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Ensaio Teórico

Operações Fundamentais da Linguagem: Reflexões sobre o design ótimo

Noam Chomsky

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Palavras-chave

Propriedade Básica da Linguagem
Merge
Movimento
Eficiência Computacional

Resumo

Há 20 anos, em conferências em Brasília, sugeri que algum dia poderíamos descobrir que a Faculdade da Linguagem (FL) é “belamente projetada, uma solução quase perfeita para as condições impostas pela arquitetura geral da mente-cérebro na qual está inserida, outra ilustração de como as leis naturais funcionam de maneiras maravilhosas para que a linguagem se pareça com um floco de neve, podendo-se esperar que o design quase perfeito imponha ineficiência no uso”. Eu acrescentei que “essas são fábulas”, com o valor redentor que elas “poderiam até ter alguns elementos de validade”. Nos anos seguintes, foram encontradas razões sólidas para sugerir que essas esperanças eram subestimadas e que a “fábula” - a Tese Minimalista Forte - parece ter considerável validade. Foi demonstrado que várias propriedades impressionantes e intrigantes da FL - “universais da linguagem” no sentido contemporâneo - derivam da operação computacional mais simples, Merge, juntamente com condições de eficiência computacional que são, de fato, parte da lei natural. E, como previsto, elas de fato impõem ineficiência comunicativa.

Artigo

Vou revisar as etapas recentes para alcançar esses objetivos e também precisar e aprimorar conceitos relacionados à Gramática Universal (GU). Lamento muito não poder estar com vocês pessoalmente hoje. Há muitos assuntos que eu gostaria de discutir com vocês — não apenas na área de nossas preocupações específicas aqui.

Antes de abordar essas questões, é difícil evitar alguns comentários sobre os eventos chocantes que estão ocorrendo sob o novo regime no Brasil. O mais sinistro, de significado verdadeiramente ameaçador para o mundo, é a destruição da Amazônia, entregando-se suas riquezas aos amigos de Bolsonaro no agronegócio e na mineração. De acordo com os estudos científicos mais recentes, se esses desenvolvimentos continuarem no curso atual, em 2035 a Amazônia provavelmente passará de um dreno de carbono para um emissor, com consequências desastrosas não apenas para o Brasil, mas para a sobrevivência humana.

Quem está de olhos abertos sabe que estamos enfrentando uma grave crise ambiental. As temperaturas globais médias estão se aproximando das de 125.000 anos atrás, quando o nível do mar era 6 a 9 metros mais alto que hoje. Alguns estudos recentes sérios preveem uma escalada não linear do ritmo já profundamente ameaçador do aquecimento global. Não é preciso muita imaginação para entender o que isso significará para o mundo, das planícies baixas de Bangladesh às cidades costeiras de todo o mundo e muito além. Nessas circunstâncias, destruir a floresta amazônica é um crime de proporções colossais, verdadeira insanidade criminal.

Como todos sabemos, uma consequência imediata dos programas criminosos de Bolsonaro é praticamente o genocídio das populações indígenas, outro crime catastrófico. Para os linguistas em particular, isso significa também a destruição da riqueza extraordinária de idiomas e da riqueza cultural incorporada neles. Tudo isso está acontecendo agora, não em tempos remotos.

Vale a pena relembrar um pouco do histórico, que só posso mencionar brevemente aqui, mas que merece muito mais discussão. Um estudo do Banco Mundial, de 2016, descreveu os mandatos de Lula como uma "década de ouro" na história do Brasil, com conquistas notáveis na redução da pobreza, expansão da inclusão na educação e, em geral, respeitando a dignidade dos pobres e marginalizados na sociedade profundamente desigual do Brasil. Logo após Lula deixar o cargo, um “golpe suave” foi iniciado, levando finalmente à sua prisão, claramente programada para silenciá-lo antes da eleição de 18 de outubro de 2018, que ele provavelmente venceria. Ele é agora o prisioneiro político mais importante do mundo. O motivo imediato do golpe pode ter sido a descoberta de vastos depósitos de petróleo no pré-sal brasileiro e a proposta do Partido dos Trabalhadores (PT) de usar a maior parte desses lucros para educação e bem-estar social — e não para o lucro das empresas multinacionais de energia.

