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Relato de Pesquisa

O Reisado de Mestra Mazé: a construção de sentido em um texto sincrético performático da cultura popular brasileira

Ricardo Nogueira de Castro Monteiro

Universidade Federal do Cariri image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0003-2588-0887


Palavras-chave

Semiótica
Sincretismo
Cultura Popular
Folia de Reis
Folclore

Resumo

O artigo tem por objetivo investigar os processos de construção de sentido em uma apresentação do Reisado de Mestra Mazé ocorrida a 22/09/2017 em Crato. A análise do texto sincrético, cujo plano da expressão articula elementos sonoros, visuais e tácteis, é pautada por três questões: 1) a eventual presença de uma estrutura formal que garanta a unidade narrativa do espetáculo; 2) quais procedimentos responderiam pelas construções identitárias e de alteridade no folguedo; 3) quais as estratégias de construção do efeito de sentido de tradição inerente a um texto percebido como imemorial. A metodologia utilizada parte da semiótica de Greimas e colaboradores, detendo-se na questão das comutações entre categorias da expressão e do conteúdo, bem como sua suspensão – o sincretismo de Hjelmslev. Conclui-se pela presença de uma forma responsável pela unidade do espetáculo, e procede-se à sua descrição. Detalham-se ainda procedimentos de construção de sentido de identidade e alteridade, apontando-se mecanismos interdiscursivos responsáveis pelo efeito de sentido de pertinência à tradição. Pondera-se por fim a respeito da necessidade de avanço da semiótica no estudo de textos sincréticos performáticos tradicionais, tanto pelos desafios epistemológicos para os estudos semióticos e das linguagens verbais e não-verbais como pela importância cultural de seu objeto.

Introdução

Os folguedos da cultura popular muito frequentemente apresentam uma notável complexidade no que diz respeito a suas figuras de expressão de natureza sincrética, bem como no que tange aos efeitos de sentido da ordem tanto do sensível quanto do inteligível delas decorrentes. Tais figuras de expressão não raro parecem conferir a elementos pontuais a primazia sobre o próprio devir discursivo - como se o efeito estético de certas figuras de expressão isoladas, e não seu fluxo narrativo e inter-relação com estruturas mais profundas da significação, garantissem a consistência de certos gêneros textuais sincréticos da cultura popular. No Teatro de Revista - gênero em termos estruturais intermediário entre certas formas rapsódicas da cultura popular e a fragmentação dos programas de auditório da cultura de massa -, alguns espetáculos se imortalizaram por causa de cenas, canções ou coreografias cuja presença na estrutura dramatúrgica corresponde mais a um enxerto do que a um elemento organicamente inserido no percurso narrativo da obra.

Constituindo os textos sincréticos da cultura popular quase sempre não o fruto do trabalho cerebral e calculado de um autor individual, mas sim o produto de um processo de criação essencialmente coletivo e espontâneo, uma primeira questão de interesse que se coloca diz justamente respeito à presença ou não de uma estrutura formal que garanta a unidade narrativa e discursiva do espetáculo. Uma segunda questão remete à própria construção do efeito de sentido de tradição inerente a um texto percebido como imemorial. Por fim, outro problema de interesse diz respeito a quais elementos e procedimentos estruturais responderiam pelas construções identitárias e de alteridade no folguedo.

O aporte teórico do presente estudo filia-se sobretudo à chamada semiótica greimasiana, não apenas a partir do legado de seu fundador, mas também de seu círculo de colaboradores e da geração de pesquisadores por eles formada. No que tange à dramaturgia, a obra de Propp que tanto marcou a semiótica francesa se faz presente em seus desdobramentos ulteriores nos trabalhos de Syd Field (FIELD, 2001) e Christopher Vogler (VOGLER, 2007), bem como dialoga com o cânon aristotélico do qual todos aqueles provêm. No que tange à Folia de Reis, obra fundamental para as discussões da presente pesquisa é o Reisado Alagoano, de Théo Brandão (BRANDÃO, 2007), a partir do qual o trabalho estabelece um intenso diálogo com relação ao imaginário cultural e ao legado antropológico e etnomusicológico alagoano. O corpus analítico é constituído por uma apresentação específica do Reisado de Mestra Mazé Deluna, registrado em suporte audiovisual a 22/09/2017 na Comunidade do Gesso, no Crato, Ceará, para integrar o acervo de pesquisas do Núcleo de Perenização e Difusão da Cultura Popular do Cariri.

1. Estrutura narrativa: do primado do valor à apoteose da presença

Câmara Cascudo define as festas de Reis como “festas populares na Europa (Portugal, Espanha, França, Bélgica, Alemanha, Itália, etc.) dedicadas aos três Reis Magos em sua visita ao Deus Menino, e ainda vivas em vestígios visíveis”. Esclarece ainda que o folguedo seria realizado por “grupos com indumentária própria ou não, que visitam os amigos ou pessoas conhecidas, na tarde ou noite de 5 janeiro (véspera de Reis) cantando e dançando ou apenas cantando versos alusivos à data solicitando alimentos ou dinheiro” (CASCUDO, 1988, p. 668). Salientando que já na segunda década do século XVIII aparecem registros inequívocos da festa no Brasil, o folclorista potiguar define a seguir “Reisado” simplesmente como “denominação erudita para os grupos que cantam e dançam na véspera e dia de Reis (6 janeiro)” (op.cit., pg. 669). Ponto interessante frisado pelo autor é a internacionalidade do folguedo em si, representando a festa registrada em terras brasileiras uma manifestação local de um fenômeno cultural de abrangência bastante generalizada nos países em que o cristianismo se apresenta como religião majoritária.

Não muito distante é a definição do Dicionário musical brasileiro de Mário de Andrade, onde o Reisado aparece como “encenação com canto e dança para comemorar o Natal, ao ar livre ou em visita às casas. Geralmente antecede o Bumba-meu-Boi podendo ter esse nome - Bumba-meu-Boi - ou do vegetal, animal ou personagem principal” (ANDRADE, 1989, p. 434). Acréscimo importante aqui é a constatação de que, na época de vida do autor de Macunaíma, a tendência de fusão entre o Reisado e o Bumba-meu-Boi, ainda separados nas observações de Mello Moraes Filho e Pereira da Costa no início do último quartel do século XIX (MELLO MORAES FILHO, 1999, p. 57; PEREIRA DA COSTA, 1908, p. 236) já se consolidara e amadurecera em uma forma definitiva.

