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Relato de Pesquisa

O processo de rememoração como estratégia da política de retomada do Nheengatu no Baixo Tapajós

Sâmela Ramos da Silva Meirelles

Universidade Federal do Amapá image/svg+xml

https://orcid.org/0000-0001-7134-9355


Palavras-chave

Retomada Linguística
Rememoração
Nheengatu
Povos do Baixo Tapajós

Resumo

Este texto discute a retomada do Nheengatu a partir da análise do processo de rememoração, constituinte de um amplo conjunto da política de retomada que reinsere o Nheengatu como língua étnica no cenário sociolinguístico do Baixo Tapajós. Nossas discussões partem das reflexões, discursos e memórias que foram gerados junto com nossos/as interlocutores/as por meio de uma metodologia colaborativa, no qual a produção de conhecimento foi construída coletivamente em entrevistas e oficinas, que enfatizam a perspectiva que eles/as têm sobre as ações que o movimento indígena e suas organizações construíram, desde o final da década de 90, com o início da mobilização étnica. O processo de rememoração fornece condições para o estabelecimento de uma consciência sobre os continnum socioculturais e linguísticos referentes ao Nheengatu e que se materializam nos recursos linguísticos e nos modos de vida ancestral persistentes. Se configuram como uma rede de saberes que mobilizam fenômenos linguísticos dinâmicos e complexos por meio da resistência e insurgência social e política, da rememoração e da retomada do Nheengatu no Baixo Tapajós.

Resumo para não especialistas

Este é um trabalho que discute a memória como uma estratégia política para retomar a língua Nheengatu na região do Baixo Tapajós, oeste do Pará. Para atingir esse objetivo, realizamos entrevistas e oficinas com nossos colaboradores, indígenas dessa região. Nessas entrevistas e oficinas enfocamos questões que envolvem as memórias que eles têm sobre o uso dessa língua e como essa memória tem sido usada para afirmar a persistência do Nheengatu. O processo de rememorar o uso da língua Nheengatu tem sido fundamental na retomada dessa língua, e demonstra como as culturas indígenas se mantêm nos modos de vida dos povos do Baixo Tapajós.

Primeiras palavras

Este artigo é uma parte da discussão realizada em nossa tese de doutorado intitulada “A reinscrição de uma língua destituída: o Nheengatu no Baixo Tapajós” (SILVA MEIRELLES, 2020). Neste texto, adentramos na discussão da retomada do Nheengatu pelos povos do Baixo Tapajós a partir da compreensão do processo de rememoração. Discutimos um conjunto de memórias que recolocam o Nheengatu como língua étnica em um cenário sociolinguístico tido como monolíngue em português, por meio de uma ação política que confronta os discursos de extinção e de silenciamento de coletividades e epistemologias indígenas com a política de retomada dessa língua.

Metodologicamente, nossas discussões partem das reflexões, discursos e memórias que foram gerados junto com nossos/as interlocutores/as por meio de uma abordagem colaborativa, na qual a produção de conhecimento foi construída coletivamente em entrevistas e oficinas, que enfatizam a perspectiva que eles/as têm sobre as ações que o movimento indígena e suas organizações construíram, desde o final da década de 90, com o início da mobilização étnica.

Ações de fortalecimento, (re)vitalização, retomada de línguas indígenas têm sido localizadas como políticas linguísticas indígenas, conduzidas pelos próprios povos, e se multiplicado pelo Brasil (RUBIM; BOMFIM; SILVA MEIRELLES, 2022). Pesquisadoras indígenas, tais como Rubim (2016), Bomfim (2017), Puri (2020) e Silva Meirelles (2022) têm desenvolvido trabalhos que abordam ações de (re)vitalização e retomadas de línguas indígenas, e se norteiam por uma perspectiva que diz respeito ao enfrentamento de um processo histórico de ameaças de identidades, e que quando falamos em políticas linguísticas indígenas, também estamos falando de saúde, educação, territórios indígenas, e que preservar, fortalecer e retomar as nossas línguas originárias é também atuar na garantia do amanhã dos nossos povos.

As políticas de retomada são, portanto, parte dessas políticas indígenas que têm como objetivo reaver línguas destituídas, que não são mais faladas, mas das quais se tem alguma memória ancestral ou registro escrito (BOMFIM 2017; PURI et al. 2020; SILVA MEIRELLES, 2020).

Nosso ponto de partida está relacionado à existência de uma memória do Nheengatu[1] resgatada e/ou acionada nos processos de autoafirmação étnica no Baixo Tapajós. Com o decorrer da pesquisa de doutorado (SILVA MEIRELLES, 2020), das reflexões sobre o material levantado em campo e em outros espaços dessa convivência com o Movimento Indígena no Baixo Tapajós, compreendemos a operação de um projeto político de retomada de uma língua destituída. O Nheengatu é retomado como língua ancestral, cuja memória de um repertório linguístico é acionada e se realiza por meio da rememoração de práticas linguísticas e socioculturais, e que apontam para uma outra proposta de vida e de existência no Baixo Tapajós. A política de retomada implementada na região por esses povos se constitui em uma outra proposta de percepção sobre o uso de suas práticas linguísticas, que recoloca em cena línguas indígenas tidas como sem falantes na região.

Para abordarmos tais questões, este texto se divide em três partes: a primeira discute o processo de rememoração do Nheengatu e os discursos que estabelecem essa língua como ancestral no Baixo Tapajós; a segunda aborda a relação entre a mobilização étnica no Baixo Tapajós e a retomada do Nheengatu; e a terceira apresenta um breve panorama histórico de ocupação indígena e a mobilização étnica no Baixo Tapajós.

1. O processo de rememoração: Nheengatu, a “língua mais próxima de nós”

A região do Baixo Tapajós, localizada no oeste do Pará, compreende os municípios de Santarém, Belterra e Aveiro. Desde o final da década de 90, essa região tem sido palco de um amplo processo de retomadas indígenas que foram conduzidas por comunidades, antes categorizadas como “ribeirinhas” ou “caboclas”, que se mobilizaram em torno do reconhecimento étnico e da demarcação de suas terras. Esse cenário de reivindicações políticas e identitárias, articulam a retomada de identidades e de línguas, desestabilizando o cenário sociocultural e linguístico nessa região.

Como subversão de cenários sociolinguísticos, a retomada linguística no Baixo Tapajós reinscreve duas línguas ancestrais no ambiente sociocultural da região, o Nheengatu e o Munduruku[1]. Tratamos apenas do caso que envolve o esforço linguístico para o estabelecimento do Nheengatu como língua étnica reivindicada por 10 dos 14 povos indígenas[2] do Baixo Tapajós. Ao mesmo tempo, dialogamos com as concepções que os próprios povos dão a esse processo de retomada do Nheengatu como língua étnica, que apresenta um repertório latente, com elementos menos ou mais usuais, ou na memória dos antigos que eles/as têm acionado como estratégia política na retomada linguística.

Vaz Filho (2010), desde 1994, ao se encontrar com o pajé Laurelino, registrou uma série de relatos a respeito da sua “indianidade” e suas práticas de cura. Pajé Laurelino já era um curador conhecido no Baixo Tapajós, mas foi por meio desses registrados e pelas memórias mobilizadas neles, que Laurelino se tornou uma personagem fundamental para a mobilização étnica, assim como Mirandolino ou Merandolino Cobra Grande, outro curador conhecido na região do rio Arapiuns, rememorado como símbolo da ancestralidade (IORIS, 2005; VAZ FILHO, 2010). Mahalem de Lima (2015, p. 157) afirma que

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[...] a figura de Mirandolino também cumpriu uma posição de destaque nos processos de “valorização da cultura”, ocorridos em Takuara, Bragança e Marituba (Flona do Tapajós). [...] Mirandolino descrito por muitos como o “último grande sacaca de nascença do Arapiuns”. [...] Nos rituais em volta da fogueira desenvolvidos pelo movimento indígena do Baixo Tapajós e Arapiuns, os participantes recitam em canto os nomes de Mirandolino e Laurelino.

