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Registro de Projeto

O ensino sobre o papel de línguas africanas no Português em materiais didáticos do PNLD 2020

Tâmara Kovacs Rocha

Universidade de São Paulo (USP) image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0001-9368-4146


Palavras-chave

Ensino de português
Contato linguístico
Decolonialidade
Materiais didáticos
Línguas africanas

Resumo

Uma série de estudos tem atribuído algumas construções gramaticais do português brasileiro ao resultado do contato linguístico com línguas africanas. Ocorre que, sendo heranças desse contato, esses usos linguísticos são parte da cultura afro-brasileira e, por isso, atendem aos requisitos da lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena no país. Ao mesmo tempo, essas construções gramaticais constituem variantes da língua, o que faz com que sejam objeto do estudo de variação linguística, preconizado pela Base Nacional Comum Curricular para o ensino brasileiro. Ou seja, por serem variantes linguísticas e parte de uma herança cultural africana, esse conteúdo deveria estar contemplado no ensino. Destarte, o objetivo desta pesquisa é analisar as quatro coleções do Programa Nacional do Livro e do Material Didático mais escolhidas no Brasil para verificar se o contato linguístico do português com línguas africanas tem sido abordado. Assumiremos duas frentes: uma, descritiva, analisará o corpus segundo três linhas da Linguística de Contato: 1. Crioulização; 2. Derivação imprópria e 3. Ecologia linguística, além de um contraponto que nega o papel do contato, para verificar se conhecimentos produzidos por tais abordagens aparecem por uma via explícita ou por uma via implícita nos materiais. A outra frente analisará a forma como são tratados esses conteúdos segundo três conceitos: 1. O livro como representação; 2. Dispositivo de racialidade e 3. Epistemicídio.

Introdução

Há, no Brasil, dois textos prescritivos que versam sobre a obrigatoriedade de a educação escolar trabalhar com a diversidade cultural no Ensino Fundamental. Um desses textos é a lei nº 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino de “história e cultura africana, afro-brasileira e indígena”. O outro texto regulatório é a Base Nacional Comum Curricular ‒ doravante BNCC ‒ (BRASIL, 2017), que prescreve os conteúdos que devem obrigatoriamente ser trabalhados pelos professores e pelos materiais didáticos, regulamentando o que deve ser objeto de ensino nas escolas brasileiras1.

A BNCC consiste no documento de caráter normativo que define o currículo escolar brasileiro, em âmbito federal, por meio da definição de diferentes conhecimentos, competências e habilidades esperadas em diferentes áreas do conhecimento. Essa mesma Base norteia o currículo de todos os sistemas escolares e de ensino no país, públicos e privados. O documento está ancorado em um conjunto histórico de leis, chamadas de “marcos legais”, que buscam mitigar desigualdades sociais e proteger a grande gama de grupos sociais do país, visibilizando sua existência cultural e epistemológica2 em consonância com a qualidade do ensino. Em sua seção introdutória, a Base explicita sua filiação a esse conjunto de leis, citando como alguns desses marcos legais, dentre outros, a Lei 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino de “história e cultura africana, afro-brasileira e indígena”; e a Lei de Diretrizes e Bases (Constituição Federal, Título III, Cap.II – Art. 22), que, entre outros pontos, estabelece como dever do Estado: 1. a distribuição de material didático escolar (Art. 4, §VIII); 2. a elaboração do Plano Nacional de Educação (Art. 9, §I), que guiou a elaboração da base curricular comum a todo o país (Cap. II, Art. 26); e 3. a obrigatoriedade de inclusão e proteção de diferentes culturas e etnias na educação (Art. 26, § IV e IX).

Em consonância com o restante da BNCC, as seções “Linguagens nos Anos Finais do Ensino Fundamental” e “Língua Portuguesa dos Anos Finais” estão entremeadas pelos conceitos, segundo os próprios termos da Base, de “diversidade” e, mais especificamente, de “variação linguística”, enquanto uma das manifestações de tal diversidade (BRASIL, 2017, p.61 e 70), conforme é possível verificar a seguir:

Da mesma maneira, imbricada à questão dos multiletramentos, essa proposta considera, como uma de suas premissas, a diversidade cultural. Sem aderir a um raciocínio classificatório reducionista, que desconsidera as hibridizações, apropriações e mesclas, é importante contemplar o cânone, o marginal, o culto, o popular, a cultura de massa, a cultura das mídias, a cultura digital, as culturas infantis e juvenis, de forma a garantir uma ampliação de repertório e uma interação e trato com o diferente.

Ainda em relação à diversidade cultural, cabe dizer que se estima que mais de 250 línguas são faladas no país – indígenas, de imigração, de sinais, crioulas e afro-brasileiras, além do português e de suas variedades. Esse patrimônio cultural e linguístico é desconhecido por grande parte da população brasileira.

