Introdução
A Galícia, comunidade autônoma no noroeste da Espanha, se caracteriza por ser um espaço sociocomunicativo com um prolongado contato entre o galego e o castelhano. Embora esse contato seja uma realidade impossível de ser ignorada, ainda há poucos estudos sobre as formas que emergem das interações entre falantes dessas duas línguas.
Encontramos um discurso de ‘purificação’ linguística em ambos os lados, isto é, tanto entre os nacionalistas espanhóis como entre os defensores da valorização da língua galega, que frequentemente criticam o uso de castelhanismos, idealizando um galego puro. A esses modos de pensar subjaz uma visão de língua como um sistema fechado, autocontido e autossuficiente que evolui segundo uma lógica interna, e o multilinguismo é visto como a sobreposição de monolinguismos paralelos (cf. COULMAS, 2018). Nessa perspectiva, o contato entre línguas e os fenômenos a ele associados (como a influência mútua e a hibridização) são estudados como exceções, e não o cerne da interação humana. Essa visão legitima cientificamente as ideologias puristas da língua.
Neste trabalho, busco mostrar como tal concepção de língua se baseia no paradigma científico e intelectual que emerge entre os filósofos europeus durante o século XVII, período ao qual se atribui o começo da Idade Moderna, e como a ciência da Modernidade empreende um projeto de purificação, separando cada vez mais as esferas do conhecimento. Também trago a contribuição da formação dos Estados nacionais modernos para a construção da visão hegemônica de língua.
Este trabalho questiona conceitos tradicionais de parte da linguística de contato (como interferência, empréstimo e code-switching), pois parecem cada vez menos apropriados para descrever os fenômenos linguísticos que se dão nos espaços multiculturais e plurilinguísticos ao assumirem as línguas como entidades discretas (GUGENBERGER, 2013).
Questionando a concepção das línguas como sistemas autossuficientes e ilhados, proponho estudar a ecologia linguística galega pelas perspectivas de trabalhos como os de Mufwene (2008), Lüpke (2016, 2017), Cobbinah (2019), entre outros – voltados principalmente para as realidades linguísticas no oeste da África, na América do Sul e na Oceania –, pois encaram as línguas como sistemas dinâmicos em constante adaptação à situação de fala, considerando que fatos históricos de natureza política e cultural também atuam como pressões ecológicas nas transformações linguísticas.
Também lançarei mão dos conceitos de híbridos e hibridização, seguindo as discussões de Latour (1994), Erfurt (2005), Gugenberger (2013), entre outros. Busco mostrar que das interações entre os falantes emerge uma terceira identidade, que já não pode ser categoricamente classificada nem como galega, nem como espanhola.
1. Panorama linguístico da Galícia
Apresento aqui um panorama da atual realidade linguística na Galícia e de como ela se constituiu. O galego, falado na faixa noroeste da península Ibérica, foi a língua política e da cultura nos reinos centro-ocidentais da península Ibérica até finais do século XV e princípios do século XVI. A partir do século XV, o português seguiu seu rumo como língua nacional, com sua fixação no centro-sul dessa faixa, enquanto o galego ficou marginalizado, pois a língua oficial imposta na Galícia, que corresponde à parte mais ao norte dessa faixa, foi a língua de Castela. Com isso, o galego praticamente desapareceu da escrita, da cultura letrada e da vida pública até o século XIX. Ao longo desse período, a língua galega se manteve majoritariamente no uso oral, sendo mais preservada pela população rural.
O século XIX marca a definitiva consolidação dos Estados nacionais europeus, seguindo os ideais de identidade nacional preconizados pelo Romantismo. Nesse período, fala-se de ‘soberania dos povos’, modelando-se identidades nacionais baseadas em tradições étnico-culturais, e, obviamente, a língua se apresenta como um elemento central nesse processo (MONTEAGUDO, 1999, p. 290). A Espanha adotou uma postura ultracentralizadora, um modelo de administração do Estado baseado numa ideologia nacional-espanhola com o interesse de uniformizar o conjunto da população, exigindo o emprego de uma língua única de uso geral. A revitalização da língua galega foi marcada pelo movimento conhecido por Rexurdimento, com grupos intelectuais galeguistas que, como em outras partes da Europa, começaram a se apropriar dos ideais românticos de nação para promover sua língua e cultura (VILLARES, 2004 [2015]). Essa retomada do idioma nacional leva a reivindicações de oficialização e introdução do galego no ensino, com fins de eliminar a imposição do castelhano, dando início assim à dinâmica de conflito que encontramos hoje.