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Em 1997, quando o Grupo de Consciência Indígena[1] se consolidou como importante articulador da história e memória local, o levantamento de relatos e histórias orais entre as comunidades dos rios Tapajós e Arapiuns passou a ser uma atividade central para os militantes indígenas. Desde sua criação, os fundadores do grupo já construíam novos regimes de memória: um dos objetivos era “resgatar” as origens, o passado, a identidade e elementos da “cultura indígena”. Assim, a atuação do GCI e a do antropólogo indígena Florêncio Vaz Filho são primordiais no levantamento das memórias orais que visavam “resgatar a cultura e identidades indígenas”. Agora, anos mais tarde, os elementos levantados por eles dão subsídios e são também revisitados e atualizados. Nos relatos que suscitamos na pesquisa, emergem expressões como “a língua que meus avós/avôs falavam”, “eles falavam e a gente não entendia”, como esse excerto, coletado por Vaz Filho (2010) demonstra:

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[...] Dona Maria de Jesus falou: “minha avó falava a língua, dizia ‘arikatu, arikatu!’ que quer dizer ‘rápido!’. Por isso eu sou índia”. Em geral, diz-se apenas que eles falavam, e a “gente não entendia”, ou, como escreveu Karina Canêdo (2004, p. 13) sobre o que ouviu em Novo Lugar: Relataram que os mais velhos não falavam o Português direito [...] (VAZ FILHO, 2010, p. 234).

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Destacamos desse trecho “minha avó falava a língua” e “gente não entendia”, pois são enunciados que rememoram práticas linguísticas de seus antepassados, assim como na comunidade de São Miguel, quando a senhora Nadir Castro nos relatava: “minha vó, minha mãe falava palavras em uma linguagem que a gente não sabia o que significava”. Essas rememorações são constantes e retomam uma prática linguística ancestral, que o projeto de mobilização étnica foi reunindo e reelaborando como memória de uma língua ancestral no Baixo Tapajós.

De outro modo, o trecho também demonstra que nas práticas linguísticas que se referem aos antepassados, “minha avó falava a língua”, há elementos que não se entendia, mas também há: “arikatú [...] que quer dizer rápido”. Há elementos que estão na superfície, pois ainda fazem parte do repertório linguístico atual, mas há outros que não se consegue acessar, que são aqueles que “a gente não entendia”.

Nesse escopo, Mahalem de Lima (2015) menciona expressões como “fala dos antigos” e “linguagem dos antigos” que marcam os relatos e as reflexões desenvolvidas pelos próprios indígenas no processo de retomadas. Esse autor, ao tratar das relações interpessoais na região do rio Arapiuns, destaca dois termos, cuianema e xerimbabo[1]. De acordo com Mahalem de Lima (2015), seus interlocutores/as “pensam termos como cuianema e xerimbabo como formulações de tipo arqueológicas que lhes servem para ativar memória e recuperar o tempo precioso em que os tratos cotidianos se passavam usualmente em torno destas categorias” (MAHALEM DE LIMA, 2015, p. 334).

O professor Gedeão Arapium, outro dos nossos interlocutores, afirma que a escolha estratégica pelo Nheengatu como língua étnica no Baixo Tapajós está estreitamente relacionada com a memória e a persistência de elementos linguísticos que compõem o repertório linguístico das comunidades.

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A língua mais próxima de nós, da nossa geração, porque nossos pais e nossos avós sabiam, e ainda sabem até hoje, os que estão vivos [...]. É o que o pessoal fala, que tá no nome das comunidades, no nome das coisas, tá na piracaia, nos peixes, quando a gente começa a descobrir um monte de pirá, peixe, né. Pirarucu, pirapitinga, piranha [...].

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Segundo Gedeão, a sua motivação para estudar e conhecer mais a língua ancestral tinha relação com esse repertório: “[...] na minha região a gente sempre falava, né, palavras soltas, mas se falava, minha mãe falava...é Nheengatu, minha avó sabia, só que ele não foi passado pra nós, o Nheengatu não foi mais passado pra nós, mas elas falavam”.

João Tapajós, outro interlocutor e liderança do Movimento Indígena, também nos relata sua experiência: “Meu avô materno e minha avó paterna falavam e os pais deles também. Era comum ouvir relatos dos meus avós e bisavós de como eles utilizavam o Nheengatu. Sempre usavam a gíria [destaque feito pelo entrevistado] quando estavam com raiva dos filhos e queriam xingá-los”.

No relato de Jonas Tapajós, jovem indígena, os conhecimentos de Nheengatu produzidos por meio do Curso de Nheengatu (importante ressaltar que ele fez o Curso de Nheengatu[1] 2015-2016) proporcionam a reflexão sobre elementos linguísticos e servem como acionamento de memória também.

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Meu próprio avô falava uma língua que, segundo ele, aprendeu com meu bisavô. Ele lembrava todos os cumprimentos, simulava diálogos sobre alguns assuntos. Do pouco conhecimento que tenho do Nheengatu, arrisco-me a dizer que era o Nheengatu falado na época do meu bisavô porque a semelhança entre a pronúncia era absurda, mudando muito pouco do Nheengatu reestruturado depois das ações.

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A professora Michele dos Anjos também faz uma reflexão similar à de Jonas Tapajós. Ao destacar as palavras e expressões usadas por sua avó, enfatiza que, a partir do Curso de Nheengatu (2014-2016), começou a rememorar essas expressões e entender que se tratava de uma referência ancestral, de uma “palavra indígena”.

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A minha avó tinha muita mania de chamar a gente de kunhã muku. Eu não sabia o que que era. Ela dizia: ei, kunhã muku. Então, assim, depois que eu comecei a fazer o curso é que eu fui saber que kunhã muku é moça. Assim, questão de kurumi, kunhantã, que a gente fala muito, né. Tem um rato...sayuá. A minha avó falava muito em sayuá. Aí conforme eu fui aprendendo, eu fui saber que é um rato, um rato do mato, né. Assim, muitas palavras que a gente até não percebia, né, como era costume dos nossos avós a gente nem levava em consideração em saber de onde surgiu aquela palavra, se era uma palavra indígena...Aí, a partir do momento que você começa a estudar, você começa a abrir a sua mente pra muitas coisas, né.

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Essa professora destaca que começar a estudar pode “abrir a sua mente para muitas coisas”, ao ponto de se atentar para “muitas palavras que a gente até não percebia”, mas que era parte de um repertório linguístico ancestral que, a partir da rememoração, tem se acionado. Durante a entrevista com a professora Márcia Amâncio, ela nos relatava que o Nheengatu está presente em sua vida desde o seu nascimento pela forma como seus avós/avôs falavam.

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Nossos avós já traziam com eles, no caso, já vinha deles isso. Mas não era uma coisa assim diretamente, porque como nos foi arrancado nosso direito de usar nossa língua, já era usado como uma língua como o português. Mas como eu acho que não tinha nomes para ser usado, no português, no caso, entrava o Nheengatu, sem eles perceberem, né?

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Nesse excerto, a professora também expõe sua perspectiva sobre as práticas linguísticas como continuum, quando afirma que “os nomes” em português e Nheengatu estão amalgamados, pois quando “não tinha nomes para ser usado, no português, no caso, entrava o Nheengatu”. Há uma menção também ao processo de deslocamento linguístico, quando afirma que “foi nos arrancado nosso direito de usar nossa língua”. Essa reflexão é latente nas práticas discursivas do Movimento Indígena no Baixo Tapajós.

Esses fragmentos de memória como os de Gedeão, João, Jonas, Michele, dos militantes do GCI e de outros/as indígenas, fazem parte da “arquitetura memorial” que constitui, na sua totalidade, a memória da língua geral, da gíria (mesmo sendo uma forma pejorativa, encontramos esse termo em alguns relatos também, como em Silva [2013]), e do atual Nheengatu, Nheengatu Tapajowara, demarcando suas especificidades. Exemplo disso é a forma yané kuema, que, segundo Gedeão, era a forma para se cumprimentar com um bom dia. Ele ressalta que alguns professores que vieram ministrar as primeiras oficinas de Nheengatu no Baixo Tapajós (trataremos disso na terceira seção) ensinaram puranga ara, mas que já existia uma forma amplamente usada.

A forma de saudação que essa memória conserva foi também registrada por Tastevin (1923, p. 615) e por Stradelli ([1929] 2014, p. 453). Stradelli menciona iané coéma, a forma utilizada logo pela manhã e até o meio dia. A partir do meio dia se utilizaria iané ara, e a partir da tarde “quando o sol já baixo está para deitar-se, se usa iané caarucás. Depois do sol posto e pela noite adeante, quando alguém se despede – iané pituna”.

