Navegantes e intérpretes: o contato linguístico empírico
A Carta de Pero Vaz de Caminha de 1500 é um documento complexo, que pode ser analisado e interpretado criticamente de diversas perspectivas, inclusive, na perspectiva linguística. O caráter intercultural do documento, nas navegações europeias quinhentistas, e no início do projeto colonial da América portuguesa, é patente, tendo sido, inclusive, chamado de “certidão do Brasil” (CORTESÃO, 1967; RIBEIRO, 2002).
Para o campo teórico da Historiografia da Linguística, o documento é de interesse, tendo em vista o fato de relatar o contato linguístico inicial entre as comunidades de fala indígenas costeiras e os navegadores, europeus e africanos, que descobriam a rota marítima entre Europa, África e a América. Esta temática de análise da América portuguesa quinhentista à luz da Historiografia da Linguística e da Ecolinguística tem se desenvolvido em estudos anteriores (KALTNER, 2019a, KALTNER et al., 2019b; KALTNER, 2019c, KALTNER, 2020a, 2020b, 2020c, 2020d, KALTNER, SANTOS, 2020e, KALTNER, 2020f).
No artigo, analisamos o relato da carta sobre a tentativa de contato entre Nicolau Coelho e os indígenas Tupiniquins, o que ocorreu na manhã de 23 de abril de 1500, na região de Porto Seguro. Esse contato linguístico empírico não ocorreu através da fala, mas de uma comunicação gestual, que analisaremos a partir do conceito ecolinguístico de “comunidade efêmera de fala” (COUTO, 2016). As trocas disciplinares entre a Historiografia da Linguística e a Ecolinguística são propostas por Pierre Swiggers (2013), ao comentar as possibilidades de análise do conhecimento linguístico em situações que não são propriamente acadêmicas, cujos fenômenos são observáveis também no campo da Folk Linguistics, ou Linguística Popular, por exemplo (ALTMAN, 2012).
Os intérpretes das armadas, os missionários e mesmo os marinheiros e navegantes do século XVI possuíam um conhecimento empírico que os permitia comunicar-se com comunidades linguísticas diversas, na África, na Ásia e na Europa quinhentistas. Esse conhecimento empírico era fundamental para as redes comerciais mercantis do reino absolutista português, e ao travar contato com os indígenas Tupiniquins, os membros da armada de Cabral já possuíam experiência nesse tipo de situação, na formação desse tipo de “comunidade de fala efêmeras” (COUTO, 2013). As feitorias poderiam ser descritas sob esse modelo.
Uma abordagem interdisciplinar, entre a Historiografia da Linguística e a Ecolinguística é necessária para a descrição e análise desse fenômeno, e seguimos essa fundamentação, conforme Swiggers (2013, 2015):
there is much interesting work to be undertaken in the field of the historiography of Brazilian linguistics. On the one hand, there remains much to be done in terms of study of authors, texts, academic curricula, etc.; on the other hand, there is much that remains to be done in terms of perspectives: the history of Brazili an linguistics lends itself not only to a study from the point of view of the history of science, but also from a sociolinguistic and sociological point of view, from an ecological-linguistic point of view, and from the point of view of institutional history and cultural history (SWIGGERS, 2015, p. 7).
Nesse sentido, a América portuguesa quinhentista formava, inicialmente, uma comunidade de fala efêmera, ao menos nas interações interculturais iniciais, como a que ocorre na chegada da armada de Cabral em Porto Seguro, em 1500, ou nas das primeiras feitorias da época da nau Bretoa, de 1511. Os intérpretes oficiais, como os línguas, mas também os degredados abandonados entre os indígenas, seriam os primeiros especialistas nesse contato linguístico, que se desenvolveria de forma mais institucionalizada com o começo da política missionária em 1549, quando missionários com formação humanística, como S. José de Anchieta, SJ (1534-1597) sistematizariam o contato linguístico. Anchieta chega a gramatizar a língua dos indígenas de cultura Tupinambá na Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, de 1595, sendo o seu texto gramatical, publicado em Coimbra no final do século XVI, o somatório dos esforços de décadas de contato intercultural de forma empírica.