No Brasil, com a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, oficializou-se também a Língua Brasileira de Sinais (Libras), tornando possível, em âmbito nacional, realizar discussões relacionadas à necessidade do respeito às particularidades linguísticas da comunidade surda e do uso dessa língua nos ambientes escolares. (BRASIL, 2017, p. 70)

A heterogeneidade da linguagem é mencionada em diversas ocasiões no documento (BRASIL, 2017, p. 63 e 65) ‒ sendo por vezes chamada também de “diversidade” (BRASIL, 2017, p. 70), tanto relativamente à variação e à articulação entre a escrita e a oralidade quanto entre gêneros de maior ou menor prestígio social e entre “o português e suas variedades” (BRASIL, 2017, p. 70) ou entre “a norma padrão e outras variedades” (BRASIL, 2017, p. 71). A BNCC afirma, por exemplo, que:

Considerando esse conjunto de princípios e pressupostos, os eixos de integração considerados na BNCC de Língua Portuguesa são aqueles já consagrados nos documentos curriculares da Área, correspondentes às práticas de linguagem: oralidade, leitura/escuta, produção (escrita e multissemiótica) e análise linguística/semiótica (que envolve conhecimentos linguísticos – sobre o sistema de escrita, o sistema da língua e a norma-padrão –, textuais, discursivos e sobre os modos de organização e os elementos de outras semioses). Cabe ressaltar, reiterando o movimento metodológico de documentos curriculares anteriores, que estudos de natureza teórica e metalinguística – sobre a língua, sobre a literatura, sobre a norma padrão e outras variedades da língua – não devem nesse nível de ensino ser tomados como um fim em si mesmo, devendo estar envolvidos em práticas de reflexão que permitam aos estudantes ampliarem suas capacidades de uso da língua/linguagens (em leitura e em produção) em práticas situadas de linguagem. (BRASIL, 2017, p. 71)

Nas seções prescritivas dos conteúdos, objetos e habilidades de cada um dos Anos Finais do Ensino Fundamental (Seção 4.1.1.2), é patente a preconização do ensino da variação linguística em diversos momentos, assim como uma discussão do uso político negativo da variação ‒ o do preconceito e da discriminação (BRASIL, 2017, p. 81) ‒, o que alinha a BNCC a uma perspectiva sociolinguística, conforme explicitado no trecho abaixo:

No caso de textos orais, essa análise envolverá também os elementos próprios da fala – como ritmo, altura, intensidade, clareza de articulação, variedade linguística adotada, estilização etc. –, assim como os elementos paralinguísticos e cinésicos – postura, expressão facial, gestualidade etc. No que tange ao estilo, serão levadas em conta as escolhas de léxico e de variedade linguística ou estilização e alguns mecanismos sintáticos e morfológicos, de acordo com a situação de produção, a forma e o estilo de gênero.

Cabem também reflexões sobre os fenômenos da mudança linguística e da variação linguística, inerentes a qualquer sistema linguístico, e que podem ser observados em quaisquer níveis de análise. Em especial, as variedades linguísticas devem ser objeto de reflexão e o valor social atribuído às variedades de prestígio e às variedades estigmatizadas, que está relacionado a preconceitos sociais, deve ser tematizado. (BRASIL, 2017, p.81)

Da mesma maneira, a diversidade cultural e a variação linguística são habilidades mencionadas nas seguintes competências específicas de língua portuguesa:

1. Compreender a língua como fenômeno cultural, histórico, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhecendo-a como meio de construção de identidades de seus usuários e da comunidade a que pertencem. (...)

4. Compreender o fenômeno da variação linguística, demonstrando atitude respeitosa diante de variedades linguísticas e rejeitando preconceitos linguísticos.

(...)

6. Analisar informações, argumentos e opiniões manifestados em interações sociais e nos meios de comunicação, posicionando-se ética e criticamente em relação a conteúdos discriminatórios que ferem direitos humanos e ambientais.

7. Reconhecer o texto como lugar de manifestação e negociação de sentidos, valores e ideologias. (BRASIL, 2017, p. 87)

Algumas frentes da Linguística já têm dado as mãos à produção de material para ensino, por exemplo, por meio de produção de publicações e de estudos por parte de linguistas aplicados (MÜLLER et al., 2020; MÜLLER; MARTINS, 2021), por meio das produções de acadêmicos do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Letras, de cursos de cultura e extensão (USP, 2021), entre outros.

Essa associação entre certas áreas da Linguística e o ensino de língua já se tem dado com frequência, no que tange à variação linguística, no âmbito da sociolinguística educacional, trabalhando a constatação de variantes do português falado e/ou escrito no Brasil (doravante PB) e ressaltando suas relações com uma visão normativa de língua e com o preconceito social. Nesse sentido, são muito reconhecidos os trabalhos de Bagno (2002, 2019), Bortoni-Ricardo (2004) e diversos outros pesquisadores que, muitas vezes, os tomam como embasamento (e.g. SILVA & FRANÇA, 2018; MENEZES, 2014) e investigam, sob o arcabouço da sociolinguística, o modo como materiais didáticos organizam e apresentam o conhecimento linguístico.

Há também produções acadêmicas de teóricos da Educação que versam, entre outros assuntos, sobre a importância do tratamento da variação linguística em ambiente escolar e sobre a forma como esse conhecimento tem chegado aos materiais didáticos (doravante MD). Da parte da produção acadêmica no âmbito da Educação, há, por exemplo, uma longa tradição, como em Travaglia (2003), Neves (2004) e Antunes (2014), que tem criado as bases para que o ensino de português como língua materna seja trabalhado em consonância com linhas teóricas da Linguística, trazendo para sua produção de modo vertical a variação linguística e a preconização de uma abordagem “epilinguística e metalinguística”, nos termos de Negrão (2019, p. 104 et seq.). Em tal linha, a oralidade e as diferentes variantes da língua portuguesa, sejam diatópicas, diafásicas, diastráticas ou diamésicas, têm sido trabalhadas para que os papéis da escola, do professor e do material didático sejam os de levar ao educando a realidade heterogênea, “multigramatical”, da língua, sem hierarquizar os diferentes usos que compõem o português, embora seja também seu papel versar o aluno na norma-padrão.

Dessa maneira, o que é proposto no presente projeto não constitui exatamente uma novidade, pois insere-se em uma tradição de produções e pesquisas que têm aliado o que alguns campos da Linguística têm produzido aos objetivos pedagógicos, com vistas a aperfeiçoá-lo e atualizá-lo. A maior diferença com relação ao que é aqui proposto consiste em partir não de um arcabouço da Sociolinguística Variacionista para realizar a pesquisa, mas de produções da chamada Linguística de Contato (doravante LC).