A partir de 1981, após o fim da ditadura franquista, a Galícia se organiza jurídica e administrativamente como uma Comunidade Autônoma dentro do Estado espanhol. Após aprovar-se a Lei de Normalização Linguística, em 1983, houve uma forte promoção do galego, de modo que ele e o castelhano são línguas reconhecidas como oficiais na Constituição Espanhola (1978) e no Estatuto de Autonomia (1981).
No convívio cotidiano, há um amplo uso do galego. Segundo dados do Instituto Galego de Estatística, em 2003, 61,21% dos galegos afirmava falar só ou majoritariamente em galego, enquanto 38,29% afirmava falar só ou majoritariamente em castelhano; 52,02% afirmava que aprendeu a falar em galego, 30,07%, que aprendeu a falar em castelhano, e 16,31%, nas duas línguas. Segundo esse mesmo censo, 3 milhões de pessoas falam ou sabem falar galego.
Na Constituição de 1978, consta o dever de conhecer o castelhano e o direito de usar o galego: os galegos são obrigados a saber castelhano, não a usá-lo; e podem empregar o galego, mas não são obrigados a sabê-lo. Essa situação promove uma assimetria legal entre essas línguas. Os galegofalantes são considerados, portanto, um subconjunto da comunidade castelhana. Ao se pressupor que são falantes de castelhano, muitas vezes as interações entre desconhecidos começam só nessa língua.
Essas considerações são especialmente relevantes para contextualizar a situação linguística atual da Galícia. Embora ela se caracterize por ser um espaço sociocomunicativo com um prolongado contato entre o galego e o castelhano, sendo esse contato uma realidade impossível de ser ignorada, o estudo sobre as formas que emergem das interações entre falantes dessas duas línguas muitas vezes é marginalizado ou pouco levado em consideração na investigação acadêmica, tanto nas descrições linguísticas como nas políticas linguísticas locais. Persiste uma ideologia dicotômica que, além de seguir vigente na consciência dos próprios falantes, também molda os discursos políticos e acadêmicos. Nessa perspectiva, o contato entre línguas e os fenômenos a ele associados (como a influência mútua e a hibridização) são estudados como anomalias, exceções, e essa visão legitima cientificamente as ideologias puristas da língua.
Existem defensores da ‘purificação’ linguística em ambos os lados, isto é, tanto entre os nacionalistas espanhóis como entre aqueles que reivindicam o uso da língua galega, ainda que os seus motivos e posturas sejam diferentes. Frequentemente, os defensores da valorização da língua galega criticam o uso de ‘castelhanismos’, idealizando um galego puro, como estratégia de se distanciar da língua hegemônica.
No entanto, as línguas oficiais, como veremos com maior detalhamento a seguir, são reificações, construtos abstratos sem um equivalente direto na fala (LÜPKE, 2016). Logo, esse purismo reivindicado pelos galeguistas não condiz com a natureza dinâmica da língua em uso. Além disso, a busca pela purificação de uma língua tem suas raízes no mesmo paradigma que dá base a quem concebe que deve haver uma única língua para uma nação. E é isso que busco mostrar a seguir.
2. Concepção de língua no paradigma Moderno
A concepção de língua apresentada na seção anterior se baseia no paradigma científico e intelectual que emerge entre os filósofos europeus durante o século XVII, período ao qual se atribui o começo da Era Moderna, tendo entre seus principais nomes René Descartes e Isaac Newton. Como contraponto ao dogmatismo da Igreja, ou à incerteza, à ambiguidade e ao pluralismo do Humanismo, busca-se um ideal de racionalidade, de acordo com o qual deveriam ser criados padrões morais universais e imparciais. O estudo da natureza se daria de um modo novo e ‘científico’, bem como os problemas da vida humana e da sociedade deveriam ser explicados em termos universais e atemporais, independentes de contexto. Consequentemente, há uma centralidade da teoria abstrata geral, alienada dos problemas concretos de ordem prática (TOULMIN, 1992).
