par. Por fim, na tabela 3, apresenta-se a força do relacionamento semântico entre os pares de palavras distratoras.

Pares de palavras críticas (condição Sm3) Porcentagem de classificações como 3, 4 e 5 Pares de palavras críticas (condição Sm4) Porcentagem de classificações como 3, 4 e 5
Professor – ensinar 100% Professor – explicação 73,3%
Animal – bestial 73,3% Animal – criatura 86,7%
Líquido – aquoso 100% Líquido – derretido 80%
Conversa – papear 100% Conversa – diálogo 80%
Militar – soldado 100% Militar – armamento 93,3%
Correto – acerto 100% Correto – acertado 80%
Palavra – fala 100% Palavra – falatório 73,3%
Concerto – musical 100% Concerto – apresentação 80%
Árvore – planta 100% Árvore – vegetação 73,3%
Revista – jornal 86,7% Revista – notícia 73,3%
Coleta – recolha 100% Coleta – arrecadação 73,3%
Título – diploma 100% Título – certificado 86,7%
Estado – cidade 100% Estado – governador 93,3%
Carteira – moedeira 93,3% Carteira – documento 86,7%
Partícula – pedaço 86,7% Partícula – componente 80%
Dívida – cobrança 100% Dívida – pagamento 80%
Sequência – listagem 93,3% Sequência – progressão 73,3%
Concreto – sólido 93,3% Concreto – segurança 73,3%
Sereia – oceano 93,3% Sereia – marítimo 80%
Cavalo - equino 100% Cavalo – hipismo 80%
Óculos – miopia 100% Óculos – cegueira 86,7%
Cinema – película 86,6% Cinema – exibição 93,3%
Resíduo – sujeira 100% Resíduo – impureza 86,7%
Certeza – firmeza 93,3% Certeza – segurança 100%
Table 2. Tabela 2. Nível de relacionamento semântico entre os pares críticos de palavras apresentados no teste de Escala Likert. Na primeira coluna, há os pares pensados inicialmente para a condição Sm3 do experimento online e, na terceira coluna, encontram-se os pares pensados para a condição Sm4 do mesmo experimento. A diferença entre eles está na quantidade de sílabas: três para o primeiro grupo e quatro para o segundo.
Pares de palavras distratoras Porcentagem de classificações como 3, 4 e 5
Lâmpada – garrafa 6,7%
Pirâmide – biscoito 13,35%
Cobertor – chuveiro 6,7%
Pintura – geladeira 13,35%
Parede – teclado 6,7%
Estrada - comida 13,35%
Table 3. Tabela 3. Nível de relacionamento semântico entre os pares distratores de palavras apresentados no teste de Escala Likert.

Verificamos que, para todos os pares, pelo menos 70% dos participantes atribuíram nota 3, 4 ou 5 para classificar a proximidade semântica entre os estímulos. Já para os distratores, essa média foi de no mínimo 6,7% e no máximo 13,35%. Por fim, como dividimos essa segunda parte do experimento em duas versões, apenas 15 pessoas classificaram os pares pensados para a condição Sm3 do experimento online e as 15 outras pessoas classificaram os pares pensados para a condição Sm4. Isso não aconteceu com o teste de cloze, em que as 30 pessoas responderam aos mesmos 30 estímulos.

3.1.5. Discussão

Quanto ao teste de cloze, é possível observar que, ao contrário do esperado, as palavras coletadas como resposta foram sempre apenas semanticamente – e não morfologicamente – relacionadas às palavras-estímulo. Além disso, idiossincrasias influenciaram consideravelmente os resultados. Alguns exemplos foram: i) as palavras “corrupto”, “coxinha” e “colégio” como resposta para o estímulo “militar”; ii) as palavras “Star Wars” e “didática” para o estímulo “sequência”; iii) a palavra “odeio” para o estímulo “óculos”. Em todos esses exemplos, as vivências e opiniões pessoais dos voluntários induziram suas escolhas.

Observamos, também, uma confusão entre os estímulos “concerto” e “concreto” e vimos que, em diversos momentos, as respostas dadas se juntam ao estímulo fornecido em sintagmas nominais de alta frequência de uso. É o caso, por exemplo, de “palavra cantada” (grupo musical infantil), “colégio militar”, “coleta seletiva”, “título de eleitor”, “estado islâmico”, “carteira de motorista”, “carteira de trabalho”, “sequência numérica” e “certeza absoluta”.