Tem havido uma série de trabalhos e pesquisas em diferentes linhas teóricas da Linguística sobre o fato de que há usos que marcam diferenças entre o PB falado e/ou escrito, uma norma-padrão do PB e o português falado e/ou escrito na Europa (doravante PE) derivados do contato dessa língua com uma miríade de línguas africanas trazidas para o continente americano durante o processo de tráfico escravagista e colonialismo. Alguns exemplos são Avelar e Galves (2014), Negrão e Viotti (2008), Petter (2009), Castro (1983), entre outros.

Por analisar, partindo de diferentes linhas teóricas, o aparecimento de certos usos enquanto resultado do contato entre diferentes línguas, essa vertente é denominada Linguística de Contato. O termo “guarda-chuva” abarca desde linhas teóricas gerativistas, como a de Lucchesi, Baxter e Ribeiro (2009), até estudos da crioulística (HOLM, 1992) e da ecologia linguística (MUFWENE, 2008).

Por meio dessas produções, tem sido atribuída uma origem a diversas das variantes sobre as quais o professor e a sociolinguística educacional se debruçam ou podem se debruçar. Por isso mesmo, os dois tipos de trabalho podem estar muito próximos e ser conciliados. Ressalte-se, por exemplo, o trabalho de Bagno (2019), no qual o autor salienta em um dos capítulos a importância do papel do negro e de um caráter “marcadamente africano” no PB, com base em estudos da LC.

Ocorre que, exatamente por comporem usos paralelos a uma norma-padrão, tais fenômenos linguísticos são, grosso modo, considerados variantes do português. E mormente são também considerados, pelo público leigo, marcas de desvio e de erro em relação à norma-padrão da língua portuguesa. Dessa forma, alguns traços que compõem variantes da língua portuguesa falada no Brasil são fortemente associados, por uma série de pesquisas científicas de diferentes arcabouços teóricos, a heranças africanas e afro-brasileiras. E essas mesmas construções gramaticais são, muitas vezes, marcas consideradas erros, marcas que constituirão índices disparadores de preconceito linguístico, discriminação e que são comumente abordadas na escola enquanto incorreções.

O conteúdo que tem sido produzido pela LC investiga, evidentemente, o léxico, mas também os demais níveis da língua, e os fenômenos investigados atendem aos requisitos de ambos os textos regulatórios supramencionados, adequando-se tanto enquanto variação linguística, já que compõem variantes constatadas no PB, quanto como um conteúdo que atende à lei nº 11.645, por estarem relacionados à história e à cultura africana e afro-brasileira ‒ no caso, a história e a cultura linguísticas. Portanto, esse conhecimento deve ser (ou deveria estar sendo) abordado nos materiais didáticos do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD).

Um bom exemplo são os usos de tópico-sujeito com concordância locativa ou possessiva no PB. Galves e Avelar (2014, p. 254-256) atribuem esse tipo de construção ao resultado da influência massiva de línguas bantas, nas quais a inversão locativa é largamente atestada, como nos exemplos a seguir:

1. “Essas ruas passam muito carro” (tópico-sujeito com concordância locativa);

2. “As crianças já tão nascendo o dentinho” (tópico-sujeito com concordância possessiva);

3. “algumas concessionárias tão caindo o preço” (tópico-sujeito com concordância locativa);

4. “até hoje eu tou doendo o pescoço de dançar aquela dança miserável” (tópico-sujeito com concordância possessiva).

Outro exemplo de uso do PB atribuído à influência de línguas africanas é o caso do locativo preposicionado em posição de sujeito, que Avelar e Cyrino (2008) consideram uma influência da inversão locativa, processo comum em línguas bantas, como é o caso da maioria das línguas trazidas para o Brasil ao longo do processo de sequestro e escravização de africanos. Esse tipo de construção está presente em frases como as seguintes (AVELAR; CYRINO, p. 65):

a. Naquela loja vende todas as edições do livro do Harry Potter.

b. Nas lojas do centro só conserta sapatos importados.

Tais tipos de construção, exatamente por serem muito comuns no português, são disseminados nas produções textuais dos alunos do Ensino Fundamental e são, comumente, objeto de aulas sobre concordância e termos constituintes da oração, nas quais são preconizadas como erros que devem ser corrigidos pelos alunos.

A proposta aqui tecida consistiria, portanto, em verificar se há menção à influência linguística africana no português brasileiro, seja em trechos teóricos dos materiais didáticos, seja em trechos prescritivos, como em exercícios ou recomendações nos manuais de professores. Parte disso implicará em verificar se usos constatados no PB, como os expostos acima, são mencionados de alguma maneira nos materiais didáticos; se sim, como esse uso é tratado e, caso não o sejam, se o material preconiza algum outro uso como o possível ou correto para o mesmo tipo de situação – como os da norma culta ou da norma-padrão.

Ao realizar uma pesquisa por produções acadêmicas que tivessem o material didático do PNLD como escopo e a LC como arcabouço teórico não foi possível encontrá-las, o que tornaria o presente projeto uma abordagem pioneira. Sendo assim, recorreu-se a uma análise preliminar, aqui brevemente mencionada, na qual se verificou que o tratamento, em materiais didáticos, de usos que constam no PB e cujo surgimento ou consolidação são atribuídos por diferentes linhas teóricas ao contato com línguas africanas pode estar ausente ou carregado de imprecisões conceituais. E um conhecimento específico em Linguística de Contato é imprescindível para detectar tanto tais ausências quanto imprecisões teóricas que estejam nesses livros, garantindo um escrutínio particular e importante.