Isso não é tudo. O governo Bolsonaro está restringindo significativamente as ricas contribuições do Brasil para as ciências. As humanidades estão caminhando para o cadafalso. A própria existência de universidades independentes está ameaçada, juntamente com o sistema educacional em geral, com implicações graves para o nível cultural e intelectual da próxima geração de brasileiros. Os cortes brutais recentemente anunciados para filosofia e sociologia estão nos dizendo, em voz alta e clara, que os brasileiros devem renunciar a qualquer interesse e preocupação pelas questões primárias que animaram o pensamento humano, as realizações culturais e as ações sociais ao longo da história moderna, e devem se tornar ferramentas passivas para fins lucrativos, disfarçados de desenvolvimento.

Em outras palavras, os financistas, corporações internacionais e investidores que estão roubando o Brasil de seus cidadãos também procuram silenciar a voz mais antiga do pensamento ocidental, o Oráculo de Delfos, com sua instrução “conheça-te a ti mesmo”. Isso significa descobrir que tipo de criaturas somos, que tipo de culturas e sociedades criamos e como elas podem ser desenvolvidas, talvez radicalmente alteradas, para satisfazer os ideais de justiça e liberdade. Esse ataque aos direitos elementares e à dignidade humana não pode persistir.

Nossas preocupações particulares nesta conferência são parte integrante dessas profundas correntes de pensamento humano e de realização cultural. Desde a antiguidade clássica, tem sido reconhecido que a linguagem tem um lugar especial no estabelecimento no tipo de criaturas que somos. A linguagem é, antes de tudo, uma verdadeira propriedade da espécie, uma dotação comum dos grupos humanos e exclusiva dos seres humanos, sem análogo, em aspectos essenciais, entre outros organismos. E é também a principal fonte das capacidades criativas únicas dos seres humanos, que mudaram o mundo — nem sempre para melhor.

Uma rica tradição identifica a linguagem com o pensamento, o que é expresso de forma sucinta pela caracterização da linguagem por William Dwight Whitney como “pensamento audível”. Wilhelm von Humboldt já havia ido muito além: para ele, a linguagem é praticamente idêntica ao pensamento. Nas suas palavras, “a linguagem é o órgão formativo do pensamento. A atividade intelectual, inteiramente mental, inteiramente interna e, até certo ponto, passando sem deixar vestígios, torna-se, através do som, externalizada na fala e perceptível aos sentidos. Pensamento e linguagem são, portanto, um e inseparáveis um do outro”. Para Descartes, o aspecto criativo do uso normal da linguagem — a capacidade de formar novas expressões de pensamento apropriadas às ocasiões, mas não causadas por elas — foi a base principal para postular uma segunda substância, res cogitans, ao lado da matéria extensa.

A revolução científica do século XVII forneceu novas ideias sobre a linguagem e razões para considerá-la a característica crucial da “capacidade humana”, o termo usado pelo paleoantropólogo Alexander Marshack para descrever a qualidade elusiva que torna os seres humanos tão distintos. Galileu e outras grandes figuras da época recusaram-se a aceitar verdades convencionais e rapidamente se deram conta de que o que pode parecer natural e óbvio é de fato intrigante, profundamente misterioso, exigindo explicação, quer se trate de corpos em queda, da percepção de figuras geométricas ou de quaisquer outros fenômenos do mundo.

A linguagem não escapou à sondagem. Eles expressaram admiração e espanto por algo tomado por certo, embora de fato intrigante, misterioso, exigindo explicação: o fato notável de que, com algumas dúzias de sons, podemos de alguma forma construir infinitamente muitas expressões de pensamento, transmitindo a outras pessoas que não têm acesso direto à nossa mente suas elaborações mais íntimas. É incrível, se você pensar sobre isso. E não há nada semelhante no mundo orgânico. Isso levanta uma questão crucial: como essa conquista humana única pode ser entendida e explicada?

Essas ideias inauguraram uma rica tradição explorando a “gramática racional e universal”. Racional, na medida em que buscava explicação, não apenas descrição, ou na prática moderna, simulação. Universal, na medida em que procurava descobrir capacidades subjacentes realizadas em todas as línguas.