Outro exemplo dado por Gedeão como rememoração de práticas linguísticas do seu cotidiano na comunidade é a expressão takaú:

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[...] tinha uma expressão que a minha mãe sempre falava, que a avó também usava quando eles tavam na roça. [...] quando a criança tava chorando, elas sempre diziam: “cala boca que lá vem o takaú - uma coisa assim - takaú, takaú, olha o takaú. Misturava o português já com o Nheengatu: olha o takaú. Os meninos não sabiam o que era, mas se calavam, né, mas elas sabiam o que era. E a minha mãe também sempre falou isso, sabia pra que servia a expressão, mas não sabia o que significava a palavra, né? A palavra em si. E aí, eu vim descobrir estudando Nheengatu o que é. Na realidade, era os bêbados, quer dizer, foi aí que eu fui entender...porque o pessoal ia para os roçados e eles estavam [....] e quando eles voltavam do mato, eles vinham todos embriagados, tomando tarubá essas coisas, e a expressão takaú era isso, os bêbados, os porre...e eu custei a descobrir isso, o porquê takaú.

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Sobre a expressão takaú, o relato acima repercute algumas reflexões sobre continuum linguístico, quando afirma que aquela prática linguística “misturava o português com o nheengatu”. Dentro daquele contexto comunicativo, como ele mesmo ressalta, as crianças, apesar de não saberem exatamente o que significava, se calavam. Inclusive, ele mesmo, depois que começou a estudar Nheengatu, começa a compreender que dentro daquele contexto significava um chamado de atenção para “os bêbados” que estavam vindo na direção deles. Gedeão Arapium afirma que a expressão era corriqueira, pois sua mãe “sempre falou isso”, embora soubesse o que significava dentro do contexto, ele conclui que ela não sabia o que “significava a palavra”.

O professor Gedeão Arapium também organizou, quando era coordenador do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), oficinas nas comunidades. De acordo com Gedeão Arapium, nas oficinas “os mais velhos, eles descobrem cada coisa, eles descobrem coisas que eles falam há muito tempo e eles não sabiam o que era, mas que usa no dia a dia. E eles ficam maravilhados”. Ele afirma que “levar pra comunidade, é importante tá na escola por empoderamento, mas não vale está só na escola, tem que estar na comunidade”.

Essa última afirmação se coaduna com a reflexão do professor indígena Luã Apyká, da etnia Nhandeva/Guarani-Tupi, na qual afirma que “estamos perdendo a linguagem porque se perdeu essa conexão entre os anciãos e as crianças”. Para ele, a retomada linguística não deve ser um projeto apenas da escola, mas de políticas linguísticas da comunidade, e outros espaços e eventos sociais devem ser retomados, como a “casa de reza”, espaço espiritual muito importante para os Guarani. Luã Apyká citou como exemplo a retomada de um dos caminhos antigos em seu território que seu povo já não fazia há 40 anos, e foi revisitado com os/as estudantes indígenas em uma das atividades da escola. Para ele, aquela caminhada permitiu que as crianças acessassem muitos conhecimentos, inclusive linguísticos.

Assim, as oficinas que envolvem toda a comunidade propiciam o encontro de gerações, despertam conhecimentos que estavam quase esquecidos ou adormecidos. Sobre isso, Gedeão Arapium narrou a seguinte situação em uma das oficinas que realizou:

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[n]uma dessas idas pras aldeias, alguém falou Irusanga, igarapé[1] do Irusanga. aí eu fiquei: como é que é o nome? Igarapé do Irusanga. O que significa? Eu não sei, é o nome do igarapé, ele disse. Então, ele não sabia o que significava [...]. As pessoas falavam nome de lugares como se fosse da língua portuguesa, mas elas não sabem o que significam as palavras.

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As oficinas são atividades que proporcionam o acionamento de memórias, acionamento de conhecimentos que não eram reivindicados como língua ancestral e passam a ser. Essa rememoração, provocada por essas atividades de estudos de gramática e reflexão a partir de lista de palavras, conduz ao acesso de conhecimentos linguísticos que também estão vinculados a significações culturais e modos de pensar que persistem, mesmo que em híbridos, ou formas mais remotas, mas latentes, em alguma medida.

O topônimo Irusanga, mencionado no relato de Gedeão Arapium, também foi citado por Enilda Borari quando nos relatou o lugar de origem de seu pai. O lugar chamado Irusanga, mencionado por ela, estava localizado na região próxima à praia de Pindobal, alguns quilômetros de Alter do Chão, rio Tapajós. O significado dado a ele é lugar frio. Faz sentido o nome do igarapé ser Irusanga, pois as águas dos igarapés são frias. A toponímia também é um aspecto que tem sido rememorado.

Sobre as “formulações de tipo arqueológicas” (MAHALEM DE LIMA, 2015), trazemos algumas reflexões[1] que constituem “mecanismo” de ativação de memória de um repertório linguístico não usual, ou mais remoto. Durante uma das aulas de Nheengatu (curso realizado em 2016-2017), o termo urupé, quando abordado pelo professor, chamou atenção de duas alunas que o identificaram a uma expressão que sua avó utilizava: “[...] lembra que a vovó falava urupé?”. O item lexical, que foi abordado em uma lista de palavras, foi identificado pelas alunas que lembraram de imediato da palavra do seu convívio na comunidade, mas só relacionaram seu significado quando o professor explicou o que significava, uma espécie de cogumelo.

Para iniciar essa discussão, apresentamos dois vocábulos que foram identificados como expressões ligadas a “fala dos antigos”, como já dissemos acima. Podem ser categorizados como parte da memória que os/as alunos/as acionaram por terem ouvido, mas que não identificaram como parte do seu repertório atual. Observemos os significados e seus usos no quadro abaixo[2].

Figure 1. Quadro 1 – Expressões dos “antigos” Fonte: Elaboração própria.

O primeiro vocábulo, arikatu, certamente composto de ari + katu; não foi encontrado com essa acepção (ligeiro ou rápido) no Tupi do Leste (vocabulário de Lemos Barbosa [1951]), nem no Nheengatu de Stradelli, nem no de Gonçalves Dias e nem no Tupy (Nheengatu) do Pe Tastevin. Neste último, porém, encontramos a acepção “tomar, apanhar, pegar” para ari; e katu, como sabemos, pode ser “bom”, mas também “bem”. O uso dado para arikatu foi relacionado a algo que se faz de forma rápida. Interessante que, durante a oficina realizada em Pinhel, arikatu apareceu, espontaneamente, enquanto estávamos na casa da senhora Marilza Santiago. Quando começou a chover, ela gritou para seu neto: arikatu, arikatu, tira a roupa da corda, kurumĩ. Como não foi uma palavra encontrada em nenhum dos vocabulários, é razoável dizermos que se trata de uma expressão de especificidade local, Nheengatu Tapajowara, como alguns já designam na região. Na citação de Vaz Filho (2010), o termo arikatu apareceu como memória de Dona Maria de Jesus durante uma oficina de Nheengatu, na aldeia de Muratuba no ano 2000.

O segundo exemplo, ẽẽ e eré, duas formas que expressam concordância com algo. Como uma das metodologias de trabalho com o léxico, os professores Baniwa (novamente em referência ao curso de Nheengatu entre 2016 e 2017) apresentavam listas de palavras agrupadas pela letra que iniciavam. Ao final do curso, os professores sugeriram a elaboração de uma lista de palavras que os/as alunos/as consideravam ter relação com o Nheengatu.

A apresentação desse vocabulário foi uma atividade fundamental para observar como os/as alunos/as relacionavam algumas delas ora a seu repertório linguístico, ora a um repertório mais remoto, mas que tinham alguma lembrança por terem ouvido e reconhecerem seu contexto de uso. Assim, quando essas duas formas foram expostas, os alunos compreenderam seu significado e repetiram ẽẽ, pois construíram relação com sua aplicação e reconheceram seu uso atual.

Na oficina que realizamos em São Miguel, rio Arapiuns, o uso dessas duas expressões apareceu. A senhora Nadir Castro destacou que eré era uma forma que a sua bisavó falava sempre. Quanto ao ẽẽ, ela confirmou ser uma forma de resposta, explicando o uso a partir da situação: “eu não quero responder, eu falo ẽẽ, as mães da gente falava assim”. Na oficina que fizemos em Pinhel, a senhora Darci Oliveira afirmou: “eré é língua indígena sim, meu avô falava essas palavras em Nheengatu”.