Assim, a proposta deste projeto é investigar as quatro coleções mais escolhidas do PNLD 2020 pelas escolas brasileiras para os Anos Finais do Ensino Fundamental, com o objetivo de estabelecer se usos do PB atribuídos ao contato com as línguas africanas têm sido neles abordados; em caso positivo, de que maneira isso foi realizado, e verificar, dessa forma, se esses livros didáticos têm atendido às prescrições legislativas por meio do conteúdo produzido pela LC, articulando adequadamente seus conhecimentos, hipóteses e pesquisas.

Embora não se tenha encontrado pesquisa com o mesmo escopo e arcabouço teórico que os aqui propostos, foi possível encontrar uma dissertação de mestrado (SILVA, 2011) que até o momento é a abordagem mais próxima da que se pretende aqui. Com o objetivo de elaborar um planejamento linguístico que favorecesse a aplicação da lei 10.639/03, o trabalho propôs-se a investigar a influência de línguas africanas no português e sua abordagem em materiais didáticos. Contudo, ele difere em diversos pontos essenciais do que é aqui proposto; dentre esses pontos divergentes estão o corpus de livros didáticos (uma vez que a pesquisa mencionada teve como escopo as escolas particulares do Distrito Federal e o texto regulatório dos conteúdos educativos então vigente não era a BNCC), sua base metodológica (já que partiram de um questionário etnográfico enviado aos professores e, portanto, do julgamento do professor sobre a adequação ou não do material didático à lei nº 10.639/03) e por tal trabalho restringir-se ao nível lexical do PB.

Nosso projeto também se aproxima da linha de pesquisa da Sociolinguística, como a de Marcos Bagno e outras semelhantes, por motivos já mencionados. Contudo, como já dito, difere dela em pontos importantes: partirá de diferentes linhas e trabalhos da Linguística de Contato, e não da Sociolinguística, e também não se debruçará sobre o preconceito linguístico/social. Aproximamo-nos da Sociolinguística Educacional, pois partimos da constatação de que as construções gramaticais que pretendemos analisar constituem variantes da língua, devendo, portanto, ser trabalhadas no ensino. Porém, apenas nisso reside nossa aproximação, já que o arcabouço teórico será buscado em outra área da Linguística, a LC.

Para tal, o projeto propõe duas frentes: a primeira, de caráter descritivo, se concentrará na análise do corpus à luz dos conhecimentos da LC, para verificar se esses conteúdos estão aparecendo, tanto por uma via propositiva (explícita) quanto implicitamente (sendo pressupostos como erros). A segunda frente, de caráter analítico, se debruçará sobre a forma como esses conteúdos são tratados ou deixam de aparecer nos materiais, e se baseará em três conceitos: o livro como representação (CHARTIER, 2010), dispositivo de racialidade (CARNEIRO, 2005) e epistemicídio (SANTOS, 1995), dada a constatação tanto de um apagamento, na análise preliminar por nós realizada, quanto de uma abordagem parcial, ou mesmo imprecisa, desse conteúdo, como se irá verificar abaixo.

1. Hipótese

Dado que há usos presentes no PB que são considerados resultantes do contato com línguas africanas, esse conteúdo está (ou deveria estar) sendo tratado no material didático, seja pela via da variação linguística, seja pela via da lei 11.645/08, que prevê o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. A análise preliminar aqui tecida por nós, na seção “Justificativa”, também permite levantar a hipótese de que pode haver ausência de tratamento desse conteúdo, um tratamento parcial, um tratamento incorreto ou um tratamento que pressupõe uma única norma de uso para o português.

2. Objetivos

O objetivo geral deste projeto, portanto, é analisar as quatro coleções mais solicitadas do Guia do PNLD de 2020 pelas escolas públicas brasileiras, que serão usados até 2023, para verificar se os conhecimentos da Linguística de Contato estão sendo levados ao professor e aos alunos por meio dos livros didáticos oficiais, tanto em partes informativas (como em trechos teóricos) quanto em partes prescritivas, como em exercícios e recomendações dos manuais para professores.

Seus objetivos específicos são verificar de que maneira isso está sendo feito, quando o for ‒ como isso é explicado ao aluno e ao professor, quais dos processos e construções gramaticais são associados a uma origem ou a um contato com línguas africanas, e como esse processo é explicado ou ocultado ao aluno e ao professor. Também se pretende descrever possíveis ocorrências à luz das produções acadêmicas da LC, verificando se há incorreções ou inadequações teóricas. Finalmente, visamos analisar, com base em três conceitos (o livro enquanto representação, epistemicídio e dispositivo de racialidade, que serão explicados mais detidamente abaixo) de que forma possíveis apagamentos e incorreções na abordagem desses conteúdos linguísticos podem estar ligados a fatores estruturais da sociedade.

3. Justificativa

É obrigação do Estado selecionar e distribuir, para as escolas públicas que optarem, o material didático que serve de base para os professores, por meio do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Os Guias do PNLD contêm seis coleções de livros didáticos que atendem às exigências e parâmetros da BNCC. Cada escola escolhe, a cada quatro anos, uma coleção, para ser usada em todas as séries do ciclo3.

Paralelamente às coleções selecionadas, qualquer professor pode facilmente recorrer a uma variedade de livros didáticos disponíveis no mercado. E análises preliminares, como a que será tecida abaixo, corroboram um fato que é intuitivo ao professor de português que tenha conhecimento sobre LC: costuma haver um tratamento deficitário desse campo do conhecimento nos livros didáticos de português.