O contato linguístico narrado na Carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, é derivado do desenvolvimento de um período anterior, das técnicas e experiências linguísticas adquiridas na política africana portuguesa, durante o século XV, até a chegada às Índias. Nesse sentido, o conhecimento de mundo e da diversidade linguística da Europa, da África e da Ásia, o Vetus Mundus (Velho Mundo), guiava e conduzia as tentativas de estabelecimento de um contato linguístico na América portuguesa quinhentista. No primeiro registro, no dia 23 de abril de 1500, em Porto Seguro, como narra Caminha, o navegante Nicolau Coelho seguia em um batel para o encontro com jovens da nação Tupiniquim, todavia ele não se encontrava sozinho.
Além de Nicolau Coelho, experiente navegador português, lá também estava Gaspar da Índia, intérprete trazido a Portugal por Vasco da Gama. Gaspar da Índia era cristão-novo, de possível origem sefardita, havia vivido anos na Índia e conhecia diversas línguas utilizadas no Oriente para a navegação. Junto a eles estavam um “grumete” da Guiné e um escravizado de Angola, conhecedores das línguas de contato da costa da África, em que portugueses possuíam também feitorias e estabeleciam seu projeto colonial. Esse grupo formava uma comunidade linguística multicultural e plurlíngue, que não teve possibilidade, porém, de estabelecer contato linguístico pela fala com os indígenas Tupiniquim:
Então, na areia, às margens daquele regato, entre a mata e o mar, os portugueses viram “homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito”. A um sinal do comandante-mor, os capitães dos outros navios embarcaram em batéis e esquifes (barcos pequenos, tipo escaler) e se dirigiram à nau capitânia para uma breve reunião. Logo após esta, Cabral decidiu enviar à terra o experiente Nicolau Coelho, que estivera na Índia com Vasco da Gama. Junto com ele, seguiram Gaspar da Gama, “o judeu da Índia” – que, além do árabe, falava os dialetos hindus da costa do Malabar –, mais um grumete da Guiné e um escravo de Angola. Os portugueses conseguiam reunir, assim, a bordo de um escaler, homens dos três continentes conhecidos até então, e capazes de falar seis ou sete línguas diferentes (BUENO, 2016, p. 87).
Não podemos ter uma percepção eurocêntrica na descrição deste contato linguístico quinhentista, descrito por Caminha, que envolve atores da Europa, da Ásia, da África e da América, com o navegador Nicolau Coelho, o intérprete Gaspar da Índia, os africanos de Guiné e de Angola, e os indígenas Tupiniquim. Dificilmente, de um grupo tão heterogêneo, haveria uma língua comum possível de ser usada para a fala.
Os indígenas da nação Tupiniquim, que habitavam a costa da América portuguesa quinhentista seriam os primeiros indígenas a entrar em contato, em conflito e mesmo em aliança com os europeus:
Os indígenas com os quais Nicolau Coelho travou o primeiro contato eram, se saberia mais tarde, do grupo Tupiniquim. Pertenciam à grande família Tupi-Guarani, que, naquele início do século XVI, ocupava praticamente todo o litoral do Brasil. Os Tupiniquim eram cerca de 85 mil e viviam em dois locais da costa brasileira: no sul da Bahia, da altura de Ilhéus até a foz do rio Doce (já no atual estado do Espírito Santo), e numa estreita faixa entre Santos e Bertioga, no litoral norte de São Paulo (BUENO, 2016, p. 88).
As navegações eram operações comerciais mercantis, com finalidade cultural missionária e finalidade operacional militar, no cenário quinhentista. Não era raro que os episódios de navegação redundassem em violência, o que caracterizou muitos eventos de choque cultural entre indígenas e europeus. Todavia, quando o contato linguístico se realizava, mesmo sem fala, como veremos no relato de Caminha, as relações interculturais não se pautavam apenas pela violência, ou pela lei do mais forte, possibilitando uma percepção mais humanística da diversidade dos povos. Porém, como a economia mercantil da época baseava-se na escravidão, comum à Europa, África e Ásia, o sistema escravocrata era uma barreira para uma interação menos violenta no processo de colonização, logo os episódios de relativa paz alternavam-se com conflitos e guerras.