Como nos aponta Toulmin (1992: 34), o programa de pesquisa da ciência Moderna deixa de lado questões sobre indivíduos específicos em situações particulares, voltando suas atenções a princípios atemporais, com o objetivo de trazer luz a estruturas permanentes subjacentes a todo fenômeno da natureza. Desse ponto de vista, o permanente se sobrepõe ao transitório, ao efêmero.
Cria-se o método científico, no qual o fato deveria ser definido exatamente pelo que se pode observar e registrar, eliminando-se qualquer fator de interferência sobre o objeto de estudo: no interior do laboratório, máquinas simulam situações artificiais (vácuo, ausência de atrito, etc.) para neutralizar qualquer condição particular, visando a um fenômeno natural ‘puro’. O único papel do ser humano seria o da observação e descrição, como uma espécie de porta-voz do mundo real, da natureza. Consequentemente, há uma centralidade da teoria abstrata geral (TOULMIN, 1992; LATOUR, 1999).
É nesse momento que vemos a invenção de um mundo externo (LATOUR, 1999), o mundo natural que sempre existiu, com uma estrutura previsível e estável, que existe independentemente de nós. Um dos pilares do pensamento Moderno é a divisão entre Natureza vs. Humanidade. Não que se negasse que os seres humanos agiam por meio do mundo natural, mas a significância dessas interações era minimizada para os filósofos Modernos do século XVII (TOULMIN, 1992: 109).
Outro processo a ser levado em conta é a consolidação dos Estados nacionais entre os séculos XVIII e XIX, outro marco da Era Moderna. Até então, os Estados eram conjuntos de identidades políticas menores e heterogêneas, articuladas frouxamente ao redor da figura da aristocracia local. Conforme apresenta Monteagudo (1999), as entidades políticas não eram concebidas com base no território: as fronteiras entre os feudos, principados e reinos eram difusas e mutáveis. Nessas condições, não havia nada parecido com uma identidade nacional consistente e central, mas sim outros alinhamentos identitários; apenas uma identidade não muito delimitada construída sobre diferentes laços de lealdade locais, e, no centro disso, a religião.
Ao longo do século XVIII, há grandes deslocamentos populacionais das áreas rurais para as urbanas, por conta das transformações das atividades econômicas, de modo que já não se forjam identidades com base no território em que se vive. É o século XIX que marca a definitiva consolidação dos Estados nacionais europeus, seguindo os ideais de identidade nacional preconizados pelo Romantismo. Nesse período, fala-se de ‘soberania dos povos’, modelando-se identidades nacionais baseadas em tradições étnico-culturais, e, obviamente, a língua se apresenta como um elemento central nesse processo (MONTEAGUDO, 1999).
As identidades nacionais, como explica Monteagudo (1999), são moldadas com base em reificações de tradições culturais pré-existentes, sendo a língua um elemento central destas, e é a língua da elite dominante que acaba se transformando na língua real dos Estados modernos (LAGARES, 2018). O nacionalismo linguístico-cultural, aliado às mudanças sociais da Modernidade (como a urbanização e seu consequente aumento de concentração demográfica e da intensificação da comunicação), desencadeia um vasto processo de uniformização linguística, manifesto na padronização artificial das línguas e na imposição de idiomas nacionais. Até hoje, é muito recorrente a associação de uma nação com um território, uma etnia e uma língua, como se fossem equivalentes. Nessa visão, o multilinguismo é visto como um problema do Estado a ser resolvido por meio de um planejamento linguístico, concebendo a hegemonia de uma língua como elemento central da coesão social do país (LAGARES, 2018).
Para promover tal planejamento, a língua é tratada como um sistema contido em si mesmo, com fronteiras bem delimitadas. No entanto, as variações entre as falas eram difusas, sendo muito difícil distinguir fronteiras entre elas. Como não existiam modalidades de referência que fixassem e agrupassem os traços distintivos (MONTEAGUDO, 1999), assumiu-se que era preciso ‘purificar’ as línguas, moldando um exemplar nacional ao ‘limpar’ tudo o que não pertencesse a ele, forjando uma língua que representaria a essência de um povo.