Em um enfoque de maior interesse com relação ao nível narrativo, Oswald Barroso descreve o Reisado como “um folguedo tradicional do ciclo natalino, que se estrutura na forma de um cortejo de brincantes, representando a peregrinação dos Reis Magos a Belém, e se desenvolve, em autos, como uma rapsódia de cantos, danças e entremeses, incluindo obrigatoriamente o episódio do Boi” (BARROSO, 2013, p. 25). O autor evidencia assim a existência de uma estrutura narrativa composta por uma série de episódios (programas narrativos subsidiários passíveis de integrar um percurso narrativo maior) que, coesa ou fragmentária, encadeando-se por uma sequência lógica ou por mera justaposição, merece ser alvo de discussão também dentro de uma perspectiva semiótica.

A percepção da estrutura narrativa do Reisado como resultante de uma justaposição de cenas curtas – ou programas narrativos subsidiários – nos é oferecida também por Theo Brandão em seu clássico O reisado alagoano: “uma espécie de revista popular em que os números de canto, danças e declamação de obras poéticas decoradas ou de improviso dominam quase a parte dramática do folguedo, constituída pelos ‘Entremeios’ - representações, na maioria curtas e pobres, e, elas próprias, quase sempre acompanhadas de cânticos e danças” (BRANDÃO, 1953, p. 13).

A estrutura de tal folguedo enquanto espetáculo se define inequivocamente pela complexidade seja de sua dramaturgia, seja do sincretismo que enriquece seu plano de expressão com diferentes camadas de instâncias de substância. Mobilizam-se na complexidade sincrética de seu plano de expressão uma Sonoridade, uma Visualidade e uma Palpabilidade, cada categoria subdividindo-se em subcategorias ordenadas a partir da oposição intenso x extenso. O esboço que apresentaremos a seguir corresponde a uma categorização do Plano de Expressão, tomando como referência as pesquisas de semiótica do teatro de Tadeusz Kowzan (KOWZAN, 1969), atualizando contudo algumas de suas propostas à luz de contribuições conceituais e metodológicas advindas da semiótica tensiva, notadamente a partir de trabalhos de Zilberberg e Fontanille (FONTANILLE & ZILBERBERG, 2001). A célebre tabela de signos do espetáculo proposta por Kowzan aparece praticamente em sua íntegra– contando, contudo, com certas categorias adicionais e valendo-se de uma semiotização que se estrutura, em cada subdivisão, em subcategorias binárias organizadas a partir de uma oposição tensiva, seguindo a tradição da glossemática de Hjelmslev (HJELMSLEV, 1975).

Figure 1. Figura 1. categorias e subcategorias do plano de expressão sincrético performático1

Assim, a Visualidade opõe o caráter intensivo da corporalidade – abrangendo aspectos relacionados à gestualidade e à indumentária – à extensividade da arquitetura cênicaa qual remete a um mobiliário e uma cenografia:

Figure 2. Figura 2. Subcategorias da Visualidade

No corpus em questão, é relevante ainda uma Palpabilidade, em que uma interação de ordem táctil pode se manifestar tanto a partir de diversas formas pontuais intensivas de toque no espectador quanto através de mobilizações de caráter extensivo que conduziriam ao seu deslocamento. Dentro da Sonoridade, a oposição intensão x extensão orienta a dicotomia oralidade x ambiência, dada a concentração de uma no ator e a dispersão da outra no espaço cênico; a ambiência, por sua vez, é passível de se ver desdobrada em sonoplastia e música – e assim por diante, em diversas dicotomias sucessivas. Vale notar que, assim como na semiótica tensiva, não se trata aqui de propor simplesmente oposições dicotômicas, mas, muito pelo contrário, de apontar a continuidade entre dois pontos extremos de um gradiente tensivo, no qual por vezes as fronteiras entre sonoplastia e música, ou entre toque e deslocamento, por exemplo, podem se mostrar fugidias em certos pontos da práxis enunciativa.

Figure 3. Figura 03. Visualidade, Sonoridade, Palpabilidade e suas subcategorias

Também a corporalidade permite subdivisões consecutivas, opondo inicialmente o caráter instantâneo da gestualidade com relação à relativa estabilidade da indumentária – e, enquanto a primeira comporta nova subdivisão opondo a intensividade do gesto na gesticulação à sua extensividade na coreografia, também a indumentária permite opor o caráter mais localizado e minimalista, ainda que definitivamente não menos marcante, da maquiagem ao figurino, desmembrando-se ainda este último no usualmente mais pontual trabalho de coiffure com relação à relativa extensividade da roupagem propriamente dita:

Figure 4. Figura 4. Detalhamento da subcategorização da Visualidade em três níveis de articulação

Feitas essas considerações iniciais, e salientando a possibilidade de continuidade entre os extremos tensivos, retornemos ao problema da forma. Observa Syd Field em seu Manual do roteiro (FIELD, 1995, p. 101) uma homologia entre a organização temporal do plano de expressão no cinema e sua estrutura narrativa, incidindo aquilo que o autor denomina como primeiro “ponto de virada” – o programa narrativo da “partida do herói para cumprir sua missão”, na terminologia de Vogler (VOGLER, 2007) – a aproximadamente 25% do início do filme, e o segundo – o começo do desenlace da trama para Field, ou o programa da “viagem de volta” para Vogler –, a 75%. Vogler, por sua vez, chama a atenção da necessidade de um clímax – ou anticlímax, quando disfórico – dramático incidindo aproximadamente na metade da duração total da enunciação (VOGLER, 2007, p. 157), caracterizando assim uma curva dramática a organizar o texto sincrético por meio de comutações entre categorias de expressão e conteúdo orientadas a partir de inflexões do percurso narrativo. Note-se que o estudo sistemático das relações entre a estrutura narrativa e a enunciação no texto sincrético – particularmente no que diz respeito à dimensão temporal do espetáculo teatral, cinematográfico ou coreográfico –, trazem uma contribuição que, canônica dentro da área de atuação original de Vogler e Field – o cinema –, propicia um instrumental conceitual e metodológico que acreditamos ser fundamental para a análise semiótica de textos performáticos sincréticos como aquele que constitui o corpus do presente artigo.

Consideremos, a partir disso, a organização do Reisado de Mestra Mazé assim como apresentado na noite de 22/09/2017 na Comunidade do Gesso em Crato, Ceará. O espetáculo de 45’09” de duração compreendeu 45 números, sendo 29 Peças ou canções, 08 Bailados, 04 Recitativos – ou seja, trechos recitados cancionalmente em andamento livre – e 02 números compreendendo simplesmente Falas. Os 02 elementos que faltam para a somatória total das 45 partes correspondem a repetições de números – em geral, com variações da letra. A duração de cada número oscilou de 09 segundos até pouco mais de 2 minutos. Tratou-se de uma versão compacta do Reisado – o qual, em sua íntegra, pode facilmente se estender por várias horas. A apresentação, pública, gratuita e ao ar livre, guardou vários aspectos da espontaneidade do folguedo – o qual, em sua forma arcaica original, tinha também lugar à noite, tendo por palco principal o terreiro ou quintal do patrono da festa, e muitas vezes sendo antecedida por um preâmbulo em que alguns dos brincantes adentravam na casa do anfitrião realizando pequenos números musicais ou cômicos para convocar a família para a brincadeira e para arrecadar dinheiro, alimentos ou bebidas.