1. América portuguesa quinhentista: Nicolau Coelho e o contato linguístico gestual
O experiente navegador português Nicolau Coelho (c. 1460-1504) é figura central na narrativa de Caminha, em 1500. Nicolau Coelho havia participado da expedição de Vasco da Gama às Índias, ficando registrado na história o seu contato linguístico e diplomático com o sultão de Quiloa em Moçambique. A obra Décadas da Ásia de João de Barros ilustra as atividades do navegador, traçando o seu perfil como especialista em contato linguístico intercultural nas armadas. Nicolau Coelho não possuía formação humanística e o seu conhecimento linguístico era empírico e tentou o contato com os indígenas Tupiniquins.
O único registro linguístico que temos dessa interação intercultural, entre indígenas na América portuguesa quinhentista e os navegadores, é o registro do vernáculo português, na documentação superveniente, como a Carta de Pero Vaz de Caminha e a Relação do Piloto Anônimo, que nos oferecem uma visão histórica do estado da língua portuguesa, empregada à época das navegações quinhentistas. As línguas indígenas só passariam a ser descritas e registradas, nas colonizações ibéricas, a partir do início da política missionária, o que ocorre na América portuguesa, oficialmente, a partir de 1549.
Do contato empírico de Nicolau Coelho e Gaspar das Índias até a Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil (ANCHIETA, 1595), são necessárias décadas de relações interculturais entre europeus e indígenas, e a mediação do conhecimento linguístico pela sistematização gramatical dos vernáculos com as inovações da corrente de pensamento do humanismo renascentista português, sobretudo no desenvolvimento da gramática humanística como disciplina, na educação quinhentista. A expansão do vernáculo pelas navegações, na constituição de um império ultramarino, fomentaria o desenvolvimento de uma linguística missionária, com a finalidade de doutrinação e expansão da fé.
À época de Nicolau Coelho, os intérpretes se valiam de uma comunicação intercultural voltada à comunicação gestual, com pouco uso da fala, apenas missionários teriam maior contato linguístico com as comunidades linguísticas indígenas. Na armada de Cabral, além dos navegadores como Nicolau Coelho e dos línguas como Gaspar da Índia, havia também missionários como o franciscano Frei Henrique de Coimbra. Porém, sem o conhecimento linguístico derivado da disciplina gramatical humanística, ainda não havia os meios para descrição e mesmo compreensão da língua dos indígenas de cultura Tupinambá, como os Tupiniquins da costa.
A comunidade de fala efêmera, formada entre os indígenas Tupiniquim e os europeus, constitui-se quando Nicolau Coelho aborda os indígenas. Tudo se inicia, quando os navegadores da armada seguiram em direção ao litoral. O primeiro contato, visual, entre ambos os grupos foi acompanhado de uma aproximação lenta, em direção ao litoral, o que causou um agrupamento dos indígenas na praia:
e aaquimta feira pola manhaã fezemos vella. e segujmos dirtos aaterra eos naujos pequenos diãte himdo per xbij xbj xb xiiij xiij xij x. e ix braças ataa mea legoa de trra omde todos lancamos amcoras em dirto daboca dhuũ rrio e chegariamos aesta amcorajem aas x oras pouco mais ou menos e daly oouemos vista dhomeẽs q̃ andauam pela praya obra de bij ou biij segº os naujos pequenos diseram por chegarem primeiro (ANTT, 2020, fl. 1).
(E à quinta-feira pela manhã, levantamos vela, e seguimos, diretamente, até a terra, e os navios pequenos iam adiante, indo por 17, 16, 15, 14, 13, 12, 10 e 09 braças até meia légua de terra, onde todos lançamos âncoras, em direção da boca de um rio, e teríamos chegado a esta ancoragem às 10 horas, pouco mais ou menos. E dali tivemos o avistamento de homens que andavam pela praia, obra de 7 ou 8, segundo os navios pequenos disseram por chegarem primeiro).