Como já demonstramos no quadro acima, tornou-se comum durante esse curso, os/as alunos/as dizerem que conheciam tal palavra, o que significava, seu contexto de uso, relacionar com expressões que tinham ouvido de seus familiares, e que ainda compõem o repertório linguístico, mas que outrora não era relacionado com o Nheengatu.

Outro relato colhido por Vaz Filho (2010, p. 270) exemplifica a percepção da presença do Nheengatu no repertório linguístico. A partir das oficinas com os indígenas Baré e Baniwa, essa identificação é cada vez mais constante. Segue o relato de Vitor Fernandes, aldeia Taquara:

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Há muito tempo a gente já falava o Nhengatú. Várias palavras como nomes de lago, de animais, de árvores, tudo isso a gente já falava, só não sabia o quê significava. Por exemplo, o nome de um lago, “Piraquara”, se falava, não se sabia o quê era. Através do curso, só veio dizer o quê [sic] era, porque a gente já falava e fala, falava o Nheengatu. Então, só veio contemplar (VAZ FILHO, 2010, p. 270).

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A professora Márcia Amâncio também reflete sobre a identificação do repertório linguístico a partir do Curso de Nheengatu, pois, segundo ela, antes “não se dava conta que eram palavras em Nheengatu”.

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Eu consigo identificar várias palavras que a gente já usava no dia a dia, meus avós, minha sogra, meu sogro, no caso. Palavras que a gente usava diariamente e não se dava conta que eram palavras em Nheengatu, como por exemplo, o xibé, o puxirum, peixe no tucupi. Então, várias coisas, assim... que a minha sogra sempre tem uma palavra que eu sempre admiro de ver ela falar...é... “anda, kurumĩ...é...arikatu”. Ela sempre usa essa palavra arikatu, arikatu. Mas aí eu dizia: o que significa isso? Olha, isso aí significa: kurumĩ, arikatu, arikatu, quer dizer: anda, menino, depressa, me ajuda. Então, eram situações que eles usavam para mostrar, para expressar. No caso, eles não tinham outro jeito de chamar e eles usavam essas palavras...e até hoje ela usa. Às vezes, até as minhas sobrinhas começam a sorrir, porque às vezes ela solta cada palavra ali que a gente fica de boca aberta de ver aquela situação. Então, a gente ainda tem muita coisa, tem várias que no momento eu não tô lembrando, não tô lembrando agora.

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A memória, ou os fragmentos de memória acionados nesse processo de retomada linguística que ainda está em curso, atualiza o repertório e os recursos linguísticos ao mesmo tempo que mobiliza os sentidos políticos da retomada do Nheengatu nas suas práticas de linguagem. Isso é resistir, renovando e recriando subjetividades, ao mesmo tempo em que estão conectados com o mundo ao redor. Os relatos registrados por Vaz Filho (2010a), pioneiro na pesquisa da mobilização étnica no Baixo Tapajós, identificam esses fragmentos de memória, primeiro a respeito do vínculo ancestral e segundo pela relação das práticas antigas com as práticas de linguagem atuais.

Os fragmentos de memórias do Nheengatu e dos diversos conhecimentos que estão nomeados por meio dele e, por conseguinte, vinculados a ele, expressam as experiências e as epistemes dos povos do Baixo Tapajós e como eles/as elaboram e reelaboram esses conhecimentos. Esses exemplos retratam como o processo de rememoração de práticas linguísticas, de memórias sobre essas práticas nos seus contextos mais antigos ou mais atuais, reafirmam a persistência do repertório relacionado ao Nheengatu. Esse repertório, por sua vez, não pode ser considerado acessório ou mero substrato em nível lexical, visto que ele segue orientando práticas socioculturais e expressa modos de pensar e de se relacionar desses povos.

A respeito da compreensão da dimensão complexa e ampla das ações em torno da retomada do Nheengatu, Jonas Tapajós afirma que

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Estudar o nheengatu não é só aumentar o vocabulário das palavras na língua, é também aprender sobre a história dos nossos povos. O nheengatu tá ligado ao processo de colonização e de resistência dos indígenas, as coisas passam a fazer sentido. Então, sim! Há valorização e contribui para o sentir-se bem em dizer que se é indígena. Mas, na minha opinião, ainda deixa desejar a contextualização histórica do nheengatu por aqueles que trabalham diretamente com o nheengatu nas escolas, por exemplo. Como eu disse, o nheengatu não é só vocabulário é uma parte da nossa história que os livros de história nem sempre contam e quando contam é de maneira parcial.

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Nosso interlocutor lança algumas questões sobre a abrangência das ações políticas por meio da linguagem, em que o estudo do Nheengatu vai além de um estudo formal de língua, ou uma maneira de “aumentar o vocabulário das palavras”, mas surge como estratégia política que revisita o passado, as memórias, na construção do presente e na reinscrição de suas memórias narradas por eles/as próprios/as. Ou seja, “é uma parte da nossa história que os livros de história nem sempre contam”.

Nesse sentido, a rememoração tem um papel central nas políticas de retomada. É por meio da rememoração que se ativa a memória e se revisita o passado para tecer o presente, no qual o processo de rememoração se constitui em um ponto de partida reposicionado pela agência indígena no Baixo Tapajós. Desse modo, concebemos a rememoração como parte mobilizadora da política de retomada. Consideramo-la ação contínua que movimenta a política de retomada linguística e mobiliza o passado e constrói o presente.

Ao definirmos retomada linguística, nos referíamos à metáfora do silenciamento das línguas e à denominação “língua adormecida” presente nas práticas de linguajamento no Baixo Tapajós. Não nos parece possível retomar uma língua como ela foi, até porque partimos do pressuposto que as línguas são dinâmicas e mutáveis. Dessa maneira, o acionamento de memórias, a rememoração, não significa reaver um passado como ele foi.

Assumimos aqui a perspectiva de rememoração como o ato de relembrar, ativar uma lembrança, recapitular acontecimentos, pessoas (personagens) e lugares (POLLAK, 1992). Não adentramos na dimensão psíquico-biológica, nem nos processos mentais, cognitivos e perceptivos do processo de acionamento de memórias, pois nos interessa dar ênfase à dimensão sócio-histórica e política da memória como criação coletiva, reflexos de interações no mundo compartilhado, experiências vividas e construídas coletivamente, mesmo que individuais, em alguma medida.

Consideramos a rememoração como ação coletiva que mobiliza memórias, por isso adotamos o conceito de memória coletiva (HALBWACHS, [1990] 2006), como fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes. Assim, ao tomarmos a rememoração como processo, concebemos a memória não como reconstrução exata do que foi/passou, mas como um produto contingente, relacional, porque é um fenômeno sócio-histórico e político. Não se trata, assim, de uma recordação de coisas decoradas, ou a recuperação de representações exatas do passado, mas traz elementos desse passado que se molda às vivências atuais.

O processo de rememoração é construído por coletividades, ele não é autossuficiente, visto que é fruto de uma ação coletiva. Assim, a memória é constituída de um tecido sócio-histórico produzido ao interagirmos com as lembranças, mas também com os esquecimentos daqueles elementos que não conseguimos acessar. Essa memória coletiva da qual tratamos é a memória tecida oralmente, fonte fundamental no processo de mobilização étnica no Baixo Tapajós. Como argumentamos, os primeiros militantes do Movimento Indígena local elegeram a memória dos antigos como fonte que nortearia a mobilização étnica. Colocaram o processo de rememoração como esteio de seus projetos político-identitários.

Segundo Ioris (2019, p. 44), a autoafirmação indígena articulada pelos povos indígenas produz uma contra narrativa à historiografia oficial, ao recolocar “os indígenas na história, e na historiografia no baixo Tapajós como um processo de construção de um novo regime de memória [...]”. Assim, está em curso, há mais de vinte anos, a construção de um “novo regime de memória” no qual os próprios indígenas são “artífices”, negando a historiografia oficial e o discurso hegemônico que reproduz: a) concepção de extinção dos povos indígenas na região e b) a invisibilidade da presença indígena nas práticas culturais locais.

O novo regime de memória reerguido por meio das narrativas orais que os povos do Baixo Tapajós acionaram se contrapõem a uma memória histórica. Faz isso declarando sua (re)existência, e inscrevendo sua história erigida da memória dos antigos. O projeto político de retomadas, de mobilização étnica desses povos perpassa pelo levantamento do que diziam e o que ainda dizem seus anciãos e anciãs, sobre o que lembram seus pais, mães, avôs e avós, sobre como refazem os tecidos da memória coletiva.