Embora muitos não enxerguem no Reisado mais que uma estrutura rapsódica, um exame minucioso da forma do folguedo revela outrossim uma estrutura de encenação surpreendentemente compatível com o modelo discutido por Field e Vogler. Isso porque pode-se dividir a duração do espetáculo em 4 seções de dimensão similar, compreendendo uma Apresentação, seguida por um Desfile de Entremeios (ou Figuras), pela Parte do Boi e finalmente concluída pela Guerra. A primeira inflexão, que incide a 20,34% do espetáculo, corresponde ao Plot 1 de Syd Field – ou mesmo ao conceito dramatúrgico de “ponto-de-virada” correspondente à δέσιν de Aristóteles em sua Poética2 – incidindo entre a seção de abertura do folguedo e o início da apresentação das Figuras, e marcada cenicamente pela radical mudança de posicionamento do coro (Figura 05, esquerda) antecedendo com uma reverência a entrada espetacular da personagem Jaraguá (um ser fantástico representado pela indumentária e máscara de uma grande ave de pescoço longo, conforme a Figura 05, direita).

Figure 5. Figura 5. À esquerda, o coro altera sua formação para a entrada do Jaraguá (em destaque à direita)

Outro elemento que reforça a identificação do ponto de virada é justamente a passagem de um contexto eufórico, caracterizado pela dinâmica da celebração, para outro aparentemente disfórico, marcado pela presença à primeira vista ameaçadora do “bicho feio” que teria vindo “pra pegar o Mateus” (Recitativo 02) – reproduzindo-se pois a transição súbita para a ἀτυχίαν, tal qual preconizado pelo texto Aristotélico, e em plena consonância com Field e Vogler.

Já a inflexão central apontada por Vogler encontra correspondência na chegada, a partir de 53,41% do espetáculo, do grupo de personagens que compõem o imaginário – e o percurso isotópico – do Bumba-meu-Boi. Tal inflexão é introduzida pela entrada em cena da Burrinha (Figura 06, à esquerda), que aparece na Peça 17, a qual descreve uma “cavaleira que partiu do oriente” – aludindo-se aqui também ao imaginário da visitação dos Reis Magos – montada em sua burrinha “faceira” e “ligeira”. A importância na estrutura dramática da entrada da personagem é reforçada por sua presença também na Peça 18, que canta que “a burrinha é bonita e sabe galopar”. Ocupando cerca de 25% do tempo do espetáculo, o Boi (Figura 06, à direita) corresponde contudo à Figura de maior destaque no espetáculo.

Figure 6. Figura 6. À esquerda, a personagem Burrinha; à direita, o Boi

Finalmente, o último ponto de virada – correspondente à λύσιν aristotélica e ao Plot 2 de Field – ocorre a 77,33% da duração do espetáculo, na transição da seção do Boi para aquela da Guerramarcada pela maior concentração de Bailados da obra, e repleta de coreografias encenando combates com espadas, como se pode ver na Figura 07:

Figure 7. Figura 7. Cena da Guerra com luta de espadas

Assim, ainda que prescindindo de um percurso narrativo em que os programas se sucedam concatenados por uma cadeia de pressuposição lógica, é patente contudo o ordenamento da forma da expressão, a qual apresenta homologia com relação às categorias do conteúdo a partir dos percursos isotópicos prevalentes em cada uma das quatro seções. Caracteriza-se assim um gênero textual sincrético em que, ao contrário do que ocorre no filme hollywoodiano analisado por Field e Vogler, dá-se como que um primado do discursivo sobre o narrativo – ou mesmo da expressão sobre o conteúdo –, esvaziando-se o equacionamento de um percurso narrativo para o espetáculo ou de uma sinopse que tenderia a resultar, na melhor das hipóteses, na mera descrição da sequência de apresentação dos principais temas e/ou figuras que preenchem a obra. Vale, contudo, reforçar que tal esvaziamento narrativo não se dá por completo, havendo um nexo, uma cadeia de invariâncias, a se apontar. De fato, as 3 primeiras seções se constituem a partir de inventários de personagens – uma invariância –, diferindo todavia substancialmente em termos de suas estratégias enunciativas.

Assim, enquanto a primeira parte se caracteriza por uma enunciação enunciada, apresentando o grupo de Reisado sob diferentes ângulos, a segunda mergulha no enunciado, constituindo um desfile de figuras que ambientam o imaginário do texto por meio de seres fantásticos, como o Jaraguá ou a Sereia, personagens de cunho realista, como Mestre Dedé, e mesmo localidades geográficas, como a cidade do Crato, estabelecendo-se pois uma série de debreagens actoriais e espaciais que fundam o espaço enuncivo do texto. A terceira parte, por sua vez, representará o espaço da dimensão narrativa propriamente dita do espetáculo, com a reprodução, ainda que sucinta, da saga de vida, morte e ressurreição do Boi-Bumbá, produto de um imaginário indissociável do ciclo econômico do gado que marcou a economia e cultura da região do século XVIII até a primeira metade do XX. A quarta e última seção estabelece o espaço por excelência do confrontamento – contrapondo não necessariamente sujeito e anti-sujeito, ou mesmo sujeito e destinador, seguindo os equacionamentos juntivos da semiótica greimasiana, mas antes os atores de uma interação de ajustamento, segundo a proposta de Landowski em obras como Passions sans nom (LANDOWSKI, 2004).

Sem foco definido, tal conflito estabelece um estilo semiótico para uma performance que não se resolve – que se virtualiza, se atualiza, mas não se realiza em termos juntivos definindo vencedores ou derrotados. Haveria na Guerra uma forma gradativa de ajustamento que comporia um estilo semiótico de inquietude ao se ver flutuar o regime de união entre seus polos de euforia e disforia, entre sua continuidade e descontinuidade, e entre diferentes graus de intensidade. Assim, pode-se formular a proposição de uma narrativa organizada menos a partir da dinâmica de relações juntivas do que de alterações nos regimes de co-presença entre os sujeitos que assumem as configurações estésicas, aspectuais, modais e patêmicas do texto. De qualquer forma, em suma, respondemos afirmativamente à questão sobre a presença de uma estrutura formal que garanta a unidade narrativa e discursiva do espetáculo, respeitadas as peculiaridades de uma estrutura discursiva marcada por uma narratividade regida menos por relações juntivas do que por regimes de co-presença.