O último representante proeminente dessa tradição, que eu saiba, foi Otto Jespersen, um século atrás. Para Jespersen, uma língua específica “surge na mente de um falante” com base em experiências finitas, produzindo-se uma “noção de estrutura” que é “definida o suficiente para guiá-lo na elaboração de suas próprias sentenças”, crucialmente “expressões livres” que normalmente são novas para quem fala e para quem ouve. E uma preocupação mais geral da Teoria Linguística são “os grandes princípios subjacentes às gramáticas de todas as línguas”.

Embora as formulações tradicionais sejam imprecisas, acho justo interpretá-las, reconhecendo que a Faculdade da Linguagem (FL), bem como as línguas individuais, são propriedades internas das pessoas; a primeira compartilhada por toda a espécie e exclusiva dos seres humanos em aspectos fundamentais, uma verdadeira propriedade da espécie e a base para a cultura e criatividade humanas.

Tudo isso foi deixado de lado pelas correntes estruturalistas/behavioristas do início do século XX, que adotaram tanto uma concepção muito diferente do que seja a linguagem, quanto do emprendimento para investigá-la. E todo o anterior foi esquecido, até mesmo uma figura proeminente recente como Jespersen, como nos mostra um estudo da historiadora da linguística Julia Falk.

O programa geral que culmina com Jespersen se enquadra nas ciências naturais. Seu renascimento, a partir da década de 1950, no âmbito da gramática gerativa, foi chamado de “programa biolinguístico”. Os esforços anteriores haviam encontrado dificuldades, tanto empíricas quanto conceituais. As evidências eram limitadas e não ficava claro como entender o conceito de Jespersen “noção de estrutura na mente”, que permite que os falantes estruturem expressões livres, que os ouvintes podem, de alguma forma, entender. É o que podemos pensar como “o desafio de Galileu”.

Em meados do século XX, Turing e outros grandes matemáticos haviam desenvolvido as ferramentas para enfrentar o desafio de Galileu, pelo menos em parte, dentro da teoria geral da computabilidade. A “noção de estrutura na mente” de Jespersen é a Língua-I: um sistema gerativo finito que determina um conjunto ilimitado de expressões de pensamento hierarquicamente estruturadas, o que podemos chamar de "a Propriedade Básica da Linguagem". Essas estruturas internas podem ser externalizadas no sistema sensório-motor (SM), normalmente através do som, mas, como sabemos agora, as línguas de sinais têm essencialmente a mesma estrutura, os mesmos modos de aquisição e o mesmo uso geral que a língua falada. E, com algumas reservas, o mesmo parece ser verdadeiro com relação ao tato. Em geral, os modos de externalização parecem estranhos à linguagem, e esse é um fato importante.

Tanto a Língua-I, quanto a Faculade da Linguagem compartilhada, são propriedades dos indivíduos, codificadas de alguma forma no cérebro. A Língua-I é o estado maduro atingido pela FL, dada a experiência: é o sistema que guia o falante na formulação de expressões livres. A Gramática Universal (GU) é a teoria da FL, adaptando-se um termo tradicional a um novo contexto. A GU deve ser diferenciada das generalizações que se referem amplamente à linguagem, uma distinção crucial que às vezes é negligenciada.

A GU faz face a várias condições empíricas: adequação descritiva, aprendizibilidade e capacidade de evolução. Ela deve dar conta das propriedades das Línguas-I e do feito de adquirirem-se as Línguas-I a partir de dados dispersos e empobrecidos, o problema muito agudo da Pobreza de Estímulo (PE), muitas vezes não apreciado corretamente e agora reconhecido como sendo muito mais estrito do que se supunha anteriormente. E a GU deve ser simples o suficiente para que possa ter evoluído — mais especificamente, evoluído sob as condições empíricas que estão vindo à luz.

Essas demandas parecem estar em conflito: para superar o problema da Pobreza de Estímulo (PE), parece que é necessária uma estrutura inicial rica, mas, para a capacidade de evolução, esse sistema deve ser simples. O aparente conflito é um elemento crucial do desafio de Galileu.