3. Outras propostas para os estudos acerca do multilinguismo
As sociedades multilíngues são, amiúde, erroneamente estudadas como se fossem só comunidades rurais isoladas com uma língua nativa coexistindo com a língua hegemônica (LÜPKE, 2017), ou então comunidades que são fruto dos processos de imigração recentes nos grandes centros urbanos, e que seria uma questão de tempo até que os imigrantes se acomodassem no ambiente linguístico local. Pelo contrário, as realidades monolíngues é que são uma minoria no mundo. Ainda assim, prevalece nas sociedades ocidentais a ideia fictícia da existência de um padrão de sociedade monolíngue. Na melhor das hipóteses, assume-se, como idiossincrasia, um multilinguismo associado à coexistência, no mesmo território, de duas ou mais línguas identificadas como entidades separadas (LÜPKE, 2016 e 2017; COULMAS, 2018) – com seus respectivos sistemas de ensino, prescrições gramaticais, etc. –, ignorando-se a criatividade, versatilidade e ausência de fronteiras claras que caracterizam a interação humana cotidiana.
Nesse sentido, é válido questionar certos conceitos tradicionais em parte dos estudos sobre multilinguismo e contato linguístico, tendo em vista que reproduzem essa concepção de língua como um sistema fechado, e são, portanto, pouco apropriados para descrever os fenômenos linguísticos que se dão nos espaços multiculturais e plurilinguísticos.
Por exemplo, pode-se questionar a noção de empréstimo, que carrega em si uma lógica de pertencimento a uma língua. Quando não se considera que um elemento atribuído a outra língua já foi assimilado, ou seja, integrado a tal ponto que já não põe em questão a homogeneidade do sistema, ele é considerado um ‘intruso’ que corrompe a língua (GUGENBERGER, 2013: 25). Cria-se uma dicotomia entre externo e interno, de dois sistemas monolíticos coexistindo separadamente e apenas interferindo pontualmente um no outro.
Vemos também que são amplamente estudadas situações comunicativas em que é ativada uma língua para um interlocutor e outra língua para outro – caso das chamadas ‘escolhas não recíprocas’ – nas conversas entre, por exemplo, neofalantes que usam o galego ao iniciar uma interação e falantes habituais de galego que respondem em castelhano (CÁCCAMO, 2000).1 O trabalho de Cáccamo mostra que os neofalantes aprenderam a falar galego via ensino formal, dominando, portanto, a variedade mais próxima da norma prescritiva; já os falantes mais antigos de galego, que o aprenderam como língua materna, frequentemente associam sua variedade familiar à informalidade, tomando o castelhano como o modelo de comunicação linguística formal. Decorre daí o fato de, muitas vezes, um neofalante iniciar uma interação em galego mas ser respondido em castelhano, pois ‘ativa’ no interlocutor paleofalante a língua da oficialidade (isso, claro, para interações em que as pessoas não têm familiaridade entre si).
Ao mesmo tempo, estudos como os de Gumperz (1998, 2005) e Auer (1998) acerca do code-switching, que veem esse fenômeno como uma alternância entre partes do discurso identificáveis como pertencentes a variedades distintas, reforçam a ideia de língua como sistema fechado e autocontido. Para Auer (1998), code-switching e code-mixing podem ser vistos como etapas sucessivas na prática de alternar entre duas línguas.2
No entanto, quando a alternância se dá por meio do uso de traços associados a diferentes línguas co-ocorrendo na mesma interação, pelo mesmo falante (casos de code-mixing e calques, por exemplo), observa-se que essas instâncias de uso não são estudadas detalhadamente, não indo muito além de observações acerca do nível da ideologia (LÜPKE, 2016).
Busco apontar neste artigo que teria uma contribuição muito grande para o estudo da ecologia linguística galega tratar como central a alternância e a hibridização frequentemente tratadas como marginais.
3.1. Caminhos não-ocidentais ou não Modernos
A proposta então é questionar a visão das línguas como entidades discretas impenetráveis, que categoriza os elementos como pertencentes sem ambiguidade a uma língua ou a outra, rompendo com o tratamento do contato linguístico como sistemas separados ‘sujando’ um ao outro.