2. Heterogeneidade e dialogismo na construção do efeito de sentido de tradição

Confrontando-se os estudos realizados por Mário de Andrade nas décadas de 1920 e 1930 com as anotações recolhidas por Mello Moraes Filho até a década de 1880, chama a atenção o fato de que Mello Moraes descreve o Bumba-meu-Boi e o Reisado como dois eventos separados e independentes (MORAES FILHO, 1999, p.57), ao passo que o autor de O turista aprendiz observa que uma tendência à fusão desses dois folguedos – hoje indissociáveis – haveria já se consumado no corpus por ele analisado quarenta anos mais tarde (ANDRADE, 1989, p. 434). Se tal sobreposição resultou não em uma colcha de retalhos, mas em um texto coeso, isso significa que a enunciação sincrética logrou conferir unidade ao que teria sido originariamente uma mera superposição de textos, convertendo-se, pois, uma bricolagem textual em um texto polifônico pautado por diferentes graus de dialogismo interdiscursivo e intertextual. O gênero Reisado produziria assim, dentro de uma dinâmica característica da oralidade, não textos cristalizados em uma forma de enunciação definitiva, mas sim resultantes de um processo pelo qual seu tecido, qual mortalha de Penélope, vai-se fiando e desfiando permanentemente, sem jamais se consumar de fato.

Um primeiro desafio com que se depara o analista é a identificação e mapeamento da teia intertextual e interdiscursiva cuja justaposição em maior ou menor grau contribui para a estruturação de um tal texto. A constatação por Mário de Andrade de uma heterogeneidade intrínseca à estruturação discursiva do texto nos levou a buscar, dentre as poucas transcrições parciais englobando a dimensão verbal e musical do folguedo, aquelas que eventualmente apresentassem algum tipo de correspondência com nosso corpus – parciais já que, surpreendente e lamentavelmente, não há trabalhos com transcrições verbais e musicais integrais de tais folguedos no mercado editorial ou nos muitos acervos consultados. Tal enfoque se encontra também, por exemplo, em Câmara Cascudo, sempre atento em identificar correspondências entre um dado texto, suas variantes no tempo e no espaço, e as mais marcantes referências com que estabelecem uma relação dialógica.

No caso do corpus aqui discutido, tal estudo comparativo mostrou-se surpreendentemente profícuo: dos 45 números do Reisado de Mestra Mazé, 14 – pouco mais de 30% do repertório – encontram correspondência, com variados graus de similaridade, nas peças coletadas no final da década de 1940 por Theo Brandão em seu O reisado alagoano. Em termos de duração, a somatória dos trechos com correspondência em Brandão resulta também em pouco mais de 30% da duração do folguedo, perfazendo cerca de 14 dos 45 minutos da representação. Isso indica um considerável peso da herança cultural alagoana na cultura do Cariri cearense, localizado a mais de 600km a noroeste do campo pesquisado por Brandão, e com uma defasagem de tempo da ordem de 70 anos.

Sob o ponto de vista intertextual, semelhanças lítero-musicais equivalentes foram encontradas com as anotações de dois outros importantes estudiosos: Mário de Andrade, cujos registros foram colhidos no Rio Grande do Norte em 1929 (ANDRADE, 1982); e Altimar Pimentel, que publica em 2004 registros sobre o Boi de Reis de Mestre Pirralhinho em João Pessoa, Paraíba, sugerindo contudo que os registros corresponderiam fidedignamente ao material que ele colhera no final da década de 1970 (PIMENTEL, 2004). Note-se que, no caso das relações com as anotações de Mário de Andrade, está em questão a permanência, em maior ou menor grau, de estruturas cancionais do folguedo ao longo de um período da ordem de 90 anos, e novamente cobrindo-se um percurso geográfico da ordem de 600 km - desta vez, na direção sudoeste.

No que tange porém à instância verbal, a escala de tempo em que se identificam estruturas textuais do Reisado de Mestra Mazé se amplia consideravelmente – primeiro, dando-se um salto de 20 anos, ao se considerarem referências publicadas por Pereira da Costa em 1908 em seu Folk-lore pernambucano; recuando-se contudo mais 25 anos ao se relevarem as semelhanças com os Cantos populares do Brasil de Sílvio Romero, de 1883; e, finalmente, mais 14 anos – ou, na verdade, bem mais do que isso – ao considerarmos as referências dos Cantos populares do archipélago açoriano publicadas em 1869 por Teófilo Braga, obra que tanto inspirou Romero, em forma como em substância. Note-se que as relações intertextuais encontradas passam assim a abarcar um período documentado da ordem dos 150 anos.

A questão mostra-se contudo ainda mais ampla. Da mesma forma como Mário de Andrade registrara a fusão por incorporação do Bumba-Meu-Boi com relação ao Reisado, evidencia-se a presença de processo equivalente no que diz respeito à Congada. Em outras palavras, pudemos constatar elementos verbais assim como musicais da Congada em ao menos 3 dos 45 números do folguedo. Por fim, ainda que com uma presença muito diluída quer por mutações dos textos de referência verbal, quer das mais antigas partituras a eles associadas, cabe apontar também a presença de elementos do repertório romançal ibérico – caso da peça “Pastorinha, ô mana”, cujas referências, encontradas inicialmente na obra de Brandão, mostraram-se após detalhada pesquisa presentes também nas anotações de Mário de Andrade, que lhe deu a formatação cancional mais antiga. Contudo, seus elementos verbais foram localizados também em Sílvio Romero, sob o nome de “A Pastora”, (ROMERO, 1985, p.27) e, por fim, na “Xácara da Rosa Pastorinha” registrada por Teófilo Braga em seu Cantos populares do archipélago açoriano de 1869 (BRAGA, 1869, p. 373). Também a partilha do boi, da Peça “Assim-mesmo, mesmo-é”, encontra correspondência no repertório Romançal – não no Ibérico, mas no genuinamente nacional do “Boi Espácio”, recolhido inicialmente por José de Alencar em 1873 e publicado em sua obra Nosso Cancioneiro (ALENCAR, 1960), em uma pesquisa que viria a ser consumada por Sílvio Romero dez anos mais tarde.

Dessa forma, podemos considerar que o Reisado de Mestra Mazé constitui uma rede interdiscursiva em que se entrelaçam ao menos 4 grandes repertórios – ou 4 grandes gêneros, para se aprofundar a utilização das ferramentas conceituais de Bakhtin (BAKHTIN, 1977, p.277) –, quais sejam: o Reisado propriamente dito; o Bumba-meu-Boi; a Congada; e o Romançal.