Muito pouco se sabe sobre a evolução da cognição. O proeminente biólogo evolucionário Richard Lewontin, em um dos principais artigos sobre o tema, argumentou que nunca aprenderemos muito sobre isso, porque os dados relevantes são impossíveis de se obter. Mas são conhecidos alguns fatos sugestivos. As evidências genômicas indicam que os humanos modernos, que surgiram há cerca de 200.000 anos ou mais, começaram a se separar não muito tempo depois (no tempo da evolução), há cerca de 150.000 anos. A capacidade da linguagem é compartilhada, portanto já havia aparecido. Riny Huijbregts mostrou que as línguas do primeiro grupo a se separarem (as línguas khoisan) são todas e apenas aquelas que fazem uso extensivo de cliques, com exceções irrelevantes. Isso sugere que, embora o núcleo interno da FL tenha sido compartilhado antes da separação, a externalização, ou pelo menos alguns de seus aspectos, poderia ter aparecido mais tarde. Pouco depois da separação, começamos a ver indicações de um rico comportamento simbólico. Não há evidência séria de nenhum outro tipo de comportamenteo simbólico antes do aparecimento dos humanos modernos.

Tudo isso sugere que a FL surgiu repentinamente no tempo evolutivo. Nesse caso, esperaríamos que a FL fosse de estrutura simples, com poucos princípios elementares de computação, satisfazendo a condição de evolubilidade. O que resta para fixar uma Língua-I deve ser detectável a partir de evidências simples. Hoje sabemos, com base em pesquisa extensa, que os fundamentos da linguagem são dominados muito cedo, nos primeiros anos de vida; e, com base em evidências muito limitadas, como Charles Yang demonstrou através da análise estatística de corpora disponíveis para crianças. Essas considerações refinam o desafio de Galileu.

Como em qualquer outro esforço racional, a pesquisa linguística deve buscar a teoria mais simples da GU. Uma primeira razão é bastante geral: a simplicidade da teoria corresponde à profundidade da explicação. Uma segunda razão é um preceito de Galileu: a natureza é simples, e a tarefa do cientista é estabelecer o fato, desde objetos em movimento, ao voo de pássaros até todos os fenômenos da natureza. Esse preceito é uma postulação, uma espécie de princípio regulador. Nas ciências, esse preceito tem sido espetacularmente bem sucedido — uma boa razão para levá-lo a sério.

Às vezes, argumenta-se que os produtos da evolução são diferentes: a evolução segue um curso de ajustes, a bricolagem de François Jacob, produzindo objetos complexos. Talvez sim, mas isso não seria válido no caso da evolução da linguagem, se o que descrevi antes estiver correto. Nesse caso, para a linguagem, há uma razão especial para buscar a simplicidade, que não se mantém em geral: as condições reais da evolução da linguagem. Considerações como essas dizem respeito diretamente ao Programa Minimalista (PM), ao qual voltarei.

As demandas gêmeas da aprendizibilidade e evolubilidade, que parecem estar em conflito na superfície, fornecem a condição para uma explicação genuína — para fazer face ao desafio de Galileu. A explicação genuína no nível da GU, de uma forma que satisfaça essas demandas gêmeas, baseia-se nos princípios do “terceiro fator”, que podem ser pressupostos. É um requisito austero. Qualquer coisa menos do que isso seria, na melhor das hipóteses, uma explicação parcial, que podemos entender como abrindo caminho para a explicação — um empreendimento muito importante: um problema cuidadosamente estruturado é um grande avanço sobre o caos, mas constitui apenas um passo à frente na busca de uma explicação genuína.

Meu sentimento é que podemos finalmente estar em posição de levar a sério o desafio de Galileu e de fornecer algumas explicações genuínas para aspectos fundamentais da linguagem. Isso é muito importante se for verdade. Inaugurar-se-ia uma nova etapa no antigo estudo da linguagem.

Revisando rapidamente algumas bases familiares e pulando muitos detalhes, as primeiras propostas da gramática gerativa eram duplas: gramática de estrutura sintagmática (GES/ phrase structure grammar) para composicionalidade e projeção (rotulagem), gramática transformacional (GT) para deslocamento, GES e GT para ordenação linear. Tanto GES quanto GT eram complexas demais para atender aos objetivos de longo prazo da explicação genuína. A suposição geral era de que composicionalidade, linearidade e projeção fossem naturais e esperadas, enquanto o deslocamento, embora onipresente, fosse uma propriedade estranha e mais complexa da linguagem, um tipo de imperfeição que precisa ser acomodada com alguns mecanismos mais complexos.