A interação é a base da dinâmica das línguas, e para estudá-la é muito proveitoso o conceito de ecologia linguística (HAUGEN, 1972; MUFWENE, 2008). Uma abordagem ecológica concebe a língua como um sistema complexo que, para ser estudado, é preciso considerar que as línguas não existem senão nas interações entre seus falantes. O que interessa ao estudo de uma ecologia não são os organismos que compõem um dado ecossistema, nem o ambiente em si, mas as inter-relações que se dão entre eles (organismos entre si e organismos com meio ambiente). Ou seja, em vez de estudar uma ou outra língua, essa abordagem se volta às inter-relações entre os falantes dessas línguas, levando em conta o ambiente em que ocorrem as interações comunicativas e as formas linguísticas que emergem delas.
Nesse sentido, existe uma série de trabalhos que se debruçam sobre a diversidade das ecologias linguísticas em regiões da África, da América do Sul, da Oceania, trabalhos que assumem que a linguagem se desenvolve localmente, na interação, com traços linguísticos em permanente movimento, adaptando-se às mudanças locais de contexto (MUFWENE, 2008; LÜPKE, 2016, 2017; GOODWIN, 2018; entre outros).3 Esses trabalhos também consideram que, estando o tempo todo diante de uma série de formas linguísticas concorrendo entre si, a seleção que os falantes fazem das diferentes variedades sofrerá influência de uma série de fatores locais – sejam eles culturais, políticos, legais, midiáticos, religiosos, etc. (MUFWENE, 2008; COULMAS, 2018).
Para estudar a dinamicidade e a multiplicidade de fatores envolvidos nas interações, é muito interessante a proposta de Mufwene (2008), que concebe as línguas como sistemas dinâmicos e autoadaptativos em permanente estado de variação e evolução, considerando tanto as pressões exercidas pelo meio ambiente linguístico, como fatos históricos de natureza política e cultural. Essa perspectiva teórica defende que o estudo da língua – sendo língua uma série de interações comunicativas concretas inéditas – deve ser feito em seu contexto de uso, considerando toda a sua complexidade e dinamismo, encarando-a como um fenômeno emergente das condições ecológicas em que os falantes estão inseridos (MUFWENE, 2008).
Esses trabalhos se dedicam a estudar configurações sociais em que o uso linguístico não é primariamente motivado por relações de poder ou prestígio de acordo com estruturas estáticas. Podendo ser chamado, entre outros, de multilinguismo não poliglóssico ou multilinguismo de pequena escala, ele é caracterizado por escolhas determinadas pelos repertórios dos participantes nos atos de fala, e é alimentado pela necessidade de indexar identidades situadas (SILVERSTEIN, 2003; LÜPKE, 2018; COBBINAH, 2019); ou seja, as lógicas que estruturam os usos linguísticos são de ordem local, em vez de expressar uma identidade essencialista.4
As interações humanas têm um caráter inerentemente indexical, isto é, estão o tempo todo vinculadas ao tempo e ao local da elocução, com seu sentido sendo definido e/ou construído por quem ouve e fala, e estes o fazem com base no conhecimento comum que compartilham (que emerge de interações prévias, expectativas e crenças comuns) (CLARK, 1996). No entanto, é crucial considerar que muitos dos fatores sociais e cognitivos que regem a interação multilíngue não são motivados por relações hierárquicas entre as línguas (LÜPKE, 2016), isto é, as línguas não possuem funções estáticas com base em seu status de poder ou fixadas a domínios de uso pré-determinados. Com outras palavras, nem sempre cada um dos significados indéxico-sociais convencionalmente ligados a cada uma das variedades é o que está em jogo numa dada interação. A prática linguística é muito mais fluida. É certo que a poliglossia e suas hierarquias inegavelmente desempenham um papel no contato linguístico; no entanto, elas devem ser relativizadas por parâmetros que levam em conta todo o escopo multimodal da língua em uso (CÁCCAMO, 2000; LÜPKE, 2016).