Por conta de todos esses fatores, não pudemos aproveitar as respostas do teste de cloze como estímulos para as condições morfológicas. Dessa forma, as condições morfológicas do experimento online tiveram, posteriormente, seus estímulos integralmente selecionados pelas pesquisadoras. No entanto, as idiossincrasias e a formação dos sintagmas nominais foram dados importantes para que não utilizássemos tais estímulos, problemáticos durante o teste de cloze, nas condições apenas semânticas. Por causa da inadequação do teste de cloze para nossos propósitos principais, confeccionamos nossos estímulos e procuramos rodar um outro teste de estímulos para validá-los: a Escala Likert.

Finalmente, usando a Escala Likert pudemos observar que não apenas todos os pares de estímulos críticos obtiveram pelo menos 70% de classificações de um relacionamento semântico intrapalavras satisfatório (marcações dos números 3, 4 ou 5, sendo esse último o correspondente a “palavras muito próximas”), como também pouquíssimas pessoas classificaram os pares distratores como possuindo relacionamento forte. Essa última constatação nos fez validar a assertividade do método experimental e, junto aos 70% de classificações em 3, 4 e 5, nos fez validar integralmente tais pares críticos de palavras para uso como estímulos das condições unicamente semânticas do teste comportamental online.

3.2. Experimento comportamental online – Teste principal

A realização do experimento comportamental online teve como grande objetivo a aferição do curso temporal e do custo do processamento lexical, uma vez que a natureza mais espontânea dessa técnica permite a análise dos processos mais reflexos.

Estruturamos um teste de priming transmodal que contava com primes auditivos e alvos visuais, para que pudéssemos eliminar a influência de vieses derivados da exposição à ortografia. Mesmo que diversos estudos pontuem a não interferência de fatores ortográficos nos efeitos de priming morfológico (RASTLE et al., 2000; DOMÍNGUEZ; VEJA; BARBER, 2004; MORRIS et al., 2007; LÁZARO; GARCIA; ILLERA, 2021), a utilização do priming multimodal é um cuidado a mais para se evitar o viés da ortografia. Tratou-se de uma questão importante para nós porque tínhamos quatro condições experimentais em que primes e alvos mantinham relacionamento morfológico entre si (sendo muito difícil que, no português, não apresentassem, como consequência, coincidência ortográfica) e duas condições em que primes e alvos mantinham apenas relação semântica entre si, sem apresentar qualquer relacionamento ortográfico e/ou morfológico. Dessa maneira, tomamos o cuidado de evitar quaisquer complicações que nos impossibilitassem comparações intercondições.

Por fim, mantivemos um stimulus onset assyncrony (SOA – diferença de tempo entre prime e alvo) controlado de 150ms e escolhemos como tarefa cognitiva a decisão lexical, por ela instigar o acesso lexical.

Todos os alvos de todas as condições partiam do mesmo prime, de maneira que o tempo de acesso a cada um desses alvos pudesse ser diretamente relacionado ao tipo de relacionamento que ele mantinha com seu prime. Dessa maneira, esperávamos conseguir observar o comportamento linguístico de participantes durante o acesso de palavras complexas com diversos tipos de relacionamentos entre si, assim como com diferentes níveis de transparência semântica em relação a suas raízes.

3.2.1. Participantes

Participaram desse experimento 45 voluntários, falantes nativos de português brasileiro, destros10, com visão normal ou corrigida e diferentes dos que haviam anteriormente realizado o experimento comportamental offline. Suas idades variavam entre 18 e 35 anos e todos realizavam curso de graduação na UFRJ, em uma das seguintes unidades: Centro de Ciências da Saúde (CCS), Centro de Ciências Matemáticas e da Terra (CCMN), Centro de Tecnologia (CT), Escola de Belas Artes (EBA), Escola de Comunicação (ECO) e Faculdade de Letras (FL). Acreditamos ser importante a participação de pessoas de diferentes centros/faculdades, uma vez que, na Faculdade de Letras, os alunos podem já estar mais sensíveis e familiarizados com os procedimentos de experimentação linguística, influenciando seus resultados.

A apresentação dos estímulos se deu no Laboratório ACESIN, na Faculdade de Letras da UFRJ. Os participantes não receberam remuneração financeira pelo teste e todos assinaram termo de livre consentimento e esclarecimento.