Essa é uma visão que ainda é amplamente aceita na literatura atual, erroneamente, eu acho. Trabalhos mais recentes sugerem que o oposto é verdadeiro: o deslocamento é a mais simples das operações computacionais da linguagem e quaisquer mecanismos especiais para explicá-lo são mal concebidos.

Irei esboçar a seguir um percurso particular do desenvolvimento do “empreendimento gerativo”, que me parece particularmente promissor.

Na década de 60, a Gramática de Estrutura Sintagmática (GES) foi abandonada, com base em bons argumentos. Esse modelo permitia um vasto número de regras impossíveis (como VP à N PP); e os símbolos usados à época (como NP) sugeriam ilegitimamente propriedades extrínsecas à GES. Em retrospectiva, podemos dizer que a GES unia três fenômenos que deviam ser considerados separadamente: composição, ordem linear e projeção.

Na década de 70, a GES foi substituída pela Teoria X-Barra. Uma teoria que eliminava uma série de regras impossíveis, a ilegitimidade dos símbolos e separava a ordem linear da composicionalidade e da projeção.

Esses avanços tiveram várias consequências que não foram totalmente apreciadas à época. Os sistemas X-Barra geram estruturas abstratas sem ordem linear. Mas as expressões linguísticas claramente têm ordem linear, a qual deve ser atribuída de alguma forma. E é claro que as línguas diferem na forma como isso acontece. O inglês é uniformemente uma língua com núcleo inicial e o japonês exibe uniformemente núcleo final; a rica pesquisa sobre esses assuntos nos anos seguintes mostrou que, embora não sejam universais, essas escolhas sistemáticas transcategorias são de longe as mais comuns.

Conclui-se que não há realmente nenhuma alternativa à abordagem de Princípios e Parâmetros (P&P), que se cristalizou uma década depois, embora tenha demorado algum tempo para que isso fosse reconhecido.

Além disso, diferentes escolhas paramétricas produzem a mesma interpretação: V-O tem a mesma interpretação que O-V. Isso sugere que a ordem linear é uma questão de externalização, não faz parte da Língua-l central que expressa pensamentos — a sintaxe estrita (narrow syntax) que produz interpretações na interface Conceitual-Intencional. Esse foi o primeiro passo para conclusões muito mais abrangentes sobre a arquitetura da linguagem, que se tornaram mais claras quando a composicionalidade e o deslocamento foram unificados dentro do Programa Minimalista.

A Teoria X-Barra ainda agregava projeção e composicionalidade. Isso atrapalhava as construções XP-YP, que eram descartadas em princípio pela Teoria X-Barra, mas que eram abundantes, tais como deslocamento, sujeito-predicado e muitas outras. Artifícios foram usados na prática para impor endocentricidade, mas é desejável evitá-los. Esses problemas foram superados substancialmente pela teoria da rotulagem (labeling theory) que utiliza o dispositivo computacional ideal de busca mínima para acomodar construções exocêntricas e determinar quando o movimento deve, pode e não pode ocorrer. A mudança da projeção para a rotulagem traz à tona problemas escondidos nas operações de projeção (por exemplo, o que exatamente é um núcleo e em que nível da derivação essa noção é estabelecida?). Outros problemas também surgem. Mas a imagem geral, na minha opinião, é que houve uma melhora substancial em relação à Teoria X-Barra. Essa etapa finalmente separou três fatores independentes: composicionalidade, rotulagem e ordenação, este último não faz parte do núcleo central da Língua-I (sintaxe estrita/narrow syntax).

A existência de construções exocêntricas requer a postulação de um Espaço de Trabalho (Workspace, WS), contendo os elementos acessíveis às operações combinatórias. Assim, antes que NP e VP sejam combinados, cada um deve ser construído separadamente no Espaço de Trabalho (WS). Podemos entender Espaço de Trabalho como o conjunto que contém o Léxico e todos os objetos sintáticos já construídos, embora haja mais a dizer.

Na década de 90, pareceu a alguns de nós que já havíamos aprendido o suficiente para que fosse possível enfrentar diretamente a tarefa de construir explicações genuínas. O que veio a ser chamado de Programa Minimalista (PM).