Tome-se, por exemplo, o livro “História e Cultura Africana e Afro-Brasileira”, de Lopes (2008). O livro foi escrito por um intelectual notório. Contudo, não há no material o tratamento do papel das línguas africanas na variação linguística da língua portuguesa.

Tomemos um outro exemplo, os livros da coleção Português Linguagens, de Cereja e Viana (2018), antes parte do PNLD e um dos livros mais usados no país. Na coleção preparada para os Anos Finais do Ensino Fundamental, o conteúdo de variação linguística está previsto para o sexto ano do Ensino Fundamental (doravante EF). Discutida em um longo texto descritivo, porém, não há qualquer menção sobre o papel de línguas africanas ou indígenas na formação do PB, nem na formação de suas variantes, dialetos e nem na formação de línguas que não o português oficial presentes no território.

Constata-se facilmente em ambos os exemplos, portanto, um apagamento do fato de que línguas estiveram em contato neste território e de que tal contato gerou usos que diferem do PE e da norma-padrão atual do português. O mesmo é detectado com facilidade em outros materiais didáticos de uso corrente hoje.

Há, contudo, uma atividade pontual e curta, no mesmo “Português Linguagens” (CEREJA; VIANA, 2018, p.171-174), para o sétimo ano do EF, que trata da questão. O texto aborda aspectos da língua portuguesa considerados decorrentes do contato com outras línguas. Chega mesmo a apontar índices para além da ordem dos empréstimos lexicais ao tratar do português moçambicano e menciona empréstimos de línguas locais em Angola e Moçambique. Essa perspectiva o situaria dentro das concepções da LC. Contudo, conforme um olhar especializado em Linguística se debruça sobre a atividade, é possível depreender uma série de problemas.

Com relação ao que é falado no Brasil, além de oferecer apenas exemplos pontuais de empréstimos (como “bunda”, “cafuné” e “moqueca”, termos que podem levantar a suspeita de uma estereotipagem do grupo social), o livro não menciona diferenças entre empréstimos e decalques, por exemplo, e não discorre com maior profundidade sobre o processo que originaria tais empréstimos ‒ o que uma diversidade de estudos da LC, dentre os quais os de Castro (1983) estabelecem com clareza.

A atividade também afirma que “as principais [diferenças] são as influências de línguas nativas e estrangeiras, que resultam em palavras e expressões particulares. No Brasil, há atuação das línguas indígenas além de palavras de outros povos imigrantes (...)” (CEREJA; VIANA, 2018, p. 170). Tais afirmações podem ser consideradas, se não equivocadas, no mínimo incompletas, de acordo com diversas perspectivas da linguística, dentre elas, a de Negrão e Viotti (2012) que, alinhando-se a Mufwene (2008), consideram que todas as línguas que se encontram em contato em determinado recorte de análise constituem um pool de traços, em todos os níveis linguísticos, que competem entre si e poderão ser transmitidos a essas línguas. Por essa perspectiva teórica, é impossível afirmar que algumas línguas que estiveram em contato com o PB desencadearam mudanças, mas outras, não, ou que sua “influência” se restrinja ao léxico, sem afetar a gramática em algum grau. Essa abordagem constatada na atividade é reafirmada em alguns dos exercícios e nas respostas, propostos aos professores logo após o texto (CEREJA; VIANA, 2018, p.172).

Juntamente a esses aspectos, para além da conclusão implícita de que possíveis resultados do contato restringiram-se ao âmbito da fala, não influenciando a escrita, uma análise detida indica que o modo como o texto e os exercícios são construídos deixa claro o conceito de que há “um português”, o português com o qual os “falares regionais” brasileiros, o português angolano e o português moçambicano são contrastados no texto e mostram marcas de diferença, “ganham um sabor eclético” (CEREJA; VIANA, 2018, p. 172). Isso é patente, por exemplo, ao verificar que as poucas informações trazidas sobre o português angolano e o moçambicano são tecidas para esclarecer se cada um se “aproxima” (sic) ou se distancia do PE (CEREJA; VIANA, 2018, p.171). Ou seja, é possível depreender que se subentende um parâmetro, para dentro do qual termos teriam sido emprestados e em relação ao qual a variação será marcada (no exemplo, falares regionais do Brasil, português angolano, português moçambicano).

Os exercícios seguintes consistem em atividades que solicitam que o aluno indique exemplos de variação – “regionalismos” (sic) – entre as pessoas próximas a ele, ou então que reproduza afirmações do texto.

Nesse sentido, os estudos da Linguística de Contato mostram-se essenciais para a análise do tipo que está sendo aqui proposto. E essa constatação de um apagamento e de um tratamento normativo de traços associados à herança linguística africana/afro-brasileira leva-nos a considerar a possibilidade de que isso se deva por tais traços serem ligados à herança cultural de uma minoria sociológica específica, africana e/ou afrodescendente – o que, por sua vez, levanta a necessidade de uma bibliografia que analise a colonialidade.

Dada a constatação de que a maioria dos professores baseia suas aulas mormente no material didático (INEP, 2017)4, como consequência, entre outros, de jornadas duplas ou triplas de trabalho5, e fazem apontamentos gramaticais semanal ou diariamente (Idem, sessão “Práticas”, questão 119), além do fato de que as três maiores universidades do Estado de São Paulo não preveem este tipo de conteúdo na formação básica obrigatória do futuro professor6 e do pequeno oferecimento de cursos de extensão e de formação continuada que abordem o tema7, o peso que terá o conteúdo oferecido pelo livro didático será fatalmente alto, o que também justifica o escopo de análise estabelecido por este projeto.