Valendo-se pois o Reisado de peças de características rítmicas das mais variadas - ternárias, binárias, quaternárias, mesmo ad libitum -–, percorrendo os mais diversos gêneros, e munindo-se de um texto heterogêneo que apresenta personagens ora fantásticas, ora humanas, concluímos por residirem nas relações interdiscursivas – quando restritas ao plano do conteúdo – e intertextuais – quando abrangendo, como no caso de certas canções, também figuras de expressão – estabelecidas a partir do emprego de recursos estilísticos e padrões isotópicos dos 4 grandes repertórios de referência supracitados e seus respectivos imaginários o reconhecimento de um efeito de sentido de identidade para com os parâmetros de nossa tradição cultural, a qual legitimaria o folguedo aos olhos do grupo social em que o mesmo se origina e para o qual é inicialmente destinado.

Se a pertinência pois aos repertórios de referência parece responder satisfatoriamente à questão no que tange aos 30% do folguedo em que essa propriedade se aplica de forma bem documentada, não será contudo simplesmente por justaposição que os 70% restantes adquirirão esse mesmo estatuto semântico. Nesse caso, entre as estratégias empregadas para gerar um contágio do traço semântico de pertinência à tradição com relação ao restante do repertório – contágio na acepção mesma proposta por Landowski, dada a co-presença das peças em um regime de união, e não alguma troca de valores que paute um percurso de aquisição de competência simbólica –, vale destacar alguns procedimentos relativos ao emprego sistemático de certos elementos e estruturas textuais. Uma delas é a de continuidade de figuras de expressão, gerando a suspensão da comutação entre categorias de expressão e conteúdo – em outras palavras, na acepção de Hjelmslev, um sincretismo. Esse procedimento aparecerá nas figuras de expressão visual – ou, utilizando-se o sistema de classificação por nós proposto a partir do modelo de Kowzan, na Visualidade, em sua articulação enquanto corporalidade, e, dentro desta, tanto em suas sub-articulações da ordem da indumentária quanto da gestualidadeaqui, na componente correspondente à coreografia. No caso da indumentária, a estabilidade é a máxima possível para cada ator, que a mantém, sem variações, do início ao fim do espetáculo. Já no caso da coreografia, o processo é tão mais complexo quanto interessante, fazendo incidir em peças de maior ineditismo coreografias de alta similaridade com relação àquelas mais consagradas no repertório. Assim, “Nosso Reisado é do Muriti”, que não pode ser anterior à mudança em 1984 da sede do Reisado de Mazé para o bairro do Muriti, em Crato (CE), utiliza o mesmo passo básico que as peças “Tava debaixo de um arvoredo” e “A borboleta”, ambas com similares no repertório colhido por Brandão nos anos 1940. Tais estratégias de suspensão das comutações categóricas, através de uma sinédoque e de um processo de contágio, respondem, a nosso ver, por boa parte do efeito de sentido de pertinência do folguedo com relação ao repertório tradicional.

3. Mecanismos de construção identitária

Em termos de procedimentos de construção do sentido de identidade, o mecanismo mais elementar – e, literalmente, evidente – diz respeito à mobilização de figuras de expressão visual. Fazendo uso da categorização explanada anteriormente, é novamente a articulação da Visualidade correspondente à corporalidade – e dentro desta, a sub-articulação extensiva da indumentáriaque vai proporcionar a mais imediata forma de caracterização identitária das personagens. A partir dela, estabelecem-se algumas das identidades básicas do discurso: no corpo de baile, a coroa funciona como signo por excelência da realeza; associando-se com a saia balão (longa), define a Rainha (Figura 08, à esquerda); com o mero saiote (curto), o Rei (Figura 08, à direita). Desta forma, tem-se a coroa como elemento de invariância, e a oposição longo x curto como parâmetro associado às representações de gênero.

Figure 8. Figura 8. À esquerda, a personagem Rainha; à direita, o Rei

No que tange aos embaixadores, a construção da alteridade com relação ao restante do grupo se faz através do contraste cromático cores quentes (coro em geral) x cores frias (embaixadores, únicos elementos do coro a utilizarem uma cor fria - no caso, o verde). Interessante a preservação de uma diferenciação tão bem marcada - provavelmente pelo peso da tradição -, já que a função mais característica dos embaixadores de recitação de poemas não apareceu na encenação em análise, resultando pois em uma quase equivalência entre aqueles personagens e o coro em termos de função dramática, ainda que com algum destaque em termos da enunciação sincrética em seu aspecto coreográfico.

No que concerne aos diferentes níveis hierárquicos dos elementos do coro, os traços identitários aparecem marcados essencialmente a partir da coloração do peitoral: a Mestra, de peitoral negro (e pantalona); de peitoral vermelho, a contramestra; de peitoral dourado, as duas bases. Caso particularmente interessante é o das duas contra-guias, as quais apenas diferem das quatro “figurinos” (termo utilizado dessa forma na tradição, com gênero masculino invariável, e que se remete aos componentes do coro de estatuto hierárquico inferior) a partir das componentes coreográficas da enunciação sincrética, ocupando posição protagônica no bailado com relação a elas, mas sendo no mais idênticas em termos de indumentária.

Já os Entremeios ou Figuras têm sua alteridade para com os personagens acima marcada por oposições como extensão x intensão e homogeneidade x heterogeneidade, projetando-se as categorias de extensão e homogeneidade sobre a indumentária do coro - de inspiração conceitualmente militar, e relativamente uniforme -, ao passo que intensão e heterogeneidade caracterizariam o paradigma das vestes dos Entremeios - fantasias bastante variadas, porque em conformidade com os perfis distintos das personagens de referência. Assim, a identidade da Sereia vem representada pela cor azul-clara e pelas transparências - dois recursos únicos no paradigma da encenação. A Índia, pelo bikini e cocar - novamente, elementos de marcada intensão, dada sua singularidade. O Jaraguá, pela enorme fantasia de ave; o Boi, pela figuratividade, assim como a Burrinha, montada por uma garota de vermelho; a Catirina, por ser um homem da cara pintada de preto em roupas femininas; e por fim, os dois Mateus vestem-se de azul com grandes chapéus cônicos e a cara pintada de preto.