Na perspectiva do Feminismo Comunitário[1], a recuperação de memória é um dos eixos centrais na ação política “transgressora, transformadora e criadora” (CABNAL, 2010). O caminho de lutas e resistências já foi percorrido pelas antecessoras, é necessário partir “da memória cósmica corporal das ancestrais, para ir tecendo a própria história” (CABNAL, 2010, p. 22). Para as feministas comunitárias, é fundamental rememorar as memórias próprias das rebeldias, das lutas e resistências que construíram as ancestrais contra o sistema colonial e até mesmo pré-colonial. Assim, a memória, enquanto categoria, é entendida como

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as raízes das quais viemos, que são únicas, são próprias daqui; é toda essa força e energia que constrói nossa identidade desde antes que nascemos. E a memória que nos enlaça com as antepassadas, é essa forma da vida que se há dado nossas terras [...]. A memória nos conta dos saberes de nossas avós, tataravós, valiosos aportes técnicos, biotecnológicos e científico que elas fizeram a nossos povos e a humanidade. Saberes na construção de casas, a segurança alimentar, a alimentação sã, a confecção de roupas, a educação [...], toda riqueza de conhecimentos de nossas ancestrais que hoje temos de recuperar e por nossa parte também produzir outros conhecimentos para o futuro feliz de nossos povos (PAREDES, 2013, p. 115, 116, tradução nossa).

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Como aponta Cabnal (2010), a memória conta saberes ancestrais que estabelecem os vínculos da coletividade, dos conhecimentos dessa outra epistemologia. Segundo as feministas comunitárias, recuperar a memória, rememorar, é uma ação política que pode, inclusive, ser usada para produzir outros conhecimentos, outras possibilidades de “futuro feliz” para os seus povos”. A memória dos antigos é uma chave importante nesse processo de rememoração, ora narrada por eles, ora revisitada pelos filhos/as e /netos/as.

Como processo, a rememoração não está finalizada, pois ela está em contínua produção, revisitação e atualização. Essa é outra chave interpretativa, a memória como uma elaboração, produto de uma capacidade de revisitar acontecimentos, pessoas e lugares. Silva Meirelles (2020) discute que o processo de rememoração faz emergir elementos por meio de acionamento de repertório linguístico e de práticas diversas, elementos linguísticos e os seus significados socioculturais, fundamentais para compreender a rememoração de práticas ancestrais.

O processo de rememoração étnica se confunde com o processo de rememoração do Nheengatu como prática de linguagem anterior, ancestral, mas que também está vinculada a práticas linguísticas atuais. Discutimos aqui somente a rememoração que emergiu e ainda continua emergindo em espaços políticos do Movimento Indígena local sobre as práticas linguísticas ancestrais, “a fala dos antigos”.

2. A relação entre a mobilização étnica e a retomada do Nheengatu no Baixo Tapajós

Quanto aos significados do termo retomada, Pimentel da Silva (2017), a partir da experiência com os projetos desenvolvidos em aldeias por estudantes/pesquisadores/as indígenas do curso de Educação Intercultural da Universidade Federal de Goiás, afirma que se trata de trazer ao debate saberes indígenas historicamente silenciados. Essa metáfora do silenciamento das línguas também foi levantada por Hinton (2001, p. 413), para a qual “muitas línguas no mundo caíram no silêncio”.

Enilda Borari, professora indígena no Baixo Tapajós, tem argumentado sobre o conceito de “língua adormecida”. Para ela, o Nheengatu “não é uma língua que se perdeu, apenas ficou no silêncio no interior de alguns povos, mas que se utilizam de maneira que possam estar lembrando de sua origem”. O conceito de “língua adormecida” aqui é usado em referência ao que emergiu nos dados da pesquisa, e não está vinculado diretamente ao conceito de língua adormecida de Hinton (2001), até porque há muitos falantes do Nheengatu em outras regiões da Amazônia. Neste trabalho tratamos da trajetória dessa língua no Baixo Tapajós, que mostra como a história do Nheengatu é complexa e não pode ser definida sob uma única perspectiva.

A retomada de uma língua entendida como “adormecida” não é sinônimo de “voltar às práticas linguísticas do passado, como elas eram”, isso parece evidente na perspectiva dos povos que têm desenvolvido ações de retomada. Não há volta ao passado nesses projetos, tratam-se de re-existir, re-viver (WALSH, 2009). Isso significa a “reinscrição do passado nas transformações do presente, o passado que a modernidade despojou”[1].

É estratégico, politicamente, para esses povos, definir como intervir e transformar a realidade tendo como parâmetro projetos de retomada, elaborados a partir de processos de subversão de cenários sociolinguísticos impactados pela glotopolítica, cenários nos quais as línguas indígenas estão sendo ou já foram obliteradas. Há de se considerar que contextos sociolinguísticos, resultantes de políticas de deslocamento linguístico, são parte dos projetos coloniais que subjugaram línguas originárias à condição de subalternidade.

Mesmo que a política de retomada esteja intrinsicamente relacionada ao “acionamento de memórias”, principalmente a memória dos anciãos, o processo é dinâmico, relacional, contingente, pois se constitui na interlocução do que se rememora e do que não é possível rememorar, ou seja, dos esquecimentos também. Assim, a retomada linguística vincula-se também a processos de ressignificação, de incorporação de “novidades” e de negociação (SILVA MEIRELLES, 2020).

Há, no Baixo Tapajós, uma relação intrínseca entre a mobilização étnica e o movimento de retomada linguística, ou seja, eles são constitutivos. A retomada étnica se assenta no reconhecimento de políticas de homogeneização e assimilação da diversidade ao longo do processo colonial e que se perpetua contemporaneamente mesmo com o fim desse processo. Questão essa que corrobora a perspectiva dos estudos decoloniais na América Latina, a saber, a perpetuação de uma epistemologia eurocentrada, na qual a colonialidade do poder/saber perdura (CASTRO-GÓMEZ, 2005; MIGNOLO, 2003; 2005; QUIJANO, 1992; 2005), mas não sem resistência.

Tomando esse ponto de vista, enfatizamos a decisão política dos povos do Baixo Tapajós em assumir um projeto de subversão de um padrão hegemônico de subjetividades, de resistir a uma perspectiva de subjetividade “cabocla/mestiça”, para articular um processo de retomadas étnicas em uma região declarada como “área cultural cabocla/mestiça”, reinscrevendo-se como sujeitos dentro de outra lógica de historicização, ou seja, da sua autoinserção na construção de signos que significam sua entrada nessa história regional, construindo uma memória atualizada de seus vínculos étnicos.

A respeito de políticas de homogeneização dos índios, Moreira Neto (1988) o denomina de processo de tapuização, ou seja, a descaracterização e transformação em um índio genérico, “uma sistemática destruição de modos de vida tradicionais, da herança cultural dos grupos, o apagamento de seus mitos, de seus pajés e de suas línguas (...)” (MOREIRA NETO, 1988, p. 36). Bessa Freire (2011, p.184), por sua vez, afirma que há uma relação entre a situação sociolinguística e as categorizações na Amazônia que começa na transição de índios tribais para os aldeamentos, para o qual eram [...] “requisitados como força de trabalho pela sociedade regional, aí encontravam indivíduos de diversas procedências linguísticas, todos eles interagindo em outra língua – a geral – o que implicava práticas bilíngues (LI22-LGA). Adquiriam nova referência identitária, sendo conhecidos como índios “mansos”. Assim, categorias como índio tribal, índio manso, índio tapuio e índio civilizado estavam ligadas à situação sociolinguística de trânsito entre monolinguismo e bilinguismo. No final do século XIX, esse processo se consolidava no estabelecimento de mais um termo, caboclo, para designar o índio civilizado (BESSA FREIRE, 2011). Segundo Bessa Freire (2011, p. 186), a categoria caboclo é a designação usada para “tapuio ou seu mestiço que já não se exprime no, completamente esquecido, nheengatu materno”, e o significado de “ignorante e rude” (BESSA FREIRE, 2011).

Figure 2. Imagem 1 – Fluxo no uso de línguas na Amazônia Fonte: Adaptado de Bessa Freire (2011).