3.2.2. Materiais e métodos

De acordo com Bozic et al. (2007, p. 1): “the independence of form, meaning and morphological structure can be directly investigated using derivationally complex words, because derived words can share forms but need not share meaning”. Dessa maneira, escolhemos analisar o processamento de itens lexicais complexos no momento de sua derivação.

Cada participante foi apresentado a 24 estímulos e 24 distratores (o grupo controle, do qual faziam parte apenas não-palavras). Os primes foram mantidos fixos e os alvos distribuídos em quadrado latino, de forma a que todos os participantes ouvissem os mesmos 24 primes dos estímulos, mas variassem no alvo que acompanhava cada um deles, recebendo sempre a mesma quantidade de estímulos de cada condição. Quanto aos distratores, prime e alvo foram os mesmos em todas as versões do experimento.

Foram cruzadas dois tipos de variáveis independentes: i) para observarmos as diferenças entre as rotas semântica e morfológica, desenhamos estímulos com três níveis de diferenças entre prime e alvo: relacionamento morfológico composicional, relacionamento morfológico opaco e relacionamento semântico; e ii) para investigarmos se acessamos palavras inteiras (JACKENDOFF, 1983) ou morfema a morfema (STOCKALL; MARANTZ, 2006) desenhamos estímulos com diferentes quantidade de sílabas/camadas morfológicas (layers) – em dois níveis: palavras com 3 sílabas e palavras com 4 sílabas. Cruzando os dois grupos de variáveis independentes construímos um experimento 3X2, ou seja, com 6 condições distribuídas pelo sistema Within-Subject para investigarmos se acessamos palavras inteiras. Tais condições podem ser verificadas no quadro abaixo, que traz exemplo de três células experimentais:

Célula Condição Prime Auditivo Alvo Visual
1 Sm3 Relacionamento apenas Semântico com 3 sílabas professor ensino
Sm4 Relacionamento apenas Semântico com 4 sílabas professor educação
MC3 (baseline) Relacionamento Morfológico Composicional com 1 camada morfológica (aprox. 3 sílabas) professor professor
MC4 Relacionamento Morfológico Composicional com 2 camadas morfológicas (aprox. 4 sílabas) professor professoril
MO3 Relacionamento Morfológico Opaco com 1 camada morfológica (aprox. 3 sílabas) professor professar
MO4 Relacionamento Morfológico Opaco com 2 camadas morfológicas (aprox. 4 sílabas) professor professado
2 Sm3 Relacionamento apenas Semântico com 3 sílabas líquido aquoso
Sm4 Relacionamento apenas Semântico com 4 sílabas líquido derretido
MC3 (baseline) Relacionamento Morfológico Composicional com 1 camada morfológica (aprox. 3 sílabas) líquido líquido
MC4 Relacionamento Morfológico Composicional com 2 camadas morfológicas (aprox. 4 sílabas) líquido liquidificar
MO3 Relacionamento Morfológico Opaco com 1 camada morfológica (aprox. 3 sílabas) líquido liquidar
MO4 Relacionamento Morfológico Opaco com 2 camadas morfológicas (aprox. 4 sílabas) líquido liquidação
3 Sm3 Relacionamento apenas Semântico com 3 sílabas militar soldado
Sm4 Relacionamento apenas Semântico com 4 sílabas militar armamento
MC3 (baseline) Relacionamento Morfológico Composicional com 1 camada morfológica (aprox. 3 sílabas) militar militar
MC4 Relacionamento Morfológico Composicional com 2 camadas morfológicas (aprox. 4 sílabas) militar militarista
MO3 Relacionamento Morfológico Opaco com 1 camada morfológica (aprox. 3 sílabas) militar milícia
MO4 Relacionamento Morfológico Opaco com 2 camadas morfológicas (aprox. 4 sílabas) militar militante
Table 4. Quadro 1. Condições do experimento e três exemplos de pares de palavras, nas seis condições experimentais.

Primeiro, então, os participantes ouviam um prime auditivo (por exemplo, professor) e, depois, media-se o tempo de acesso lexical a um alvo visual (escrito) moldado a uma das seis condições programadas: (i) alvo com 3 sílabas que mantinha apenas relacionamento semântico com o prime (professor–ensino); (ii) alvo com 4 sílabas que mantinha apenas relacionamento semântico com o prime (professor–educação); (iii) alvo com 1 camada morfológica (aproximadamente 3 sílabas) que mantinha relacionamento morfológico composicional (isso é, de semântica sincronicamente transparente) com o prime (professor–professor); (iv) alvo com 2 camadas morfológicas (aproximadamente 4 sílabas) que mantinha relacionamento morfológico composicional (isso é, de semântica sincronicamente transparente) com o prime (professor–professoril); (v) alvo com 1 camada morfológica (aproximadamente 3 sílabas) que mantinha relacionamento morfológico opaco (isso é, de semântica sincronicamente opaca) com o prime (professor–professar); (vi) alvo com 2 camadas morfológicas (aproximadamente 4 sílabas) que mantinha relacionamento morfológico opaco (isso é, de semântica sincronicamente opaca) com o prime (professor–professado).