Note-se que, no caso específico da apresentação aqui descrita, não ocorre homologia entre o mecanismo discursivo da debreagem e alguma figura de expressão sonora correspondente – como seria o caso se algum dos atores de fato simplesmente tomasse a palavra. Ao invés disso, mantém-se, ao longo de todo o espetáculo, uma estrutura responsorial entre a personagem Mestra e o coro, independentemente das debreagens e embreagens do texto verbal, assumindo pois em última análise a Mestra a função de narradora de um folguedo no qual ela empresta seu corpo aos discursos atribuídos à totalidade dos atores discursivos. Em outros Reisados – e mesmo em outras apresentações do próprio grupo de Mazé –, pode ocorrer a homologação da debreagem enunciativa referente às personagens com as figuras de expressão sonora correspondentes ao uso da voz dos demais atores da enunciação e visual correspondente à representação de sua corporalidade, constituindo-se o emprego do recurso retórico da prosopopeia. No entanto, no caso ora em estudo, o processo de construção identitária se dá, de maneira geral, pela homologação de debreagens no plano do conteúdo com relação a figuras de expressão visual que se articulam com relação à corporalidade (em contraposição, em nossa taxonomia, à arquitetura cênica), valendo-se de recursos intrínsecosa gestualidade, tanto em sua modalidade intensiva de gesticulação quanto extensiva de coreografiae extrínsecoscorrespondendo à indumentária, tanto em sua articulação intensiva enquanto maquiagem quanto extensiva enquanto figurino. Fundamental é salientar a incidência do sincretismo em sua acepção hjemsleviana – ou seja, de suspensão das comutações categóricas – como procedimento estruturante do discurso sincrético. Por um imperativo lógico, para haver a suspensão, pressupõe-se a instauração prévia da comutação categórica. Considerar-se como estruturante o processo de sincretismo significa pois não a primazia de uma neutralização de quaisquer comutações, mas antes uma alternância entre instaurações e suspensões como procedimento fundante das relações entre categorias de expressão e de conteúdo no texto sincrético.

No que tange à construção de sentido de alteridade, outra observação importante diz respeito ao uso generalizado do recurso de caráter intensivo da maquiagem/máscara e dos panejamentos enquanto figuras de expressão a contrastar a alteridade de cada uma das Figuras com relação à homogeneidade dos brincantes do coro – estes sempre sem máscaras, com fardas reluzentes, de brilhos dourados, prateados e ornamentadas com cristais ou pedras semi-preciosas. Outro ponto a ser destacado – não mais na corporalidade extrínseca da indumentária, mas na corporalidade intrínseca da gestualidade, é a oposição entre o caráter intensivo da gesticulação caótica e improvisada das personagens com relação à coreografia extensiva, ordenada e com passos codificados, que caracteriza a movimentação do coro. Observam-se assim oposições aspectuais fundamentais como intensividade x extensividade ou heterogeneidade x homogeneidade perpassando as diversas camadas de significação do texto, depreendendo-se dicotomias homólogas na organização de aspectos visuais do discurso sincrético, na oposição narrativa entre o querer anárquico das personagens e o dever norteador e ordenador que inapelavelmente termina por se impor à encenação a partir da autoridade da Mestra seguida pelo coro em um discurso coreográfico codificado, bem como a oposição fundamental morte x vida, transcendida no momento apoteótico da ressurreição do Boi-bumbámas também nas próprias condições existenciais de seres fantásticos como a Sereia, o Jaraguá ou, em outras encenações, o Lobisomem, criaturas arquetípicas que evidenciam que a transcendência daquela dicotomia fundamental representa um fator estrutural do texto sincrético em questão, e não um mero episódio narrativo.

4. Considerações Finais

À guisa de conclusão para o presente artigo, vale retomar as três questões que o nortearam. À primeira delas, pode-se responder afirmativa e categoricamente: o folguedo analisado apresenta sim uma estrutura formal, dividida em quatro grandes seções de durações homogêneas, que garante sua unidade narrativa e discursiva – forma essa por sinal, conforme exposto, surpreendentemente convencional e canônica. Seu diferencial fundamental, contudo, e que lhe empresta uma série de peculiaridades enquanto gênero, é que seu percurso narrativo se articula não propriamente a partir de relações juntivas, mas sim através do que Landowski chamou de “regimes de interação” (LANDOWSKI, 2014) – os quais incluem, no regime de manipulação, o caso particular das relações juntivas. Nos Reisados, as improvisações teatrais características de boa parte dos Entremeios bem como dos Mateus são amiúde pautadas por episódios constituídos pelo regime do acidentenunca se sabe, por exemplo, quem na plateia um Lobisomem pode vir a capturar, e muito menos qual será a reação do espectador quando for surpreendido por uma investida dos brincantes. Sabe-se bem contudo que tal recurso costuma causar imensa excitação na plateia, capturando ou recuperando momentaneamente o interesse e atenção mesmo dos espectadores mais desinteressados. Por outro lado, as coreografias coletivas da Apresentação e seu caráter mais esquemático permitem a identificação ali de um regime inicial de programação que particularizam aquela seção com relação às demais. Já o Boi, com suas narrativas canônicas de morte e ressurreição, faz-se compreender sem maiores dificuldades através das relações juntivas que caracterizam os regimes de manipulação, ao passo que a Guerra, conforme explanado anteriormente, apresenta componentes que podem ser melhor avaliados à luz do ajustamento entre os combatentes – em particular, nos por vezes tecnicamente virtuosísticos combates de espadas que frequentemente encerram os folguedos, e que requerem dos brincantes uma percepção extraordinária da velocidade e direcionamento dos movimentos de seus parceiros. Dessa forma, observa-se em cada uma das quatro seções o predomínio de um dos regimes de interação propostos por Landowski, o qual se propõe com seu modelo analítico justamente a munir o analista com um instrumental melhor apropriado para transcender os limites do inteligível tão bem abordados por Greimas e se enveredar nos labirintos estésicos e semânticos do sensível.