No Brasil, a partir da década de 70, a norma legal que categoriza o índio, estabelecendo existência jurídica, é o Estatuto do Índio, Lei n. 6.001/1973, para o qual a condição jurídica de índio passa por dois critérios: 1) “origem e ascendência pré-colombiana”; 2) “se identifica ou é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional” (BRASIL, 1973). Ao assim proceder é que a legislação nega a legitimidade de outras concepções de “indianidade” performadas e atualizadas pelos povos.

No contexto dos povos do Baixo Tapajós, é fundamental pontuar a resistência contra o projeto moderno-colonial, que oblitera as subjetividades no Baixo Tapajós, subvertendo a lógica de categorização exógena para assumir o controle sobre suas autoafirmações, seus corpos, suas subjetividades, suas experiências, seus conhecimentos e seus territórios. A retomada linguístico-cultural representa essa subversão, e ela só é realizável pela mobilização étnica.

Desse modo, é fundamental compreendermos, primeiramente, a organização política, a organicidade coletiva dos povos do Baixo Tapajós como responsável pela construção de políticas de retomada linguística. Argumentamos essa relação entre mobilização étnica e retomada linguística a partir de duas frentes: a primeira é a constituição de uma consciência coletiva, na qual subjetividades vão se aglutinando em torno de um movimento de retomada, e culmina na consciência política; a segunda é a constituição da retomada linguística como parte do seu projeto político mobilizado por um processo de rememoração.

Exemplo disso é a atuação do GCI em organizar espaços de discussão da presença indígena, das tradições culturais e da história dos indígenas no Brasil e, particularmente, na Amazônia, propiciando um contexto oportuno para as retomadas que se sucederam e tinham como objetivo conscientizar a sociedade regional da presença indígena quase dissipada na história e discursos locais. Podemos compreender que esse momento embrionário já começava a se construir como uma contra narrativa (IORIS, 2019) diante daquela oficial que dizia não haver continuidades étnicas na região e argumentava a favor de uma categorização que definia essas populações como caboclas/ribeirinhas.

Vaz Filho (2010) enfatiza a participação na “Marcha Indígena dos 500 Anos[1]” como momento impulsionador dos dois aspectos: o desafio de retomar suas línguas ancestrais e a compreensão da necessidade de organização política. Os relatos sobre a participação na marcha circularam com a volta dos representantes e continuam sendo narrados não somente por quem esteve presente, ou quem já havia aderido ao movimento, mas também por quem ouviu falar dele. Os acontecimentos como a mobilização dos indígenas nas comunidades para escolher seus representantes, a primeira grande “aparição” daqueles/as que se autoidentificavam como indígenas na cidade de Santarém e a participação na marcha constituem a memória coletiva desses mais de 20 anos de mobilização étnica.

De um lado, essas memórias narradas, tanto em pesquisas, como a realizada por Vaz Filho (2010), quanto em muitos momentos diferentes, ao longo dos quase dez anos de aproximação/relação que temos com o movimento, estão marcadas também pela violência que sofreram durante a marcha no dia 22 de abril e revelou a face repressiva do Estado brasileiro sobre os povos indígenas que nunca tinham participado de uma manifestação de rua daquele porte. Tais memórias, “que os participantes do Tapajós disseram que nunca esquecerão” (VAZ FILHO, 2010, p. 274), sempre são retomadas quando estão diante de outras violências que têm sido enfrentadas ao longo dessas duas décadas.

Os relatos da marcha também destacam o primeiro encontro que boa parte deles/as tiveram com povos de diferentes etnias. Esse encontro propiciou o contato com outras realidades culturais, com indígenas com formações acadêmicas, lideranças e seus discursos incisivos; possibilitou aprendizagens como a manipulação da tinta de jenipapo para as pinturas corporais, e por último, ressaltamos como as práticas de linguagem em línguas maternas distintas do português também os marcou (VAZ FILHO, 2010). Nesse evento, os representantes do Baixo Tapajós ouviram outros líderes falarem entre si e proferirem discursos nas suas línguas originárias, enquanto eles “falavam somente português”, esse fato reforçou a iniciativa que eles já haviam tido com relação à retomada do Nheengatu. Assim, um mês depois de voltarem da Bahia, destacaram a retomada do Nheengatu como uma ação a ser intensificada.

O GCI e o CITA cumprem o papel de representar e articular politicamente os povos, em primeira instância oferecer subsídios para formação de uma consciência étnica, estabelecendo a ênfase na necessidade de organização social e da luta social enquanto povos minoritários invisibilizados pelo Estado, massacrados pelas políticas anti-indígenas e pelos agentes econômicos que lucram na expropriação de línguas e culturas, e na expropriação de suas terras e seus recursos naturais. Não obstante, o Movimento Indígena no Brasil tem construído uma forte resistência diante do projeto neoliberal, articulando outros movimentos sociais e recebendo apoio de entidades nacionais e internacionais, assim como o Movimento Indígena do Baixo Tapajós tem sido um dos movimentos sociais comprometidos com diversas lutas contra a ação exploratória na região.

O processo de mobilização étnica e de retomada linguística se consolida a partir de espaços formativos que subjazem a consciência de coletividade e política, os quais começaram a se articular logo no início desse movimento de subjetividades indígenas no final da década de 90. A ideia de retomada do Nheengatu foi delineada desde as primeiras ações do Movimento Indígena do Baixo Tapajós e a partir do contato com lideranças indígenas em reuniões, na região e nacionalmente, no qual o desejo em retomar uma língua tida como ancestral passou a ser incluído como um eixo ligado à educação.

Como ação política de insurgência, esse processo se caracteriza como a produção de outras subjetividades, ou seja, da negação da perspectiva que os categorizavam como “caboclos/ribeirinhos”, campesinato tradicional, “de modo a recolocar esses arranjos no âmbito pretensamente mais universalista das sociedades caboclas” (MAHALEN DE LIMA, 2015, p. 129). A construção de novas subjetividades no Baixo Tapajós evidencia um continuum sociocultural e linguístico, que as agências indígenas têm identificado e atualizado por meio da política de retomadas. Essas retomadas estão intrinsicamente ligadas ao agenciamento indígena, que, por sua vez, entendemos como o poder de ação que foi se constituindo pela compreensão desses indivíduos como sujeitos, a partir do seu engajamento político nas demandas da região. A política de retomadas se torna possível pelo engajamento, pela consciência política em torno da vinculação a coletividades.

Os agenciamentos, nesse caso, estão para além de traçar limites e circunscrições, ou identidades étnicas essenciais, como um processo finalizado, mas pressupõem a ação em processos de ressignificação, negociação e atualização. Desse modo, sob o agenciamento indígena, foi erigida a definição de políticas linguísticas que estavam sendo desenvolvidas por povos com o objetivo de reaver suas línguas destituídas, expropriadas, das quais se tinham registros, das quais se tinham lembrantes. Sobre o caso da língua Patxohã, povo pataxó, Bomfim (2017, p. 308), afirma que “no processo de retomada, a língua vai voltando aos poucos, graças à memória de antigas práticas comunicativas vivenciadas, no passado, por esses anciões”.

As retomadas linguísticas são processos heterogêneos, e os povos que estão envolvidos nesses projetos desenvolvem estratégias específicas, particulares, inclusive, porque os cenários sociolinguísticos das línguas indígenas são diversos. Como processo distinto, ele necessita ser caracterizado. Ao caracterizarmos compreendemos sua especificidade, podemos planejar ações centralizadas em objetivos e estratégias, nos recursos necessários e na ampliação da capacidade de interlocução com parceiros não-indígenas. Os sujeitos indígenas têm interferido nos rumos que a sociedade majoritária, suas instituições e a estrutura do Estado brasileiro têm tentado impor às suas subjetividades. E as retomadas linguísticas são resultado desse poder de agência, da constituição dos sujeitos indígenas como protagonistas das suas ações.

3. Tecendo pontes: entre o passado de ocupação indígena e a recente mobilização étnica no Baixo Tapajós

Como mencionado na seção 1, atualmente, os povos do Baixo Tapajós, representados pelo CITA, são constituídos por catorze identidades étnicas: Arapium, Apiaká, Arara-Vermelha, Borari, Jaraqui, Kumaruara, Maytapu, Munduruku, Munduruku - Cara Preta, Tapajó, Tupaiú, Tapuia, Tupinambá e Sateré-Mawé[1]. Esses povos representam uma população de mais de 8 mil indígenas, em 18 territórios.