Seguindo o programa, buscamos a operação computacional mais simples (OP), uma que seja de fato incorporada de alguma forma em todas as operações computacionais. Perguntamos o quanto pode ser explicado por OP, juntamente com outros fatores que entram na aquisição da Língua-I: dados externos, princípios independentes das línguas (“terceiro fator”) e condições impostas pelos sistemas com os quais a língua interage (“condições básicas de produção” ou bare output conditions). As condições do terceiro fator incluem eficiência computacional, um elemento essencial da busca pela simplicidade, daí a explicação.

Se OP é suficiente para explicar alguns fenômenos linguísticos, nós nos aproximamos de uma explicação genuína. O problema da capacidade de aprender está resolvido: não há aprendizado, embora possa haver o desencadeamento de propriedades inatas pela experiência, um fenômeno familiar. O problema da evolubilidade da linguagem é resolvido o mais longe possível dentro da linguística: a Propriedade Básica é válida e requer uma operação computacional; portanto, é de se esperar que a natureza selecione a mais simples, OP; e se, de fato, OP está contida em todas as outras operações, a questão nem se coloca. Apenas como OP é implementado no cérebro e como essa implementação evoluiu são questões interessantes. Sobre esse tema, existem algumas ideias intrigantes discutidas no livro recente de Angela Friederici, Language in our Brain.

A operação computacional mais simples é a formação de conjuntos binários, denominada “Merge” na literatura recente. Uma explicação para alguns fenômenos em termos de Merge satisfaz as duas condições, contando como explicação genuína. Ou quase. Voltarei brevemente a algumas especificações.

Portanto, usamos Merge (X, Y) = {X, Y}, onde X e Y são ou itens lexicais ou objetos sintáticos num Espaço de trabalho (WS) já gerado. Há, claro, muitos subcasos de Merge. Dois gerais, com particular significado, são: Merge Externo (ME), onde X e Y são distintos; Merge Interno (MI) onde um está contido no outro; digamos que Y está contido em X — tecnicamente, é um termo de X, onde Z é um termo de W se Z é um membro de W ou de um termo de W. Merge Interno produz deslocamento, com duas cópias. Portanto, se Y está contido em X, então Merge (X, Y} = {Y, {X, Y}}.

Para esclarecer alguns mal-entendidos na literatura, vale observar que há uma única operação Merge, com esses dois subcasos. Não há a operação “Re-Merge” ou “Copiar”; apenas Merge. Não há operação de “reconstrução”: apenas duas cópias (na realidade, às vezes, muitas mais). Além disso, não há como construir Merge a partir de operações mais elementares; em particular, nenhum caminho evolutivo de algum subcaso de Merge para Merge. De fato, qualquer subcaso de Merge sozinho é mais complexo que Merge; assim EM (X, Y) é {X, Y} com a condição extra de que X e Y são distintos.

No entanto, um subcaso de Merge pode ser mais simples que outro na forma como ele funciona. Esse é realmente o caso. Compare ME e MI. Para aplicar ME, precisamos pesquisar tudo em WS: o Léxico (que é enorme) e todos os objetos construídos anteriormente (um conjunto que pode crescer sem limites à medida que as construções se tornam mais complexas). Para aplicar MI, buscamos apenas um único objeto, um processo muito mais simples.

Isso levanta uma questão: por que as línguas usam ME? A resposta é direta. O MI sozinho produz estruturas que não têm interpretações na interface Conceitual-Intencional. Não produz expressões do pensamento, portanto não constitui uma Língua-I, sob o ponto de vista da biolinguística. Não há construções de núcleo-complemento ou XP-YP, portanto, nenhuma estrutura temática. De fato, só pode haver um léxico de unidades únicas (single-membered lexicon). Merge Externo supera essas inadequações produzindo uma possível Língua-I. Assim, tanto ME quanto MI devem estar disponíveis: ME para gerar a Língua-I em primeiro lugar, MI porque exigiria uma estipulação não motivada para impedir a operação mais simples. E, de fato, ambos são onipresentes, com papéis semânticos distintos, uma propriedade às vezes chamada de “dualidade da semântica”.