Quanto aos procedimentos de construção dos efeitos de sentido de identidade e alteridade no discurso sincrético do Reisado de Mazé, observa-se que os mesmos se valem invariavelmente de figuras de expressão – notadamente visuais – que estabelecem homologias com categorias discursivas, dando-se contudo frequentemente a suspensão da comutação das categorias de expressão e conteúdo – ou seja, o sincretismo na acepção de Hjelmslev (HJEMSLEV, 1975). Conforme explanado, para a semiotização das figuras de expressão, partiu-se da semiologia do espetáculo de Kowzan, a qual organizamos, inspirados pela semiótica tensiva, encadeando oposições categóricas orientadas pela dicotomia intensividade x extensividade. Assim, o atributo identitário da realeza é marcado visualmente pelo adereço da coroa, que se insere na categoria Visualidade/Corporalidade/Indumentária/Roupagem – extensiva no que tange à duratividade, e intensiva no que tange à sua singularidade e valor. A alteridade entre Rei e Rainha, por sua vez, não aparece marcada pelo gênero dos brincantes – ambos interpretados por mulheres de mesma faixa etária e porte físico –, mas pela oposição categórica entre intensão e extensão – a extensividade representada pela longa saia-balão da Rainha, e a intensividade pelo saiote curto do Rei. Dentro do coro, a alteridade dos contra-guias para com os demais elementos se constitui a partir da articulação de figuras de expressão de Visualidade/Corporalidade/Gestualidade/Coreografia as quais não deixam de constituir o que se pode chamar de um discurso coreográfico que estabelece uma polifonia com relação às demais vozes do discurso sincrético, voz essa intensiva no que tange à sua singularidade para com os demais elementos do coro, e extensiva, porque coletiva, com relação à ainda maior particularidade dos Entremeios. Estes, por sua vez, tem sua alteridade para com o coro garantida pelo predomínio da intensividade de sua gesticulação com relação à extensividade da coreografia daquele, bem como pela oposição da extensividade das fardas homogêneas do coro com relação à intensividade de seu figurino – em que a identidade é fortemente marcada para cada personagem pela figurativização visual dos atributos a eles associados no discurso, gerando-se sincreticamente um efeito de sentido de prosopopeia. Faz-se assim do contraponto entre a descontinuidade dos processos de construção e desconstrução identitária de cada Entremeio e a continuidade do coro um dos cernes da narratividade do espetáculo.

No que tange às ferramentas discursivas e textuais empregadas para a caracterização do texto sincrético como pertinente ao gênero do Reisado, identificaram-se procedimentos interdiscursivos e intertextuais que respondem pela identificação, por parte da comunidade que o enuncia e assiste, do objeto com a tradição imemorial na qual se insere e com que dialoga. Verificou-se que 30% do repertório do espetáculo analisado ou encontra referência musical – e na maior parte das vezes, também poética – nas peças coletadas por Théo Brandão na década de 1940 e por Mário de Andrade na década de 1920, ou referência nas tradições orais registradas por pesquisadores do século XIX como Sílvio Romero, Mello Moraes Filho e José de Alencar no Brasil ou Teófilo Braga em Portugal. Observamos ainda o emprego sistemático de um engenhoso procedimento estrutural sincrético que apontamos como também responsável pelo efeito de sentido de tradição mesmo em peças recentes do repertório: o sincretismo – ou seja: a suspensão das comutações entre categorias de expressão e conteúdo – pelo qual, por exemplo, uma mesma coreografia que incidiu sobre uma dada peça inequivocamente tradicional reaparece homologada a uma composição recente. Um procedimento igualmente recorrente – e que por sinal segue a mesma lógica estrutural, ainda que de maneira mais sutil – é o de uma melodia pertinente à tradição ser homologada a uma letra modernizada – contudo, tal recurso se mostra tão orgânico e difundido que parece mais prudente considerá-lo como intrínseco à própria oralidade, tal sua presença mesmo em gêneros cuja visualidade ou palpabilidade não apresentam a menor relevância.

Por fim, acreditamos pelo presente estudo ter evidenciado o quanto o instrumental conceitual e metodológico da semiótica tem a oferecer para a intrincada tarefa da análise de textos sincréticos performáticos da complexidade daqueles que caracterizam a cultura popular tradicional. Ao mesmo tempo, chama a atenção o fato de que, em pleno século XXI, com relação por exemplo aos estudos literários ou da área de cinema, encontrarem-se ainda em estado até certo ponto tão embrionário as ferramentas conceituais e metodológicas para a análise de manifestações culturais e artísticas ancestrais que, envolvendo em sua enunciação sincrética recursos sinestésicos visuais, sonoros e tácteis, trazem ao analista a sensação de estar diante de um objeto totalmente novo, quando este se destaca em verdade não por sua novidade, mas, pelo contrário, por sua ancestralidade. Uma das possíveis explicações para tal distorção seria o desprestígio das tradições populares e o relativo desinteresse da sociedade por tais manifestações culturais, quanto mais por uma compreensão aprofundada dos complexos mecanismos linguageiros que permeiam seu estilo enunciativo sincrético. Todavia, é de se esperar que o desenvolvimento da linguística em geral e da semiótica em particular nos últimos 50 anos, bem como o amadurecimento do conceito de Patrimônio Intangível e/ou Imaterial – notadamente a partir da Convenção pela Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial adotada pela UNESCO em 2003 – propiciem, ainda que tão tardiamente, a construção de um conhecimento aprofundado a respeito de tais manifestações culturais. Afinal, da poesia popular dos rapsodos à Ilíada, dos ditirambos à tragédia grega, das festas camponesas aos Allegri finais das sinfonias de Haydn, Mozart e Beethoven nelas inspiradas, das rodas de choro aos monumentais Choros de Villa-Lobos, da prosa caipira às veredas do Grande sertão de Guimarães Rosa, a cultura popular, mesmo sem ver reconhecida sua importância, esteve, está e sempre estará na base de boa parte das principais manifestações artísticas ao longo da história de todos os povos – povos esses cujo sentido de identidade apenas a partir dela se afirma, legitima e se faz sentir e compreender de fato.

Agradecimentos

A presente pesquisa vem contando com o suporte da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, da Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da Universidade Federal do Cariri – PRPI/UFCA –, e da Pró-Reitoria de Cultura da mesma instituição – PROCULT/UFCA.

Avaliação

AVALIADOR 1: Alexandre Marcelo Bueno

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0798-3615

FILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil.

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AVALIADOR 2: Geraldo Vicente Martins

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2579-8525

FILIAÇÃO: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul, Brasil.

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RODADA 1

AVALIADOR 1

2020-04-14 | 09:39

O artigo “O REISADO DE MESTRA MAZÉ: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO EM UM TEXTO SINCRÉTICO PERFORMÁTICO DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA” se propõe a examinar uma manifestação cultural local por meio da semiótica de linha francesa.

Duas qualidades são ressaltadas no trabalho: a primeira se refere ao objeto examinado, tanto pelo seu valor cultural como pelo desafio que ele apresenta para a teoria. O segundo mérito do trabalho é colocar a semiótica em diálogo com outras propostas teóricas. Evidentemente, alguns problemas podem surgir com tal iniciativa, como mostraremos adiante, mas nada que invalide a iniciativa proposta.

O artigo procura responder a três questões postas em relação ao seu objeto de estudo: “1) a presença ou não de uma estrutura formal que garanta a unidade narrativa e discursiva do espetáculo; 2) quais elementos e procedimentos estruturais responderiam pelas construções identitárias e de alteridade no folguedo; 3) quais as estratégias de construção do efeito de sentido de tradição inerente a um texto percebido como imemorial”.