Figure 3. Mapa 1 – Territórios indígenas no Baixo Tapajós Fonte: Silva Meirelles; Rego, 2020.

Santarém, uma das cidades mais importantes da região do Baixo Tapajós, foi o lugar no qual o padre João Felipe Bettendorf fundou a “Missão dos Tapajós” em 22 de junho de 1661, que abrigava uma numerosa população descrita pela historiografia oficial, e que tinham os Tapajó e os Tupinambá como os povos mais fortes da região, e que mantinham sob sua influência os outros povos (LA CONDAMINE, [1743-1744], 2000; MENENDEZ, 1981/1982). Além da Missão dos Tapajós, fundada pelos jesuítas, os inacianos fundaram no rio Tapajós as seguintes missões: São José dos Maitapús (1722), Iburari (1723), Nossa Senhora dos Arapiuns (1723), que a partir de 1730 passou a ser denominada como Cumaru (DANIEL [1776], 1976) e Santo Inácio (1740).

Rodrigues (1875, p. 131) aponta outros povos que viviam às margens do rio Tapajós: Apaunuariás, Amanajás, Marixitás, Apicuricus, Moquiriás, Anjuariás, Jararéuaras, Apecurias, Cenecuriás, Motuari, Anjuariás, Uarupás, Periquitos, Suariranas, Tapacorás, Cararys, Jacarétapiás, Sapopés, Iauains, Uarapirangas e Mauhés. Para o antropólogo indígena Vaz Filho (2010, p. 93), “os Mawé predominavam na região do Tapajós na década de 1720, e que os primeiros índios aldeados na missão de Maitapús podem ter sido eles, seja com o nome de Gurupá, Mateupû ou Mawé, ou junto a estes povos”. Assim, de acordo com ele, a Missão dos Maitapús, uma das primeiras missões do Baixo Tapajós no sentido de quem desce das cachoeiras, talvez tenha recebido “um grande contingente Mawé após 1725, três anos depois de sua fundação”.

Em meados do século XIX, a historiografia já declarava extintos os povos indígenas no baixo rio Tapajós (IORIS, 2014). O naturalista Henry Bates afirmou que o nome da nação Tapajós não era mais conhecido na região, mas acreditava que alguns descendentes deles viviam nas margens do Baixo Tapajós. Assim como Bates, Spix e Martius (1981), a partir de viagem feita entre 1817 a 1820, registraram a existência de índios que viviam em Santarém ou nos arredores da cidade, em “algumas choças de índios ou de negros, aprazivelmente situadas à beira da praia, tendo ao fundo a luxuriante folhagem da mata” (BATES, 1852, p. 146).

A respeito da chamada “desintegração” e “assimilação” dos Tapajó, por exemplo, Rodrigues (1875) afirma que começa a partir de 1750 por meio de “uma epidemia de cursos de sangue”, e que em 1798, só restariam descendentes dos Tapajó. Noronha ([1768] 1862) registrou ainda que “poucos se recordavam ainda da sua primitiva fala”, e preferiam usar a “língua geral[1]”, mesmo destaque feito por Spix e Martius (1981). A respeito do uso da língua geral, mesmo com a expulsão dos missionários jesuítas das missões, em meados do século XVIII, promulgada pelo Diretório dos Índios (1757), que entre outras coisas proibiu o uso da língua geral, ela continuou sendo bastante usada na Amazônia.

Segundo Bessa Freire (2011, p. 17), “apesar da decisão política, a língua geral continuou crescendo, e entrou no século XIX como língua majoritária da população regional”. Nimuendajú, na década 1920, constata que “a grande maioria dos nomes locais indígenas da região pertence à língua geral, que até hoje em Alter do Chão não está ainda completamente extinta” (NIMUENDAJÚ, 1949, p. 98). Spix e Martius (1981), e outras fontes que mencionamos acima, sintetizaram que etnias diferentes, reunidas nos aldeamentos, nas missões, ou nos arredores da cidade de Santarém, tinham da língua geral como língua comum, pois as línguas originais e mais antigas, de cada etnia, só tinham já seus últimos lembrantes, provavelmente, tamanha foi a força das políticas da máquina colonial.

A política de desintegração das sociedades indígenas, empreendidas pelo período jesuítico, continuou na reforma político-administrativa resultante do diretório pombalino. Sob essa nova administração, missões são elevadas à categoria de vilas: Missão dos Tapajós se torna Vila de Santarém, Missão dos Iburari se torna Vila de Alter do Chão, Nossa Senhora dos Arapiuns se torna Vila Franca, São Inácio se torna Vila Boim, e São José dos Maitapús se torna Pinhel (todos nomes de lugares em Portugal).

Diante da historiografia oficial que dava como extintas as continuidades étnicas na região do Baixo Tapajós, a comunidade de Taquara, localizada na cidade de Belterra, às margens do rio Tapajós, declara publicamente sua identidade indígena Munduruku, depois do falecimento da sua principal liderança espiritual, pajé Laurelino Cruz (IORIS, 2014; SILVA, 2013; SILVA MEIRELLE, 2020; VAZ FILHO, 2010). Em 1998, os moradores de Taquara procuraram a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), na sede da cidade de Itaituba (Pará), para informar que eram indígenas e que estavam reivindicando o seu reconhecimento étnico e a demarcação do seu território como Terra Indígena.

O GCI contribui com a ebulição das retomadas de alteridades indígenas que emergiam com relatos e memórias do que lhes contavam seus avós sobre a presença indígena na região. A partir desse momento, esse grupo organizou uma série de eventos que marcaram os primeiros passos da mobilização indígena na região: a Assembleia da Terra e Tradição, que reuniu comunidades ribeirinhas da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns e os indígenas de Takuara; a I Missa Indígena, que também reuniu comunidades vizinhas em Takuara; e o I Encontro dos Povos Indígenas do rio Tapajós. Tais eventos aconteceram entre 1999 e 2000.

Outro momento importante no início da mobilização foi a “Marcha Indígena dos 500 Anos”[1], no qual participaram indígenas de Taquara e outras comunidades que tinham entrado na mobilização. Na Marcha dos 500 anos, em Porto Seguro (BA), em abril de 2000, 11 comunidades se autoidentificavam indígenas (SILVA; VAZ FILHO, 2018). O contato com indígenas de todas as regiões do país, falantes de línguas originárias, reforçou o movimento de retomada do Nheengatu como língua étnica que havia sido impulsionado pelo GCI nas oficinas dessa língua organizadas por eles, no qual falantes do rio Negro vinham para Santarém para ministrar oficinas (SILVA; VAZ FILHO, 2018). Outro desdobramento da marcha foi a fundação do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA), em maio de 2000.

A mobilização étnica no Baixo Tapajós foi construída a partir do reconhecimento dos vínculos de ancestralidade, da negação de extinção de identidades indígenas e da autoidentificação dessas subjetividades. Segundo Vaz Filho (2010), assumindo a identidade de indígenas eles estavam superando a vergonha e desafiando o secular processo de invisibilização dessa população que, de fato, não havia sido extinta. Como destacado na seção1 acima, toda essa mobilização é articulada por um processo de rememoração que retoma memórias de um passado, no qual a memória dos mais velhos começou a ser acionada. Nesse sentido, as oficinas de língua indígena organizadas pelo GCI foram fundamentais.

A primeira oficina de Nheengatu aconteceu em janeiro de 1999, em Santarém, com assessoria de Celina Cadena, do povo baré, da região do rio Negro (AM). Em 2000, foram realizadas mais duas oficinas de Nheengatu, voltadas para as comunidades indígenas, com o objetivo de fazer valorização das tradições e costumes, rememoração da história regional e retomada de língua e culturas indígenas.

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Além das oficinas de Nheengatu, o GCI também realizava cursos sobre direitos indígenas e formação de lideranças. E após o I Encontro dos Povos Indígenas, outros encontros, cada vez com mais participantes, passaram a ser realizados anualmente. Estes grandes encontros indígenas reuniam participantes de todas as aldeias, e foram os momentos mais decisivos para o crescimento e solidificação de uma auto-consciência cultural e identitária indígena na região (SILVA; VAZ FILHO, 2018, p. 112)

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Argumentamos que a mobilização étnica está intrinsecamente ligada com a retomada linguística do Nheengatu no Baixo Tapajós, isso quer dizer que os processos de reelaboração étnica e cultural que começaram na virada do século XXI configuraram outro discurso sobre a existência e resistência indígenas, quando a historiografia oficial dava como extintas as alteridades indígenas nessa região.