Notemos que a descrição minuciosa do escrivão, dessa lenta aproximação, tem por finalidade em sua retórica argumentativa validar a verossimilhança de seu relato. Ao mesmo tempo, toda a operação marítima, demonstrando a técnica de atracar os navios e manejar os equipamentos de navegação, era observada pelos indígenas no litoral. Ainda não tivesse se iniciado a comunicação gestual, essa aproximação lenta e gradual, em que os navegadores exibiam suas técnicas, significaria uma aproximação pacífica. A linguagem corporal seria um signo linguístico universal, em uma comunicação em que não havia possibilidade de fala. Esse padrão de aproximação entre comunidades culturalmente distantes era comum aos navegadores, que buscavam demonstrar não se tratar de uma invasão a sua aproximação.
Na sequência, Caminha narra que os capitães das naus fizeram uma rápida assembleia e decidiram que Nicolau Coelho iria até a praia interagir com os homens que ali estavam:
aly lancamos os batees e esquifes fora evieram logo todolos capitaães das naaos aesta naao do capitam moor e aly falaram. e ocapitam mandou no batel em trra njcolaao coelho peraveer aq̃le rrio e tamto que ele comecou perala dhir acodirã pela praya homeẽs quando dous quando tres de maneira que quando obatel chegou aaboca do rrio heram aly xbiij ou xx homeẽs pardos todos nuus sem nhuũa cousa que lhes cobrisse suas vergonhas. traziam arcos nas maãs esuas seetas. vijnham todos rrijos perao batel e nicolaao coelho lhes fez sinal que posesem os arcos. e eles os poseram (ANTT, 2020, fl. 1v).
(Ali lançamos os bateis e esquifes fora, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão mor e ali falaram. E o capitão mandou no batel, em terra, Nicolau Coelho para ver aquele rio e tanto que ele começou a ir para lá acodiram pela praia homens, ora dois, ora três, de maneira que quando o batel chegou à boca do rio eram ali 17 ou 20 homens pardos todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos para o batel e Nicolau Coelho lhes fez sinal para que abaixassem os arcos e eles os abaixaram).
Nessa aproximação, mesmo que lenta, os indígenas Tupiniquins traziam seus arcos tencionados, isto é, protegiam-se alertando os possíveis invasores. Podemos notar que o simples fato de permitir a aproximação, sem disparar as flechas, nos dá indícios do interesse dos indígenas em conhecer aqueles estrangeiros que se aproximavam. Nesse momento, após uma maior aproximação, Nicolau Coelho gesticula, fazendo um sinal, para que abaixassem os arcos, e os indígenas os abaixam. Tornam-se, assim, uma comunidade efêmera de fala, no sentido de que passam a integrar, mesmo que momentaneamente, a mesma comunidade linguística.
Os intérpretes tentaram o contato linguístico, porém, não houve a possibilidade de fala, estando ambos os grupos incapazes de se fazerem compreender por um sistema linguístico comum. Apenas com a comunicação gestual os navegadores poderiam estabelecer os primeiros passos para uma feitoria, através do início de trocas de mercadorias. Assim, Nicolau Coelho, experiente navegador, mesmo após as tentativas de compreensão pela fala, tenta se aproximar dos indígenas Tupiniquins, oferecendo um barrete vermelho e uma carapuça de linho que estava em sua cabeça. O gesto é compreendido e um indígena retribui com um pequeno cocar:
aly nom pode deles auer fala nẽ entẽdimento que aproueitasse polo mar quebrar na costa. soomente deulhes huũ barete vermelho e huũa carapuça de linho que leuaua na cabeça e huũ sombreiro preto. E huũ deles lhe deu huũ sombreiro de penas daues compridas cõ huũa copezinha pequena de penas vermelhas epardas coma de papagayo e outro lhe deu huũ rramal grande de comtinhas brancas meudas que querem pareçer daljaueira as quaaes peças creo queo capitam. manda avossa alteza e com jsto se volueo aas naaos por seer tarde e nom poder deles auer mais fala por aazo do mar (ANTT, 2020, fl. 2).