Uma primeira observação, mesmo que superficial, precisa ser feita em relação à organização geral do texto. Causou certa confusão uma inversão na ordem das seções 3 e 4, que não seguem a mesma ordem em que as perguntas foram feitas. Recomenda-se, nesse caso, uma reordenação das perguntas ou das seções, algo que pode ser feito em qualquer prejuízo para a organização do texto.

O texto é bem escrito, claro em seus desenvolvimentos e objetivo em suas argumentações. O artigo apresenta uma unidade coerente porque ele se desenvolve em torno das três perguntas acima transcritas e que são satisfatoriamente respondidas nas análises e na conclusão.

A escrita do autor apresenta um estilo próximo ao de um ensaio (o que o torna muito agradável de se ler), mas algumas imprecisões precisam ser revistas, uma vez que ainda nos atemos aos rigores que o gênero acadêmico de alguma maneira nos impõe: algumas referenciam aparecem sem o ano da publicação. Além disso, o texto menciona Bakhtin (quando fala de gênero), mas o filósofo russo não aparece nas referências bibliográficas. Ficamos, então, sem saber se a referência é apenas um “esquecimento” do autor ou se ocorrera um “deslize” previsto no estilo ensaístico do texto carrega.

Ainda por essa característica da escrita do artigo, sentimos falta de algumas explicações teóricas mais básicas de alguns conceitos da semiótica. Se pensarmos em um perfil mais alargado de leitor, dado o objeto de estudo ser de interesse de outras áreas, o próprio artigo se beneficiaria de uma explicação pormenorizada sobre o que é valor para semiótica, o que se entende por nível narrativo e discursivo etc. Explicar alguns conceitos diminuiria também uma certa confusão em relação à metalinguagem, pois ficamos em dúvida sobre o nível de análise em que o texto estava situado. Por exemplo, na primeira seção, que mostra a existência de uma estrutura formal do reisado, não ficou claro se conceitos como narrativa e discurso são entendidos tal como a semiótica os concebe ou se o autor toma essas categorias de autores como Syd Field ou Christopher Vogler.

Seguindo na mesma linha de observação, a semiótica tensiva, tal como utilizada, ficou um pouco acessória, na medida em que serviu apenas como processo de categorização de outros conceitos em um conjunto dicotômico que a própria semiótica tensiva em sua base epistemológica refuta, pelo que compreendemos.

Deixamos aqui duas perguntas (que também servem como sugestão) para trabalhos futuros: por que não semiotizar os conceitos de Tadeusz Kowzan, Syd Field e Christopher Vogler? No caso do semiólogo do teatro lituano, as oposições poderiam ser encaixadas em um esquema tensivo em que todas os conceitos poderiam ser produzidos pelas correlações que o modelo permite, tanto do ponto de vista sensível como do inteligível. No caso dos teóricos do cinema, resta-nos uma dúvida (talvez óbvia para os semioticistas): por que utilizá-los para trabalhar a análise de uma narrativa se a semiótica de linha francesa, no nível narrativo, poderia dar conta de vários traços que foram levantados na análise?

Evidentemente, todo autor exercita seu pensamento semiótico da forma que mais o agrada, liberdade sem a qual a ciência se transformaria em fundamentalismo de outra ordem. Mas também é trabalho do analista responder às inquietações que o objeto lhe requer com o instrumental que a teoria nos oferece. Por isso, não invalidamos as escolhas teóricas do autor, tampouco elas diminuem os méritos do trabalho. Preferimos, na verdade, propor ideias com o desejo de contribuir para a pesquisa em andamento e uma provocação intelectual, sempre respeitando as escolhas e os percursos alheios.

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AVALIADOR 2

2020-05-05 | 13:22

O artigo "O Reisado de Mestra Mazé: a construção de sentido em um texto sincrético performático da cultura popular brasileira", submetido a Cadernos de Linguística, reúne diversos pontos positivos: a proposição de tomar como objeto uma peça da cultura popular, valiosa por sua representatividade social e rica em configuração discursiva; a escolha por abordá-la em toda sua complexidade sincrética a partir do instrumental da semiótica greimasiana; a atenção para as relações dialógicas que constituem não apenas o objeto visado, mas também a teoria em pauta. Tais considerações, se dão a medida da amplitude do problema levantado pelo texto, chamam igualmente a atenção para o fato de impor-se à tarefa uma análise cuidadosa.

E esse cuidado é evidenciado na distribuição das seções a partir das quais o autor o texto, bem como no conteúdo que reserva a cada uma delas. Nesse sentido, a introdução situa, de modo inequívoco, o interesse motivador da pesquisa em andamento, das questões a serem perseguidas no decorrer do texto e de como estas se alinham à vertente semiótica de estudos, tomada em suas contribuições iniciais e em desdobramentos anteriores.

As seções que constituem o desenvolvimento do artigo apresentam os conceitos mobilizados pelo autor em sua análise costurados entre si, de modo a evidenciar a coerência do instrumental semiótico, sem perder de vista o modo como eles nos ajudam a compreender os diversos questionamentos trazidos à baila: da unidade da configuração narrativa e discursiva que performa o reisado à problemática de sua corporificação no interior de uma tradição bastante cara aos que com ele convivem, sem deixar de considerar as relações dialógicas que o reisado revela de sua relação com outros gêneros afins.

Ao final, nas últimas considerações, todos os itens observados se encontram devidamente sumarizados, tornando-se ainda mais visível a pertinência da proposta de pesquisa demonstrada ao longo do texto.

Decorrente de tais cuidados com os detalhes pelo autor, as ressalvas a serem feitas somente poderiam dizer respeito a pequenas coisas, e é o que apontamos no arquivo com o artigo que enviamos a Cadernos de Linguística: pequenas sugestões e ou questionamentos sobre o texto, ora sobre aspectos de sua expressão, ora sobre apontamentos de seu conteúdo. Mas eles em nada comprometem sua arquitetura global.

Face ao exposto, sou de parecer favorável à publicação do artigo.

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RODADA 2

AVALIADOR 1

2020-05-28 | 11:49

Considerando a qualidade do artigo, em forma e conteúdo, a que se incorporaram ajustes decorrentes das observações dos pareceristas, ratifico meu posicionamento anterior de manifestação favorável à sua publicação pelos Cadernos de Linguística.

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AVALIADOR 2

2020-05-18 | 15:39

As alterações realizadas pelo autor estão adequadas às sugestões feitas. De nossa parte, não há nada a acrescentar ao texto.

Como Citar

MONTEIRO, R. N. de C. O Reisado de Mestra Mazé: a construção de sentido em um texto sincrético performático da cultura popular brasileira. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 01–21, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n2.id176. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/176. Acesso em: 3 jul. 2024.

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