Para esse peso contribui também o fato de que, a partir de pesquisa na base de dados do Sistema Dedalus USP (sistema de busca integrada entre as bibliotecas da Universidade de São Paulo) e nas bases das bibliotecas da Universidade de Campinas (Unicamp), para a qual foram consultadas palavras-chave, título e resumos, não foi encontrada nos últimos 20 anos produção com o mesmo escopo e arcabouço teórico aqui propostos ‒ ainda que haja, como já dito, uma série de trabalhos sobre a relação entre variação linguística, ensino e preconceito8, o que não é, porém, o principal enfoque desta proposta.

Por fim, uma análise dos materiais didáticos que situe a atual produção voltada para o ensino básico é essencial para que linguistas tenham um panorama sobre o modo como sua produção tem chegado à população não especialista, constatando, inclusive, se ela não tem chegado, e pensem em meios de democratizar e amplificar o conhecimento produzido, tornando-o acessível a professores e leigos e, principalmente, a jovens em formação, viabilizando um trabalho de legitimação da diferença, que norteia a própria BNCC e suas bases legais, o que também justifica esta pesquisa.

4. Balanço Bibliográfico

Quando se discute Linguística de Contato, há uma série de vertentes e linhas teóricas que é preciso ter em mente.

Primeiramente, é necessário considerar uma linha teórica que nega a existência de usos no português do Brasil derivados do contato com outras línguas, nos moldes da “deriva interna” de Edward Sapir, como explicam Negrão e Viotti (2012). Essa perspectiva teórica, por vezes denominada “hipótese da deriva”, considera que fatos da mudança e da variação linguística no português do Brasil são resultado de processos internos ao próprio sistema do português, e é fortemente representada pelos estudos de Naro e Scherre (2007). Embora, por negar a influência do contato, esse alinhamento teórico não possa ser considerado parte da LC, será necessário tê-lo em mente ao verificar como as informações e os exercícios são elaborados no corpus.

Já quanto às principais linhas teóricas que assumem o papel do contato linguístico, atentamo-nos para a hipótese da crioulização, a da derivação irregular e a ecológica, considerando as hipóteses de usos e traços que pesquisas de cada uma delas têm levantado e atribuído ao contato linguístico, para então verificar o modo como se alinham a essas correntes os materiais analisados.

Pela hipótese da crioulização/descrioulização, a diminuição do repertório morfossintático e outros processos que diferenciam o português falado no Brasil do de Portugal resultam de um processo de crioulização da língua, como aconteceu em diversas regiões colonizadas por europeus (GUY, 1981; HOLM, 1992). Para essa linha teórica, o contato desencadeia processos de reestruturação universais, independentemente das línguas em contato, e a filiação entre as línguas formadas e as de substrato e superstrato não pode e de superstrato não pode ser traçada. Nesse sentido, não é possível afirmar que o PB “herda” usos de línguas africanas, mas que o contato desencadeou um processo (universal) de crioulização.

Por outro lado, é possível que os materiais didáticos se alinhem aos estudos baseados na hipótese da “derivação imprópria” do português, resultante de um contato insuficiente e fragmentário com essa língua-alvo durante a aquisição linguística (LUCCHESI, 2012; LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009). Tal hipótese coaduna-se com a linha gerativista chomskyana de pesquisa, ao considerar o período de aquisição como o período determinante durante o qual são gestadas variantes e mudança, devido a uma falha na fixação de parâmetros.

Por fim, temos em conta a perspectiva que considera a mudança e a variação linguísticas como resultados de uma ecologia linguística dentro da qual uma diversidade de traços convergentes e divergentes de diferentes línguas e idioletos, dentre elas, as africanas, as autóctones e o português, estiveram em competição (MUFWENE, 2008; NEGRÃO; VIOTTI, 2008, 2012). Por esse viés analítico, cada falante, com seu idioleto, é um potencial gerador de mudança e variantes linguísticas, e sua geração não se restringe ao período de aquisição, seja de língua materna, seja de uma língua adquirida posteriormente.

Com tal arcabouço teórico em mente, tentaremos detectar se será possível depreender uma visão “mentalista” de contato linguístico, alinhando-se mais à linha gerativista (CHOMSKY, 1986), à sociolinguística laboviana (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968]) ou à linguística cognitiva (LANGAKER, 1991).

Serão, portanto, linha-mestra da pesquisa estudos sobre o que se tem considerado resultado do contato com línguas africanas na língua portuguesa, quais sejam: 1. empréstimos e decalques (CASTRO, 1983); 2. construções de tópico-sujeito, preposições na introdução de complementos dos verbos de movimento, reorganização do sistema pronominal e reflexos na morfologia flexional verbal, marcas de dialetos considerados “português afro-brasileiro” (LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009; LUCCHESI, 2019); 3. nomes nus e alternância dativa (AVELAR; GALVES, 2014); 4. algumas estratégias de impessoalização (NEGRÃO; VIOTTI, 2008); 5. uma grande série de processos fonológicos de acréscimo, supressão e substituição de fones e fonemas, marcas de concordância de gênero e número no “português padrão” e no português de comunidades afro-brasileiras (PETTER, 2009), entre outros cuja constatação e embasamento científico levaram à teoria de um continuum afro-brasileiro de português que se expande entre América e África (PETTER, 2009).

Também será essencial ter clareza quanto ao tipo de ensino de gramática que subjazerá a cada coleção: se subentendem uma norma, ainda que reconheçam a existência de variantes; se o conceito de gramática se reduz à língua escrita ou se engloba a fala e a interação extra-verbal (TRAVAGLIA, 2003). É patente que muitos materiais não trabalham em termos de competência linguística e igualam uma única norma escrita à totalidade gramatical da língua e, sendo a única legitimada, é o parâmetro de comparação e hierarquização de variantes e do aprendizado do estudante ‒ e sua “inteligência” (NEVES, 2004, p. 101) ‒, em lugar de ensinar diversos usos e recursos e reconhecê-los enquanto legítimos (TRAVAGLIA, 2003; NEVES, 2019). No caso, exatamente os usos e recursos que têm sido atribuídos ao contato.