Note-se que a condição (iii) MC3 foi usada como linha de base (baseline), pois traz a relação máxima de identidade entre prime e alvo: são a mesma palavra. Temos, assim, uma progressão bastante sutil entre as seis condições do experimento, começando pela plena identidade entre o prime professor e o alvo professor e progredindo para situações em que o conteúdo das palavras do par é menos relacionado, como em professor e professado (mesmo que, nesse caso, prime e alvo exibam relacionamento morfológico regular e seja possível, numa análise offline posterior, reconhecer professor aninhado em professado).

Também se faz importante salientar que, apesar de o nosso template de estímulos ter sido muito controlado para suprir o desenho pretendido, precisamos enfrentar adversidades no campo da frequência das palavras. Professor, por exemplo, é uma palavra de alta frequência, enquanto professado é menos usado. Dessa maneira, nem sempre tendo conseguido chegar a frequências comparáveis, tivemos vieses cujas consequências pudemos perceber e apontar no presente estudo. Acreditamos, contudo, que tal dificuldade não invalide a contribuição do trabalho.

Por fim, a tarefa experimental dos participantes foi a decisão lexical, ou seja, precisavam julgar se o alvo era uma palavra ou uma não-palavra. O índice de acerto e erro dessa decisão, junto com o tempo de resposta (response time – RT) de cada participante eram as variáveis dependentes do experimento. Como variável independente, havia a relação entre prime e alvo.

3.2.3. Desenho experimental

Codificamos e rodamos o teste na plataforma OpenSesame. Trata-se de um construtor gráfico de experimentos voltado para as ciências sociais. O OpenSesame é gratuito, de código aberto e multiplataforma (para uma completa referência, cf. MATHÔT; SCHREIJ; THEEUWES, 2012).

Através desse programa, mostramos ao participante uma série de eventos cronologicamente ajustados ao experimento. Na figura 3, é possível ver uma linha do tempo do mesmo. Nela, tanto a cruz de fixação quanto o pré-alvo tinham como função fixar o olhar do voluntário e, consequentemente, sua atenção. Em seguida a elas apareciam, respectivamente, o prime auditivo e o alvo visual. Assim que o alvo desaparecia da tela, o participante precisava dar sua resposta, apertando um botão verde (localizado na tecla S do teclado) caso o alvo fosse uma palavra do português e um botão vermelho (localizado na tecla K do teclado) caso não o fosse. Se a resposta do participante demorasse mais de 1500ms, ela não era computada (timeout). No entanto, o experimento só iniciava uma nova sequência (trial) quando o participante desse uma resposta à sequência anterior.

Figure 3. Figura 3. Cronologia do experimento. Fonte: elaborada pelas autoras.

Cada participante passou por uma fase de treino, que seguia uma linha do tempo exatamente igual à descrita na figura acima, mas que se usava de palavras não-experimentais. O proveito de se fazer um treino foi familiarizar o participante com a tarefa de decisão lexical e com o manuseio dos botões, além de checar a boa altura do som e sanar possíveis dúvidas do voluntário. Essa fase podia ser repetida quantas vezes fossem necessárias e seus resultados não foram considerados na análise.

3.2.4. Hipóteses

Em primeiro lugar, acreditamos que o acesso lexical apresentará cursos temporais distintos entre as condições morfológicas e a apenas semântica, i.e., que os RT dos voluntários apresentarão diferença estatisticamente relevante entre essas condições. Um controle valioso será também a diferença estatisticamente relevante entre o Δt (tempo) das condições apenas semânticas de 3 e 4 sílabas (Sm3 e Sm4) e o Δt das condições morfológicas de 1 e 2 camadas morfológicas, tanto as transparentes (MC3 e MC4) quanto as opacas (MO3 e MO4). Se isso for confirmado, concluiremos que há diferença entre as rotas de processamento semântica e morfológica.