Tal comportamento linguístico versátil permite que os complexos repertórios linguísticos sejam manipulados de modo a apontar (ou indexicar, cf. Silverstein) para grupos sociais de acordo com a necessidade do momento. Essa múltipla indexicalidade tem uma importância fundamental no significado social, pois oferece a possibilidade de simbolizar afiliação a um ou outro grupo/vila/comunidade, ou criar uma rede de solidariedade com estes (LÜPKE, 2016; COBBINAH, 2019).5
As realidades multilíngues não poliglóssicas geralmente são uma continuação dos padrões indígenas pré-coloniais de interação social e, por não serem um retrato do conceito hegemônico de língua, proporcionam um ar fresco sobre os estudos do contato linguístico tão baseados em cânones ocidentais.
3.2. Os híbridos
Os falantes manipulam translinguisticamente os traços do castelhano para o galego e vice-versa, criando registros que não são uma simples soma das línguas (CÁCCAMO, 2000, p. 113), ou seja, não é uma identidade galega ou espanhola, mas uma terceira identidade híbrida. O falante não separa as duas línguas, mas sim suaviza as fronteiras entre elas, criando algo diferente que foge de uma categorização rígida.
Para dar alguns exemplos dessas formações híbridas, trago a seguir dados levantados no trabalho de Eva Gugenberger (2013):6
Híbridos léxicos | Castelhano | Galego |
---|---|---|
jubilou | jubiló | xubilou |
ensenou | enseñó | ensinou |
saliu | salió | saíu |
parexa | pareja | parella |
lexos | lejos | lonxe |
estuven | estuve | estiven |
naquella epoca | en aquella | naquela |
de aquella era por la tarde | anteriormente | daquela |
para que no te estea frio | para que no tengas frío | para que non che estea frío |
Híbridos morfossintáticos | Castelhano | Galego |
---|---|---|
o viaxe | el viaje | a viaxe |
voy decir/vou a dicir | voy a decir | vou dicir |
Híbridos fonéticos | Castelhano | Galego |
---|---|---|
digho yo /ˈdixo/ | digo yo | digho eu |
nosɔtros | nosotros | nós |
No caso de digho yo, temos um híbrido que segue o mesmo percurso de um exemplo que considero bastante emblemático: ghallego. Há um traço fonético que marca muito fortemente o falar galego, que é a gheada, fenômeno que consiste em pronunciar o que seria a oclusiva velar /g/ de forma aspirada, como uma fricativa velar /x/ ou fricativa glotal surda /h/ (isso ocorre também quando a gheada é seguida de outra consoante, como em aleghría /ale'xɾia/). O nome da língua em castelhano é gallego, mas a forma ghallegho /xaˈʎexo/ é amplamente usada na Galícia por falantes da região, ou seja, como um elemento castelhano pronunciado com um traço fortemente associado ao galego.
Outro exemplo é o uso em galego de ao mellor, tradução literal do castelhano a lo mejor; nesse caso, em vez de ocorrer um empréstimo reconhecido como originário de outro sistema linguístico, o seu conceito subjacente é emprestado e foneticamente adaptado (COULMAS, 2018, p. 210).
Também estão registrados fenômenos parecidos para o castelhano da Galícia; por exemplo, o amplo uso do diminutivo -iño, o uso de formas sintéticas de tempo, como hoy compré (em vez de hoy he comprado) e dijera (em vez de había dicho), etc.
Para estudar esses fenômenos, é valioso explorar o conceito de híbridos e hibridização seguindo a discussão de Latour (1994), Erfurt (2005), Gugenberger (2013), entre outros. Como já comentado acima, a ciência da Modernidade empreende um projeto de purificação, separando cada vez mais as esferas do conhecimento, criando áreas ontologicamente distintas. No entanto, diz Latour, quanto mais se busca a purificação, mais proliferam os híbridos. O autor cita como uma simples notícia sobre o buraco na camada de ozônio traz consigo conceitos de química, de biologia, de política internacional e os acordos ambientais entre os países, formando um híbrido entre essas diversas áreas. Isso se deve ao recorte artificial que o ser humano fez no mundo, sendo agora forçado a juntar essas partes novamente para tentar explicá-lo. Transpondo essa discussão para a linguística, em especial à análise das línguas em contato, quanto mais separamos categoricamente os elementos linguísticos como pertencentes a uma ou outra língua/variedade, mais teremos que assumir os híbridos que emergem desse contato.