Considere um sistema que use apenas Merge Interno. Pode-se mostrar que isso efetivamente gera a função sucessora e, com alguns ajustes limitados, toda a aritmética. Essa é uma conclusão sugestiva, e talvez forneça uma solução para um problema que muito perturbou Darwin e Wallace: por que o conhecimento da aritmética é universal (de modo que eles assumiram, ao que parece, corretamente, que assim como a língua, muitas outras propriedades inatamente determinadas do organismo são desencadeadas pela experiência)? Um problema sério para eles, já que poderia ter evoluído através da seleção natural. Uma resposta possível é que Merge apareceu em algum momento no registro evolutivo, talvez junto com o Homo sapiens, fornecendo a propriedade básica da linguagem e também da aritmética.

Uma descoberta importante dos últimos anos é que Merge sozinho fornece explicações genuínas de longo alcance. Uma é a unificação da composicionalidade e do deslocamento. Longe de ser uma curiosa imperfeição da linguagem, como normalmente assumido (por mim em particular), o deslocamento é esperado: exigiria uma estipulação desmotivada para barrá-lo. É o uso do ME que requer explicação, o que é imediato de acordo com o que foi dito.

Segue-se também que a reconstrução é automática com suas muitas consequências interpretativas complexas, agora com uma base sólida para uma explicação genuína. Prosseguindo, com a unificação, aquilo que foi sugerido pela Teoria X-Barra fica muito mais claro. Merge gera conjuntos, com hierarquia, mas sem ordem, como em X-Barra. Por que então existe ordem linear? A razão é clara. Ela é exigida pela interface Sensório-Motora (SM). O sistema articulatório requer uma ordem linear; não pode produzir estruturas (por sinal, com a extra-dimensionalidade disponível, a condição de linearidade é levemente relaxada).

Os sistemas SM não têm nada a ver com língua. Eles estavam em vigor muito antes da emergência da linguagem, e qualquer sistema SM com riqueza suficiente servirá para a externalização da Língua-I. Observando a arquitetura geral da linguagem, ela parece consistir em uma sintaxe estrita que gera estruturas Conceituais-Intencionais que são expressões de pensamento e um processo de externalização que pode (mas não precisa) mapeá-las para um ou outro sistema Sensório-Motor.

Se for assim, a externalização não é, estritamente falando, uma propriedade apenas da linguagem; e sim um amálgama da linguagem e de algum sistema independente de linguagem. Podemos antecipar então que o mapeamento deve ser complexo e instável e capaz de assumir muitas formas; em resumo, essa externalização seria o locus primário da aparente complexidade, diversidade e mutabilidade da linguagem. Essa parece, cada vez mais, uma tese plausível. Pode até acontecer que o núcleo da linguagem, construção do pensamento, esteja próximo de uma posse comum da espécie humana. Se for verdade, é um insight importante sobre que tipo de criatura somos.

Observe que há uma distinção importante entre a condição de linearidade imposta pelo sistema SM e as condições relacionadas ao pensamento na interface Conceitual Intencional. As primeiras são verdadeiras Bare Output Conditions (BOCs), condições totalmente independentes da linguagem, com propriedades que nada têm a ver com a linguagem. A Língua-I poderia existir sem qualquer meio de externalização - e de fato pode ter sido assim nos estágios iniciais. Por outro lado, se as condições relacionadas ao pensamento não forem satisfeitas, como em um sistema restrito a MI, não temos uma Língua-I de forma alguma.

Se a externalização é uma propriedade auxiliar da linguagem, então a comunicação, que depende da externalização, fica ainda mais distante da natureza essencial da linguagem. Essa conclusão é apoiada pela investigação de casos de conflito entre eficiência comunicativa e eficiência computacional; esta última, uma propriedade essencial da linguagem, imposta por condições do terceiro fator. Em todos os casos conhecidos, a primeira é sacrificada, muitas vezes levando a dificuldades na comunicação: ambiguidade estrutural, sentenças garden path, ilhas, problemas de preenchimento de lacunas. A conclusão entra em conflito com uma doutrina contemporânea amplamente aceita de que a comunicação é a função da linguagem, que se desenvolveu de alguma maneira a partir de sistemas de comunicação animal. A doutrina parece infundada, refutada por evidências substanciais. Outras evidências são fornecidas pelos elementos mínimos de significado da linguagem humana, que diferem radicalmente dos componentes dos sistemas animais na maneira como eles se relacionam com o mundo, um tópico que deixarei de lado aqui.