Em segundo lugar, esperamos que o acesso lexical nos pares de relacionamento morfológico seja mais veloz que o dos pares de relacionamento apenas semântico. De acordo com a abordagem decomposicional do acesso lexical, isso se daria porque, uma vez que as palavras seriam montadas morfema a morfema, elas passariam por diferentes estágios derivacionais, de maneira a que, antes de chegar a liquidificar, a derivação atingisse a representação de líquido. Portanto, o alvo liquidificar teria a vantagem de ter recebido de herança a ativação de líquido. Caso isso aconteça, compreenderemos que o processamento das palavras tome um curso decomposicional, isto é, que elas sejam acessadas por suas partes e não inteiras. De acordo com as reflexões que realizamos no âmbito da Morfologia Distribuída, é o que apostamos que acontecerá. No entanto, caso essa diferença não se verifique, teremos indícios de que o acesso lexical se deu com a palavra ainda completamente montada.

Em terceiro lugar, esperamos detectar resultados positivos de priming na condição de relacionamento morfológico opaco (O). Isso aconteceria caso a média de RT dessa condição fosse estatisticamente irrelevante quando comparada à da condição morfológica composicional. Dessa maneira, poderíamos concluir que acessamos refrigerante por sua raiz refrig-, compartilhada com refrigerar, o que significaria que, no português brasileiro, o acesso a palavras semanticamente opacas não se diferenciaria do a palavras semanticamente transparentes. Por outro lado, caso obtenhamos resultados negativos de priming, acreditaremos que a lexicalização de refrigerante faz com que essa palavra possua uma nova entrada em nosso léxico mental, a qual seria distinta da de refrigerar e apresentaria como raiz -refrigerant.

3.2.5. Resultados

Apesar de os dados-resposta do experimento terem sido colhidos junto a uma população adequada à tarefa e escolhida de acordo com características homogêneas (mesma faixa etária, lado motor dominante e nível de escolaridade), existem muitas variações individuais (idiossincrasias) que devem ser levadas em consideração.

As taxas de acerto e erro, por exemplo, foram satisfatórias apenas para 42 dos originalmente 45 voluntários. Interpretamos erros demasiados cometidos por esses três voluntários como falta de atenção e/ou incompreensão da tarefa experimental e excluirmos toda e qualquer resposta dessas pessoas, considerando apenas as 42 restantes para os resultados que aqui apresentaremos.

Quanto aos tempos de resposta (RT), a detecção de outliers é uma rotina importante para limpar os dados que se desviam excessivamente da média. Nesse sentido, tratamos os RT muito díspares através da aplicação da Outlier Labeling Rule (HOAGLIN; IGLEWICZ; TURKEY, 1986) aos resultados brutos. Um total de 2,34% da amostra foi classificado como outlier e retirado da mesma, seguindo a técnica de trimming (ALLEN, 2017). Em seguida, a análise estatística dos resultados sem os outliers foi processada pelo programa EzAnova, modelo 2-Within Subject Factors.

Como podemos detectar nas sentenças de abertura do teste ANOVA, na figura 4 abaixo, há um efeito principal robusto do tipo de relacionamento (A): F(2,80)=18,3, p<0,000001, da quantidade de sílabas/camadas morfológicas (layers) (B): F(1,40)= 84,1, p<0,000001 e também entre os dois fatores (AxB): F(2,80)=25,5, p<0,000001. Os tempos médios de resposta por condição podem ser verificados no gráfico 1, com seus erros padrões disponíveis na tabela 4. As comparações par a par – que demarcam significância estatística – decorrentes da amostragem estão disponíveis na tabela 5.

Figure 4. Figura 4. Efeitos Principais da ANOVA.

Figure 5. Gráfico 1. Tempos de resposta (RT) por condição.