O breve panorama sócio-histórico que resgatamos aqui reflete duas perspectivas. A primeira delas é representada por um conjunto de relatos parte da historiografia oficial sobre a ocupação indígena da região, tomando os principais viajantes, missionários e agentes coloniais dos séculos XVII ao XX. A outra perspectiva é a voz subalternizada dos povos indígenas que têm construído um processo de mobilização étnica, e como eles se reinscrevem e se colocam como narradores de sua história de resistência e insurgência nos mais de vinte anos desse processo, responsáveis por outra dinâmica local, e que se consolidaram em um pujante processo de “reindianização” no Baixo Tapajós.

Consideramos fundamental contextualizar essa mobilização étnica, sua luta por seus direitos constitucionais à terra e ao seu reconhecimento legal como povos originários. Dessa maneira, a frase “eu existo, não neguem a nossa existência”[1] tem sido a máxima no Movimento Indígena no Baixo Tapajós, dada a constante deslegitimação dos processos de retomadas indígenas articuladas pelos povos e suas organizações na região.

4. Considerações finais

O movimento de retomada, (re)vitalização e fortalecimento de línguas indígenas no Brasil faz parte do “levante e protagonismo indígena” (RUBIM; BOMFIM; SILVA MEIRELLES, 2022), em um cenário no qual os próprios povos indígenas estão à frente da garantia dos seus direi­tos e de sua diversidade linguístico-cultural. Esse movimento tem sido articulado, nacionalmente, em meio à Década Internacional das Línguas Indígenas (DILI, 2022-2032) pelo Grupo de Trabalho Nacional da DILI. Essa agenda internacional pode oferecer condições para a construção de instrumentos, políticas públicas e apoio às iniciativas que buscam fortalecer, revitalizar e retomar línguas indígenas.

No Baixo Tapajós, o levante linguístico indígena que retoma o Nheengatu é parte fundamental da mobilização étnica, que por meio da rememoração, constrói novas possibilidades de existências e re-existências. As políticas de retomada surgem como estratégia política que revisita o passado, as memórias, na construção do presente, e representa a persistência dos povos do Baixo Tapajós a partir da reinscrição de seus modos de ser/ pensar/sentir.

Ao retomarem memórias, discursos e práticas como ancestrais, reinscrevem suas coletividades indígenas no cenário social e suas práticas linguísticas no cenário sociolinguístico outrora tido como monolíngue em português. A compreensão de continuidade e persistência de repertórios linguísticos e práticas socioculturais se expressa por meio da rememoração. Nessa perspectiva, os conceitos de repertório e continuum linguístico são fundamentais para a discussão que desenvolvemos, na qual as práticas, linguísticas e culturais, não estão circunscritas a elementos reificados, como “depositórios ontológicos” (MAHER, 2016), mas são concebidas como conjunto de recursos, práticas, concepções dinâmicas e criativas. Esse repertório indígena se atualiza nas experiências rememoradas e ressignificadas.

Dentro da conjuntura de retomadas indígenas, outros povos indígenas brasileiros têm protagonizado também, junto com outros parceiros, ações/políticas de retomada linguística. Por isso é importante compreender esse processo articulado no Baixo Tapajós como parte de um amplo movimento de retornos étnicos, no qual as línguas indígenas têm tido centralidade. Assim, há outros aspectos das pesquisas de línguas indígenas, principalmente nesses contextos de retomadas, que precisam ser amplamente analisados e visibilizados. É desse modo, em meio às lutas históricas, que os povos indígenas brasileiros têm articulado movimentos pujantes de resistência, e os projetos de revitalização e retomadas representam isso. Essas ações são o “levante linguístico indígena”.

Informações Complementares

Conflito de Interesse

A autora não tem conflito de interesse a declarar.

Declaração de Disponibilidade de Dados

Os dados, códigos e materiais que suportam os resultados deste estudo estão disponíveis para consulta sob demanda em drive institucional de responsabilidade da autora.

Pesquisa com Seres Humanos

A pesquisa foi realizada seguindo os protocolos exigidos à pesquisa com seres humanos, aprovado por comitê de ética com o seguinte número de Certificação de Apresentação de Apreciação Ética: 81203717.2.0000.8142, tendo o consentimento das comunidades indígenas envolvidas.

Referências

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Avaliação

DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2024.V5.N1.ID692.R

Decisão Editorial

EDITOR 1: Ana Vilacy Moreira Galucio

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0168-1904

FILIAÇÃO: Museu Paraense Emílio Goeldi, Pará, Brasil.

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EDITOR 2: Ângela Fabíola Alves Chagas

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4925-1711

FILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Pará, Brasil.

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CARTA DE DECISÃO:

Rodadas de Avaliação

AVALIADOR 1: Bruno Gonçalves Carneiro

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7417-2548

FILIAÇÃO: Universidade Federal do Tocantins, Tocantins, Brasil.

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AVALIADOR 2: Sarah Shulist

FILIAÇÃO: Queen's University Canada, Kingston, Canadá.

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RODADA 1

AVALIADOR 1

2023-09-01 | 08:23 AM

O artigo é um recorte da tese de doutorado intitulada “A reinscrição de uma língua destituída: o Nheengatu no Baixo Tapajós”. O texto apresenta um objeto de investigação bem delimitado e seções devidamente fundamentadas e que dialogam entre si. As reflexões são inéditas. A autora apresenta discussões robustas: há um confronto consistente de dados da historiografia oficial com memórias dos povos indígenas no Baixo Tapajós e fatos atuais. Conceitos como língua adormecida, rememoração, ressignificação, subversão, mobilização étnica, acionamento de memórias e memória coletiva dialogam de maneira crítica e criativa. Apresento sugestões de ajuste mínimos de ordem ortográfica e supressão de três frases que indicam capítulos da tese. Artigo apto para publicação.

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AVALIADOR 2

2023-10-10 | 04:58 PM

Este artigo trata de um aspeto importante do processo de retomada de lingua e cultura - a rememoração da língua e a conexão entre esse trabalho e as ações políticas. Utilizando entrevistas e observações de oficinas linguísticas, feitas durante uma pesquisa colaborativa, a autora descreve como é que a língua Nheengatú fica-se situada como uma língua de identificação étnica mesmo por um povo que foi mal-clasificado como "caboclo". Nos últimos décadas, seguindo o movimento ind´igena do Brasil, a retomada de identidade indígena tem sido importante, e o papel dessa língua merece consideração. Este artigo seria interessante para linguistas e antropólogos trabalhando no assunto de retomada línguistica e cultural, e também para aqueles com interesse nas questões sociolínguisticas de identidade.

Resposta dos Autores

DOI: https://doi.org/10.25189/2675-4916.2024.V5.N1.ID692.A

RODADA 1

2023-11-25

Quanto ao primeiro avaliador, corrigi os seguintes pontos:

Página 5 (linha 17): corrigi o espaço entre a palavra Noronha, o parêntese e o colchete.

Página 12 (linha 27): corrigi adicionando o ano na menção ao texto de Leanne Hinton.

Página 20: retirei a expressão “Trataremos de exemplos similares no quinto capítulo”.

Página 21: retirar o trecho “Tratamos disso na discussão dos dados no capítulo seguinte”.

Página 21 – Nota de rodapé 13, retirei o trecho “tratamos dele com mais detalhes na última seção deste capítulo”.

Quanto ao segundo avaliador, fiz os seguintes ajustes:

1) Re-organização, transformando a terceira seção (análise de dados) na primeira seção;

2) Tratei de diferenciar o conceito de língua adormecida utilizada pelos participantes da pesquisa do conceito desenvolvido no trabalho de Hinton;

3) Tentei ampliar a discussão das categorias ‘caboclo/ribeirinho’ e ‘indígena’ e como isso se relaciona com a retomada do Nheengatu no Baixo Tapajós;

Como Citar

SILVA MEIRELLES, S. R. da. O processo de rememoração como estratégia da política de retomada do Nheengatu no Baixo Tapajós. Cadernos de Linguística, [S. l.], v. 5, n. 1, p. e692, 2024. DOI: 10.25189/2675-4916.2024.v5.n1.id692. Disponível em: https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/692. Acesso em: 12 dez. 2024.

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