A doutrina tradicional de que a linguagem é primariamente um instrumento de pensamento é apoiada ainda por outro problema significativo, que tem uma explicação genuína baseada em Merge: a propriedade intrigante da dependência estrutural de regras, válida para todas as línguas e todas as construções. Estudos de aquisição mostram que essa propriedade é operativa tão cedo quanto as crianças possam ser testadas; aos 30 meses, de acordo com alguns experimentos recentes. Fica evidente que esse princípio não pode ser aprendido nem por uma única criança, muito menos por todas as crianças em todas as línguas. Curiosamente, tem havido muitos esforços para mostrar como a propriedade pode ser aprendida com dados massivos, todos refutados, mas todos inúteis a princípio, dada a natureza do problema.

Essa propriedade é realmente intrigante. Isso significa que as crianças ignoram tudo o que ouvem, tudo o que observam é a ordem linear e atendem apenas ao que nunca ouvem: estruturas. Suas operações mentais são limitadas a estruturas, ignorando computações muito mais simples baseadas na ordem linear que constituem toda a sua experiência. Em um sistema baseado em Merge, esse problema não surge. A criança não tem outra opção senão manter a dependência da estrutura.

Novamente temos uma explicação genuína para um princípio profundo e bastante surpreendente da linguagem, com muitas consequências. Como discutido em outros lugares, neste caso também há suporte de evidências neurolinguísticas e psicolinguísticas.

Para resumir, há um forte argumento para explicações genuínas para alguns princípios fundamentais da linguagem, bastante curiosos e intrigantes:

(1) A Propriedade Básica;

(2) A onipresença do deslocamento;

(3) A base para a reconstrução;

(4) Preservação de estrutura;

(5) As circunstâncias em que o MI deve, pode e não pode ocorrer.

Uma perspectiva particularmente interessante é a variedade de novas questões e problemas que estão se proliferando. Os óbvios — vastos em escopo — são descobrir até que ponto a explicação ideal baseada em Merge pode chegar. Um problema relacionado é reconciliar o forte argumento de que a externalização é auxiliar do núcleo duro da linguagem com a evidência de que algumas de suas propriedades, embora não na interface (não na fonética estrita), parecem afetar a operação de regras da sintaxe estrita. Outra tarefa é determinar de que maneira as premissas da Gramática Universal devem ser enriquecidas para acomodar fenômenos da linguagem. Eu acho que há fortes evidências de que pelo menos a relação assimétrica de pair-Merge é necessária. No caso de qualquer proposta, uma questão central é determinar em que medida ela utiliza esses princípios do terceiro fator como busca mínima, reduzindo assim a contribuição da GU.

Outra tarefa ainda, que acaba sendo bastante desafiadora, é superar os sérios defeitos de Merge, que permitem a geração legítima de sentenças agramaticais, sem violar condições internas ou externas. Isso requer meios baseados em princípios para restringir acessibilidade, levantando muitas questões intrigantes de importância considerável.

Uma questão relacionada é um problema conceitual na maneira como os sistemas baseados em Merge foram formulados. Um sistema computacional se move por estados sucessivos, com operações que mapeiam um estado para o outro. Mas quais são os estados de um sistema baseado em Merge? A resposta é WS, o espaço de trabalho. Ele constitui o estado atual da computação. Portanto, Merge se aplica a um estado WS, mapeando-o para o WS’ (assim como outras operações). Portanto, a formulação de Merge foi defectiva e surgem questões interessantes sobre como reformulá-lo adequadamente como um mapeamento de um WS para outro.

Muito trabalho foi feito sobre esses problemas, com alguns resultados interessantes, assuntos que não posso abordar aqui.

Nos primeiros anos do empreendimento gerativo, questões como essas que estávamos discutindo dificilmente poderiam ser previstas. E até muito recentemente, explicações genuínas pareciam um sonho fora de alcance. Meu próprio julgamento, como mencionado anteriormente, é que estamos entrando em uma nova e empolgante fase no estudo milenar da linguagem.

Como Citar

CHOMSKY, N. Operações Fundamentais da Linguagem: Reflexões sobre o design ótimo. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 1, n. 1, p. 01–13, 2020. DOI: 10.25189/2675-4916.2020.v1.n1.id271. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/271. Acesso em: 3 jul. 2024.

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