# Sm3 Sm4 MC3 MC4 MO3 MO4
Erro Padrão 19,95 21,04 19,06 30,65 25,64 33,54
Table 5. Tabela 4. Valores de erro padrão para cada uma das condições.
Comparações par a par
[MC_3]vs[MC_4] t(38)=9,28 p< 0,0001 [MC_3]vs[MO_3] t(38)=8,86 p< 0,0001 [MC_3]vs[MO_4] t(38)=9,43 p< 0,0001 [MC_3]vs[Sm_3] t(38)=5,51 p< 0,0001 [MC_3]vs[Sm_4] t(38)=7,03 p< 0,0001 [MC_4]vs[MO_3] t(38)=3,05 p< 0,0041 [MC_4]vs[MO_4] t(38)=0,13 p< 0,9000 [MC_4]vs[Sm_3] t(38)=7,59 p< 0,0001 [MC_4]vs[Sm_4] t(38)=5,91 p< 0,0001 [MO_3]vs[MO_4] t(38)=3,99 p< 0,0003 [MO_3]vs[Sm_3] t(38)=4,14 p< 0,0002 [MO_3]vs[Sm_4] t(38)=4,08 p< 0,0002 [MO_4]vs[Sm_3] t(38)=5,91 p< 0,0001 [MO_4]vs[Sm_4] t(38)=6,28 p< 0,0001 [Sm_3]vs[Sm_4] t(38)=0,75 p< 0,4561
Table 6. Tabela 5. Comparações par a par geradas pelo programa EzAnova; valores significativos apresentam p<0,05.

É possível perceber que as condições semânticas (Sm) apresentaram um tempo médio de resposta baixo, mas com uma diferença estatisticamente irrelevante entre Sm3 e Sm4. No entanto, ambas foram maiores que a condição de relacionamento morfológico composicional com 1 camada morfológica/3 sílabas (MC3). Já a condição de relacionamento morfológico composicional de 2 camadas morfológicas/4 sílabas (MC4) foi muito mais alta que MC3, apresentando também diferença estatisticamente irrelevante à condição de relacionamento morfológico opaco de 2 camadas morfológicas/4 sílabas (MO4). Além disso, a condição de relacionamento morfológico opaco de 1 camada morfológica/3 sílabas (MO3) foi menor que MO4, através de uma diferença estatisticamente relevante, e maior que MC3, também de maneira estatisticamente relevante.

Por fim, a dispersão dos resultados, por tipo de relacionamento e por quantidade de sílabas/camadas morfológicas, está apresentada nos gráficos 2 e 3, respectivamente. É possível perceber que, quanto ao tipo de relacionamento, MO foi o que obteve os resultados mais díspares, enquanto Sm obteve os menos dispersos. Já quanto à quantidade de sílabas/camadas morfológicas, as condições com 4 sílabas/2 camadas morfológicas apresentaram dispersão maior que as de 3 sílabas/1 camada morfológica.

Figure 6. Gráfico 2. Dispersão por tipo de relacionamento.

Figure 7. Gráfico 3. Dispersão por quantidade de sílabas/camadas morfológicas.

Essas dispersões podem indicar processamento não reflexo (aquele que não é instintivo e espontâneo, ou seja, que sofre influência da reflexão ativa) e uma maior dificuldade sentida pelo participante durante a realização da tarefa lexical.

3.2.6. Discussão

Em primeiro lugar, é válido ressaltar que o tempo médio de resposta de MC3 (405,94ms), que tinha como alvo exatamente a mesma palavra do prime, se aproxima do tempo médio normal de processamento neurolinguístico, o N400, conforme registrado em diversos estudos com EEG (para um exemplo, cf. GOMES, 2009). Isso nos indica, além do sucesso do prime no acesso ao alvo (isto é, que ter acessado tal prime antes de tal alvo ajudou no processamento do último), a existência de uma relação de identidade entre primes e alvos dessa condição. Trata-se, na realidade, da identidade mais forte que é possível encontrar entre duas palavras: elas serem exatamente iguais. Apesar de alguns estudos, como Bozic et al. (2007), não encontrarem ativação de priming para condições com relacionamento de identidade, em nosso estudo os RT dessa condição foram um valioso controle para a tomarmos como linha de base de comparação com das demais

Nessa linha de raciocínio, ao compararmos os RT de MC3 (405,94ms) com os de MO3 (548,09ms), verificamos que os primeiros são consideravelmente menores que os segundos, configurando uma diferença estatisticamente relevante (p < 0,0001). Em primeiro lugar, isso nos sugere que exista uma relação de referencialidade entre primes e alvos de MO3 (cf. FRANÇA et al., 2008; PYLKKÄNEN et al., 2002; 2003; 2004; PYLKKÄNEN; MARANTZ, 2003; RASTLE et al, 2000). Em segundo lugar, essa diferença nos sugere que, para que se chegue a professar a partir de professor, passe-se por uma renegociação do sentido da raiz, já que a primeira palavra é morfológica e diacronicamente derivada da segunda, mas sincronicamente apartada semanticamente da mesma (STOCKAL; MARANTZ, 2006).