É dado que o objeto de trabalho será um objeto material, porém, é preciso reconhecer a faceta imaterial em discussão, que consiste em nada mais do que o discurso que se pretende apresentar ao público em um livro didático. Partiremos do princípio de que o livro didático é um objeto cultural complexo e um gênero do discurso (BUNZEN, 2005, 2008), em cuja produção e recepção convergem agentes sociais interligados. Muito além do sistema autor versus leitor, verifica-se um sistema complexo que interliga as intenções e interesses de autores, agentes produtores (editoras), público (estudantes, professores, pais, mídia, meio científico) e políticas públicas (BUNZEN, 2005, 2008). Esse conjunto forma uma vigilância que impõe controle, ou mesmo monopólio, sobre o escrito, controlando, dentro de sua relação dinâmica, as produções culturais e fazendo com que os livros sejam mais um instrumento de poder (CHARTIER, 2010 apud BIAZETTO, 2017).

Tomado como tal, o livro didático carrega também representações de uma realidade histórica (CHARTIER, 2010), resultantes do direcionamento de seu discurso pelas intenções e pressupostos dos agentes envolvidos e pela sua fabricação.

Se partimos do princípio de que seu discurso é direcionado, no processo de representação, temos o campo aberto para verificar como o dispositivo de racialidade, na concepção de Carneiro (2005), age sobre a produção, a elaboração e a recepção dos conteúdos linguísticos dos materiais didáticos e é sustentado por eles.

Por “dispositivo de racialidade” Carneiro entende a articulação entre um conjunto “heterogêneo, que engloba discursos, instituições, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais”, enfim, a rede que é estabelecida entre esses elementos, por meio de ditos e não ditos, e que é mantida graças a um objetivo estratégico dominante de manutenção de poder (CARNEIRO, 2005, p. 38-42). Porém, o conceito foucaultiano é por ela expandido, ou transpassado, pela raça: nos mundos colonial e pós-colonial, o dispositivo de racialidade é a articulação de diversas esferas simbólicas que, juntas, mantêm o discurso da racialidade, “sustentando saberes e sendo por ele sustentadas” (CARNEIRO, 2005, p. 42-46).

Essa mesma articulação entre práticas e saberes típica dos dispositivos de poder sustenta a construção ontológica de um sujeito-forma a partir de uma prática divisora que estabelece a separação entre o sujeito e o não sujeito enquanto pares dicotômicos não essencializados, cujos caracteres são definidos sempre enquanto identidades opostas: o louco e o não louco, o sujeito sexualizado e o não sexualizado, o sujeito colonial e o sujeito não colonial, o sujeito e o não sujeito.

Assim, ao demarcar o estatuto humano como sinônimo de “brancura” fenotípica e/ou simbólica, o dispositivo de racialidade irá, por consequência, redefinir todas as demais dimensões humanas e hierarquizá-las de acordo com a sua proximidade ou distanciamento desse padrão (CARNEIRO, 2005, p. 43).

Dentro dos diversos recursos do dispositivo para sustentar existências enquanto não seres, a prática do epistemicídio (SANTOS, 1995) é uma das mais recorrentes e que mais colaboram na criação de uma representação de diversas existências enquanto desprovidas dos traços atribuídos tipicamente ao Sujeito; já que o Sujeito é sempre detentor de conhecimento, o não sujeito deve ser desprovido de conhecimento (e, portanto, de racionalidade, cultura, civilização). O apagamento e a desqualificação de saberes que compõem o epistemicídio interseccionam-se ao processo de representação, mencionado acima, na elaboração do livro didático e funcionam, portanto, no sentido da manutenção de um dispositivo estrutural de racialidade.

Isso significa que a pós-colonialidade e a decolonialidade – para as quais, inclusive, o papel da língua na construção das estruturas sociais de repressão e desigualdade é patente (FANON, 2008; SPIVAK, 2010; GONZALEZ, 1984) – serão nortes analíticos nesta proposta de pesquisa, dada a constatação dos apagamentos e do tratamento normativo da língua portuguesa supracitados na análise preliminar tecida na seção “Justificativa”.

A divisão constatada, no exemplo da seção anterior, entre uma norma, que é tomada como parâmetro e naturalizada, considerada não marcada, e variantes, consideradas marcadas, no discurso do livro didático, encaixa-se perfeitamente enquanto objeto da crítica por parte da bibliografia selecionada. As categorias criadas pela divisão e o tratamento oferecido a cada uma delas são reflexos claros de um viés racializador, consequência inevitável de um racismo estrutural que é fruto do colonialismo, o qual, em seu âmago, separa os sujeitos entre “homem” e “o não homem”, língua “certa” e língua “errada”, língua “padrão” e “variante”. Dessa forma, na pesquisa aqui proposta poderá haver consequências para se pensar como a branquitude perpetua uma ideologia e uma versão de língua “neutra”, que opõe implicitamente uma “gramática” (as regras e usos da “verdadeira” língua, que é “não racializada”) a “variantes” (formas menores, racializadas, “peculiaridades”, adendos à língua “real”, formas satélites) ‒ “nós temos a língua, eles têm as variantes”.