(Ali não pode haver deles nem fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa, somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça e um sombreiro preto. E um deles lhe deu um sombreiro de pena de aves compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, como a de papagaio, e outros lhe deu um ramal grande de continhas brancas e miúdas, que querem parecer semente de aljaveira, peças as quais creio que o capitão manda a vossa alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder deles haver mais fala por azo do mar).
Essa primeira aproximação abriria espaço para uma maior interação nos dias seguintes, até o ápice da narrativa de Caminha que são as duas missas oficiadas por Frei Henrique de Coimbra, no início da colonização da América portuguesa quinhentista. Como se pode notar na retórica do escrivão da armada, além do contato linguístico empírico, iniciado por um simples gesto, que poderia redundar no estabelecimento posterior de uma feitoria, podemos evidenciar que nesse tipo de contato linguístico o ambiente natural possui grande relevo, o que nos leva a interpretar o relato pela Ecolinguística (COUTO et al, 2015), na constituição de um saber linguístico que se compõe no circuito povo, território e linguagem (COUTO, 2007).
2. A Terra de Vera Cruz: uma leitura ecolinguística
Essa comunidade de fala efêmera na América portuguesa quinhentista pode ser analisada e descrita como um ecossistema linguístico (COUTO, 2007), se levarmos em consideração o território como elemento de encontro dos povos. A todo o momento na narrativa de Caminha há uma descrição do ingenium loci, isto é, da natureza do lugar em que os navegadores se situam.
O contato linguístico torna-se especial e específico nesse sentido para o escrivão por ser não só um contato com uma comunidade linguística diversa, mas também a narrativa de contato com um território, que se constituiria mais à frente como uma colônia do reino absolutista de Portugal. Nesse sentido, o território seria o intermediador entre os europeus e africanos presentes na armada de Cabral e os indígenas Tupiniquins. O ecossistema linguístico, nessa perspectiva, da narrativa de Caminha, organizou-se por nove dias, em um território rotulado como Ilha de Vera Cruz, e, posteriormente Terra de Vera Cruz, no vernárculo europeu.
Rotular e nomear um território, criar um topônimo, registrar a existência de um lugar seriam a forma de inserir na realidade linguística algo visto no mundo natural. A descrição que Caminha faz da ordem natural não é uma mera paisagem pitoresca, não tem apenas o objetivo estético de apresentar um locus amoenus, um lugar agradável nos trópicos, com uma gentil população indígena. A partir da Linguística Ecossistêmica, podemos analisar que o ecossistema é o ponto de partida para o contato linguístico (COUTO et al, 2016).
Nesse sentido, gradativamente, a narrativa de Caminha apresenta esse ecossistema, descrevendo as interações humanas com o mar pela navegação, com as espécies animais por seu avistamento e pelas trocas comerciais com uma comunidade linguística em que não havia a possibilidade de contato pela fala. Couto define a noção de ecossistema, na perspectiva da Ecolinguística:
O ecossistema é definido como sendo constituído pelas interrelações, ou interações, entre os organismos de uma determinada área e seu habitat, meio, meio ambiente, biótopo, entorno ou território, dependendo do ponto de vista e até das preferências do investigador. Essas interações podem se dar tanto entre os organismos vivos e o seu meio (interação organismo-mundo) quanto entre quaisquer dois organismos (interação organismo-organismo) (COUTO, 2016, p. 211-212).
Constitui-se como a Ilha de Vera Cruz, ou Terra de Vera Cruz, esse ecossistema de fronteira, como uma feitoria, em que os portugueses e os indígenas de cultura Tupinambá da costa do Brasil têm seu primeiro contato linguístico. Inseridos no mesmo território, culturalmente diversos, passam a integrar uma mesma comunidade efêmera de fala, como costumavam ser as feitorias na África e na Ásia. Não se constituía como um espaço permanente essa interação inicial, ainda pacífica, em 1500, mas que redundaria na violência colonial das décadas seguintes.