Essa interpretação sustentaria ainda que tal renegociação seria apenas encontrada nos pares de relacionamento morfológico opaco (MO), os únicos a apresentarem RT tão altos na condição com apenas uma camada morfológica (MC3 vs MO3 vs Sm3). Isso, por sua vez, ratificaria pressupostos decomposicionais não lexicalistas de teorias como a Morfologia Distribuída (HALLE; MARANTZ, 1993), segundo a qual poderíamos propor que tal renegociação de sentido se daria na primeira camada morfológica (constituída de raiz + morfema categorizador), que é onde ocorreria a arbitrariedade saussuriana (FRANÇA et al., 2008). Assim, o prime falharia, i.e., sua herança seria negativa e ele não ajudaria o processamento do alvo. Isso faria com que o voluntário precisasse desativar esse prime e voltar à Enciclopédia para renegociar o sentido da primeira camada morfológica de profess-, o que aumentaria consideravelmente o tempo de processamento dessa palavra. Tais reflexões nos permitem analisar nossa terceira hipótese experimental, que foi refutada: como o priming foi negativo, entendemos que o processo de lexicalização de uma palavra faz com que uma nova entrada na Enciclopédia seja criada para a mesma. No entanto, ao contrário do que havíamos pensado anteriormente, não acreditamos que isso signifique que o processamento de palavras semanticamente opacas seja diferente do de semanticamente transparentes.

Ainda segundo a MD, depois de construída a primeira base sobre a qual discursamos no parágrafo anterior, o processamento das outras camadas morfológicas herdaria o sentido especial da raiz e tomaria um curso composicional, sem que se precisasse acessar novamente a Enciclopédia. Analisando os RT de MO4 (612,45ms) à luz dessa teoria, poderíamos propor que, nas condições de relacionamento morfológico opaco, depois que a difícil negociação entre a raiz e o primeiro morfema categorizador (de profess+or para profess+ar) é feita, restaria apenas uma adição simples e composicional de um segundo morfema (de profess+ar para profess+a+do), em MO4, o que parece ser a razão de haver um aumento muito pequeno nos RT de MO3 para MO4. Esse aumento, no entanto, é estatisticamente relevante (p < 0,0003), comprovando uma diferença de processamento entre tais condições. França et al. (2008) também encontraram, proporcionalmente, aumentos semelhantes de RT para operações morfológicas composicionais. Com essa análise, podemos validar a nossa terceira hipótese experimental, propondo que as palavras semanticamente opacas, tal qual as transparentes, sejam acessadas por suas partes, isto é, que seu processamento siga um curso decomposicional assim que a nova entrada da Enciclopédia é recuperada. Achamos essa interpretação válida, mesmo constatando que os RT de MO3 e MO4 foram consideravelmente maiores que os de Sm3 (489,08ms) e Sm4 (497,85), que, em nossas hipóteses, esperávamos serem maiores.

Todavia, para validar completamente tal hipótese, é preciso comparar as condições de relacionamento morfológico às de relacionamento apenas semântico. Para tanto, não só a comparação de RT entre tipos diferentes de relacionamento será importante, como também o Δt entre as diferentes quantidades de sílabas/camadas morfológicas dos diferentes relacionamentos será mais uma vez muito relevante. Debruçando-nos sobre tais resultados, pudemos ver que as condições semânticas Sm3 e Sm4 foram um valioso controle. Em primeiro lugar, elas apresentaram RT muito parecidos entre si, a ponto de a diferença entre eles ser estatisticamente irrelevante (p < 0,4561). Isso nos faz concluir que, para os pares da condição semântica, o aumento na quantidade de sílabas não produziu diferença no processamento dos alvos. Tal afirmativa, por sua vez, nos remete à nossa primeira hipótese experimental, sugerindo a existência de tipos diferentes de processamento nas rotas morfológica e semântica. Enquanto na primeira o acesso lexical se daria por um algoritmo linguístico de formação de palavra, a segunda teria como suporte um mecanismo mnemônico, contando com memória de uso conjunto e redes de associações, motivo pelo qual o acréscimo de uma sílaba não geraria mudança significativa.