Há alguns anos, sobretudo nos estudos pós-coloniais sobre os contextos latino-americanos, o termo hibridez, tradicionalmente de conotação negativa enquanto oposto a ‘puro’, ‘autêntico’, ‘homogêneo’, é usado propositalmente, em um ato de apropriação consciente, com conotação oposta, não apenas para descrever uma situação mista, mas para identificá-lo com conotações geralmente positivas: o híbrido, em vez de ser considerado, do ponto de vista purista, como algo impuro, incorreto e negativo, seria um nome científico supostamente neutro que permite evitar essas conotações (KABATEK, 2011: 2). Além disso, em uma série de escritos e discussões, busca-se conotar positivamente o híbrido, no sentido de que a mistura, ao invés de ser considerada defeituosa, é vista como criativa e fecunda e superior à ‘pureza’. Isso também vale para seu uso na linguística. O híbrido em algumas instâncias chega a ser considerado superior porque pressupõe a convergência de ao menos dois elementos na mistura de línguas, e dois são mais que um (KABATEK, 2011).
Para esse processo de suavizar as fronteiras entre as línguas, criando algo diferente que não é castelhano, mas também está longe do galego prescrito pela Real Academia Galega, os galegos inclusive têm um termo muito comum: o castrapo.
Reproduzo a seguir algumas reflexões de galegos sobre sua forma de falar, retiradas do trabalho de Ana Iglesia Álvarez (2013):
· Suelo falar gallego así con quen cadre pero a veces cambio con compañeiros pois cambio ao castelán. Non sei, se empezan a falar así tamén en castelán pois eu sigo porque tou acostumada a seguir, entón sigo.
· Eu tamén falo galego pero a veces cando estou cos compañeiros que falan castelán, mezclo castelán e galego e falo castrapo.
· Falar castrapo é mezclar as linguas do gallego con palabras do castelán e se estás falando castelán pois mezclar palabras do gallego mentres que estás falando castelán.
· E tamén depende no lugar que esteas. Se estás falando con un cliente terás que falarlle o galego normativo e se estás falando cun amigo o castrapo. Se o amigo fala tamén castrapo, se non teste que esforzar e falar galego.
O castrapo pode ser visto como elemento de autoidentificação linguística e tem um caráter híbrido como ato de autoafirmação e reivindicação, em oposição ao galego normativo e ao castelhano. Essa variedade é postulada como indício de um repertório linguístico rico desse segmento da população que atribuiria aos seus falantes uma identidade múltipla.
O espectro compreende diferentes modos discursivos, que podem ser majoritariamente monolíngues ou mistos. De acordo com a proporção de cada língua em jogo, podem se aproximar ora mais de um polo, ora mais do outro polo dentro de um continuum interlinguístico. Ao combinarem elementos de duas ou mais línguas/variedades, os falantes criam discursos híbridos, mediante os quais expressam diferentes facetas das suas identidades. Ao ultrapassarem as fronteiras linguísticas, rompem com a lógica de ‘isto ou aquilo’ em favor de uma lógica de ‘tanto isto como aquilo’, e ainda mais: combinam, entrelaçam e modificam elementos línguo-comunicativos, incluindo aspectos culturais, e assim criando algo novo. (GUGENBERGER, 2013, p. 30, tradução minha)
Para complementar a discussão sobre o termo, hibridização também pode ser tratado como um conceito de emancipação social, mediante o qual os atores questionam conceitos tradicionais de homogeneidade, purismo, nação e cultura nacional, reivindicando o reconhecimento da diversidade cultural e linguística (ERFURT, 2005, p. 31). Extrapolando o que afirma Gugenberger no trecho acima, podemos dizer que o resultado do contato linguístico não é uma soma simples das línguas; as formas híbridas que emergem nas interações são ocorrências completamente novas, logo, mais do que um caso de “é isso e aquilo”, seriam uma terceira coisa, que não é nem galego, nem castelhano – “nem isso, nem aquilo”.