A praia, o litoral, como elemento natural de um ecossistema é um signo ambíguo, um locus fronteiriço, participando de duas realidades, da terra do continente e do mar. Esse espaço transitório não pode ser ocupado permanentemente, nem pelos indígenas, nem pelos portugueses, sendo apenas um espaço para formação de uma comunidade de fala efêmera, o que ocorre na interação inicial. Por ser um contato linguístico apoiado em uma linguagem visual e gestual, como narra Caminha, foi largamente utulizado como tema para pinturas, quadros e mesmo no cinema, sendo um tópos artístico. Além da interação entre povo e povo, a comunicação, a interação entre povo e território, que leva a uma significação dessa interação forma o ecossistema linguístico da América portuguesa quinhentista, uma comunidade multicultural que iniciava a se formar, de forma ainda efêmera, como “um conjunto de indivíduos organizados socialmente” (COUTO, 2015, p. 93).
3. As navegações quinhentistas: Gaspar da Índia e os intérpretes
Ainda que na narrativa de Caminha seja dada ênfase a Nicolau Coelho, um dos oficiais da expedição, na qualidade de capitão, geralmente a função de contato linguístico nas viagens estava vinculada à competência linguística de intérpretes confiáveis. Gaspar da Índia era um desses intérpretes na armada de Cabral, provavelmente, o mais experiente. O intérprete, chamado de lingoa, estaria mais próximo de um especialista em línguas e no conhecimento linguístico adequado para o estabelecimento de contato linguístico intercultural, mesmo sem o uso da fala, em que aspectos como expressões faciais e gestuais bem utilizadas poderiam significar a diferença entre um acordo comercial de trocas de mercadoria, ou tornar-se prisioneiro.
Gaspar da Índia, que tentou comunicar-se com os indígenas Tupiniquins, acompanhando Nicolau Coelho, havia regressado da Índia com Vasco da Gama, em 1499, mas não era, propriamente, um navegador português. Ele é descrito em uma carta do rei D. Manuel I a D. Jorge da Costa, o Cardeal Protetor de Lisboa perante a cúria romana à época. O nome Gaspar recebera quando se converteu ao cristianismo e o cognome da Índia, ou da Gama, derivava do fato de ter retornado na nau de Vasco da Gama de seu périplo às Índias:
E sobretudo [trouxeram os homens da Gama] um outro que era judeu e já agora cristão tornado, homem de grande discrição e engenho, nascido em Alexandria, grande mercador e lapidário, o qual havia 30 anos que tratava na Índia e sabe assim esmiuçadamente toda e quanto nela há, e assim todas as terras da cerca e cousas delas desde Alexandria para lá, e da Índia para o sertão e Tartária até o mar maior, que bem se mostra achar-se aquela terra por grande mistério de nosso Senhor, para seu santo serviço e bem da cristandade, pois logo com isso ordenou de se nos trazer este homem, que a vemos acerca por tanto como todo al, porque sem ele vir estivera ainda muitos anos todo o achado por se saber tão cumprida e intrinsicamente como agora de nós é sabido, Deus seja louvado. Este homem sabe falar hebraico, caldeu, arábico e alemão, fala também italiano misturado com espanhol tão claro que se entende como um português, nem ele menos os nossos (LIPINER, 1987, p. 79-81).
Gaspar da Gama foi um oficial e administrador, um xabandar, do sabaio, o senhor de Goa, antes do período de dominação portuguesa da região indiana. Nesse sentido, de origem judaica, vindo de Alexandria, da região do Levante, chegou à região de Goa, e lá atuava no comércio local, em um entreposto marítimo. Gaspar da Índia era experiente no comércio, dominava diversas línguas e sabia comunicar-se, devido ao exercício de suas funções, tinha uma formação multicultural, como era necessário ao comércio mercantil de sua época. Para ele, a situação de encontrar uma comunidade linguística, como os indígenas Tupiniquins, que não fosse conhecida, não seria um empecilho.
Gaspar da Índia, muito provavelmente, ao tentar o contato com os indígenas de cultura Tupinambá tentou valer-se das línguas que conhecia, do hebraico, do caldeu, do árabe, do alemão, do italiano e do espanhol. Não conseguiu, porém, a comunicação pela fala, algo que só se desenvolveria mais tardiamente, com os intérpretes e os missionários com formação humanística. As habilidades e competências linguísticas de Gaspar da Índia permitiram que ele se inserisse nas comunidades linguísticas diversas e multiculturais da África e da Ásia, dada a sua especialidade comunicativa com as línguas semíticas, mas a língua dos indígenas de cultura Tupinambá era muito distante, e na manhã de 23 de abril de 1500, os indígenas Tupiniquins não conseguiram compreendê-lo.