Além disso, o fato de, apesar de muito baixos, os RT de Sm3 (489,08ms) serem maiores do que os de MC3 (405,94ms), sendo a diferença entre ambos estatisticamente relevante (p < 0,0001), corrobora nossa proposta de que MC3 apresenta relação máxima de identidade entre prime e alvo: mesmo uma computação linguística rápida como a mnemônica foi mais custosa que a de MC3. A comparação de Sm3 (489,08ms) com MO3 (548,09ms) (p < 0,0002) também contribui para a interpretação que fizemos dos resultados da condição morfologicamente opaca (MO), já que a ativação de uma rede de associação parece ser menos custosa que a renegociação do sentido de uma palavra na Enciclopédia. Por fim, também corrobora a assumpção de que palavras morfologicamente complexas sejam decompostas em suas partes antes do acesso lexical.

No entanto, ao tentarmos comparar todas as condições de 4 sílabas/2 camadas morfológicas entre si, isso é, comparar Sm4 (497,85ms) com MC4 (612,97ms) e MO4 (612,45ms), encontramos um problema – o mesmo enfrentado ao se tentar comparar MC3 (405,94ms) com MC4: os altíssimos RT de MC4, que foram surpreendentemente demorados para uma computação composicional de semântica transparente. Esperávamos uma disparidade entre MC3 e MC4 por conta do acréscimo composicional de uma camada morfológica no segundo, mas não uma diferença tão marcada. Os RTs de MC4 quase se igualam aos de MO4 (não apresentam diferença estatisticamente relevante em relação a eles), que, pela nossa interpretação, passariam por um processo muito mais custoso e demorado. Acreditamos ter sido a baixa frequência das palavras-alvo de MC4 a responsável por essa situação. Enquanto professor é uma palavra muito comum, professoril é, na realidade, muito incomum e pode até mesmo gerar dúvida quanto ao estatuto de palavra do português. Dessa forma, a diferença estatisticamente irrelevante (p < 0,9867) entre MC4 e MO4 e a grande disparidade entre MC3 e MC4 (p < 0,0001) foram interpretados como consequências do relaxamento no controle da frequência de MC4 e tentarão ser corrigidos em um futuro experimento.

4. Considerações finais

Com o trabalho apresentado, esperamos ter contribuído para o melhor entendimento do funcionamento do acesso lexical, um processo que é tão rápido quanto usual. A interpretação de nossos resultados apontou para a existência de um processamento decomposicional em nossos processos linguísticos mentais, o qual demandaria menos espaço de armazenamento e mais aplicações de regras. Além disso, através dos resultados inferimos a presença de duas rotas de processamento: uma semântica e uma morfológica. A primeira funcionaria através de memória de uso conjunto e de redes de associação, enquanto a segunda seria sustentada por algoritmos linguísticos de formação de palavras.

Por fim, respondendo à pergunta principal do estudo, obtivemos resultados negativos de priming para o processamento de palavras que perderam relação semântica sincrônica com suas raízes. No entanto, observamos que tal processamento é decomposicional. Sugerimos, então, que palavras idiomatizadas ganhem novas entradas em nosso léxico mental, a Enciclopédia, e que, após o acesso lexical à sua [raiz + morfema categorizador], isto é, à sua parte arbitrária, seu processamento também se dê morfema a morfema. Em resumo, apontamos a existência de múltiplos acessos lexicais, originados de processos neurofisiologicamente diferentes.

Como próximos passos para nossa pesquisa, pretendemos replicar o experimento apresentado, aplicando-o com um aparelho de eletroencefalografia (EEG), na busca de analisar a contraparte cerebral dos processos mentais que aqui pudemos observar. A observação do tempo de processamento, sem que ele esteja influenciado por uma resposta comportamental, será um grande ganho para o estudo. Aproveitaremos para realizar melhorias em nossos estímulos e em nosso design experimental, variando o SOA, melhor controlando a frequência dos itens experimentais críticos e adicionando condições de palavras sem nenhum tipo de relacionamento entre si, a fim de funcionarem como controle. Essa condição controle constituiria uma baseline diametralmente oposta à de MC3, oportunizando o refinamento de nossas interpretações.

Acreditamos que, dessa maneira, poderemos analisar e descrever com ainda mais precisão as particularidades dos processos mentais envolvidos no acesso lexical, em suas vias morfológica e semântica (tanto opaca quanto transparente) de processamento.

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How to Cite

CATALDO, J.; FRANÇA, A. Friend or foe: the morphological kinship between words. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 2, n. 4, p. e499, 2021. DOI: 10.25189/2675-4916.2021.v2.n4.id499. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/499. Acesso em: 3 jul. 2024.

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