4. Reflexões finais
Passando por um panorama geral da ecologia linguística da Galícia e de como esta se formou, vimos em que medida o projeto da Modernidade está imbricada no tratamento que se dá às línguas faladas naquela região, com suas consequências tanto na esfera dos estudos acadêmicos, como nas questões de políticas linguísticas. Romper com o paradigma sob o qual essa realidade foi estudada até agora pode nos dar novas perspectivas, e tratamentos menos excludentes dos falantes não-normativos. Ou mesmo questionar a existência de um falante normativo, que seria uma abstração (Moderna, diga-se de passagem).
Quando adentramos o campo das políticas públicas, o multilinguismo é visto como um problema do Estado a ser resolvido por meio de um planejamento linguístico, concebendo a hegemonia de uma única língua como elemento central da coesão social do país. O pensamento por trás dessa postura é o de que a diversidade linguística é um obstáculo à modernização da sociedade e ao desenvolvimento econômico dos países. Observa-se que, historicamente, tal assunção muitas vezes é usada para justificar que se consolide a língua do colonizador como elemento unificador das novas nações (LAGARES, 2018).
Visto que até hoje prevalece a expectativa (eurocêntrica) de que cada grupo étnico equivalha a uma língua, é necessário superar o discurso Moderno que tenta impor identidades essencialistas e fronteiras rígidas (LÜPKE, 2017) para falar de grupos heterogêneos e identidades múltiplas e relacionais.
Além disso, o fato de as línguas oficiais serem construtos abstratos sem um equivalente direto na fala é uma característica que se acentua na representação escrita. Uma propriedade comum aos regimes de escrita é que eles não apresentam toda a extensão da diversidade linguística (LÜPKE, 2018). As línguas expressam identidades sociais, históricas, religiosas e políticas que são, na melhor das hipóteses, parcialmente instanciadas na escrita prescritiva, tornando o uso de códigos escritos longe do ideal para descrever repertórios linguísticos orais.
A educação formal é um tema incontornável quando se discutem ações de planejamento linguístico, pois elas têm um impacto direto no acesso das pessoas à informação, ao aprendizado e às oportunidades de emprego, além de serem meios para exercerem seus direitos humanos. Ou seja, as decisões acerca de estrutura educacional e multilinguismo reverberam em esferas muito importantes da vida das pessoas. Apesar disso, raramente há espaço para o tema no planejamento para o desenvolvimento educacional, e menos ainda para o desenvolvimento social e econômico (TAYLOR-LEECH, BENSON, 2017). Parte da razão pela falta de visibilidade desse tema é que boa parte dos processos de planejamento linguístico operam com o conceito de língua como elemento homogêneo e homogeneizante.
Na busca por um plano de ações coletivas que contemple as pessoas de forma igualitária, um grande desafio é superar o planejamento voltado para promover a unidade nacional, a integração política e administrativa e a padronização das línguas eleitas para o processo de modernização. Esse modelo vem há muito tempo privilegiando os falantes das línguas hegemônicas, frequentemente sob a justificativa de uma internacionalização, que seria facilitada pela promoção das línguas herdadas dos períodos coloniais, geralmente europeias, aceitas em domínios oficiais internacionais.
Para esse processo, Lüpke (2018) propõe uma abordagem etnográfica da alfabetização para compreender a complexidade dessas configurações sem cair em uma tendência eurocêntrica e para compreender de forma mais completa a ‘ecologia da alfabetização’. Sua proposta inclui abandonar a ideia de que língua é um fato e adotar a ideia de que falar e escrever são movimentos que orientam e manipulam domínios sociais de interação.
Sendo assim, é primordial colocar as necessidades dos falantes no centro da discussão, priorizando seu bem-estar, nunca esquecendo que, concretamente, o que existe não são as línguas, mas sim os falantes, e eles é que devem ser contemplados pelas políticas públicas.
Por fim, é relevante assumir que no centro da atenção dos estudos acerca do contato linguístico e do multilinguismo não estão abstrações de sistemas linguísticos, mas sim os falantes, que elegem os recursos linguísticos que têm à disposição de acordo com as suas necessidades comunicativas.
5. Agradecimentos
Gostaria de agradecer às pareceristas pelos apontamentos. Este texto se baseou na apresentação de trabalho oral na Abralin Em Cena, e as contribuições dos pareceres possibilitou preencher algumas lacunas que haviam ficado por conta da limitação de tempo da apresentação.
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