Essas perspectivas de análise aqui mencionadas fatalmente tangerão uma outra, sociolinguística histórica ‒ nos termos de Negrão e Viotti (2012) ‒, no sentido de que se interconectam comunidades linguísticas, conceitos históricos, fatos linguísticos e o pressuposto da existência de um paradigma neutro, humanizador, referenciado por origem e raça, que é justamente o normativo/ocidental/branco.

Dessa forma, o projeto propõe partir do pressuposto de que tanto os atores em jogo (editoras, autores, público – pais, estudantes, mídia) quanto as camadas de significação textual do livro didático, enquanto objeto simbólico inserido no dispositivo de poder, veiculam interesses científicos, culturais e de poder. Sabendo disso, é possível considerar mais uma vez que o exemplo retirado do livro “Português Linguagens” na seção anterior, no qual tacitamente se implica uma diferenciação entre “o português” e as “variantes”, torna patente a necessidade de se atentar não só para a presença ou ausência de um conhecimento científico consolidado, mas também para as minúcias do modo como o tratamento das influências do contato com línguas africanas é tratado.

5. Metodologia

Isso posto, a pesquisa possui base documental e bibliográfica e caráter qualitativo, consistindo na análise de corpus, seleção de material pertinente e em sua descrição e análise, com base na bibliografia descrita acima, na seção “Balanço Bibliográfico”. As imagens digitalizadas dos trechos selecionados serão disponibilizadas, assim como a análise de seu conteúdo.

O corpus consiste nas quatro coleções do Guia do PNLD de 2020 mais escolhidas pelas escolas brasileiras, as quais, após levantamento9, são elencadas abaixo:

1) “Tecendo Linguagens”, de Tânia A. Oliveira e Lucy A. M. Araújo. Editora IBEP, 2018 (3.130.393 exemplares solicitados);

2) “Se Liga na Língua: leitura, produção de texto e linguagem”, de Cristiane Siniscalchi e Wilson Ormundo. Editora Moderna, 2018 (2.399.516 exemplares solicitados);

3) “Apoema”, de Lúcia Teixeira, Silvia M. de Sousa, Karla Faria e Nadja Patresi. Editora do Brasil, 2018 (2.112.169 exemplares solicitados);

4) “Geração Alpha – Língua Portuguesa”, de Cibele L. Costa e Greta Marchetti. Editora SM, 2018 (1.776.874 exemplares solicitados).

O recorte proposto de material justifica-se pelo período de escolaridade escolhido, já que os Anos Iniciais do Fundamental são voltados à alfabetização, assim como por ser viável a análise no período previsto para uma pesquisa de mestrado. Por declinar também da análise das coleções do Ensino Médio, o material resultante para análise não será excessivo.

A seleção, a descrição e a análise do material recolhido terão como norteadores uma série de questionamentos:

1. Constam, nos exercícios e trechos informativos, informações sobre o contato linguístico e seus resultados no material?

2. A que âmbito linguístico (léxico, fonologia, morfologia, sintaxe) pertencem os exemplos resultantes do contato linguístico ou os comentários a respeito deles presentes no texto dos materiais didáticos?

3. Como possíveis traços, lexemas, construções sintáticas, entre outros, que sabemos estarem associados ao contato linguístico, têm sua origem explicada?

4. O papel do contato linguístico é tratado propositivamente (em declarações nos textos explicativos, em atividades no livro) ou implicitamente (nas seções de análise linguística/gramática a norma é tratada como paradigma ou usos comumente atribuídos ao resultado do contato são abordados como erros)?

Por meio dos questionamentos norteadores elencados acima, procuramos esclarecer:

I) Se há uma ausência dos conhecimentos produzidos pela LC ocorrendo no material didático;

II) Se a influência de línguas africanas mencionada pelos referidos materiais se restringe ao léxico;

III) A visão de contato que subjaz a esses materiais;

IV) Se usos e traços derivados do contato com línguas africanas estão sendo abordados pela negatividade, enquanto erros, nesses materiais, o que gera consequências em seu conceito de gramática e norma.

Analisar as seções prescritivas de gramática nesses livros didáticos é essencial para verificar: 1. se há menção a traços que costumam ser associados às “heranças africanas” ou como essa menção é feita; 2. se há uma associação clara, porém tácita, de que os “erros de português” são exatamente as marcas dessa herança.

Alguns pontos previstos na BNCC que podem potencialmente apresentar o conteúdo da LC pela “negatividade” nos livros são os exercícios sobre concordância nominal e verbal, formação de palavras, ortografia, termos da oração (como o sujeito pode se efetivar no uso), vozes verbais ativa e passiva, uso de pronomes oblíquos e de verbos impessoais, entre outros (BRASIL, 2017, p.170-191). Isso porque costuma haver nos materiais didáticos prescrições que preconizam um único uso como o correto ao ensinar sobre esses conteúdos elencados, a saber, o uso da norma-padrão.

Por exemplo, poderemos verificar se nas seções sobre verbos, orações impessoais e voz passiva chega a ser mencionada uma forma de impessoalização muito comum no português do Brasil, como em “meu cabelo está há meses sem cortar” e “a meia está lavando”, na qual um verbo transitivo traz somente seu argumento interno, na posição de sujeito. Essa construção é associada por Negrão e Viotti (2014) a uma influência do quimbundo, uma das línguas africanas que mais tiveram falantes no Brasil. Detectando ou não tal presença nessas seções, será possível ter em mente se ocorre ou não um apagamento dessa hipótese e analisar, por meio do arcabouço teórico aqui apresentado, o modo como é trazida tal informação, caso ela o seja.

6. Agradecimentos

Agradeço ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa, assim como à Universidade de São Paulo, que por meio do Departamento de Linguística me acolhe como sua aluna, assim como a meu querido orientador, Alexander Yao Cobbinah.

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Como Citar

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