Gaspar da Índia foi o lingoa mais citado pelo humanista João de Barros, o que denota o interesse do gramático pelo intérprete e o seu conhecimento de mundo. Sua origem é vinculada às culturas semíticas: “nascido provavelmente no leste da Europa. Deslocou-se para Jerusalém e Alexandria e chegou à Índia, tornando-se grande conhecedor dos mercados orientais” (FARACO, 2016, p. 68). Certamente, para os navegadores portugueses, o intérprete servia como um oficial especializado em línguas e culturas, com formação empírica, antecipando o perfil acadêmico do humanista:
Foi um dos mais destacados línguas do começo do século XVI: acompanhou a segunda frota da Carreira da Índia, comandada por Pedro Álvares Cabral em 1500 e, depois, voltou à Índia na segunda viagem de Vasco da Gama em 1502; e acompanhou ainda o vice-rei, Francisco de Almeida, em 1505 (FARACO, 2016, p. 68).
Gaspar da Índia converteu-se ao cristianismo, integrando-se culturalmente ao reino absolutista de Portugal, tornando-se cristão-novo, como passaria a ocorrer com os povos indígenas da América portuguesa, após o início da política missionária, como extensão do projeto colonial ultramarino. Seu perfil como um especialista em línguas com formação empírica marcaria a intelectualidade da época das navegações, em um momento em que os missionários portugueses, sobretudo franciscanos, ainda tinham uma formação de cunho escolástico ou medieval, com a gramática especulativa em latim predominando no cenário acadêmico dos mosteiros e ordens religiosas.
Nessa época, o humanismo renascentista europeu, de matriz itálica e francesa, já havia chegado à corte portuguesa, desde D. João II, com o humanista Cataldo Parísio Sículo. A política de bolsistas, os “bolseiros” de D. Manuel, facultaria a reforma educacional das instituições de ensino em Portugal, quando a gramática humanística passaria a predominar. A obra de Anchieta, que descreve a língua dos indígenas de cultura Tupinambá já é produzida sob esses parâmetros, em um momento em que o contato linguístico passa a contar com especialistas e há uma sistematização do pensamento linguístico na disciplina de gramática, com a descrição vernacular.
4. Palavras finais
Ao interpretar os documentos sobre a América portuguesa quinhentista, podemos pensá-los em um cenário de compreensão de como as línguas indígenas foram percebidas naqueles momentos, principalmente, ao investigar as fontes que envolvem o contato linguístico entre os povos do chamado Vetus Mundus, Europa, África e Ásia, com os povos do Novus Mundus, de então. Essas fontes requerem um olhar crítico e perspectivas interdisciplinares de abordagem. Ao fazermos isso nos valendo da fundamentação teórica de análise da Ecolínguística e da Historigorafia da Lingústica, buscamos analisar aspectos latentes nos documentos, que nos revelem o contato linguístico e o conhecimento linguístico dos atores envolvidos nesse processo.
A Carta de Pero Vaz de Caminha, como documento que desperta interesse não só histórico, político e social, visto que se configura como um dos principais pontos de interesse luso-brasileiro, também pode servir para se compreender o processo intercultural de contato linguístico travado entre as comunidades linguísticas de europeus e indígenas no contexto da América portuguesa quinhentista. Os portugueses e os indígenas Tupiniquim teriam um convívio de décadas após essa interação inicial.
Diante do que aqui foi descrito e analisado, sabe-se que muito ainda se tem a abordar sobre a diversidade linguística e multicultural, presente durante os nove dias em que as naus portuguesas ficaram aportadas e que culminaram nas primeiras tentativas de contato linguístico, nesse ecossistema linguístico e cultural, rotulado como Ilha de Vera Cruz. Buscamos somar mais uma interpretação crítica desse documento, um dos primeiros registros dos processos linguísticos e interculturais que estiveram na origem da América portuguesa.
Referências
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